Em setembro de 2025, cerca de 49% dos processos distribuídos nas turmas do STJ foram para as turmas de Direito Penal. Até outubro de 2025, as duas turmas criminais já haviam julgado mais de 140 mil processos. Esses números revelam um dado alarmante: a pauta criminal domina o STJ, e isso exige reflexão sobre as causas e os caminhos possíveis.
Salvo parte das questões referentes ao tráfico de drogas, a maior parte dos casos envolve crimes individuais - homicídio qualificado, roubo majorado, prisão preventiva, estupro de vulnerável e furto qualificado - desvinculados de organizações criminosas. Mesmo no tráfico, predomina o varejo, fruto do flagrante na rua, de buscas pessoais ou residenciais. Ou seja, estamos sobrecarregando o sistema com delitos de menor complexidade, enquanto o crime organizado segue avançando.
Nos últimos anos, nossa política criminal se resumiu à punição: criamos tipos penais, aumentamos penas, restringimos benefícios. O resultado? Nenhuma redução significativa da criminalidade. Pelo contrário, ela não só cresceu como se tornou mais violenta.
Apostar apenas na repressão para diminuir a criminalidade tem se mostrado um erro crasso.
Um parêntese importante. Não estou aqui dizendo que o crime não deva ser punido e principalmente que não devemos punir com rigor. O que eu digo é que a punição não é o único caminho a se seguir.
Um exemplo disso é o feminicídio. A chamada lei do feminicídio completou dez anos há pouco tempo e, nesse período, esse tipo de crime tem só crescido. Em 2024, o Brasil registrou o maior número de feminicídios desde que a lei foi criada em 2015 (chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2025/07/anuario-2025-infografico.pdf)
Quando tratamos desse assunto nos preocupamos apenas em sancionar rigorosamente o culpado e não há nenhuma política clara em evitar que o feminicídio ocorra.
Também não é demais lembrar que a lei de execução penal é exemplar no papel, mas inaplicável na prática. O STF declarou o sistema prisional um “estado de coisas inconstitucional”. Mudou algo? Nada.
Em recente artigo publicado na Folha de São Paulo (https://www1.folha.uol.com.br/colunas/oscarvilhenavieira/2025/11/seguranca-nao-e-so-repressao.shtml), Oscar Vilhena destacou três pilares para o enfrentamento do crime organizado, a preocupação do momento:
Recuperação dos territórios dominados pelo crime organizado, que devem ser imediatamente ocupados pelo Estado. Os criminosos precisam ser presos. Como as experiências de Bogotá e Medellín indicam, a reurbanização e revitalização das áreas dominadas pelo crime são indispensáveis para devolver dignidade e expectativa de desenvolvimento para as comunidades. O Estado precisa se fazer presente para prover ordem, justiça e bem-estar.
Profissionalização e qualificação do sistema de Justiça e das diversas agências de aplicação da lei, com ênfase para mecanismos de inteligência. Não apenas inteligência policial, mas também financeira. É o que foi feito na Itália por meio da criação de uma Agência Nacional Anticrime. É necessário seguir o dinheiro no espaço digital. O Brasil precisa rever sua obtusa regra de sigilo bancário, que apenas favorece a infiltração do crime no sistema financeiro e em outros setores da economia formal. Combater a corrupção é uma pré-condição para combater o crime organizado.
Por fim, é necessário integrar e coordenar todas essas atividades. Esse é um trabalho politicamente desafiador e administrativamente complexo, especialmente num país com estrutura federativa e imerso em forte polarização política. Talvez Geraldo Alckmin seja a pessoa talhada para a tarefa. Político com perfil mais conservador, num governo progressista, protagonizou, ao lado de Mário Covas, a mais bem-sucedida redução de homicídios na história no Brasil.” (https://www1.folha.uol.com.br/colunas/oscarvilhenavieira/2025/11/seguranca-nao-e-so-repressao.shtml, grifamos)
Vou, contudo, um pouco mais além. Precisamos enfrentar com mais disposição dois pontos que vêm sendo reiteradamente ignorados em toda a discussão sobre a grande criminalidade que tem ocorrido no Brasil não só nos últimos anos, como também hoje por ocasião tanto do PL Antifacção como da PEC da segurança pública, ambos em debate hoje no Congresso Nacional: a prevenção e a ressocialização.
Não podemos mais apenas reagir a crimes ou crises de repercussão. O combate à criminalidade deve ser racionalizado e feito com um planejamento a longo prazo que o enfrente desde a sua origem.
Não há como responder à criminalidade organizada, em especial àquela que tem parte de sua atuação nas periferias, sem focar na prevenção, ou seja, sem impedir que o jovem passe a integrar as organizações criminosas.
Estamos em um país onde se discutem abertamente propostas de ocupação das comunidades, na maioria das vezes, com violência, mas não se discute um plano de saneamento básico dessas mesmas comunidades; não se discute como levar a educação de base a essas comunidades nem como levar saúde. O foco é a repressão. Sempre.
Hoje em nossas comunidades existe uma nova ocupação. O rapaz do frete. Como existem lugares de difícil acesso, onde carros ou carretas não chegam, rapazes e moças de 13, 14, 15 anos são os encarregados, em troca de um pouco de dinheiro, de carregar nas costas e nos braços, tijolo, areia e outras mercadorias, para os lugares menos acessíveis.
Alguns certamente vão louvar o empreendedorismo desses jovens, mas a pergunta que deve ser feita é: como esse jovem vai resistir à tentação do crime organizado?
Começando no dia 8/12/25, o Globo tem publicado uma série de reportagens sobre adolescentes do tráfico. Vários depoimentos retratam bem a forma e o porquê da fácil captação do jovem pela criminalidade. Alguns exemplos:
Roberta Fernandes, pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, explica que o tráfico, atento às vulnerabilidades familiares e socioeconômicas de jovens, usa isso para atraí-los ao crime:
- O tráfico é sedutor. Não exige qualificação, conhecimentos elaborados. Para um garoto que cresce em comunidade, onde as perspectivas são limitadas, e não tem referências positivas de sucesso, acaba se tornando uma alternativa fácil. O tráfico sabe do contexto das crianças e dos adolescentes mais vulneráveis. Por estarem ocupando o mesmo território, existe a possibilidade de acompanhar o crescimento, a marginalização e a revolta deles. No caso do Comando Vermelho, a rebeldia acaba sendo ainda mais inflamada e isso, somado à violência do estado contra essa população, ajuda a mantê-los na facção.”
“Luis (nome fictício) entrou para o Comando Vermelho na década de 80, quando tinha 13 anos. A motivação, segundo ele, foi uma revolta acumulada em relação à polícia, que desrespeitava moradores da comunidade onde vivia, incluindo sua família. À época, ganhou destaque no tráfico e chegou à posição de chefe. No início dos anos 2000, no entanto, ele foi preso e, posteriormente, condenado a quase 50 anos de prisão. Atualmente, ele cumpre parte da pena em casa, com uso de tornozeleira eletrônica e, em entrevista ao GLOBO, afirma se dedicar a uma vida longe do crime. Leia o relato na íntegra:
"Minha infância foi boa. Brincava e estudava como qualquer criança. Meus pais eram presentes, meus irmãos também. Mas a gente morava em comunidade. Tivemos que ir para uma, na verdade, porque o lugar anterior passou uma remoção. Nesse novo endereço, a memória viva que tenho me remete às vezes que os policiais entravam, já com pé na porta, revirando tudo que, custosamente, era conquistado pelas pessoas. A gente aguardava na rua, enquanto tudo era mexido.
Eu cresci vendo o policial como essa figura ruim, destruidora, que xingava a minha família, chamava as mulheres que eu conhecia de piranhas. Em contrapartida, os traficantes apareciam como mocinhos: conheciam todo mundo, chamavam pelo nome, tratavam bem, davam doce, dinheiro. Você olha para eles e enxerga uma roupa maneira, uma namorada bonita, uma arma interessante, enquanto você mesmo tá usando a roupa que sobrou do seu irmão mais velho.
Meus pais sempre trabalharam muito e, em dado momento, ao invés de ir para a escola, como combinado, eu ficava pela rua, meus irmãos também arranjavam coisa para fazer. E, assim, as crianças aprendem o que na favela? Ainda mais naquela época. A gente sabia certinho a hora que meus pais voltavam, então, a gente corria muito para chegar antes. Eu já fazia muita coisa escondido, coloquei na minha cabeça que eu ia proteger a favela e, para isso, a polícia não podia entrar. Entrei para o tráfico.
Na adolescência, a gente se questiona “Quem é o meu herói?”. O certo seria a admiração ser em relação aos policiais, mas isso não acontece. O bandido, então, acaba sendo romantizado.
Eu cheguei a ter cinco carros na garagem, era tanto dinheiro que eu não sabia o que fazer, mas eu não era feliz. Minha vida se resumia a resolver problema do tráfico, incluindo de outras favelas. Quando eu fui preso, entrei numa reflexão que era: eu sempre fui revoltado contra o estado, era maltratado lá fora e, agora estou sendo aqui dentro, e dei uma data para a minha família ser maltratada, que era o dia da visitação. Simultaneamente, fui entendendo, num longo processo, que eu também era causador dos problemas da favela, a mesma que eu queria proteger. Chega uma hora que você precisa decidir o que quer fazer e, dado a tudo o que eu já tinha passado, entendi que não queria mais fazer parte disso. Sai tranquilo, de cabeça erguida, ainda to pagando a condenação, mas o crime não faz parte de quem eu sou. Aquele Luis ficou no passado." (https://oglobo.globo.com/rio/noticia/2025/12/07/vida-breve-nas-maos-do-crime-por-um-ano-o-globo-acompanhou-dez-adolescentes-do-trafico-seis-ja-morreram.ghtml?utm_source=aplicativoOGlobo&utm_medium=aplicativo&utm_campaign=compartilhar, grifamos)
O ator Jonathan Azevedo, em entrevista para a Trip FM, disse que para fazer teatro na comunidade em que vivia perdeu três dentes por causa da violência policial:
Do jeito que você conta a gente quase esquece que tem preconceito, você conta sempre com muita positividade tudo. Só pra fazer teatro eu perdi 3 dentes.
Apanhando? Apanhando da polícia, transeunte assim. No Vidigal, quando você estava no final do processo do espetáculo, você saía 2h da manhã do ensaio. Como eu morava na Cruzada, eu tinha que descer tudo sozinho. Até eu explicar que eu tava vindo do teatro, era um dente. Eu tomei muita porrada. Eu falo para os meus amigos: “Sabe por que eu gosto muito de falar de amor? É que eu tomei muita porrada”. Como diz Sabotage, se eu for contar a história triste, ninguém fica. (https://revistatrip.uol.com.br/trip-fm/jonathan-azevedo-fala-de-desigualdade-racismo-e-paternidade. Grifos no original).
E o que está sendo feito, melhor dizendo, proposto para mudar isso? Nada. Absolutamente nada. Não se discute nenhum projeto concreto de revitalização das comunidades, nenhum projeto de aprimoramento das escolas ou mesmo de criação de empregos para aqueles que vivem em comunidades.
Vivemos em um mundo onde a violência policial é elogiada; onde projetos de maior controle da atividade policial (como o uso de câmeras corporais, por exemplo) são criticados e inviabilizados; e onde denúncias de arbitrariedade e abuso policial são relativizadas e, na maioria das vezes, arquivadas.
O mesmo ocorre quanto à ressocialização ao não se garantir àquele que cumpre pena um espaço na sociedade da qual ele se viu isolado por anos e anos.
Aqui também não é possível perceber qualquer debate sobre esse tema nos projetos que se propõem a combater a criminalidade.
Não faz muito, o CNJ noticiou que há um excedente de 150,3% na taxa de ocupação de nossos presídios. Existem 483.258 vagas e temos hoje 726.149 pessoas privadas de liberdade (https://www.cnj.jus.br/presidios-apresentam-superlotacao-de-150-aponta-novo-geopresidios/#:~:text=Pres%C3%ADdios%20apresentam%20superlota%C3%A7%C3%A3o%20de%20150%25%2C%20aponta%20novo%20Geopres%C3%ADdios,-27%20de%20novembro&text=O%20Conselho%20Nacional%20de%20Justi%C3%A7a,unidades%20de%20priva%C3%A7%C3%A3o%20de%20liberdade).
E aí surge uma nova pergunta - como esperar que alguém preso em uma situação precária como a que predomina no Brasil tenha condições de se inserir de novo (ou, muitas vezes, pela primeira vez) em uma sociedade que tem medo de quem ele é e que, no fundo, gostaria que ele ficasse de onde saiu para todo o sempre?
Nosso sistema prisional, em regra, não prepara o ex-presidiário para o mundo que o espera aqui fora. Não lhe dá educação, formação profissional, nem mesmo distanciamento daqueles que querem que ele volte para onde ele saiu - o crime.
Projeto como as APACs - Associações de Proteção e Assistência aos Condenados, em que o índice de reincidência feminino é de cerca de 3% e o masculino gira em torno dos 15%, fica restrito a Minas Gerais e sem quase nenhuma divulgação.
Esquecemos, quase todos nós, que, se não prepararmos o preso para uma vida fora do sistema prisional (e o preso em regra sairá da prisão mais cedo ou mais tarde), ele retornará ao crime, muito mais perigoso e preparado do que antes.
Combater o crime organizado é tarefa complexa, que exige coordenação, inteligência e coragem política. Não basta endurecer penas ou multiplicar operações. É preciso integrar ações, investir em prevenção e ressocialização, e profissionalizar as instituições. Sem isso, continuaremos enxugando gelo enquanto a violência se reinventa.