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A LC 219/25 e o retrocesso do sistema de inelegibilidades

A LC 219/25 promoveu alterações na LC 64/90, especialmente importantes em ano que antecede o pleito eleitoral. As regras devem ser conhecidas e aplicadas em consonância aos princípios constitucionais.

1/12/2025

A inelegibilidade, condição negativa para o pleno exercício da capacidade eleitoral passiva, ostenta assento constitucional (CF/88, art. 14 §§ 7º e 9º) e infraconstitucional (LC 64/1990). A legislação complementar estabelece casos de inelegibilidade, prazos de cessação, além de determinar outras providências, tudo em consonância aos princípios que regem a Administração Pública (CF/88, art. 37, caput), em especial, a legalidade e a moralidade.

José Jairo Gomes define o instituto como “impedimento ao exercício da cidadania passiva, de maneira que o cidadão fica impossibilitado de ser escolhido para ocupar cargo político-eletivo. Em outros termos, trata-se de fator negativo cuja presença obstrui ou subtrai a capacidade eleitoral passiva do nacional, tornando-o inapto para receber votos e, pois, exercer mandato representativo” (Gomes, José Jairo. Direito Eleitoral, 19 ed., ver., atual. e ampl. Barueri, São Paulo, Editora Atlas, 2023, p. 185).

Com efeito, a questão passou por importante alteração com a lei da ficha limpa (LC 135/10), que endureceu a normativa, diante do clamor popular que gerou a mobilização de vários setores da sociedade brasileira. Ocorre que, após cerca de onze anos, entrou em vigor a recém-sancionada LC 219/25, que alterou dispositivos legais oriundos de conquistas populares e enfraqueceu, sobremaneira, o afastamento do cenário eleitoral de agentes políticos alvos de sanções administrativas e judiciais.

No presente artigo, pretende-se destacar as alterações promovidas nas alíneas “b”, “c”, “e”, “k”, “l” e “o”, do art. 1º, I, da LC 64/1990. Todas, conforme se verá, reduzem as hipóteses e/ou lapsos temporais da inelegibilidade, enfraquecendo o instituto e possibilitando o retorno mais rápido de pessoas sem condição eleitoral passiva ao cenário eleitoral. O conhecimento e a compreensão sobre as alterações tornam-se essenciais dada a proximidade ao ano eleitoral. Mais ainda, visto que já estão em pleno vigor e surtirão efeitos no pleito do ano de 2026.

As alíneas “b”, “c” e “k” foram alteradas quanto ao marco inicial do prazo de oito anos de inelegibilidade. Anteriormente, os membros do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas, da Câmara Legislativa e das Câmaras Municipais que tivessem perdido os respectivos mandatos por infringência do disposto nos incisos I e II do caput do art. 55 da Constituição Federal1 ou dos dispositivos equivalentes sobre perda de mandato das Constituições Estaduais e das leis orgânicas dos municípios e do Distrito Federal, estariam inelegíveis para as eleições que se realizassem durante o período remanescente do mandato para o qual foram eleitos e, ainda, nos oito anos subsequentes ao término da legislatura. Agora, o termo inicial da contagem do prazo de inelegibilidade passa a ser a data da decisão que decretar a perda do cargo eletivo.

Outrossim, na mesma linha, o governador e o vice-governador de Estado e do Distrito Federal e o prefeito e o vice-prefeito que perderem seus cargos eletivos por infringência do disposto na Constituição Estadual, na lei orgânica do Distrito Federal ou na lei orgânica do município; e o presidente da República, o governador de Estado e do Distrito Federal, o prefeito e os membros do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas, da Câmara Legislativa e das Câmaras Municipais que renunciarem a seus mandatos desde o oferecimento de representação ou de petição capaz de autorizar a abertura de processo por infringência de dispositivo da Constituição Federal, da Constituição Estadual, da lei orgânica do Distrito Federal ou da lei orgânica dos municípios, ficarão inelegíveis nos oito anos subsequentes à data da decisão que decretar a perda do cargo eletivo; ou à data da renúncia ao cargo eletivo.

Ou seja, ao lapso temporal de oito anos não se soma mais o período remanescente do mandato perdido ou objeto de renúncia, havendo considerável redução tempo total de incidência da inelegibilidade.

A alínea “e” prevê as hipóteses de inelegibilidade ocasionadas pelas condenações criminais transitadas em julgado, ou proferidas por órgão judicial colegiado. Na regência anterior, em quaisquer das hipóteses elencadas nos itens 1 a 10, a inelegibilidade vigorava desde a condenação até o transcurso do prazo de oito anos após o cumprimento da pena.

Atualmente, a norma difere as consequências, aparentemente, fundada na gravidade do crime cometido. Assim, para os itens 1 a 5 (crimes contra a economia popular, a fé pública, a administração pública e o patrimônio público; contra o patrimônio privado, o sistema financeiro, o mercado de capitais e os previstos na lei que regula a falência; contra o meio ambiente e a saúde pública; eleitorais, para os quais a lei comine pena privativa de liberdade; de abuso de autoridade, nos casos em que houver condenação à perda do cargo ou à inabilitação para o exercício de função pública) a inelegibilidade vigorará desde a referida condenação até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos.

Para os itens 6 a 10 (crimes de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores; de tráfico de entorpecentes e drogas afins, racismo, tortura, terrorismo e hediondos; de redução à condição análoga à de escravo; contra a vida e a dignidade sexual; e praticados por organização criminosa, quadrilha ou bando) o legislador manteve o termo final como o transcurso do prazo de oito anos após o cumprimento e, pois, a extinção da pena.

Por sua vez, a alínea “l” trouxe relevante alteração, que merece atenção dos operadores do direito, sob pena de tornar o dispositivo com a redação atual letra morta.

A normativa, em sua redação anterior, previa a inelegibilidade aos condenados à suspensão dos direitos políticos, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, por ato doloso de improbidade administrativa que importasse lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito, desde a condenação ou o trânsito em julgado até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena.

Com entendimento consolidado, a Justiça Eleitoral afirmava que a análise da configuração do ato doloso de improbidade administrativa, bem como a presença das consequências de lesão ao erário e enriquecimento ilícito prescindiam de decisão anterior em ação própria.

Nesse sentido, “a Justiça Eleitoral pode aferir os requisitos de inelegibilidade com base na fundamentação da decisão condenatória da Justiça Comum, ainda que o enriquecimento ilícito de terceiro não conste expressamente na parte dispositiva, podendo a configuração dos requisitos ser extraída ‘a partir do exame da fundamentação do decisum condenatório’ proferido pela Justiça Comum (REspEl 15725, DJe de 29/6/2018)” (TSE, Agravo Regimental no Recurso Especial Eleitoral 060010769, Acórdão, relator(a) min. André Mendonça, Publicação: PSESS - Publicado em Sessão, 26/11/2024).

A presença dos requisitos, portanto, era objeto de análise pela própria Justiça Especializada, que aferia da sentença condenatória a presença cumulativa dos seguintes requisitos: a) condenação à suspensão dos direitos políticos por decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado do Poder Judiciário; b) ato doloso de improbidade administrativa; c) lesão ao patrimônio público; e d) enriquecimento ilícito próprio ou de terceiros (TSE, Agravo Regimental No Recurso Especial Eleitoral 060042120/SP, relator(a) min. Floriano De Azevedo Marques, Acórdão de 9/5/2025, Publicado no(a) Diário de Justiça Eletrônico 82, data 23/5/2025)

Ocorre que a alteração, aparentemente sutil, consistiu em verdadeira reação legislativa ao entendimento jurisprudencial (backlash), e passou a exigir para fins de incidência na hipótese da “l” a condenação à suspensão dos direitos políticos, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, por ato doloso de improbidade administrativa que importe, concomitantemente, na parte dispositiva da decisão, lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito, desde a condenação por órgão colegiado até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos. Ou seja, doravante, os pressupostos “lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito” devem vir gravados na parte dispositiva da sentença, não mais podendo ser extraídos apenas na fundamentação.

A reação vem, ainda, na esteira de retrocesso legislativo também na lei de improbidade administrativa, com as alterações promovidas pela lei 14.230/21. Contraditoriamente, a atual redação da lei de improbidade veda a tipificação de um único ato em mais de um dispositivo legal.

Segundo o art. 17, §10-D da referida norma, para cada ato de improbidade administrativa, deverá necessariamente ser indicado apenas um tipo dentre aqueles previstos nos arts. 9º, 10 e 11 desta lei.

Ou seja, uma conduta, comissiva ou omissiva, não poderá ensejar a condenação por improbidade administrativa concomitantemente nas iras dos arts. 9º e 10º, da lei 8429/1992 (o que parece ser exigido pela redação atual da LC 64/90).

A aparente contradição deve ser resolvida pelos intérpretes, sendo fundamental que o Poder Judiciário se atente para que conste no dispositivo da sentença condenatória por improbidade as consequências de prejuízo ao erário e de enriquecimento ilícito, ainda que o ato ilícito seja inserido em apenas um tipo, conforme determinação legal. Se não houver tal indicação, não parece possível que tal constatação possa ser feita pela Justiça Eleitoral, que não mais detém competência para extrair a inelegibilidade da fundamentação da sentença condenatória por ato de improbidade administrativa, nos termos do art. 1, I, “l”, da LC 64/1990.

A questão, certamente, será objeto de intensos debates jurídicos, a fim de harmonizar os dispositivos, sem que a legislação complementar, oriunda de mandado constitucional, torne-se letra morta.

Por último, considera-se a restrição da hipótese prevista na alínea “o”. Os que foram demitidos do serviço público em decorrência de processo administrativo ou judicial, estarão inelegíveis pelo prazo de oito anos contados da decisão, exigindo a nova redação que o fato que der causa à demissão seja equiparado a ato de improbidade administrativa. Diferentemente da alínea “l”, não se extrai do dispositivo a exigência de que haja prévia ação de improbidade, ou que a questão conste de anterior decisão administrativa ou judicial. Nesse caso, entende-se plenamente possível que a análise da presença dos requisitos seja realizada pela Justiça Eleitoral, conforme o entendimento consolidado do TSE para a alínea “g” do mesmo dispositivo. A ver:

[...] 6. Segundo jurisprudência há muito consolidada nesta Corte Superior, compete à Justiça Eleitoral analisar todos os requisitos para a incidência da inelegibilidade da alínea g do inciso I do art. 1º da LC 64/90, sem que haja necessária vinculação ao juízo exercido pela Corte de Contas ou mesmo pela Justiça Comum em ação de improbidade administrativa. (TSE, Agravo Regimental no REsp eleitoral 060018143, Acórdão, relator(a) min. Floriano De Azevedo Marques, Publicação: PSESS - Publicado em Sessão, 12/12/2024).

Importa destacar, ainda, que o veto presidencial cuidou de afastar a aplicação retroativa dos dispositivos alterados aos processos em trâmite e aos já julgados. O projeto encaminhado à presidência previa a aplicação imediata, inclusive, às ações com trânsito em julgado. Com justificativa acertada, a mensagem 1.396, de 29 de setembro de 2025 fundamentou-se no fato de que a inovação normativa afrontaria diretamente o princípio da segurança jurídica, assegurado no art. 5º, caput, inciso XXXVI, da Constituição, notadamente, ao relativizar a coisa julgada por norma infraconstitucional, sob pena de se incorrer em inconstitucionalidade.

Diante desse cenário e, ainda, na linha do que julgou recentemente o Supremo Tribunal, em sede repercussão geral, sobre a aplicação intertemporal das alterações promovidas pela lei 14.230/21 na lei 8.429/19922, é provável que vigore a irretroatividade dos dispositivos, que apesar de serem mais benéficos aos destinatários, não ostentam caráter penal (CF/88, art. 5º, inciso XL).

Conclui-se, portanto, que as alterações legislativas são relevantes e muito importantes na prática, pois gerarão efeitos de grande extensão no pleito eleitoral do ano de 2026. É necessário bem compreendê-las, evitando-se que sejam aplicadas de modo que esvaziem o mandado constitucional de proteção à probidade administrativa e à moralidade para exercício de mandato.

_______

1 Art. 55. Perderá o mandato o Deputado ou Senador:

I - que infringir qualquer das proibições estabelecidas no artigo anterior;

II - cujo procedimento for declarado incompatível com o decoro parlamentar;

2 STF, ARE 843989, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 18/8/2022, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-251 DIVULG 09-12-2022 PUBLIC 12/12/2022

Danielle Torres Teixeira
Assessora jurídica do Ministério Público Federal, graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, Pós Graduada em Ciências Criminais pela Fundação Escola Superior do MPMG.

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