A pluralidade religiosa brasileira e o aumento de cerimônias personalizadas trouxeram novamente ao debate uma dúvida recorrente: quem pode celebrar casamento religioso com efeito civil no Brasil e quais são, afinal, os seus efeitos jurídicos? A questão, embora aparentemente simples, envolve temas sensíveis como laicidade do Estado, liberdade religiosa, autonomia privada e segurança jurídica. Não se trata de saber quais religiões o Estado “autoriza”, mas de compreender como o Direito brasileiro reconhece juridicamente um rito religioso, sem confundir fé com função pública.
A doutrina civilista brasileira reconhece o casamento religioso com efeitos civis como uma hipótese de equiparação jurídica, e não de delegação estatal. Para Maria Berenice Dias, o instituto representa uma forma de o Estado “acolher a manifestação religiosa do cidadão sem abdicar do controle jurídico necessário à proteção da família e de terceiros”.
No mesmo sentido, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho afirmam que o casamento religioso com efeitos civis é expressão da autonomia privada, mas condicionada à observância das normas de ordem pública, especialmente quanto à habilitação, impedimentos e registro.
Já sob a ótica constitucional, Ingo Wolfgang Sarlet destaca que a laicidade brasileira é cooperativa, permitindo que o Estado dialogue com manifestações religiosas sempre que isso não comprometa a neutralidade institucional nem a igualdade entre confissões.
Fundamento legal e constitucional
O art. 1.515 do CC dispõe que o casamento religioso se equipara ao civil quando atendidas as exigências legais e realizado o devido registro no Registro Civil. A Constituição Federal, por sua vez, assegura:
- liberdade de crença e de culto (art. 5º, VI);
- vedação à interferência estatal em confissões religiosas (art. 19, I);
- proteção jurídica à família (art. 226).
Esse conjunto normativo revela que o Estado não interfere no conteúdo do rito religioso, mas condiciona seus efeitos jurídicos à observância das normas civis.
Do ponto de vista jurídico, qualquer religião pode celebrar casamento com efeito civil, desde que:
- os nubentes estejam previamente habilitados no Registro Civil;
- o rito seja celebrado por ministro religioso legitimamente reconhecido por sua comunidade;
- o termo religioso seja levado a registro dentro do prazo legal.
Não existe rol taxativo de religiões autorizadas. O critério é institucional, e não confessional.
Na prática, igrejas cristãs, comunidades judaicas e islâmicas costumam realizar esse tipo de casamento com maior frequência, não por privilégio, mas por tradição administrativa compatível com as exigências cartorárias.
A visão das tradições religiosas
É interessante notar que o próprio discurso religioso, em muitas tradições, reconhece a distinção entre fé e efeitos civis. O catecismo da igreja católica afirma que o matrimônio possui dimensão sacramental, mas reconhece a legitimidade da autoridade civil na organização dos efeitos jurídicos da família.
No protestantismo histórico, Martinho Lutero já afirmava que o casamento é “assunto da vida comum”, sujeito às leis civis, ainda que celebrado sob a bênção religiosa. No judaísmo, o casamento religioso (chupá) possui profundo significado espiritual, mas comunidades fora de Israel historicamente reconhecem a necessidade de conformação às leis civis locais.
Essas posições reforçam que o reconhecimento civil do casamento religioso não viola a fé, mas a preserva dentro de um ambiente jurídico seguro.
Um ponto central frequentemente ignorado é que o efeito civil do casamento não nasce no rito religioso, mas no registro. O ministro religioso não exerce função pública, nem substitui o Estado.
A doutrina é uníssona ao afirmar que o registro civil é o ato constitutivo dos efeitos jurídicos, garantindo publicidade, segurança e proteção a terceiros, especialmente em matéria patrimonial e sucessória.
O STJ tem reiteradamente afirmado que o casamento religioso somente produz efeitos civis após o devido registro, sendo este indispensável para a oponibilidade erga omnes do vínculo conjugal. A Corte também já assentou que a ausência de registro impede o reconhecimento automático dos efeitos patrimoniais do casamento, ainda que comprovada a celebração religiosa.
Em julgados recentes, o STJ reforçou que a proteção da família e da boa-fé objetiva exige respeito às formas legais, não como formalismo excessivo, mas como instrumento de segurança jurídica e previsibilidade das relações familiares.
No exercício da Magistratura de Paz, tenho percebido que o reconhecimento jurídico do casamento religioso ultrapassa a dimensão meramente procedimental. Ao admitir que a celebração religiosa produza efeitos civis, o Estado valoriza a escolha consciente dos nubentes, que decidem constituir família unindo convicções íntimas, identidade cultural e segurança jurídica.
O casamento, embora regulado por normas de ordem pública, não se esgota em um ato jurídico formal. Ele representa, para muitos casais, um compromisso público de cuidado, responsabilidade e projeto de vida em comum. A experiência cotidiana das celebrações evidencia que o rito, quando respeitado em sua dimensão simbólica, fortalece o sentido de pertencimento e responsabilidade assumido pelos cônjuges.
Nesse contexto, o casamento religioso com efeitos civis revela uma postura institucional sensível do Estado, que, sem abdicar da laicidade, reconhece o valor existencial da decisão dos nubentes. Trata-se de um modelo que harmoniza Direito e liberdade, conferindo legitimidade jurídica a uma escolha que, antes de tudo, é humana.
Considerações finais
O casamento religioso com efeito civil no Brasil não é privilégio de determinadas religiões nem exceção ao Estado laico. Trata-se de um instituto jurídico que harmoniza liberdade religiosa, autonomia privada e segurança jurídica.
Ao reconhecer o rito religioso dentro dos limites da lei, o Estado não se submete à fé, nem a fé se submete ao Estado. Ambos convivem, cada qual em seu espaço, garantindo dignidade, liberdade e proteção jurídica à família.