Prestes a completar uma década de vigência, a resolução 400 da ANAC consolidou-se como o marco regulatório fundamental dos direitos do passageiro aéreo no Brasil. No entanto, sua trajetória revela um desvio de finalidade e uma obsolescência estrutural: o que nasceu para ser um protocolo técnico de assistência transformou-se em munição para a litigância abusiva, exigindo uma reflexão urgente sobre sua reforma.
A função da norma: estabelecer um padrão mínimo, não um seguro universal
A norma foi desenhada pela Agência Reguladora com um propósito humanitário: assegurar um padrão mínimo de assistência (alimentação, hospedagem e comunicação) para mitigar o desconforto em contingências operacionais.
Contudo, a aplicação da norma atingiu um ponto de irracionalidade econômica. O Brasil adota um modelo punitivo único no mundo, onde a companhia aérea é obrigada a custear assistência material integral mesmo em casos de fortuito externo - ignorando a complexidade da infraestrutura aeroportuária nacional.
A realidade da malha brasileira e o efeito cascata
Aqui reside o ponto cego da regulação atual. A resolução 400 trata da mesma forma um atraso causado por falha interna da empresa e um colapso na malha aérea provocado por fatores alheios.
No contexto brasileiro, a saturação de aeroportos centrais gera uma interdependência crítica. Se uma aeronave de uma companhia necessita priorizar o pouso por razões de segurança ou emergência médica, ou se um aeroporto fecha por mau tempo severo, gera-se um efeito cascata imediato. O atraso de um único voo reverbera em toda a malha, impedindo decolagens de outras companhias que nada tiveram a ver com o evento inicial.
Hoje, a norma pune a consequência, não a causa. A companhia que teve seu voo retido em solo porque o tráfego aéreo foi interrompido por terceiros é obrigada a arcar com os mesmos custos daquela que cancelou o voo por falta de tripulação. Essa lógica onera injustamente o operador aéreo, transformando-o em segurador das falhas de infraestrutura e das intempéries tropicais.
A judicialização da expectativa subjetiva
Além do custo do fortuito externo, enfrenta-se a judicialização da subjetividade. A litigância abusiva ignora que o piso de assistência foi cumprido (o hotel e a alimentação foram fornecidos) e pleiteia dano moral baseada na frustração de uma expectativa de tratamento personalíssimo.
Transforma-se a garantia do mínimo essencial em uma exigência impossível de "experiência do cliente" em momentos de caos aéreo. Ao validar essa tese, o Judiciário pune a conformidade. A empresa que cumpre rigorosamente a resolução 400 frequentemente é condenada a pagar indenizações morais em valores similares àquela que abandonou o passageiro.
O desincentivo à eficiência e o custo sistêmico
Esse cenário cria o pior dos incentivos: o cumprimento da norma administrativa deixa de gerar segurança jurídica. A própria resolução é usada como checklist punitivo, alimentando uma indústria de processos que sobrecarrega os tribunais.
O custo dessa distorção - assistência ilimitada no efeito cascata somada ao risco de dano moral subjetivo - é repassado ao preço final da passagem. A falta de critérios objetivos de exclusão de responsabilidade prejudica a competitividade do setor e o próprio consumidor.
Conclusão
Caminhando para os 10 anos desta norma, a mera aplicação automática não basta. É preciso reformá-la. A resolução 400 precisa evoluir para diferenciar a falha de serviço do evento de força maior e dos impactos de rede, estabelecendo limites claros para a assistência. O setor aéreo precisa de segurança jurídica e racionalidade econômica para crescer, e isso começa por parar de punir quem não tem controle sobre o tráfego aéreo ou o clima.