1. Introdução
A judicialização envolvendo materiais essenciais em procedimentos cardiológicos de alta complexidade tornou-se um fenômeno crescente na saúde suplementar. Não é incomum que operadoras autorizem o procedimento principal, mas neguem os insumos indispensáveis para sua execução, especialmente em tratamentos que envolvem tecnologias avançadas.
Foi o que ocorreu em um caso apreciado recentemente pela Justiça do Distrito Federal, no qual uma paciente oncológica, portadora de taquicardia atrial paroxística, obteve liminar determinando o custeio integral da ablação cardíaca, incluindo o uso do cateter intracardíaco Soundstar, negado pelo plano de saúde.
A decisão traz novos contornos ao debate sobre a cobertura de OPMEs e os limites da atuação das operadoras, ao reafirmar que a negativa de materiais que viabilizam o procedimento equivale, na prática, à negativa da própria cirurgia.
2. A técnica da ablação cardíaca e o papel do cateter Soundstar
A ablação cardíaca por cateter é um procedimento indicado para o tratamento de diversas arritmias, entre elas a taquicardia atrial paroxística. Trata-se de intervenção que exige mapeamento eletroanatômico tridimensional, recurso que permite ao médico identificar com precisão os focos da arritmia no interior do átrio.
O cateter Soundstar é um dos dispositivos que integram esse sistema. Ele fornece imagens intracardíacas em tempo real, melhora a navegação durante o procedimento e reduz riscos relacionados à aplicação da energia ablativa.
Sem esse material, o procedimento perde precisão e, em muitos casos, torna-se inviável. A negativa da operadora, portanto, não diz respeito a um “acessório”, mas ao componente essencial da própria técnica indicada.
3. A justificativa das operadoras e o equívoco da interpretação restritiva do rol da ANS
As operadoras têm alegado com frequência que materiais como o Soundstar não constam no rol de procedimentos e eventos em saúde da ANS, ou que a DUT 53 - Diretriz de Utilização não exigiria o uso de tais dispositivos.
Essa leitura, contudo, não encontra respaldo normativo.
O rol da ANS lista procedimentos e não marcas ou modelos de materiais. É irrelevante que o cateter Soundstar não conste nominativamente na regulação - a cobertura decorre da sua vinculação funcional ao ato cirúrgico coberto.
A própria ANS, no parecer técnico 24/GCITS/24, esclarece que os OPME’s indispensáveis ao procedimento previsto no rol devem ser fornecidos, independentemente da marca comercial ou da nomenclatura utilizada pelo fabricante.
4. A legislação aplicável: Cobertura obrigatória dos materiais essenciais
A legislação da saúde suplementar é clara quanto aos deveres das operadoras:
- Lei 9.656/1998, art. 10, VII: Podem ser excluídos apenas materiais não ligados ao ato cirúrgico;
- RN 465/21, art. 19, VI: a Operadora deve custear todos os insumos diretamente relacionados ao procedimento coberto;
- CDC, art. 47: Cláusulas restritivas são interpretadas de forma mais favorável ao beneficiário.
Dessa forma, havendo cobertura da ablação cardíaca e havendo necessidade técnica de cateter específico para a sua realização, a negativa da operadora não se sustenta juridicamente.
5. Autonomia médica e limites da substituição unilateral
A substituição unilateral de materiais sugerida por operadoras - muitas vezes alegando alternativas mais baratas ou genéricas - afronta diretamente a autonomia médica.
A escolha do cateter depende de:
- Compatibilidade com o sistema de mapeamento do hospital,
- Condição anatômica do paciente,
- Segurança intraoperatória,
- Experiência e técnica do profissional,
- particularidades da arritmia.
O STJ já firmou entendimento de que operadoras não podem interferir na indicação profissional nem determinar a técnica utilizada.
A negativa, portanto, representa ingerência indevida no ato médico.
6. A decisão liminar: Fundamentos e relevância
Ao analisar o caso, o magistrado reconheceu:
- A probabilidade do direito, diante da cobertura contratual da ablação;
- O vínculo técnico direto entre o cateter e o procedimento;
- O risco de dano de difícil reparação, especialmente considerando a condição oncológica da paciente;
- A inexistência de justificativa normativa válida para a negativa.
Determinou, assim, que o plano de saúde autorizasse e custeasse integralmente a ablação cardíaca com o cateter Soundstar e demais insumos indicados pelo médico assistente.
Trata-se de medida que preserva a eficácia do tratamento e garante que o procedimento seja realizado de acordo com o padrão técnico adequado.
Conclusão
A recusa do cateter Soundstar evidencia uma prática cada vez mais recorrente de fragmentação da cobertura por parte das operadoras de saúde. No entanto, a legislação, a regulação da ANS e a orientação jurisprudencial convergem no sentido de garantir o custeio de todos os materiais imprescindíveis à realização de procedimentos cardiológicos de alta complexidade.
A decisão liminar analisada reafirma que o direito à saúde não pode ser limitado por interpretações administrativas que distorcem a finalidade do contrato. Quando o procedimento está coberto e o material é necessário, não cabe ao plano de saúde restringir a tecnologia, mas assegurar sua disponibilização integral.