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Impactos da ausência de audiência de justificação

Ausência da audiência de justificação gera nulidade absoluta na regressão do apenado.

29/12/2025
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Introdução

A ampliação do uso de medidas cautelares diversas da prisão representa avanço relevante no processo penal brasileiro, alinhado aos princípios da proporcionalidade e da excepcionalidade da privação da liberdade. Todavia, a prática forense tem revelado uma preocupante tendência de automatização do encarceramento, especialmente quando se imputa ao acusado ou ao apenado o descumprimento dessas medidas, como ocorre nos casos de monitoramento eletrônico.

Nesse cenário, tornou-se recorrente a decretação de prisão preventiva ou a regressão de regime sem a prévia realização de audiência de justificação, sob o argumento de que a posterior audiência de custódia seria suficiente para assegurar o contraditório. O presente artigo sustenta que tal entendimento é incompatível com a Constituição Federal, com o CPP, com a lei de execução penal e com a jurisprudência do STJ.

1 - A audiência de justificação como garantia constitucional

A audiência de justificação constitui instrumento essencial de concretização do contraditório e da ampla defesa, previstos no art. 5º, incisos LIV e LV, da Constituição Federal. Sempre que o Estado pretende agravar a situação jurídica de um indivíduo, restringindo ou intensificando a restrição de sua liberdade, impõe-se a prévia oitiva do interessado.

No plano infraconstitucional, essa garantia encontra previsão expressa no art. 282, § 4º, do CPP, que condiciona a decretação ou substituição de medida cautelar por outra mais gravosa à prévia manifestação da defesa, ressalvadas hipóteses absolutamente excepcionais, que devem ser concreta e rigorosamente fundamentadas.

A audiência de justificação não se resume a uma formalidade processual, mas representa verdadeiro espaço de contraditório substancial, apto a permitir que o acusado ou apenado explique as circunstâncias do suposto descumprimento, demonstre falhas técnicas do monitoramento eletrônico, ausência de dolo ou ocorrência de força maior, influenciando legitimamente a decisão judicial antes da supressão da liberdade.

2- A audiência de custódia e seus limites funcionais

A audiência de custódia possui finalidade específica e delimitada, voltada à verificação da legalidade formal da prisão, à apuração de eventual ocorrência de maus-tratos e à análise inicial da necessidade de manutenção da custódia. Trata-se de ato que ocorre, necessariamente, após a efetivação da prisão, quando a liberdade já foi restringida.

Diferentemente da audiência de justificação, a audiência de custódia não se destina à apuração do descumprimento de medidas cautelares anteriormente impostas, tampouco substitui a necessidade de contraditório prévio. O contraditório posterior não tem o condão de convalidar ilegalidade originária, sob pena de legitimar a lógica do “prende-se primeiro, ouve-se depois”, incompatível com o Estado Democrático de Direito.

3- A jurisprudência do STJ sobre o rompimento de tornozeleira eletrônica e a exigência de audiência de justificação

A jurisprudência do STJ consolidou entendimento no sentido de que o rompimento ou a violação do monitoramento eletrônico não autoriza, por si só, a imposição automática de medida mais gravosa. Ao julgar o habeas corpus 1042462/SP, a Corte reconheceu a nulidade da regressão definitiva de regime imposta em razão do rompimento de tornozeleira eletrônica, justamente pela ausência de audiência judicial de justificação.

No referido precedente, assentou-se que a oitiva prévia do apenado constitui etapa indispensável para a validade da decisão que agrava sua situação jurídica, por se tratar de exigência diretamente vinculada aos princípios do contraditório e da ampla defesa. Destacou-se que a simples constatação do rompimento do equipamento não dispensa a análise das circunstâncias concretas do fato, como falhas técnicas, ausência de dolo ou situações excepcionais, as quais somente podem ser devidamente avaliadas em audiência própria.

Embora o caso tenha sido decidido no âmbito da execução penal, o fundamento jurídico adotado projeta efeitos diretos sobre o processo penal cautelar, pois em ambos os contextos está em jogo a restrição da liberdade. A identidade de razão entre a regressão de regime e a conversão de medida cautelar diversa da prisão em prisão preventiva impõe a aplicação do mesmo standard de garantias.

4- A audiência de justificação na execução penal

No campo da execução penal, a audiência de justificação assume papel central, especialmente nos casos de apuração de falta grave e regressão de regime. A imposição de sanção disciplinar ou a alteração do regime de cumprimento da pena sem a prévia oitiva do apenado viola frontalmente as garantias constitucionais do devido processo legal.

O rompimento da tornozeleira eletrônica não pode ser tratado como presunção absoluta de falta grave. A ausência de audiência de justificação compromete a legitimidade da decisão e instaura um modelo de execução penal incompatível com a racionalidade constitucional, baseado em automatismos punitivos.

5- A audiência de justificação no processo penal cautelar

No processo penal de conhecimento, a audiência de justificação também se impõe como condição de validade para a conversão de medida cautelar diversa da prisão em prisão preventiva. A decretação automática da custódia, fundada exclusivamente em suposto descumprimento de cautelar, viola o art. 282, §4º, do CPP e esvazia a lógica das alternativas ao cárcere.

A audiência de custódia, realizada posteriormente, não supre essa exigência, pois não recompõe o contraditório que deveria ter precedido a decisão restritiva da liberdade.

6- Convergência entre execução penal e cautelares do CPP

Embora situadas em momentos processuais distintos, a execução penal e o processo penal cautelar compartilham o mesmo núcleo constitucional: a proteção da liberdade frente ao poder punitivo do Estado. Em ambos os contextos, a audiência de justificação funciona como mecanismo de contenção do arbítrio e de racionalização da resposta penal.

A ausência de oitiva prévia compromete a validade da decisão e impõe o reconhecimento da nulidade absoluta, seja na regressão de regime, seja na decretação da prisão preventiva.

Conclusão

A audiência de custódia não substitui nem supre a audiência de justificação, seja no âmbito da execução penal, seja no processo penal cautelar. A oitiva prévia do acusado ou do apenado constitui condição de legitimidade de qualquer decisão que agrave a restrição da liberdade. A jurisprudência do STJ reafirma que o respeito ao contraditório substancial e ao devido processo legal é requisito indispensável para a validade das medidas restritivas de liberdade.

__________

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

BRASIL. Código de Processo Penal.

BRASIL. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal).

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Habeas Corpus nº 1042462/SP.

LOPES JR., Aury. Direito processual penal. São Paulo: Saraiva, 2023.

PACELLI, Eugênio. Curso de processo penal. São Paulo: Atlas, 2024.

Autor

Wanderson José Lopes Ferreira Advogado Criminalista. Conselheiro Nacional da Advocacia Criminal-CNAC. Membro Com. Eleitoral OAB/TO. Mestrando C. Criminais. Especialista Improbidade Administrativa,Direito Penal Econômico e Proc.Civil.

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