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A carta de sesmaria dos engenhos Freguesia, Caboto e Jacaracanga (1553). Resenha histórico-jurídica das origens fundiárias e do direito de propriedade no Brasil colonial

A concessão fundiária quinhentista revela a ocupação estratégica da Baía de Todos os Santos, unindo poder político, exploração econômica e bases da propriedade colonial.

16/12/2025
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1. A sesmaria de 1553 e o contexto da colonização portuguesa no Brasil

A carta de sesmaria concedida a Sebastião Alvares em 1553 deve ser compreendida como ato inserido nas estratégias iniciais da Coroa Portuguesa para consolidar sua posse e exploração do vasto território brasileiro. Esse documento reflete as prioridades políticas e econômicas da época e o modus operandi da administração colonial recém-estabelecida.

1.1. O desembarque de Duarte da Costa e a urgência da ocupação territorial

A rápida sucessão de eventos entre a chegada do segundo Governador-Geral do Brasil, Duarte da Costa, em 13 de junho de 1553, e a outorga da sesmaria a Sebastião Alvares, em 26 de agosto do mesmo ano, é um indicativo eloquente da urgência e da importância estratégica atribuídas à ocupação efetiva do território. Apenas dois meses e meio após o desembarque em Salvador, a Coroa, através de seu representante máximo, promoveu a distribuição de terras em áreas ainda inexploradas, como a península de Matoim.

Sebastião Alvares, descrito como um "cavaleiro fidalgo da Casa d'El Rei Nosso Senhor" e ocupante do cargo de "escrivão da Fazenda Real das terras do Brasil", emerge como figura central nesse processo. Sua nomeação para o cargo de escrivão da Fazenda Real, datada de 10 de março de 1553, em Lisboa, antecede em pouco tempo a partida da expedição de Duarte da Costa. Essa proximidade cronológica e a concessão imediata de importante sesmaria sugerem vínculo pessoal e político robusto entre Alvares e o governador-geral, configurando padrão recorrente na colonização: a delegação de poder fundiário a indivíduos de confiança e com comprovada capacidade de investimento. A posse de Alvares nas terras da sesmaria, registrada em 18 de setembro de 1553, sublinha a celeridade e a determinação da Coroa e dos investidores em transformar o direito formal de concessão em ocupação material e produtiva.

Duarte da Costa, ao contrário de seu predecessor Tomé de Souza que não se aventurou além de Paripe (atual Base Naval de Aratu), empreendeu a travessia das águas do canal de Aratu, marcando o início da colonização efetiva da "outra banda", outrora conhecida como Boca de Matoim. Essa ação não era meramente exploratória, mas ato político de grande significado, representando a expansão concreta da jurisdição portuguesa e a materialização da soberania através de atos de exploração da terra e submissão ao modelo jurídico lusitano.

1.2. A delimitação geográfica e a toponímia da sesmaria original

A carta de sesmaria correspondia a um "quadrado com uma légua de cada lado". A medida da légua portuguesa era comumente equivalente a aproximadamente 6,6 quilômetros. O documento original especifica "uma légua por costa de mar" e "outra légua para o sertão a qual terra lhe dissera e era dada", indicando uma área substancial de cerca de 4.356 hectares. Essa vasta extensão territorial foi situada "defronte da ilha de Maré, no local denominado Paaçé", na Baía de Todos os Santos. O topônimo "Paaçe" (atual Passé) refere-se a uma pequena ilha que deu nome à região continental. Gabriel Soares de Souza (1586) assim descreveu essa referência toponímica: “junto da ponta da enseada, defronte da qual à ilha de Maré está um ilhéu que se chama de Pacé, de onde tomou o nome a terra firme deste limite”.

Os topônimos antigos da região eram Passé (Paaçé) e Matoim. O uso terminou por definir Passé como a região seguinte à Matoim. Matoim era a parte interna da Baía de Aratu e Passé designava a parte situada entre a ilha de Maré a atual enseada de Caboto. No final, estabeleceu-se a dominância da palavra Matoim adotada, inclusive, para designar as terras continentais da Freguesia de Nossa Senhora da Piedade de Matoim.

As confrontações da sesmaria são igualmente reveladoras. O início da terra confrontava "pelo lado do sul com o bacharel Nuno Fernandes" e seguia "pela borda da costa na direção de Ceregipe (atual município de São Francisco do Conde)". A menção a "Nuno Fernandes" como um "bacharel" indica formação universitária, algo incomum e de prestígio na época, sugerindo sua condição social e intelectual elevada. A conexão posterior com a família Antunes, conhecida por ser de Cristãos Novos e por sua rede de investimentos, será abordada adiante.

Essas indicações, combinadas com outras informações históricas e geográficas, permitem inferir que a sesmaria correspondia às terras que futuramente pertenceriam à vários engenhos: Freguesia, Caboto, Jacaracanga, São Jerônimo de Utum, Carnaibusu.

A ribeira do Utum referida por Gabriel Soares de Souza, onde teria grande engenho de Sebastião de Faria, era com grande probabilidade o nome antigo do braço de mar que servia de acesso marítimo à Passagem dos Teixeiras, vizinha a BR-324. A parte alta era conhecida como outeiro de Utum e lá viveu Ana Rodrigues, matriarca da família Anunes, cristã nova, presa pela Inquisição, enviada para Lisboa, onde morreu longe do seu engenho de Utum. Nesse lugar também foram presas no ano de 1600 as suas filhas Beatriz e Leonor, esposas de Sebastião de Faria e Henrique Muniz Teles.

Em termos contemporâneos, essa área engloba a vizinhança do Porto de Aratu, incluindo o distrito de Caboto, o Museu do Recôncavo e parte das terras do Centro Industrial de Aratu, estabelecendo vínculo histórico direto entre a concessão quinhentista e a infraestrutura industrial moderna da Bahia.

1.3. A sesmaria como instrumento jurídico de colonização e o domínio funcional

A outorga da sesmaria a Sebastião Alvares por Duarte da Costa não constituiu ato de mera liberalidade da Coroa, mas medida jurídica estratégica para assegurar o controle e a exploração efetiva do vasto território colonial da Baía de Todos os Santos. O documento transcrito evidencia o caráter eminentemente funcional da propriedade colonial, que era normatizada pelo Regimento e pelas Ordenações do Reino. A Coroa Portuguesa, detentora do domínio eminente sobre as terras descobertas, concedia o domínio pleno, mediante certas regras de exploração em certo tempo, estabelecendo regime típico de propriedade.

O cerne jurídico dessa concessão residia na obrigação imposta ao beneficiado de "romper" (desmatar), "fortificar" e "aproveitar" a terra em certo prazo de três anos, sob pena de caducidade da concessão. A caducidade da sesmaria exigia notificação prévia para sua implementação e não era usual ou corrente. Envolvia riscos de insegurança jurídica e receios relacionados com a perda de investimentos.

A carta de sesmaria de 1553 especificava ainda obrigações tributárias de Sebastião Alvares. Embora o título fosse concedido "forro e isento" de foro perpétuo (não era enfiteuse), o documento estabelecia a obrigação de pagamento do dízimo sobre as "novidades e criações". Este dízimo era um tributo real e que na prática servia para manter o custeio da despesa estatal.

Leia o artigo na íntegra.

Autor

Luiz Walter Coelho Filho Sócio-fundador do escritório Menezes, Magalhães, Coelho e Zarif Sociedade de Advogados. Graduado em Direito pela UFBA, ano de 1985. Exerce a advocacia nas áreas de Direito Administrativo e Imobiliário

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