O presente texto consiste em análise técnico-jurídica do PL 2.162/23, aprovado pela Câmara dos Deputados, que promove alterações relevantes no regime de execução penal, na disciplina da progressão de regime, na remição da pena e em institutos estruturantes da parte geral do CP, como o concurso de crimes. A análise parte de uma leitura sistemática do ordenamento jurídico-penal brasileiro, com especial atenção à coerência interna do sistema, à compatibilidade das alterações propostas com princípios estruturantes do Direito Penal e da execução penal, bem como aos seus efeitos práticos e sistêmicos, para além das situações conjunturais que motivaram a iniciativa legislativa.
Tabela comparativa:
|
Como era |
Como ficou |
|
Art. 112. A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos: |
|
|
I - 16% (dezesseis por cento) da pena, se o apenado for primário e o crime tiver sido cometido sem violência à pessoa ou grave ameaça; |
Art. 112. A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos 1/6 (um sexto) da pena no regime anterior e seu mérito indicar a progressão, observadas as seguintes exceções: |
|
II - 20% (vinte por cento) da pena, se o apenado for reincidente em crime cometido sem violência à pessoa ou grave ameaça; |
III – Se o apenado for reincidente em crimes diversos dos apontados nos incisos I e II, deverá ser cumprindo ao menos 20% (vinte por cento) da pena; |
|
III - 25% (vinte e cinco por cento) da pena, se o apenado for primário e o crime tiver sido cometido com violência à pessoa ou grave ameaça; |
I – Se o apenado for primário e for condenado pela prática de crimes previstos nos Títulos I e II da Parte Especial do Código Penal mediante exercício de violência ou grave ameaça, deverá ser cumprido ao menos 25% (vinte e cinco por cento) da pena; |
|
V - 40% (quarenta por cento) da pena, se o apenado for condenado pela prática de crime hediondo ou equiparado, se for primário; |
IV – Se o apenado for condenado pela prática de crime hediondo ou equiparado e for primário, deverá ser cumprido ao menos 40% (quarenta por cento) da pena; |
|
VI - 50% (cinquenta por cento) da pena, se o apenado for: a) condenado pela prática de crime hediondo ou equiparado, com resultado morte, se for primário, vedado o livramento condicional; |
V – Se o apenado for condenado pela prática de crime hediondo ou equiparado, com resultado morte e se for primário, vedado o livramento condicional, deverá ser cumprido ao menos 50% (cinquenta por cento) da pena; |
|
VI - 50% (cinquenta por cento) da pena, se o apenado for: b) condenado por exercer o comando, individual ou coletivo, de organização criminosa estruturada para a prática de crime hediondo ou equiparado; ou |
VI – Se o apenado for condenado por exercer o comando, individual ou coletivo, de organização criminosa estruturada para a prática de crime hediondo ou equiparado, deverá ser cumprido ao menos 50% (cinquenta por cento da pena); |
|
VI - 50% (cinquenta por cento) da pena, se o apenado for: c) condenado pela prática do crime de constituição de milícia privada; |
VII – Se o apenado for condenado pela prática do crime de constituição de milícia privada, deverá ser cumprido ao menos 50% (cinquenta por cento) da pena; |
|
VI-A – 55% (cinquenta e cinco por cento) da pena, se o apenado for condenado pela prática de feminicídio, se for primário, vedado o livramento condicional; |
VIII – Se o apenado for condenado pela prática de feminicídio e se for primário, vedado o livramento condicional, deverá ser cumprido ao menos 55% (cinquenta e cinco por cento) da pena; |
|
VII - 60% (sessenta por cento) da pena, se o apenado for reincidente na prática de crime hediondo ou equiparado; |
IX – Se o apenado for reincidente na prática de crime hediondo ou equiparado, deverá ser cumprido ao menos 60% (sessenta por cento) da pena; |
|
VIII - 70% (setenta por cento) da pena, se o apenado for reincidente em crime hediondo ou equiparado com resultado morte, vedado o livramento condicional. |
X – Se o apenado for reincidente em crime hediondo ou equiparado com resultado morte, vedado o livramento condicional, deverá ser cumprido ao menos 70% (setenta por cento) da pena.” (NR) |
Principais mudanças:
i. Alteração no caput
Para crimes comuns (não hediondos), a progressão volta a ser de 1/6 da pena, como era antes da reforma de 2019. Com efeito, o pacote anticrime havia transformado todas os marcos de progressão em percentuais ao invés de frações como se utilizava anteriormente.
No projeto aprovado pela Câmara, de uma maneira bastante assistemática, mantem-se o marco em forma de fração no caput, para crimes comuns sem reincidência e, para as demais hipóteses, esses marcos são fixados em forma percentual.
ii. Crimes comuns com violência e grave ameaça
Anteriormente, qualquer crime cometido com violência ou grave ameaça tinha sua progressão com 25% do cumprimento da pena. Agora, apenas os crimes do Título I (crimes contra a pessoa) e Título II (crimes contra o patrimônio), terão a progressão em 25%, no caso de violência ou grave ameaça.
Os crimes contra a dignidade sexual previstos no Título VI, mesmo que cometidos sem violência ou grave ameaça passam a ter progressão com 1/6 da pena.
O mesmo ocorre em crimes contra a incolumidade pública (Título VIII), crimes contra a paz pública (Título IX), crimes contra a fé pública (Título X) e crimes contra a Administração Pública (Título XI). Alguns exemplos de crimes que passam a ter progressão de 1/6, mesmo se cometidos com violência ou grave ameaça são os de incêndio, explosão, atentado contra a segurança de transporte marítimo, fluvial ou aéreo, atentado contra a segurança de outro meio de transporte, associação criminosa, todas as espécies de corrupção e concussão, descaminho, contrabando entre outros.
E, claro, também passam a ter progressão em 1/6, mesmo se cometidos com violência e grave ameaça os crimes do Título XII, entre os quais o golpe de Estado e os crimes contra o Estado Democrático de Direito.
Todos os delitos de diplomas especiais como crimes ambientais, lavagem de dinheiro, crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, crimes da lei de armas e crimes da lei de drogas, crimes de trânsito, etc., também poderão levar a progressão de 1/6, mesmo se cometidos com violência ou grave ameaça.
Observe-se, portanto, que mesmo sendo uma medida pontual e de ocasião, como se reconhece no relatório do PL de lavra do deputado Paulo Pereira da Silva, ela tem efeitos extensos no ordenamento jurídico, podendo ser uma medida desencarceradora em larga escala para uma miríade de crimes que vão muito além dos crimes contra o Estado Democrático de Direito. Esse efeito secundário é muito bem-vindo, mas demandará um amplo esforço nacional para análise de todos os casos em que o lapso para a progressão de regime foi diminuído.
iii. Remissão da pena
A inserção do §9º, no art. 126, deixa claro que “o cumprimento da pena restritiva de liberdade em regime domiciliar não impede a remição da pena”. Embora a remissão já pudesse ser computada, mesmo em regime domiciliar, a explicitação desse direito é um avanço.
iv. Regra de exceção do concurso formal
O PL insere um artigo de disposição final aos crimes contra as instituições democráticas (abolição violenta do Estado de Direito e golpe de Estado) que traz uma exceção à regra geral da parte especial do CP. Diz o proposto art. 359-M-A:
“Quando os delitos deste Capítulo estão inseridos no mesmo contexto, a pena deverá ser aplicada, ainda que existente desígnio autônomo, na forma do concurso formal próprio de que trata a primeira parte do art. 70, vedando-se a aplicação do cômputo cumulativo previsto na segunda parte desse dispositivo e no art. 69 deste Código”.
O CP é dividido em duas partes: (i) uma parte geral, que traz categorias, institutos e princípios reitores aplicáveis a todos os crimes, sejam os do código penal, sejam de legislações especiais e (ii) uma parte especial que traz os crimes em espécie.
A parte geral do CP brasileiro é de 1984 é considerada, ainda hoje, uma legislação moderna e adequada, malgrado as possibilidades de aperfeiçoamento. Ali existem disposições sobre lugar do crime, tempo do crime, causalidade, comissão, omissão, excludentes de ilicitude e culpabilidade, definições de condutas dolosas e culposas entre tantas outras disposições aplicáveis a todo e qualquer crime.
Entre essas disposições estão aquelas atinentes ao concurso material e ao concurso formal de crimes. O art. 69, que trata do concurso material, prevê que “quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplicam-se cumulativamente as penas privativas de liberdade em que haja incorrido”. Já o art. 70, que trata do concurso formal dispõe que “quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplica-se-lhe a mais grave das penas cabíveis ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até metade” e ainda excetua que “as penas aplicam-se, entretanto, cumulativamente, se a ação ou omissão é dolosa e os crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos, consoante o disposto no artigo anterior”.
Em síntese, no concurso material, somam-se as penas de dois crimes. No concurso formal, em regra, aplica-se a pena de apenas um dos delitos, com um aumento de pena, salvo no caso de crimes com desígnios autônomos.
Trata-se de regra de vigora em nosso ordenamento jurídico a mais de 40 anos e que tem sua redação suficientemente clara para sua aplicação, embora carregue consigo expressões vagas como “desígnios autônomos”. É verdade, também, que há muitos anos, a jurisprudência nacional vem aplicando cada vez mais o concurso material em casos que seriam claramente de concurso formal, como, por exemplo, os casos de embriaguez ao volante e lesão corporal.
O PL aprovado, no entanto, não resolve esse problema. Ele simplesmente cria uma regra de exceção, específica para os crimes pelos quais foram condenados os condenados do 8 de janeiro e da trama golpista. Para esses crimes, independentemente do que diz o CP, ao contrário de todos os demais crimes do ordenamento jurídico, mesmo que haja mais de uma ação ou omissão e mesmo que existam desígnios autônomos sempre deverão ser aplicada a regra do concurso formal.
Trata-se de uma regra de exceção como nenhuma outra de nosso ordenamento jurídico. Jamais se viu uma regra, da parte especial, que alterasse as disposições gerais sobre causalidade, comissão e omissão, dolo e culpa ou sobre concurso de crimes. É uma regra que tende a diminuir substancialmente a pena de acusados, tendo em vista que, por ser mais benéfica, retroage a casos passados, inclusive com trânsito em julgado.
v. Disposição sobre crimes multitudinário
O PL propõe a inserção de uma art. 359-V. que prevê que “quando os crimes previstos neste capítulo forem praticados em contexto de multidão, a pena será reduzida de um terço a dois terços, desde que o agente não tenha praticado ato de financiamento ou exercido papel de liderança”.
Trata-se de mais uma alteração legislativa que tem o objetivo de beneficiar, a toda evidência, um grupo específico.
Conclusão
Embora o PL contenha medidas pontuais que podem ser compreendidas como avanços, o conjunto das alterações propostas revela problemas sistêmicos relevantes para o funcionamento do sistema de justiça criminal. Em especial, a criação de regras de exceção localizadas na parte especial do CP, destinadas a afastar, para determinados crimes, a disciplina geral do concurso de crimes prevista nos arts. 69 e 70 do CP, rompe com a lógica estruturante da codificação penal brasileira, que reserva à parte geral a definição de categorias, conceitos e institutos aplicáveis a todo o sistema. Ao admitir que um tipo penal específico possa afastar, por exceção, regras gerais consolidadas, abre-se espaço para interpretações extensivas e analogia, com potencial de replicação dessa técnica legislativa para outros delitos, fragilizando a previsibilidade, a isonomia e a coerência do sistema penal. O risco não reside apenas nos efeitos imediatos da norma, mas na consolidação de um precedente legislativo que autoriza o fracionamento do regime jurídico do concurso de crimes, comprometendo a unidade dogmática do Direito Penal e ampliando a insegurança jurídica no âmbito da persecução penal e da execução da pena.