A Corte Especial do STJ decidiu, por ampla maioria, homologar sentença arbitral estrangeira proferida pela Corte Internacional de Arbitragem Comercial da Câmara Ucraniana de Comércio e Indústria contra a ACS – Alcântara Cyclone Space, empresa binacional criada por tratado internacional entre Brasil e Ucrânia para o desenvolvimento do veículo lançador Cyclone-4.
Apenas o relator, ministro Raul Araújo, e a ministra Isabel Gallotti votaram pela negativa. Prevaleceu a divergência aberta pela ministra Nancy Andrighi, seguida pelo voto-vista do ministro Mauro Campbell Marques.
O julgamento tratou de temas relacionados à soberania nacional, imunidade de jurisdição, ordem pública e responsabilidade da União, sucessora da empresa binacional após a edição da lei 13.814/19.
Entenda o caso
Criada em 2003 por tratado internacional firmado entre Brasil e Ucrânia, a ACS operava como empresa binacional técnico-econômica, com sede em Brasília, destinada ao desenvolvimento do veículo Cyclone-4 no Centro de Lançamento de Alcântara/MA. Em 2015, firmou com a empresa requerente um contrato que incluía cláusula compromissória de arbitragem para solução de litígios.
Ainda em 2015, o Brasil denunciou o tratado que originou a ACS, cujos efeitos só se concretizaram em julho de 2016, quando se iniciou o processo de liquidação. Segundo os autos, a conclusão da liquidação exigia atuação bilateral, o que não ocorreu em razão da inércia da Ucrânia.
Também em 2016, teve início procedimento arbitral na Ucrânia. A ACS comunicou não possuir recursos para participar das audiências e afirmou que a empresa deveria ser liquidada antes de qualquer disputa. O tribunal arbitral, entretanto, prosseguiu e, em novembro daquele ano, condenou a ACS ao pagamento de cerca de US$ 113 mil, abrangendo dívida principal, multa, custas e taxas.
Em abril de 2018, a credora ajuizou o pedido de homologação dessa sentença estrangeira no STJ.
Extinção da ACS e sucessão pela União
No curso da ação, a ACS apresentou contestação intempestiva e sem documentação válida, resultando em sua revelia. Em 2019, a Medida Provisória 858, posteriormente convertida na lei 13.814/19, extinguindo formalmente a empresa binacional, determinando-se que:
- a União sucederia a empresa em bens, direitos e obrigações situados no território brasileiro;
- a União também assumiria a sucessão processual nas ações em curso no país;
- obrigações, bens e direitos situados no exterior poderiam ser inventariados pela Ucrânia, com compensações finais entre os Estados.
Intimada a atuar como sucessora processual, a União também apresentou contestação fora do prazo legal.
Risco à soberania e à ordem pública
Para o relator, ministro Raul Araújo, a homologação deveria ser negada por violação à ordem pública, à soberania nacional e à imunidade de jurisdição.
Embora a condenação recaísse formalmente sobre a ACS, a extinção da empresa implicaria, em sua visão, a assunção da dívida pela União, o que seria incompatível com a legislação interna, já que a lei 13.814/19 veda a responsabilização do Estado brasileiro por obrigações contraídas no exterior.
O relator sustentou ainda que a pendência de liquidação tornaria indisponíveis os direitos envolvidos, impedindo o prosseguimento do procedimento arbitral e, por consequência, sua homologação no Brasil.
Divergência
A ministra Nancy Andrighi abriu divergência afirmando que não se configurava violação à ordem pública capaz de impedir a homologação. Destacou que a sentença arbitral não impôs obrigação diretamente à União, mas à ACS, pessoa jurídica autônoma, e que a sucessão processual decorre exclusivamente de ato de soberania interna — a lei brasileira que extinguiu a empresa e determinou essa transferência.
Nancy também afastou o argumento de indisponibilidade dos direitos, observando que a arbitragem foi instaurada quando a ACS ainda estava em pleno funcionamento e que não há norma brasileira que impeça o prosseguimento de arbitragem durante fase de liquidação.
Recordou jurisprudência do próprio STJ segundo a qual a recuperação judicial não suspende a eficácia de cláusulas compromissórias.
Para a ministra, eventuais discussões sobre exigibilidade do título ou responsabilidade patrimonial da União devem ocorrer na fase de execução, e não na estreita via da homologação.
O receio da União de não conseguir reaver valores futuramente, diante da inércia da Ucrânia na liquidação da empresa, não constitui motivo legítimo para impedir a homologação.
Limites da ação de homologação
O ministro Mauro Campbell Marques acompanhou integralmente a divergência. Em seu voto-vista, ressaltou que a ação de homologação de sentença estrangeira não revisita o mérito da arbitragem, mas apenas verifica o cumprimento dos requisitos formais previstos na legislação e no Regimento Interno do STJ.
Observou que a revelia da ACS impede o acolhimento das alegações fáticas posteriores da União, cujo ingresso no processo não poderia reabrir prazos já preclusos.
Campbell enfatizou que a eventual responsabilidade da União decorre de opção legislativa interna e não da sentença arbitral, inexistindo, portanto, violação à ordem pública.
Resultado
A divergência foi acompanhada pelos ministros Antonio Carlos Ferreira, Ricardo Villas Bôas Cueva, Sebastião Reis Júnior, Joel Ilan Paciornik, Humberto Martins, Og Fernandes, Luis Felipe Salomão e Benedito Gonçalves. Apenas a ministra Isabel Gallotti acompanhou o relator.
Com isso, por maioria expressiva, a Corte Especial decidiu homologar a sentença arbitral estrangeira.
- Processo: HDE 1607