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O mito da impenhorabilidade do bem de família e os imóveis alienados fiduciariamente

A entrega voluntária da residência como lastro contratual impõe coerência jurídica, afastando a proteção legal quando há inadimplemento consciente.

29/12/2025
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A utilização de imóvel como garantia fiduciária, seja em contratos de crédito pessoal na modalidade home equity, seja em financiamentos imobiliários tradicionais, tornou-se prática consolidada no mercado financeiro pela segurança que oferece às partes.

Ao oferecer o bem como garantia, o próprio contratante admite que o imóvel servirá como lastro da dívida. A partir daí, o contrato passa a seguir a lógica própria da lei 9.514/1997, que não deixa margem para interpretações ampliativas. A propriedade é transferida ao credor desde o início, ficando o devedor apenas com a posse direta do bem, até o pagamento final.

Esse detalhe, muitas vezes ignorado em debates apressados, é determinante. Se o bem não mais integra o patrimônio do devedor, enquanto perdurar a garantia, não há como pretender que o imóvel seja protegido contra dívidas do próprio devedor, tampouco que se escude na proteção da lei 8.009/1990.

Em julgamento ao Tema 1.261, o STJ fixou que a exceção à impenhorabilidade prevista no art. 3º, inciso V, da lei 8.009/1990 se limita às situações em que a dívida foi constituída em benefício da entidade familiar, o que impede o devedor de alegar impenhorabilidade depois de ter oferecido voluntariamente o imóvel como garantia de uma operação bancária. A tese firmada obsta que o devedor exerça comportamento contraditório ao tentar excluir o bem da responsabilidade patrimonial, depois de tê-lo oferecido como garantia. Embora o precedente trate de primordialmente de hipoteca, a lógica é exatamente a mesma: não há como invocar proteção ao bem de família quando a própria pessoa assumiu a obrigação e vinculou o imóvel ao cumprimento do contrato. O Tema 1.261/STJ apenas reafirma que a boa-fé e a coerência contratual são indispensáveis, e que a proteção legal não serve para desfazer os efeitos da garantia constituída de forma consciente e voluntária.

Não bastasse isso, a própria lei 8.009/1990, em seu art. 3º, inciso II, estabelece que a impenhorabilidade do bem de família não é oponível ao “titular do crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato”. Portanto, tem-se que a proteção não é absoluta. Ela existe para resguardar a residência efetivamente pertencente ao devedor, mas nunca não para servir como escudo contra obrigações livremente assumidas.

Ademais, do ponto de vista técnico, uma vez executada a garantia fiduciária, pelo inadimplemento do devedor, sequer existe “penhora” do bem. Afinal, este é um instituto de direito processual, cuja aplicabilidade se distancia do procedimento previsto na lei 9.514/1997.

De toda forma, com a consolidação da propriedade, a situação se encerra por completo. O imóvel passa definitivamente ao patrimônio do credor e não há argumento capaz de reabrir essa discussão.

A questão não envolve mitigação do direito à moradia, mas sim a necessária observância da conformação jurídica da garantia fiduciária e dos efeitos que lhe são inerentes. Não é possível, pois, transformar a moradia em um salvo conduto para neutralizar os efeitos do inadimplemento, especialmente quando a causa do problema está na própria mora do devedor.

Assim, a alienação fiduciária não apenas deve prevalecer sobre a proteção legal do bem de família, como também permite concluir que a proteção ao imóvel residencial não serve para desfazer os riscos assumidos no momento da contratação, tendo o STJ tese firmada que reconhece esse limite.

Em última análise, o oferecimento do imóvel como garantia exige responsabilidade e consciência, porque a força da alienação fiduciária aparece justamente quando o contrato deixa de ser cumprido. 

Autores

Elize Torres Sócia do Queiroz Cavalcanti Advocacia.

Ítalo Gurgel Sócio do Queiroz Cavalcanti Advocacia.

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