1. Introdução
A audiência de custódia ocupa, hoje, um lugar estratégico no processo penal brasileiro por ser o momento em que a privação de liberdade, recém-iniciada, é submetida ao primeiro controle judicial efetivo. Por ocorrer em prazo curto de até 24 horas após a prisão e com a presença do acusado, da defesa e do Ministério Público, esse ato funciona como verdadeira porta de entrada das cautelares pessoais. É ali que se decide, com fundamentação, se a prisão será relaxada, se haverá liberdade provisória (com ou sem medidas alternativas) ou se o flagrante será convertido em prisão preventiva. A custódia não é um rito de checagem meramente formal, ela concentra um juízo inicial de necessidade, adequação e proporcionalidade da restrição, que impacta imediatamente na liberdade e sobre a condução do procedimento.
Nesse ambiente decisório comprimido no tempo e sujeito a riscos de simplificação argumentativa, a lei 15.272/25 se coloca como uma alteração direta na forma de fundamentar e controlar a prisão preventiva. Em vigor desde 26 de novembro de 2025, a reforma reorganiza o debate sobre a conversão do flagrante e a avaliação de periculosidade, ao detalhar parâmetros e impor deveres explícitos de exame judicial. O foco desloca-se de uma fundamentação mais aberta para um modelo que pretende tornar mais visíveis as razões que legitimam (ou não) a cautelar extrema.
De um lado, o art. 310 passa a conter dois novos parágrafos (§§ 5º e 6º). O § 5º enumera circunstâncias que “recomendam” a conversão do flagrante em preventiva, como indícios de reiteração, prática com violência ou grave ameaça, liberação anterior em audiência de custódia, cometimento do fato durante investigação ou ação penal, fuga ou risco de fuga, e risco de perturbação da instrução ou da integridade da prova. Já o § 6º eleva o patamar de exigência decisória ao tornar obrigatório que o juiz examine expressamente tanto essas circunstâncias quanto outros elementos legais, além dos critérios de periculosidade incorporados ao art. 312.
O ponto sensível está justamente aí: ao mesmo tempo em que se busca reduzir arbitrariedades e ampliar a rastreabilidade da decisão, aumenta-se a tentação de converter tais fatores em uma espécie de lista de verificação que seria útil como um guia, mas problemática quando substitui a análise individualizada do caso concreto.
Por outro lado, a lei cria o art. 310-A e insere na audiência de custódia, um componente de feição probatória que é a possibilidade de requerimento da coleta de material biológico para obtenção e armazenamento do perfil genético do custodiado em hipóteses legalmente delimitadas, que seriam crimes com violência ou grave ameaça, crimes contra a dignidade sexual, certas situações envolvendo organização criminosa com armas de fogo e crimes hediondos. A norma fixa, ainda, um horizonte temporal para essa coleta, a ser realizada preferencialmente na própria audiência ou em até dez dias, e condiciona sua realização a parâmetros técnicos, como agente público treinado e observância da cadeia de custódia. A custódia deixa de orbitar exclusivamente em torno do “prender ou soltar” e passa a dialogar, também, com decisões que podem repercutir na produção, preservação e contestação de vestígios.
Por fim, o art. 312 recebe os §§ 3º e 4º, explicitando critérios para aferição da periculosidade relacionada a riscos à ordem pública, como modus operandi, participação em organização criminosa, natureza e quantidade de drogas/armas/munições e receio fundado de reiteração, inclusive à vista de inquéritos e ações em curso. Esse é um critério de trava importante pois não se admite prisão preventiva fundada em gravidade abstrata, devendo o risco ser concretamente demonstrado em conexão com o fundamento cautelar invocado.
É nesse ponto que surge a dúvida: a positivação de “circunstâncias” e “critérios de periculosidade” no CPP reduz arbitrariedades na conversão do flagrante em preventiva ou incentiva decisões padronizadas que enfraquecem a individualização do caso? A partir dessa tensão entre qualificação do dever de fundamentação e risco de automatização, busca-se examinar em que medida a lei 15.272/25 altera a lógica decisória da audiência de custódia, como reconfigura o conteúdo mínimo da motivação judicial e quais consequências práticas e garantistas emergem quando a decisão cautelar se aproxima de um repertório normativo mais detalhado, sem que isso se converta, na prática, em presunções travestidas de critérios.
2. A audiência de custódia no Brasil hoje
A audiência de custódia teve seu surgimento e consolidação diretamente ligados à necessidade de superar o dilema entre o caráter excepcional da privação de liberdade antes do trânsito em julgado e a frequência com que ela é aplicada na prática. Lages e Ribeiro1, ao analisarem dados divulgados por organizações e levantamentos oficiais, constataram que, em 2017, 40% dos encarcerados eram presos provisórios no país. Esse quadro reforça uma questão incômoda que é como explicar que um contingente tão elevado de pessoas aguarde o desfecho do processo privado de liberdade em um estabelecimento prisional dentro de uma lógica de sistema que, em teoria, reserva a custódia preventiva a situações estritamente necessárias.
Do ponto de vista normativo, o cerceamento da liberdade em momento prévio à condenação se caracteriza como medida extrema, cuja decretação deve ser justificada por necessidade concreta, sob pena de se converter em antecipação indevida de pena2. Assim, a audiência de custódia aparece menos como inovação procedimental isolada e mais como tentativa de reorientar o primeiro momento decisório do Estado sobre a liberdade, introduzindo filtros institucionais capazes de reduzir a inércia punitiva.
É nesse sentido que se compreende a iniciativa do CNJ, a partir de 2015, ao estimular a adoção rotineira da audiência de custódia em parceria com órgãos do sistema de justiça3. A proposta, como registram Lages e Ribeiro4, foi desenhada para assegurar a apresentação rápida do preso em flagrante à autoridade judicial, no prazo de 24 horas, com a participação do Ministério Público e da defesa. A legitimidade normativa do instituto é comumente associada a parâmetros internacionais de direitos humanos, notadamente o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana de Direitos Humanos, invocados como base para a exigência de apresentação sem demora a um juiz. No plano de governança judicial, a prática foi regulamentada pela resolução CNJ 213/15, conferindo-lhe um desenho nacional, com pretensão de uniformidade mínima.
O procedimento se inicia ainda na fase policial. Na delegacia, a pessoa presa é formalmente informada do motivo da prisão e de quem a realizou, pode permanecer em silêncio sem sofrer prejuízo, tem direito a comunicar familiar ou pessoa de sua escolha, e a ser assistida por defensor público ou advogado e, se houver barreiras linguísticas, deficiência ou pertencimento a comunidade indígena, deve-se assegurar intérprete5.
Antes da audiência, há garantias relevantes para a própria integridade do custodiado: recomenda-se (e, na prática institucional, organiza-se) a realização do exame de corpo de delito, em condições de privacidade, com a finalidade de registrar condições de saúde e eventuais sinais de violência, inclusive quando não haja marcas aparentes. Antes da audiência, há garantias relevantes para a própria integridade do custodiado: recomenda-se (e, na prática institucional, organiza-se) a realização do exame de corpo de delito, em condições de privacidade, com a finalidade de registrar condições de saúde e eventuais sinais de violência, inclusive quando não haja marcas aparentes. Também é assegurado que a pessoa presa converse reservadamente com seu defensor antes da solenidade, condição importante para orientar a comunicação com o juiz e preservar o direito de defesa.
Durante a audiência de custódia, há um recorte temático bem definido: não se julga o mérito do crime nem se decide culpabilidade; examina-se, sobretudo, (i) a legalidade da prisão, (ii) a necessidade de manutenção da custódia ou a possibilidade de liberdade (eventualmente com condições), e (iii) a ocorrência de violência, maus-tratos ou tortura desde a abordagem até a apresentação ao juiz. A pessoa custodiada mantém garantias processuais básicas, como o direito ao silêncio, e a audiência não pode ocorrer sem defensor; é previsto, ainda, que o preso possa consultar o advogado durante o ato, e que o uso de algemas seja excepcional, vinculado a risco de fuga, resistência ou perigo à integridade física. A condução judicial inclui perguntas sobre condições da prisão, possibilidade de contato com família, realização do exame pericial, além de indagações voltadas à identificação de vulnerabilidades (como cuidado com filhos/dependentes, condições de saúde, gravidez/amamentação) e relatos de violência, reforçando a dupla finalidade do instituto: controle cautelar e proteção da integridade6.
A relevância da audiência, entretanto, não se esgota no cumprimento de um prazo. O ponto decisivo está na alteração do modo de formar a decisão cautelar. Antes de sua implementação, a conversão do flagrante em prisão durante o processo tendia a ocorrer a partir de um exame essencialmente documental, baseado no que era produzido pelas autoridades policiais, sem a participação imediata do preso, do defensor e do promotor7. A audiência desloca essa lógica ao inserir o custodiado no centro do ato e ao criar um espaço de contraditório pré-processual, no qual se ouvem acusação e defesa antes da definição sobre a manutenção da prisão ou a aplicação de alternativas.
A promessa, nesse desenho, é qualificar a racionalidade da decisão pela ampliação do repertório informacional do juiz e pelo contraditório e, ao mesmo tempo, favorecer a adoção de medidas cautelares diversas da prisão quando adequadas, evitando a custódia como resposta automática.
Além disso, a audiência de custódia incorpora uma função frequentemente descrita como garantista e de caráter preventivo que a a verificação das condições do detido e a apuração de alegações de maus-tratos e tortura durante a detenção. Azevedo, Sinhoretto e Silvestre enfatizam que essa finalidade integra o próprio desenho institucional do ato, que não se limita à discussão sobre “prender ou soltar”, mas também abre caminho para encaminhamentos perante órgãos competentes quando surgem indícios de violência institucional8. Masi, ao tratar a audiência como ato pré-processual de controle judicial imediato, acentua seu potencial de humanização do processo penal, justamente por aproximar o julgador das circunstâncias concretas da prisão, resguardar a integridade física e psíquica do custodiado e conferir maior legitimidade ao primeiro juízo estatal sobre a liberdade, sem reduzir a solenidade a formalismo9.
Esse horizonte, contudo, convive com tensões importantes no presente. A audiência pode ser absorvida como rito de cumprimento, sem obrigatoriamente produzir uma revisão substancial das bases decisórias. A reconstrução do “passado” e do “presente” da audiência de custódia permite identificar um deslocamento de problemas, e não sua eliminação automática. Se o cenário anterior era marcado pela decisão isolada e predominantemente documental, o cenário atual, apesar de institucionalizar contraditório e presença do preso, enfrenta o risco de ritualização e de padronização argumentativa.
Em termos analíticos, a audiência de custódia não se resolve no seu formato institucional, ela se mede pelo conteúdo que produz. A decisão será mais ou menos legítima conforme exista contraditório efetivo, escuta atenta do custodiado, reconstrução minimamente individualizada do caso e compatibilidade entre as razões apresentadas e a medida aplicada. Essa observação se torna ainda mais relevante após a lei 15.272/25. Ao inserir no art. 310 um conjunto de circunstâncias que “recomendam” a conversão do flagrante em preventiva e, principalmente, ao exigir que o juiz examine expressamente esses elementos e os critérios de periculosidade do art. 312, a reforma pretende elevar o padrão de motivação na própria audiência.
O resultado, entretanto, não é automático já que o mesmo movimento que pode aprimorar o controle ao tornar a fundamentação mais rastreável e menos genérica, pode também estimular decisões por encaixe, com argumentos repetidos e pouco sensíveis às particularidades do caso. A explicitação de critérios de periculosidade e a proibição de fundamentar a preventiva em gravidade abstrata, somadas à introdução do art. 310-A (com um componente probatório que pode ser acionado já na custódia), reforçam que a audiência passa a concentrar ainda mais escolhas decisivas. As mudanças legislativas terminam por recolocar no centro a pergunta sobre se as decisões são com individualização e justificativa concreta, ou realizadas por meio de um repertório normativo transformado, na prática, em fórmula.
3. A conversão do flagrante do art. 310 e periculosidade do art. 312 após a lei 15.272/25
Pensando no cenário após a lei 15.272/25, é preciso olhar com atenção as mudanças para entender seu impacto. No art. 310, o novo § 5º elenca seis circunstâncias que, sem prejuízo de outras, recomendam a conversão da prisão em flagrante em preventiva: (i) provas indicativas de prática reiterada; (ii) infração com violência ou grave ameaça; (iii) liberação anterior em audiência de custódia por outra infração, salvo absolvição posterior; (iv) prática do fato na pendência de inquérito ou ação penal; (v) fuga ou perigo de fuga; e (vi) perigo de perturbação da investigação/instrução e da prova. A mesma Lei ainda acrescentou o § 6º, impondo que a decisão da audiência de custódia seja motivada e fundamentada, com exame obrigatório das circunstâncias dos §§ 2º e 5º do art. 310 e dos critérios de periculosidade do § 3º do art. 312.
Aparentemente, a alteração busca responder a críticas de arbitrariedade decisória, oferecendo um roteiro normativo para o controle judicial imediato da prisão e para o debate contraditório próprio da audiência de custódia, instituto que, como lembra Cruz10, consiste em mecanismo de controle da legalidade e necessidade da prisão, voltado a evitar prisões arbitrárias e a resguardar a integridade do custodiado, tentando manter presunção de inocência e os compromissos internacionais de direitos humanos.
Contudo, a redação do § 5º, ao trazer “sem prejuízo de outras”, mantém o dispositivo deliberadamente aberto, o que torna decisiva a qualidade da fundamentação judicial exigida pelo § 6º. Em especial, as hipóteses dos incisos III e IV impactam mais diretamente a presunção de inocência, pois autorizam que fatos processuais ainda não estabilizados por condenação, como a liberação anterior em custódia e existência de inquérito/ação em curso, passem a operar como fatores de recomendação do encarceramento. A presunção de inocência, como regra de tratamento endoprocessual, não se compatibiliza com lógicas de “direito penal do autor”, nas quais o passado, a personalidade ou a mera sujeição a persecuções pendentes convertem-se, por si, em justificativa de restrição à liberdade11. Se a persecução deve partir do estado de inocência, a regra é a preservação do status libertatis e a prisão cautelar somente se legitima nos estreitos limites da cautelaridade, sem representar antecipação de pena.
Também o inciso V, ter havido fuga ou haver perigo de fuga, precisa de uma leitura cautelosa já que a categoria “perigo de fuga” pode converter-se em fórmula elástica, apta a ser preenchida por presunções pouco controláveis, caso não se exija demonstração concreta e contemporânea do risco. Aqui, o vínculo com o modelo constitucional do processo é central. Pensando na visão de Soares, que propõe a leitura do processo penal a partir da Teoria do Processo Constitucional12, em que o devido processo democrático e a presunção de inocência delimitam a tutela cautelar, impondo que a prisão seja ultima ratio e que o periculum libertatis seja efetivamente demonstrado, e não pressuposto.
Em termos históricos, a lembrança do processo inquisitório, marcado por déficit de contraditório, hipertrofia do juízo de periculosidade e uso instrumental do encarceramento13, serve como alerta pois a positivação de critérios não impede, por si, recaídas inquisitoriais, se a prática decisória transformar recomendações em automatismos.
Seguindo adiante na lei, o art. 312, abordou o conceito de periculosidade ao determinar que devam ser considerados: (i) modus operandi, inclusive uso reiterado de violência/grave ameaça ou premeditação; (ii) participação em organização criminosa; (iii) natureza, quantidade e variedade de drogas/armas/munições; e (iv) fundado receio de reiteração delitiva, inclusive diante da existência de outros inquéritos e ações penais em curso. Em contrapartida, o § 4º passou a vedar expressamente a decretação da preventiva fundada em “gravidade abstrata do delito”, exigindo demonstração concreta da periculosidade e do risco correlato (ordem pública/econômica, regularidade da instrução, aplicação da lei penal).
Apesar de o § 4º reforçar um standard de fundamentação compatível com a excepcionalidade constitucional da prisão cautelar, os incisos I e IV do § 3º podem produzir, na prática, uma zona de imprecisão considerando que a premeditação, quando não ancorada em elementos objetivos do caso, tende a estimular inferências psicológicas e prognósticos de risco. Da mesma forma, ao falar de fundado receio de reiteração, se apoiado apenas em notícias de ocorrência, denúncias não recebidas, investigações sem lastro probatório robusto, ou mesmo em passado juvenil sem adequada filtragem jurídica, abre caminho para que a custódia cautelar se aproxime de uma resposta punitiva antecipada. A própria remissão a outros inquéritos e ações penais em curso reforça o ponto crítico já identificado no art. 310, pois pode deslocar o olhar do fato concreto para a biografia processual do imputado, justamente o que a presunção de inocência, na dimensão de tratamento, busca combater.
A lei 15.272/25 pretende orientar a decisão cautelar ao oferecer novos critérios para a conversão do flagrante e para a aferição da periculosidade, mas o faz por meio de um rol declaradamente exemplificativo, e não estritamente taxativo, tanto no art. 310, §5º, quanto na própria estrutura dos critérios do art. 312, §3º. Essa opção legislativa é ambígua por, de um lado, evita engessar o juiz diante da variedade de situações diárias, e, de outro, fragilizar a promessa de contenção, porque a abertura semântica permite que expressões como “perigo de fuga”, “premeditação” e “fundado receio” sejam mobilizadas de modo elástico, inclusive para preencher, por presunção, lacunas probatórias típicas do momento inicial do procedimento.
O ponto é sensível porque, em matéria penal, em especial quando se trata de prisão preventiva, a racionalidade do estado democrático de direito exige máxima restrição, já que se está diante da intervenção mais intensa sobre a liberdade antes de condenação definitiva. É justamente aqui que se percebe uma permanência cultural do direito penal punitivo em que, mesmo ao se modernizar o texto e sofisticar a linguagem justificatória, o legislador não rompe por completo com um olhar clássico do delito, pois mantém margens amplas de discricionariedade que podem favorecer a prisão como resposta padrão.
Por isso, mais do que aplicar o rol, o desafio hermenêutico passa a ser conter a abertura, exigindo que a prisão cautelar permaneça exceção efetiva, fundada em necessidade concreta e demonstrável, sob contraditório e com motivação, evitando que categorias abertas e pendências processuais se convertam em culpa antecipada e em estigmatização institucionalizada.
4. DNA na audiência de custódia: A questão do art. 310-A
Faz-se necessário pontuar também o impacto do art. 310-A, trazido pela lei 15.272/25. A partir da sua redação, introduz-se uma dimensão de gestão probatória a audiência de custódia, prevendo a requisição judicial de coleta de material biológico para obtenção e armazenamento de perfil genético em hipóteses legalmente delimitadas. Esse deslocamento não é neutro. A audiência de custódia, tal como concebida nas diretrizes administrativas e na prática institucional brasileira, não se destina a decidir culpabilidade, nem a discutir o mérito do fato, trata-se do primeiro contato do custodiado com o Judiciário para verificação da legalidade da prisão, eventual aplicação de cautelares e apuração de violência, com salvaguardas como o direito ao silêncio e a assistência obrigatória de defesa técnica. Diante disso, incorporar nela uma providência que projeta efeitos probatórios de coleta e armazenamento de DNA exige um cuidado hermenêutico e procedimental redobrado para a a busca por eficiência investigativa não reconfigurar a audiência como atalho de produção de prova, atingindo as garantias do custodiado.
O ponto sensível é que a prova genética, embora reconhecidamente valiosa para fins de identificação, tem alto poder de persuasão e costuma ser percebida como tecnicamente autossuficiente, o que amplia o risco de supervalorização judicial e de naturalização de seus resultados. Serra Oliveira mostra que não são incomuns decisões que atribuem ao DNA um estatuto de superioridade em relação aos demais meios de prova, ignorando a falibilidade do teste e a dependência de padrões rigorosos de qualidade em todas as etapas do procedimento pericial14.
Justamente por isso, a previsão legal de coleta “preferencialmente” na própria audiência de custódia ou em até dez dias não pode ser lida como simples detalhe logístico por ela intensificar a necessidade de controles verificáveis sobre integridade, origem e rastreabilidade do vestígio, pois desloca para um momento inicial do procedimento penal uma operação que, por natureza, é tecnicamente vulnerável.
É aqui que a cadeia de custódia deixa de ser um requisito periférico e passa a ocupar posição estruturante. A documentação não garante, por si, que não houve contaminação ou manipulação indevida, o que ela faz é permitir reconstruir o caminho do vestígio e aferir se precauções adequadas foram tomadas, fornecendo base objetiva para o contraditório e para o controle judicial. Além disso, no campo do DNA, a cadeia de custódia precisa ser ainda mais respeitada porque muitas perícias são, na prática, não renováveis ou de difícil repetição, e a demonstração do percurso do material é condição para sustentar que o resultado não foi alterado pela forma de coleta, preservação e tratamento técnico. A consequência processual é direta, considerando que lacunas relevantes nos registros podem repercutir desde a admissibilidade e exclusão do material até, ao menos, a redução do peso probatório atribuído ao resultado, exatamente porque impedem que defesa, acusação e julgador verifiquem se a amostra é o que diz ser e se permaneceu íntegra.
O problema é agravado pela natureza do próprio vestígio genético. A literatura sistematizada por Serra Oliveira enfatiza que amostras com pouca quantidade ou baixa qualidade de DNA são especialmente sensíveis: quantidades mínimas de material genético externo, comuns em pessoas e objetos não esterilizados, podem prejudicar ou inviabilizar a análise, gerando risco concreto de contaminação, inibição, degradação ou até troca do material ao longo de etapas como coleta, empacotamento, transporte, guarda e manuseio15.
Em outras palavras, a lei que pretende sistematizar a atuação estatal ao prever agente treinado e respeito à cadeia de custódia (art. 310-A, §2º) só produzirá efeitos garantísticos se o cumprimento desses deveres for tratado como exigência de auditabilidade e não como elemento secundário. Em rotinas de alto volume, o risco é o mesmo já identificado em outros pontos do sistema cautelar: transformar uma providência excepcionalmente intrusiva em prática padronizada, com registros mínimos e controle meramente formal.
Também por isso, a incorporação do DNA à dinâmica da custódia precisa ser compatibilizada com a própria finalidade do ato. Autores como Cruz16 insistem que a audiência não se presta a produzir prova sobre o mérito e que devem existir cautelas para evitar que declarações do custodiado se convertam em prova pré-constituída na investigação ou instrução, o que evidencia uma preocupação mais ampla com a contaminação do processo por elementos colhidos sob finalidades distintas.
Se essa preocupação vale para a oralidade e para a escuta, com maior razão deve valer para a prova genética, que tende a induzir uma percepção de certeza. O perigo, aqui, é duplo: de um lado, a conversão de investigação em certeza, quando a mera compatibilidade genética é tratada como conclusão definitiva de autoria; de outro, a ampliação indevida do alcance do DNA para além do que ele pode demonstrar. Todavia, a identificação genética não deve ser usada como prova única e, em certos crimes, sequer responde a elementos essenciais do tipo, por exemplo, a presença de material biológico não demonstra, por si, ausência de consentimento em um crime sexual.
A decisão que determina coleta e armazenamento deve ser acompanhada de um compromisso com a limitação do significado probatório do resultado, que pode ser um dado relevante, mas não pode funcionar como atalho que dispense o encadeamento probatório exigido para imputação e condenação.
Por fim, a coleta e o armazenamento de perfil genético envolvem, inevitavelmente, dados sensíveis e riscos de danos irreparáveis em caso de vazamento, acesso indevido ou uso desviato da finalidade que justificou a medida. Mesmo quando se argumenta em favor da eficiência investigativa, o desenho procedimental deve incorporar salvaguardas práticas: identificação segura do custodiado e do responsável pela coleta, lacração e etiquetamento com numeração individualizada, registro contínuo de transferência de custódia com referências a quem recebeu, onde guardou, em quais condições e por quanto tempo, além de documentação dos procedimentos adotados e garantia de que as partes possam auditar o percurso do vestígio para exercer contraditório efetivo.
Essa lógica de rastreabilidade e controle terá que ser efetivada para transformar a previsão do art. 310-A em instrumento compatível com o devido processo legal.
5. Considerações finais
A lei 15.272/25 altera um dos pontos mais sensíveis do processo penal brasileiro que é o momento inaugural em que o Estado, já tendo restringido a liberdade, submete essa restrição ao primeiro controle judicial na audiência de custódia. Por sua própria configuração, a custódia sempre foi um espaço propenso a decisões simplificadas, especialmente quando a fundamentação se acomoda em fórmulas recorrentes. Ao reformar os arts. 310 e 312 e criar o art. 310-A, o legislador pretendeu enfrentar esse cenário por meio da explicitação de parâmetros e da elevação do dever de enfrentamento judicial. A questão central, contudo, permanece menos no desenho normativo e mais na prática decisória: as mesmas ferramentas que podem qualificar o controle podem, se mal manejadas, apenas reorganizar a linguagem do encarceramento provisório, sem alterar o seu impulso.
No art. 310, o §5º introduz um conjunto de circunstâncias que recomendam a conversão do flagrante em preventiva, ao passo que o §6º exige que o juiz examine expressamente esses elementos e os critérios de periculosidade do art. 312. A opção legislativa por um rol “sem prejuízo de outras” não é detalhe, ela confirma que se trata de elenco exemplificativo, não taxativo. A prisão preventiva é a intervenção mais intensa sobre a liberdade antes do trânsito em julgado e, por isso, deveria ser cercada por critérios tão estritos quanto possível. Quando o repertório normativo se apresenta como guia flexível, cresce o risco de que a recomendação opere, na prática, como expectativa de conversão e o argumento passe a funcionar como checklist, substituindo a reconstrução individualizada do caso.
Esse risco se torna mais agudo justamente nos pontos em que a lei aproxima o juízo cautelar de elementos biográficos ou processuais ainda instáveis. As hipóteses relacionadas à liberação anterior em audiência de custódia e à existência de inquéritos ou ações penais em curso reforçam a tensão. A mesma lógica vale para categorias abertas como “perigo de fuga” ou risco de perturbação da instrução.
No art. 312, a reforma assume um movimento igualmente ambivalente. Ao explicitar critérios para aferição de periculosidade e, ao mesmo tempo, vedar a decretação de preventiva com base em gravidade abstrata, o legislador parece responder a crítica clássica da prisão cautelar não se legitimar por adjetivos, mas por risco demonstrado. O §4º, nesse sentido, pode operar como cláusula de qualidade da fundamentação, exigindo ligação concreta entre risco e elementos do caso. Ainda assim, parte dos critérios do §3º carrega zonas de indeterminação que precisam ser tratadas com prudência como a premeditação, que, se empregada como diagnóstico psicológico prematuro, tende a inflar o juízo cautelar, e o fundado receio de reiteração, que, se extraído de notícias, denúncias não estabilizadas ou histórico sem depuração jurídica, pode converter suspeitas em justificativas de encarceramento.
A introdução do art. 310-A amplia ainda mais a responsabilidade institucional da audiência de custódia ao inserir nela um vetor de gestão probatória com a coleta e o armazenamento de perfil genético do custodiado em hipóteses delimitadas. Soma-se a isso a dimensão informacional do dado genético, que envolve riscos relevantes de acesso indevido e vazamento, com efeitos potencialmente irreparáveis. Por fim, há um risco epistemológico de deslocar a custódia de ato vocacionado ao controle da prisão e à proteção do custodiado para um terreno em que a investigação se aproxima, indevidamente, de certeza antecipada. A eficácia investigativa, aqui, precisa conviver com limites por o DNA ser instrumento, não sentença, sendo mais um dado a ser criticamente situado no conjunto probatório, não atalho argumentativo para consolidar narrativas iniciais.
Diante desse quadro, a lei 15.272/25 pode ser lida como tentativa de qualificar a linguagem e a estrutura da decisão cautelar, mas não como garantia de mudança automática de cultura institucional. Se aplicada com rigor metodológico, respeitando a reconstrução fática, demonstração de risco, proporcionalidade, preferência por alternativas e controle técnico das provas, a reforma pode favorecer maior transparência e controlabilidade. Se, porém, for absorvida como repertório de fórmulas, pode reforçar a padronização e reintroduzir, por vias normativas mais sofisticadas, um olhar punitivista que mantém a prisão preventiva como resposta preferencial.
Em última análise, o efeito da lei será definido pela prática, mas sobram muitos receios em um cenário legal brasileiro que se agarra reiteradamente a uma lógica punitivista antiga, ainda longe de um processo penal democrático e justo.
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1 LAGES, Lívia Bastos; RIBEIRO, Ludmila. Os determinantes da prisão preventiva na Audiência de Custódia: reforço de estereótipos sociais?. Revista Direito GV, v. 15, p. e1933, 2019, p.02.
2 Ibid.
3 AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de; SINHORETTO, Jacqueline; SILVESTRE, Giane. Encarceramento e desencarceramento no Brasil: a audiência de custódia como espaço de disputa. Sociologias, v. 24, n. 59, p. 264- 294, 2022.
4 Lages e Ribeiro, op. cit.
5 BRASIL. Audiência de custódia: informações importantes para a pessoa presa e familiares. Conselho Nacional de Justiça. Brasília: CNJ, 2021. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/09/audiencia- de-custodia-info-pessoa-presa.pdf. Acesso em: 09 dez. 2025.
6 Ibid.
7 Lages e Ribeiro, op cit.
8 Azevedo, Sinhoretto e Silvestre, op. cit.
9 MASI, Carlos Velho. A audiência de custódia frente à cultura do encarceramento. Revista dos tribunais, v. 960, n. 1, p. 1-15, 2015.
10 CRUZ, Jorge Henrique Tatim da. Prisões cautelares e audiência de custódia: uma análise do impacto no encarceramento provisório. Dissertação (Mestrado em Ciências Criminais) — Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2018. Disponível em: https://tede2.pucrs.br/tede2/bitstream/tede/8541/2/TATIM%20-%20Dissert.%20pdf.pdf. Acesso em: 09 dez. 2025.
11 Ibid, p.43.
12 SOARES, Igor Alves Norberto. As medidas cautelares e a audiência de apresentação (audiência de custódia) no processo penal: enfrentamentos a partir da teoria do processo constitucional. Revista de Direito da Faculdade de Guanambi, v. 5, n. 1, p. 174-200, jan./jun. 2018. Disponível em:
https://www.redalyc.org/journal/6080/608065719008/html/. Acesso em: 09 dez. 2025.
13 OLIVEIRA, Luiz Andrey Viana de. O princípio da presunção de inocência: sua mitigação frente à criminalidade. Dissertação (Mestrado em Direito) — Universidade Católica de Pernambuco, Recife, 2014. Disponível em: http://tede2.unicap.br:8080/handle/tede/531. Acesso em: 09 dez. 2025.
14 SERRA OLIVEIRA, Rafael. Cadeia de custódia: admissibilidade e valoração da prova pericial de DNA.
300 f. Tese (Doutorado em Direito, área de concentração: Direito Processual) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2020.
15 Ibid.
16 Cruz, op. cit.