1. Introdução
O superendividamento consolidou-se como um dos maiores desafios contemporâneos do Direito do Consumidor. A ampliação irrestrita da oferta de crédito, aliada à deficiência histórica de educação financeira e à atuação agressiva do mercado, resultou em um cenário de comprometimento excessivo da renda de milhões de consumidores brasileiros.
Durante longo período, o inadimplemento foi tratado como falha exclusiva do consumidor, desconsiderando-se a assimetria informacional e a ausência de práticas de crédito responsável. A lei 14.181/21, representa importante ruptura com essa lógica, ao reconhecer o superendividamento como problema estrutural e ao introduzir mecanismos normativos voltados à prevenção, tratamento e repactuação das dívidas de consumo.
Na prática forense, observa-se crescente utilização da norma como fundamento para revisão contratual, limitação de descontos, suspensão de cobranças e reorganização global do passivo do consumidor, especialmente em relação a aposentados, pensionistas, servidores públicos e trabalhadores hipervulneráveis.
2. O conceito jurídico de superendividamento e sua aplicação prática
O art. 54-A, §1º, do CDC define o superendividamento como a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial.
Na prática forense, a análise desse conceito exige avaliação concreta da situação financeira do consumidor, considerando sua renda líquida, despesas essenciais e o percentual efetivamente comprometido com obrigações financeiras. A boa-fé, por sua vez, é aferida a partir da inexistência de fraude, da contratação motivada por necessidade e da tentativa de adimplemento ou renegociação.
O Judiciário vem reconhecendo que o superendividamento não se confunde com inadimplência pontual, mas se caracteriza quando a manutenção dos contratos compromete a própria subsistência do consumidor, o que autoriza a intervenção jurisdicional para reequilíbrio da relação obrigacional.
3. O mínimo existencial como parâmetro constitucional de validade contratual
A preservação do mínimo existencial constitui o núcleo axiológico da Lei do Superendividamento. Tal conceito decorre diretamente do princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no art. 1º, III, da CF/88, e impõe limites materiais à execução das obrigações contratuais.
Na atuação prática, o mínimo existencial tem servido como fundamento para a concessão de tutelas de urgência destinadas a limitar descontos excessivos, suspender cobranças e impedir a perpetuação de ciclos de endividamento. Trata-se de verdadeiro critério constitucional de validade da relação contratual, que impede que o crédito se converta em instrumento de exclusão social.
4. O crédito responsável e os deveres das instituições financeiras
A lei 14.181/21, reforçou o dever de informação e instituiu o conceito de crédito responsável, impondo às instituições financeiras a obrigação de avaliar a capacidade real de pagamento do consumidor antes da concessão do crédito.
Na prática forense, a ausência de informações claras sobre o custo efetivo total, a indução ao erro por meio de publicidade agressiva e a concessão sucessiva de crédito sem análise financeira têm sido reconhecidas como práticas abusivas. O Judiciário, diante dessas condutas, vem relativizando o princípio da força obrigatória dos contratos, priorizando a função social do crédito e a proteção do consumidor.
5. A repactuação de dívidas como instrumento de reorganização financeira
O procedimento previsto no art. 104-A do CDC introduziu importante inovação ao permitir a repactuação global das dívidas do consumidor superendividado. A possibilidade de apresentação de plano de pagamento que abarque todos os credores representa avanço significativo em relação às ações revisionais tradicionais.
Na prática, a repactuação judicial tem se mostrado mecanismo eficaz para promover soluções estruturais, evitando a pulverização de demandas, suspendendo execuções paralelas e garantindo maior estabilidade econômica ao consumidor, sem afastar o direito de crédito dos fornecedores.
6. Considerações finais
O enfrentamento do superendividamento exige interpretação constitucionalizada do Direito do Consumidor, capaz de conciliar segurança jurídica, função social do contrato e dignidade da pessoa humana. A lei 14.181/21, fornece instrumentos normativos eficazes, cuja aplicação consciente pelo Poder Judiciário e pela advocacia especializada tem potencial para promover verdadeiro reequilíbrio das relações de consumo.
Mais do que reorganizar dívidas, a atuação jurídica no superendividamento visa restaurar a autonomia financeira do consumidor e assegurar sua reinserção social, reafirmando o papel do Direito como instrumento de justiça material.