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Cláusula de não indenizar em contratos médicos é válida?

Cláusulas de não indenizar em contratos médicos violam direitos da personalidade e são nulas de pleno direito. Entenda por que o ordenamento jurídico impede que o paciente renuncie antecipadamente à sua própria proteção.

12/12/2025
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A crescente judicialização na área da saúde tem provocado insegurança tanto nos profissionais quanto nos pacientes. De um lado, médicos receiam que sua autonomia técnica seja limitada pelo medo de futuras ações judiciais; de outro, pacientes buscam respostas imediatas em um sistema complexo, muitas vezes influenciados por informações midiáticas e pelo auxílio de profissionais que atuam de forma predatória no litígio.

Diante deste cenário preocupante, principalmente em especialidades como a cirurgia plástica, tem-se difundido o uso de cláusulas de “não indenizar” nos contratos médicos, como tentativa de proteger o profissional contra responsabilizações futuras. Tal prática, entretanto, suscita dúvidas relevantes quanto à sua possibilidade e legalidade.

Essa discussão só pode ser enfrentada adequadamente quando se reconhece que a relação médico-paciente gira em torno dos direitos da personalidade, núcleo da dignidade humana. Como ensina Maria Helena Diniz, esses direitos garantem a integridade física, intelectual e moral do indivíduo - bens absolutamente indisponíveis, razão pela qual não podem sofrer limitação mesmo que voluntária. Vale lembrar que “bens indisponíveis” são aqueles sobre os quais a pessoa não pode livremente dispor, ou seja, não pode vender, renunciar, desistir, doar, transferir ou onerar, seja por proibição legal, decisão judicial ou pela natureza do próprio bem, como é o caso aqui.

A Constituição Federal (art. 1º, III e art. 5º, X) e o CC (art. 11) consolidam essa proteção, reforçando o caráter irrenunciável desses direitos. As poucas exceções legais - como a doação de órgãos prevista na lei 9.434/1997 - são específicas, estritamente reguladas e jamais configuram renúncia genérica a direitos.

Além disso, o STF já reconheceu que a relação médico-paciente é uma relação de consumo, sujeita ao CDC e fundamentada na vulnerabilidade do paciente. Diante disso, cláusulas de “não indenizar”, “isenção de responsabilidade” ou “renúncia prévia à reparação” são abusivas e nulas de pleno direito, pois violam a dignidade humana, a tutela dos direitos da personalidade, o próprio CDC e a integridade do paciente.

Por essas razões, a jurisprudência e a doutrina são firmes ao reconhecer que nenhuma convenção contratual pode excluir de forma antecipada a responsabilidade decorrente de eventual conduta lesiva, sobretudo em relações de saúde, nas quais prevalece o princípio da boa-fé objetiva, o dever de cuidado e a proteção inafastável do paciente enquanto parte vulnerável.

Em síntese, não é juridicamente possível excluir antecipadamente a responsabilidade civil médica por meio de cláusula contratual, porque o paciente não pode renunciar à proteção de bens personalíssimos. O dever de indenizar, quando preenchidos os requisitos essenciais (ato ilícito, dano e nexo de causalidade) decorre da lei (arts. 186 e 927 do CC) e não pode ser afastado quando estão em jogo a saúde, a integridade e a dignidade da pessoa humana.

Embora as partes tenham liberdade de contratar, este não é um caminho eficiente e juridicamente possível para proteger os profissionais da área de saúde. O equilíbrio e a confiança são a base da relação médico-paciente, fatores que podem ser ameaçados por cláusulas como essa.

Assim, para que os profissionais e empresas de saúde se resguardem adequadamente, a melhor alternativa é fortalecer a relação médico-paciente por meio de informações claras, comunicação transparente, registro adequado e obtenção do consentimento livre e esclarecido de forma expressa. Soma-se a isso a adoção de seguros de responsabilidade civil e demais medidas de Direito Médico Preventivo, que oferecem proteção real e compatível com o ordenamento jurídico vigente.

Por fim, importante mencionar que contar com o acompanhamento de um advogado especializado em Direito Médico é fundamental para orientar o profissional e empresas sobre práticas preventivas, revisar contratos, estruturar adequadamente o consentimento informado e analisar riscos jurídicos. A assessoria jurídica contínua não apenas reduz a chance de litígios, garantindo que a atuação médica esteja sempre alinhada às normas éticas e legais.

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SOUZA, Wendell Lops Barbosa de. O erro médico nos tribunais. 2. ed. Indaiatuba: Editora Foco, 2025.

ROSENVALD, Nelson; VIANA BANDEIRA, Luiz Octávio Villela: Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/reforma-do-codigo-civil/419328/a-clausula-de-nao-indenizar-na-responsabilidade-civil-na-reforma-do-cc . Acesso em: 10 dez. 2025.

CARVALHO, Rotieh Machado. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/responsabilidade-do-medico-a-luz-do-codigo-de defesa-do-consumidor-e-a-clausula-de-nao-indenizar/776543655 Acesso em: 10 dez. 2025.

Autor

Lyana Oliveira Breda Advogada associada ao escritório Lemos Advocacia para Negócios desde 2016. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) em 2014. Pós-graduanda em Direito Médico pela Damásio Educacional.

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