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ABC do CDC

Direito do Consumidor no dia a dia.

Rizzatto Nunes
Continuo examinando a relação jurídica de consumo estabelecida no Código de Defesa do Consumidor (CDC), ainda no exame do conceito de serviço.  Serviço é, tipicamente, atividade. Esta é ação humana que tem em vista uma finalidade. Ora, toda ação se esgota tão logo praticada. A ação se exerce em si mesma. Daí somente poderia existir serviço não durável. Seria uma espécie de contradição falar em serviço que dura. Todavia, o mercado acabou criando os chamados serviços tidos como duráveis, tais como os contínuos (p. ex., os serviços de convênio de saúde, os serviços educacionais regulares em geral etc.). Com isso, o CDC, incorporando essa invenção, tratou de definir, também, os serviços como duráveis e não duráveis, no que andou bem.  A hipótese dessa divisão, da mesma forma que quanto aos produtos, está tratada no art. 26, I e II. Mas, para encontrar o verdadeiro sentido da durabilidade e não durabilidade do serviço, será preciso ampliar o significado de serviço não durável. Assim, serviços não duráveis serão aqueles que, de fato, exercem-se uma vez prestados, tais como, por exemplo, os serviços de transporte, de diversões públicas, de hospedagem etc.  E os serviços duráveis serão aqueles que: a) tiverem continuidade no tempo em decorrência de uma estipulação contratual. São exemplos a prestação dos serviços escolares, os chamados planos de saúde etc., bem como todo e qualquer serviço que no contrato seja estabelecido como contínuo; b) embora típicos de não durabilidade e sem estabelecimento contratual de continuidade, deixarem como resultado um produto. Por exemplo, a pintura de uma casa, a instalação de um carpete, o serviço de buffet, a colocação de um boxe, os serviços de assistência técnica e de consertos (o conserto de um veículo) etc. Nesses casos, embora se possa destacar o serviço do produto deixado (o que gera diferenciais no aspecto de responsabilidade), o produto faz parte do serviço - às vezes até com ele se confundindo, como acontece, por exemplo, com a pintura de uma parede.  É preciso dizer que modernamente o serviço passou a ter uma importância excepcional no mercado. Os profissionais de marketing, por exemplo, dão hoje prevalência ao aspecto do atendimento ao consumidor no que respeita à oferta de produtos e serviços em geral. Ora, atendimento ao consumidor é prestação de serviços. Temos de lembrar, então, que qualquer venda de produto implica a simultânea prestação de serviço. O inverso não é verdadeiro: há serviços sem produtos. Assim, por exemplo, para vender um par de sapatos, o lojista tem de, ao mesmo tempo, prestar serviços: vai atender o consumidor, trazer os sapatos por ele escolhidos, colocá-los nos seus pés para que os experimente, dizer como pode ser feito o pagamento, passar o cartão de crédito na maquineta etc. Já na prestação do serviço de consulta médica, por exemplo, há apenas serviço.  Indo à leitura da redação do § 2º do art. 3º, tem-se ainda de tratar do aspecto da "remuneração" lá inserido e da exclusão do serviço de caráter trabalhista. Comecemos por este último, que não demanda qualquer dificuldade. A lei pura e simplesmente exclui de sua abrangência os serviços de caráter trabalhista, no que está certa, pois a relação instaurada nesse âmbito tem conotação diversa da instaurada nas relações de consumo. Já o aspecto da remuneração merece comentários mais cuidadosos.  O CDC define serviço como aquela atividade fornecida mediante "remuneração".  Antes de mais nada, consigne-se que praticamente nada é gratuito no mercado de consumo. Tudo tem, na pior das hipóteses, um custo, e este acaba, direta ou indiretamente, sendo repassado ao consumidor. Assim, se, por exemplo, um restaurante não cobra pelo cafezinho, por certo seu custo já está embutido no preço cobrado pelos demais produtos.  Logo, quando a lei fala em "remuneração" não está necessariamente se referindo a preço ou preço cobrado. Deve-se entender o aspecto "remuneração" no sentido estrito de qualquer tipo de cobrança ou repasse, direto ou indireto.  É preciso algum tipo de organização para entender o alcance da norma. Para estar diante de um serviço prestado sem remuneração, será necessário que, de fato, o prestador do serviço não tenha, de maneira alguma, se ressarcido de seus custos, ou que, em função da natureza da prestação do serviço, não tenha cobrado o preço. Por exemplo, o médico que atenda uma pessoa que está passando mal na rua e nada cobre por isso enquadra-se na hipótese legal de não recebimento de remuneração. Já o estacionamento de um shopping, no qual não se cobre pela guarda do veículo, disfarça o custo, que é cobrado de forma embutida no preço das mercadorias.  Por isso é que se pode e se deve classificar remuneração como repasse de custos direta ou indiretamente cobrados. No que respeita à cobrança indireta, inclusive, destaque-se que ela pode nem estar ligada ao consumidor beneficiário da suposta "gratuidade". No caso do cafezinho grátis, pode-se entender que seu custo está embutido na refeição haurida pelo próprio consumidor que dele se beneficiou. No do estacionamento grátis no shopping, o beneficiário pode não adquirir qualquer produto e ainda assim tem-se de falar em custo. Nesse caso é outro consumidor que paga, ou melhor, são todos os outros consumidores que pagam. *** Continua na próxima semana.
Continuo examinando a relação jurídica de consumo estabelecida no Código de Defesa do Consumidor (CDC), agora no exame do conceito de serviço. O CDC definiu serviço no § 2º do art. 3º1 e buscou apresentá-lo de forma a mais completa possível. Porém, na mesma linha de princípios por nós já apresentada, é importante lembrar que a enumeração é exemplificativa, realçada pelo uso do pronome "qualquer". Dessa maneira, como bem a lei o diz, serviço é qualquer atividade fornecida ou, melhor dizendo, prestada no mercado de consumo.2 A norma faz uma enumeração específica, que tem razão de ser. Coloca expressamente os serviços de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, antecedidos do advérbio "inclusive". Tal designação não significa que existia alguma dúvida a respeito da natureza dos serviços desse tipo. Antes demonstra que o legislador foi precavido, em especial, no caso, preocupado com que os bancos, financeiras e empresas de seguro conseguissem, de alguma forma, escapar do âmbito de aplicação do CDC. Ninguém duvida que esse setor da economia presta serviços ao consumidor e que a natureza dessa prestação se estabelece tipicamente numa relação de consumo. Foi um reforço acautelatório do legislador, que, aliás, demonstrou-se depois, era mesmo necessário. Apesar da clareza do texto legal, que coloca, com todas as letras, que os bancos prestam serviços aos consumidores, houve tentativa judicial de se obter declaração em sentido oposto. Chegou-se, então, ao inusitado: O Poder Judiciário teve de declarar exatamente aquilo que a lei já dizia, isto é, que os bancos prestam serviços. Já em 1995 o STJ reconhecia a incidência do CDC e, depois de muita disputa, editou em 2004 a Súmula 297 com o seguinte teor: "O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras". É importante aproveitar o episódio para lembrar que os países cujo capitalismo é dito como dos mais avançados têm leis de proteção ao consumidor. A propósito, lembre-se que o CDC brasileiro é fundamental para o desenvolvimento do próprio regime capitalista estabelecido expressamente no art. 1º da Constituição da República. Na verdade, ficou a convicção de que os agentes financeiros deveriam, ao invés de lamentar, comemorar o resultado da demanda. É que, em primeiro lugar - repita-se -, a lei 8.078/90 não é contra nenhum empresário. Ao contrário, ela está a favor exatamente daqueles que respeitam seus clientes. Em segundo lugar, ela é uma lei que cria a possibilidade de competição, pois a livre concorrência estabelecida no sistema constitucional brasileiro - garantia constitucional dos princípios gerais da atividade econômica: Art. 170, IV - gera a alternativa de, respeitando os direitos dos consumidores, obter novos clientes. Lembre-se também que o CDC está em pleno vigor há muitos anos com eficácia e muita eficiência, tendo influenciado diretamente a modernização das relações jurídicas estabelecidas no polo de consumo. E mais: É uma lei brasileira respeitada no exterior, tendo servido de inspiração para a criação e modificação de outras leis similares em alguns países. É, efetivamente, um produto nacional que enche de orgulho os brasileiros. *** Continua na próxima semana. ___________ 1 "Art. 3º (...) § 2º Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista." 2 Os chamados serviços essenciais têm, também, regulação complementar no art. 22 do CDC.
Continuo examinando a relação jurídica de consumo estabelecida no Código de Defesa do Consumidor (CDC), ainda no exame do conceito de produto.  No artigo anterior, dissemos que um prato de papelão para comer um doce ou um copo de papelão para beber algo são exemplos de produtos "descartáveis". Usados, joga-se-os fora.  E levantamos um problema: o produto descartável, do ponto de vista da garantia legal, segue os mesmos parâmetros fixados para os produtos "duráveis" ou "não duráveis"? O prazo para reclamação contra vícios num e noutro caso é diferente. Qual deles seguir?  Voltaremos a esse assunto quando tratarmos dos vícios dos produtos e das garantias conferidas pela lei.  Mas, consignamos que, em nossa opinião, como a norma não cuida de produto "descartável" e como o produto "não durável" tem características diversas (como veremos na sequência), entendemos que tal produto deve ser tratado como durável, aplicando-se-lhe todos os parâmetros e garantias estabelecidos no CDC.  Pois bem. O produto "não durável" é aquele que se acaba com o uso. Como o próprio nome também diz, não tem durabilidade. Usado, ele se extingue ou, pelo menos, vai-se extinguindo. Estão nessa condição os alimentos, os remédios, os cosméticos etc. Note-se que se fala em extinção imediata, como é o caso de uma bebida, pela ingestão ou extinção consumativa sequencial, como é o caso do sabonete: este se vai extinguindo enquanto é usado1.  Estão nessas condições também os chamados produtos in natura, ou seja, os que não passam pelo sistema de industrialização, tais como o simples empacotamento, engarrafamento, encaixotamento etc., ou mesmo transformação industrial por cozimento, fritura, mistura e o decorrente de processo de armazenamento em potes, latas, sacos etc.  O produto in natura, assim, é aquele que vai ao mercado consumidor diretamente do sítio ou fazenda, local de pesca, produção agrícola ou pecuária, em suas hortas, pomares, pastos, granjas etc. São os produtos hortifrutigranjeiros, os grãos, cereais, vegetais em geral, legumes, verduras, carnes, aves, peixes etc.2  A não durabilidade vai ocorrer também com os demais produtos alimentícios embalados, enlatados, engarrafados etc. O fato de todo o produto não se extinguir de uma só vez não lhe tira a condição de "não durável". O que caracteriza essa qualificação é sua maneira de extinção "enquanto" é utilizado3.  É exatamente daí que surge a diferença específica do produto durável descartável. Enquanto este permanece quase tal como era após utilizado, o produto "não durável" perde totalmente sua existência com o uso ou, ao menos, vai perdendo-a aos poucos com sua utilização.  E mais: quando examinarmos nos  próximos artigos os serviços, veremos que a lei faz referência àqueles "sem remuneração". Lembremos, por isso, neste ponto, a questão do produto gratuito ou a chamada "amostra grátis".  Há uma única referência à "amostra grátis", no CDC: a constante do parágrafo único do art. 39 e apenas para liberar o consumidor de qualquer pagamento. A amostra grátis diz respeito não só ao produto mas também ao serviço, posto que é sanção imposta ao fornecedor que descumpre as regras estabelecidas.  Para o que aqui importa, refira-se que o produto entregue como amostra grátis está submetido a todas as exigências legais de qualidade, garantia, durabilidade, proteção contra vícios, defeitos etc.  *** Continua na próxima semana. __________ 1 O conceito remete a parte do significado de bem consumível do Código Civil (art. 86): "Art. 86. São consumíveis os bens móveis cujo uso importa destruição imediata da própria substância, sendo também considerados tais os destinados à alienação."   2 Os produtos ditos in natura não perdem essa característica quando são vendidos embalados em sacos plásticos após serem limpos, lavados e selecionados. O § 5º do art. 18 do CDC se refere expressamente a produto in natura.: "Art. 18 (...) § 5° No caso de fornecimento de produtos in natura, será responsável perante o consumidor o fornecedor imediato, exceto quando identificado claramente seu produtor." 3 Os serviços, como mostraremos em outro artigo, seguem disposição similar.
Continuo examinando a relação jurídica de consumo estabelecida no Código de Defesa do Consumidor (CDC), ainda no exame do conceito de produto. Outra novidade da lei consumerista, no que se refere aos produtos, é quanto a sua durabilidade. A divisão dos produtos em duráveis e não duráveis já era de há muito conhecida do mercado (o CDC tratou, também, de dar o adjetivo aos serviços, como mostrarei em outro artigo). O Direito só agora, tardiamente, incorporou tal divisão. Os conceitos de durável e não durável aparecem na seção que trata da decadência e da prescrição, mais especificamente no art. 26, I e II.1 Produto durável é aquele que, como o próprio nome diz, não se extingue com o uso. Ele dura, leva tempo para se desgastar. Pode - e deve - ser utilizado muitas vezes. Contudo, é preciso chamar a atenção para o aspecto de "durabilidade" do bem durável. Nenhum produto é eterno. Todos tendem a um fim material. Até mesmo um imóvel construído se desgasta (o terreno é uma exceção, uma vez que dura na própria disposição do planeta, apesar de que pode, também, sofrear erosões e outros excepcionais desgastes e até "desaparecer" numa inundação etc.). A duração de um imóvel, enquanto tal, comporta arrumações, reformas, reconstruções etc.; com idêntica razão, então, é claro que um terno se desgaste, uma geladeira se desgaste, um automóvel se desgaste etc. Assim, é compreensível que qualquer produto durável acabe, com o tempo, perdendo sua função, isto é, deixe de atender à finalidade à qual se destina ou, pelo menos, tenha diminuída sua capacidade de funcionamento, sua eficiência. Por exemplo, o tubo do aparelho do televisor não funciona mais ou, então, as imagens transmitidas pelo tubo têm cores fracas. Nesses casos de desgaste natural não se pode falar em vício do produto. Não há proteção legal contra o desgaste, a não ser que o próprio fabricante tenha assumido certo prazo de funcionamento (conforme permite o CDC: arts. 30, 31, 37, 50 etc.). A norma protege o produto durável, em certo prazo, por vício (arts. 18, 26, II, e 50), para garantir sua finalidade e qualidade. Hodiernamente utiliza-se a expressão "produto descartável". "Descartável" não deve ser confundido com "não durável", que tem características diversas daquele termo. Um produto "descartável" (termo não definido em lei) é o "durável" de baixa durabilidade, ou que somente pode ser utilizado uma vez. É uma invenção do mercado contemporâneo, que acaba aproximando o produto "durável" em sua forma de desgaste ao produto "não durável" em sua forma de extinção. Um prato de papelão para comer um doce ou um copo de papelão para beber algo são exemplos de produtos "descartáveis". Usados, joga-se-os fora. Surge, então, um problema: O produto descartável, do ponto de vista da garantia legal, segue os mesmos parâmetros fixados para os produtos "duráveis" ou "não duráveis"? O prazo para reclamação contra vícios num e noutro caso é diferente. Qual deles seguir? Voltaremos a esse assunto quando tratarmos dos vícios dos produtos e das garantias conferidas pela lei. Por ora, diga-se que, em nossa opinião, como a norma não cuida de produto "descartável" e como o produto "não durável" tem características diversas (como veremos na próxima semana), entendemos que tal produto deve ser entendido como durável, aplicando-se-lhe todos os parâmetros e garantias estabelecidos no CDC. *** Continua na próxima semana. _________ 1 Na legislação civil a classificação apresentada é de coisas fungíveis e consumíveis: Código Civil: "Art. 85. São fungíveis os móveis que podem substituir-se por outros da mesma espécie, qualidade e quantidade. Art. 86. São consumíveis os bens móveis cujo uso importa destruição imediata da própria substância, sendo também considerados tais os destinados à alienação".
Hoje suspendo o exame da relação jurídica de consumo estabelecida no Código de Defesa do Consumidor (CDC), como vinha fazendo, para tratar de alguns aspectos envolvendo queda de aeronaves. Isso por conta do terrível acidente ocorrido em Vinhedo. O noticiário, inclusive aqui no nosso querido Migalhas, já cuidou dos aspectos jurídicos envolvendo as vítimas e seus familiares. Vou, então, lembrar dos direitos que envolvem os terceiros atingidos em solo pela aeronave. De todo modo, antes de mais nada, quero consignar que o ponto de partida do direito ao ressarcimento dos danos sofridos pelo consumidor e do dever de indenizar do agente responsável pelo produto ou pelo serviço é o fato do produto ou do serviço causador do acidente de consumo. E a responsabilidade civil do agente é objetiva, oriunda do risco de sua atividade econômica. Lembro que, quando o CDC estabelece o dever de indenizar, quer que tal indenização seja ampla na medida de suas consequências. Os danos indenizáveis são, assim, os de ordem material e os de natureza moral, os estéticos e os relativos à imagem. Como se sabe, a composição da indenização do dano material compreende os danos emergentes, isto é, a perda patrimonial efetivamente já ocorrida e os chamados "lucros cessantes", que compreendem tudo aquilo que a pessoa lesada deixou de auferir como renda líquida, em virtude do dano. No primeiro caso, apura-se o valor real da perda e manda-se pagar em dinheiro a quantia apurada. No segundo, calcula-se quanto a pessoa lesada deixou de faturar e determina-se seu pagamento. Nessa hipótese, encontra-se a fixação das pensões pela perda de capacidade para o trabalho, pela morte do parente que mantinha e sustentava a família etc. O dano moral, como se sabe, é aquele que afeta a paz interior da pessoa lesada; atinge seu sentimento, o decoro, o ego, a honra, enfim, tudo aquilo que não tem valor econômico, mas causa dor e sofrimento. E, pois, a dor física e/ou psicológica sentida pelo indivíduo. A indenização por dano moral tem caráter satisfativo-punitivo e deve ser fixada segundo certos critérios objetivos. De maneira assemelhada deve-se apurar a indenização relativa ao dano estético e à imagem. Ora, é bem possível - fatal e desafortunadamente - que produtos e serviços causem danos de ordem patrimonial de monta, quer emergentes, quer oriundos de lucros cessantes. Danos físicos irreparáveis e até a morte do consumidor ocorrem e devem ser indenizados. No caso de morte, os parentes é que serão indenizados. Não é preciso ir muito longe para pensar nos exemplos. Um simples acidente de automóvel, ocasionado por defeito no freio, pode gerar toda sorte de dano; a ingestão de um remédio mal produzido; o consumo de alimentos deteriorados; o serviço hospitalar mal realizado; o acidente de transporte: O mero extravio de bagagens numa viagem aérea e, fatal e infelizmente, a queda de um avião causando a morte dos passageiros; enfim, potencialmente, os acidentes de consumo estão à volta de todas as pessoas. Na definição ampla de consumidor, o art. 17 do CDC inclui as vítimas de acidente de consumo. É o chamado consumidor equiparado. Com a criação pelo CDC da figura do consumidor equiparado, resolveu-se qualquer problema que poderia existir em termos de descoberta do instituto jurídico aplicável no caso de acidente de consumo envolvendo pessoas diversas do próprio consumidor diretamente interessado. Em outros termos, ocorrendo acidente de consumo, o consumidor diretamente afetado tem direito à ampla indenização pelos danos ocasionados. Todas as outras pessoas que foram atingidas pelo evento têm o mesmo direito. No caso do acidente em Vinhedo, as pessoas que tiveram seus bens atingidos em terra são consideradas consumidoras equiparadas. Importante levantar aqui outra questão de alto relevo envolvendo dois tipos de terceiros: Os familiares e/ou dependentes do consumidor diretamente atingido e que por conta do acidente de consumo tenha falecido; Os familiares e/ou dependentes do terceiro - consumidor equiparado - envolvido no acidente de consumo e que por causa do evento danoso tenha falecido. Em ambos os casos, os familiares e/ou dependentes dos consumidores vítimas do acidente - quer sejam consumidores diretos, quer sejam equiparados - têm direito a indenização de natureza material e moral.1 Isso porque a amplitude da lei consumerista no que respeita à indenização devida ao consumidor, garantindo de um lado sua esfera patrimonial, alcança seus sucessores e pessoas com interesse jurídico na questão, e, assegurando de outro a recomposição dos danos de natureza moral, no caso de falecimento, abrange aqueles que estão a padecer a dor da perda. __________ 1 Em caso de falecimento não há que se falar em dano estético. Quanto à imagem, também, parece-nos inaplicável a hipótese. Somente numa situação muito especial poder-se-ia encontrar esse tipo de dano com a morte.
Continuo examinando a relação jurídica de consumo estabelecida no Código de Defesa do Consumidor (CDC). Hoje com o conceito de produto.  O CDC definiu produto no § 1º do art.3º  e, de maneira adequada, seguindo o conceito contemporâneo, em vez de falar em bem ou coisa, como fazia o Código Civil de 1916 e, também, o de 20021, emprega o termo "produto" (e depois vai falar em "serviço").: "Art. 3º (...) § 1º Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial."  Esse conceito de produto é universal nos dias atuais e está estreitamente ligado à ideia do bem, resultado da produção no mercado de consumo das sociedades capitalistas contemporâneas. É vantajoso seu uso, pois o conceito passou a valer no meio jurídico e já era usado por todos os demais agentes do mercado (econômico, financeiro, de comunicações etc.).  Na definição de produto, o legislador coloca "qualquer bem", e designa este como "móvel ou imóvel", e ainda "material ou imaterial". Da necessidade de interpretação sistemática do CDC nascerá também a hipótese de fixação do produto como durável e não durável, por previsão do art. 26 (acontecerá o mesmo no que tange aos serviços). Então vejamos.  A utilização dos vocábulos "móvel" e "imóvel" nos remete ao conceito tradicional advindo do direito civil. O sentido é o mesmo: "Código Civil: "Art. 79. São bens imóveis o solo e tudo quanto se lhe incorporar natural ou artificialmente. "Art. 80. Consideram-se imóveis para os efeitos legais: I - os direitos reais sobre imóveis e as ações que os asseguram; II - o direito à sucessão aberta.  Art. 81. Não perdem o caráter de imóveis: I - as edificações que, separadas do solo, mas conservando a sua unidade, forem removidas para outro local; II - os materiais provisoriamente separados de um prédio, para nele se reempregarem.  Art. 82. São móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social.  Art. 83. Consideram-se móveis para os efeitos legais: I - as energias que tenham valor econômico; II - os direitos reais sobre objetos móveis e as ações correspondentes; III - os direitos pessoais de caráter patrimonial e respectivas ações. Art. 84. Os materiais destinados a alguma construção, enquanto não forem empregados, conservam sua qualidade de móveis; readquirem essa qualidade os provenientes da demolição de algum prédio".  No que respeita ao aspecto da materialidade do produto, vimos que ele pode ser material ou imaterial.  Mas, por conta do fato de o CDC ter definido produto como imaterial, é de perguntar que tipo de bem é esse que poderia ser oferecido no mercado de consumo. Afinal, o que seria um produto imaterial que o fornecedor poderia vender e o consumidor adquirir?  Diga-se, em primeiro lugar, que a preocupação da lei é garantir que a relação jurídica de consumo esteja assegurada para toda e qualquer compra e venda realizada. Por isso fixou conceitos os mais genéricos possíveis ("produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial"). Isso é que é importante. A pretensão é que nada se lhe escape.  Assim, a designação "produto" é utilizada, por exemplo, nas atividades bancárias (mútuo, aplicação em renda fixa, caução de títulos etc.). Tais "produtos" encaixam-se, então, na definição de bens imateriais2.  *** Continua na próxima semana __________ 1 Código de 1916, arts. 43 e s.; Código de 2002, arts. 79 e s. 2 São produtos, claro, que sempre estão acompanhados de serviços. Aliás, como acontece com qualquer produto.
Continuo examinando a relação jurídica de consumo estabelecida no Código de Defesa do Consumidor (CDC), ainda no exame do conceito de fornecedor. Já tivemos oportunidade de dizer que a pessoa jurídica pode ser consumidora, ao examinarmos o conceito de consumidor estabelecido no caput do art. 2º. Lá a norma apenas faz referência à "pessoa jurídica" sem qualificá-la. Já no caput do art. 3º, como a lei trata de adjetivar a pessoa jurídica como "pública ou privada, nacional ou estrangeira", poder-se-ia indagar se no art. 2º não se estaria falando menos ou até o contrário, ou, em outros termos: Se no caput do art. 3º a norma não estaria, de alguma maneira, cuidando apenas daquelas pessoas jurídicas indicadas. Na realidade, a resposta é bastante simples. Tanto no caso do conceito de consumidor quanto no de fornecedor, a referência é a "toda pessoa jurídica", independentemente de sua condição ou personalidade jurídica. Isto é, toda e qualquer pessoa jurídica. O legislador poderia muito bem ter escrito no caput do art. 3º apenas a expressão "pessoa jurídica" que o resultado teria sido o mesmo. Não resta dúvida de que toda pessoa jurídica pode ser consumidora e, evidentemente, por maior força de razão, é fornecedora. Ao que parece, o legislador, um tanto quanto inseguro, tratou a pessoa jurídica como consumidora sem se importar muito com o resultado de sua determinação, e quis garantir-se de que, no caso do fornecedor, nenhuma pessoa jurídica escapasse de se enquadrar na hipótese legal. Assim, tem-se de definir como fornecedor toda e qualquer pessoa jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços. A referência à pessoa jurídica estrangeira tem relevo na hipótese da pessoa jurídica admitida como estrangeira em território nacional e que, nessa qualidade, presta serviços ou vende produtos. Por exemplo, a companhia aérea que aqui faz escala ou a companhia teatral estrangeira que vem ao país para apresentações. Haverá em ambos os exemplos prestação de serviços, e pode haver venda de produtos: A empresa aérea que vende presentes a bordo; a companhia teatral que vende pequenos objetos: camisetas, bichos de pelúcia etc. Ao lado da pessoa jurídica, a lei coloca a pessoa física e o ente despersonalizado. A colocação do termo "ente despersonalizado" leva-nos a pensar primeiramente na massa falida, o que é adequado. Importante notar que, apesar de uma pessoa jurídica falir, existirão no mercado produtos e, eventualmente, resultados dos serviços que ela ofereceu e efetivou, que continuarão sob a proteção da lei consumerista. Por exemplo, a quebra de um fabricante de televisores não deve eliminar - nem pode - a garantia do funcionamento dos aparelhos: Garantia contratual ou legal. Há, também, a hipótese da quebra da pessoa jurídica com a continuidade das atividades, o que não gerará, então, a solução de continuidade do fornecimento de produtos e serviços. Além disso, é de enquadrar no conceito de ente despersonalizado as chamadas "pessoas jurídicas de fato": Aquelas que, sem constituir uma pessoa jurídica, desenvolvem, de fato, atividade industrial, comercial, de prestação de serviços etc. A figura do "camelô"1 está aí inserida. O CDC não poderia deixar de incluir tais "pessoas" pelo simples fato de que elas formam um bom número de fornecedores, que suprem de maneira relevante o mercado de consumo. No que respeita à pessoa física, tem-se, em primeiro lugar, a figura do profissional liberal como prestador de serviço e que não escapou da égide da lei 8.078. Apesar da proteção recebida da lei (o profissional liberal não responde por responsabilidade objetiva, mas por culpa - cf. o § 4º do art. 14), não há dúvida de que o profissional liberal é fornecedor. Há, ainda, outra situação em que a pessoa física será identificada como fornecedora. É aquela em que desenvolve atividade eventual ou rotineira de venda de produtos, sem ter-se estabelecido como pessoa jurídica. Por exemplo, o estudante que, para pagar a mensalidade da escola, compra joias para revender entre os colegas, ou o cidadão que compra e vende automóveis - um na sequência do outro - para auferir lucro. É verdade que em tais hipóteses poder-se-ia objetar que o caso é de "ente despersonalizado", uma vez que se trata de "comerciantes de fato". Do ponto de vista prático, a objeção não traz nenhum resultado, porque em ambos os casos identifica-se o fornecedor, e isso é o que realmente interessa. Porém, diga-se que a pessoa física que vende produtos, especialmente aquela que o faz de forma eventual, não é exatamente comerciante de fato e muito menos sociedade de fato. Um "camelô" constitui-se como verdadeira "sociedade de fato". Tem local ("sede") de atendimento, horário de funcionamento, até empregados etc. O aluno que vende joias não passa de pessoa física que desenvolve, de maneira rústica e eventual, uma atividade comercial, visando auferir certo lucro. Situa-se, então, entre a pessoa física que nada vende e a sociedade de fato. Mas, para fins de aplicação do CDC, essa pessoa física é fornecedora. E, também, será fornecedora a pessoa física que presta serviços mesmo sem ser caracterizada como profissional liberal, tal como o eletricista, o encanador etc. Finalmente, apresente-se desde já uma distinção feita pelo CDC, mas que diz respeito ao conceito de fornecedor. Este é gênero do qual o fabricante, o produtor, o construtor, o importador e o comerciante são espécies. Quando a lei consumerista quer que todos sejam obrigados e/ou responsabilizados, usa o termo "fornecedor". Quando quer designar algum ente específico, utiliza-se de termo designativo particular: fabricante, produtor, comerciante etc. *** Continua na próxima semana. _________ 1 É verdade que há "camelôs" constituídos em pessoas jurídicas. Nesse caso, obviamente, enquadram-se como fornecedores regulares do tipo pessoa jurídica.
Continuo examinando a relação jurídica de consumo estabelecida no Código de Defesa do Consumidor (CDC). Hoje cuido do conceito de fornecedor. O conceito de fornecedor está definido no caput do art. 3º do CDC.1 A leitura pura e simples desse caput já é capaz de nos dar um panorama da extensão das pessoas enumeradas como fornecedoras. Na realidade são todas pessoas capazes, físicas ou jurídicas, além dos entes desprovidos de personalidade. Não há exclusão alguma do tipo de pessoa jurídica, já que o CDC é genérico e busca atingir todo e qualquer modelo. São fornecedores as pessoas jurídicas públicas ou privadas, nacionais ou estrangeiras, com sede ou não no país, as sociedades anônimas, as por quotas de responsabilidade limitada, as sociedades civis, com ou sem fins lucrativos, as fundações, as sociedades de economia mista, as empresas públicas, as autarquias, os órgãos da Administração direta etc. O uso do termo "atividade" está ligado a seu sentido tradicional. Têm-se, então, atividade típica e atividade eventual. Assim, o comerciante estabelecido regularmente exerce a atividade típica descrita em seu estatuto. Mas é possível que o mesmo comerciante exerça uma atividade atípica, quando, por exemplo, age, de fato, em situação diversa da prevista, o que pode dar-se de maneira rotineira ou eventual. E a pessoa física vai exercer atividade atípica ou eventual quando praticar atos do comércio ou indústria. Por exemplo, uma estudante que, para pagar seus estudos, compra e depois revende artigos de vestuário entre suas colegas e seus colegas, exerce atividade que a põe como fornecedora para o CDC. Se essa compra e venda for apenas em determinada e específica época, por exemplo, no período de festas natalinas, ainda assim ela é fornecedora, porque, apesar de eventual, trata-se de atividade comercial. É importante centrar a atenção no conceito de atividade, porque, de um lado, ele designará se num dos polos da relação jurídica está o fornecedor, com o que se poderá definir se há ou não relação de consumo (para tanto, terá de existir no outro polo o consumidor). E isto porque será possível que a relação de venda de um produto, ainda que feita por um comerciante, não implique estar-se diante de uma relação de consumo regulada pelo CDC. Por exemplo, se uma loja de roupas vende seu computador usado para poder adquirir um novo, ainda que se possa descobrir no comprador um "destinatário final", não se tem relação de consumo, porque essa loja não é considerada fornecedora. A simples venda de ativos sem caráter de atividade regular ou eventual não transforma a relação firmada em relação jurídica de consumo. Será um ato jurídico regulado pela legislação comum civil ou comercial. O mesmo se dá quando a pessoa física vende seu automóvel usado. Independentemente de quem o adquira, não se pode falar em relação de consumo, pois falta a figura do fornecedor. No exemplo a situação é daquelas reguladas pelo direito comum civil, inclusive quanto a garantias, vícios etc. É por isso que a definição da relação de consumo é fundamental para se descobrir se é aplicável ou não o CDC. Agora, é evidente que, conforme dissemos, basta que a venda tenha como base a atividade regular ou eventual para que surja a relação de consumo. Usando os mesmos exemplos, define-se como relação de consumo a venda do computador pela loja de roupas, se tal estabelecimento imprime uma regularidade a esse tipo de venda, visando a obtenção de lucro. Da mesma maneira, haverá relação de consumo se a pessoa física compra automóveis para revender, fazendo disso uma atividade regular. Claro que, em casos assim, em eventual discussão judicial provocada pelo consumidor, haverá problemas de prova da atividade regular (ou eventual). Mas essa é uma questão processual, que não desfigura a definição do direito material ora tratado. *** Continua na próxima semana. __________ 1 "Art. 3º Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços."
Ainda avalio a relação jurídica de consumo estabelecida no Código de Defesa do Consumidor (CDC). Hoje cuido da coletividade de pessoas, das vítimas do evento danoso e das pessoas expostas às práticas comerciais. Continuando nossa análise da definição de consumidor, temos agora de avaliar o parágrafo único do art. 2º e depois os arts. 17 e 29, todos do Código de Defesa do Consumidor (CDC). O parágrafo único do art. 2º amplia a definição, dada no caput, de consumidor que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final, nos moldes já apresentados, equiparando a ele a coletividade de pessoas, mesmo que não possam ser identificadas e desde que tenham, de alguma maneira, participado da relação de consumo. A norma do parágrafo único do art. 2º pretende garantir a coletividade de pessoas que possam ser, de alguma maneira, afetadas pela relação de consumo. Na realidade, a hipótese dessa norma diz respeito apenas ao atingimento da coletividade, indeterminável ou não, mas sem sofrer danos, já que neste caso o art. 17 - examinado na sequência - enquadra a questão. Dessa maneira, a norma do parágrafo único permite o enquadramento de universalidade ou conjunto de pessoas, mesmo que não se constituam em pessoa jurídica. Por exemplo, a massa falida pode figurar na relação de consumo como consumidora ao adquirir produtos, ou, então, o condomínio, quando contrata serviços. É essa regra que dá legitimidade para a propositura de ações coletivas para a defesa dos direitos coletivos e difusos, previstas no Título III da lei consumerista (arts. 81 a 107), e particularmente pela definição de direitos coletivos (inciso II do parágrafo único do art. 81) e direitos difusos (inciso III do parágrafo único do art. 81) e na apresentação das pessoas legitimadas para proporem as ações (art. 82). Com isso, pode-se dizer que a completa designação do amplo sentido da definição de consumidor começa no caput do art. 2º, passa por seu parágrafo único, segue até o 17 e termina no 29. É o que ainda veremos. Com efeito, a dicção do art. 17 deixa patente a equiparação do consumidor às vítimas do acidente de consumo que, mesmo não tendo sido ainda consumidoras diretas, foram atingidas pelo evento danoso. Exatamente a seção na qual o art. 17 está inserido é a que cuida da responsabilidade civil objetiva, pelo fato do produto ou do serviço causador do acidente de consumo. Assim, por exemplo, na queda de um avião, todos os passageiros (consumidores do serviço) são atingidos pelo evento danoso (acidente de consumo) originado no fato do serviço da prestação do transporte aéreo. Se o avião cai em área residencial, atingindo a integridade física ou o patrimônio de outras pessoas (que não tinham participado da relação de consumo), estas são, então, equiparadas ao consumidor, recebendo todas as garantias legais instituídas no CDC. No capítulo V do CDC, que trata das práticas comerciais, o legislador inseriu o art. 29, para equiparar ao consumidor todas as pessoas, mesmo as que não puderem ser identificadas, que estão expostas às práticas comerciais. A leitura adequada do art. 29 permite, inclusive, uma afirmação muito simples e clara: não se trata de equiparação eventual a consumidor das pessoas que foram expostas às práticas. É mais do que isso. O que a lei diz é que, uma vez existindo qualquer prática comercial, toda a coletividade de pessoas já está exposta a ela, ainda que em nenhum momento se possa identificar um único consumidor real que pretenda insurgir-se contra tal prática. Dessa forma, por exemplo, se um fornecedor faz publicidade enganosa e se ninguém jamais reclama concretamente contra ela, ainda assim isso não significa que o anúncio não seja enganoso, nem que não se possa - por exemplo, o Ministério Público - ir contra ele. O órgão de defesa do consumidor, agindo com base na legitimidade conferida pelos arts. 81 e s. do CDC, pode tomar toda e qualquer medida judicial que entender necessária para impedir a continuidade da transmissão do anúncio enganoso, para punir o anunciante etc., independentemente do aparecimento real de um consumidor contrariado. Trata-se, portanto, praticamente de uma espécie de conceito difuso de consumidor, tendo em vista que desde já e desde sempre todas as pessoas são consumidoras por estarem potencialmente expostas a toda e qualquer prática comercial. É, como dissemos de início, o aspecto mais abstrato da definição, que, partindo do elemento mais concreto - daquele que adquire ou utiliza o produto ou o serviço como destinatário final -, acaba fixando de forma objetiva que se respeite o consumidor potencial. Daí ter-se de dizer que o consumidor protegido pela norma do art. 29 é uma potencialidade. Nem sequer precisa existir. *** Continua na próxima semana.
Continuo examinando a relação jurídica de consumo estabelecida no Código de Defesa do Consumidor (CDC). Hoje cuido do consumidor pessoa jurídica. Além de tudo o que já demonstramos, existe ainda uma outra norma no CDC que justifica nossa teoria para explicar a definição de consumidor na relação de consumo. É a do inciso I do art. 51, especificamente a segunda parte da proposição. Mas, antes de analisá-la, desde já se acrescente uma constatação: O caput do art. 2º coloca a pessoa jurídica como consumidora. Ora, afinal o que é que uma pessoa jurídica pode consumir? Pessoa jurídica não come, não bebe, não dorme, não viaja, não lê, não vai ao cinema, não assiste à aula, não vai a shows, não assiste a filmes, não vê publicidade etc. Logo, para ser consumidora, ela somente poderia consumir produtos e serviços que fossem tecnicamente possíveis e lhe servissem como bens de produção e que fossem, simultaneamente, bens de consumo. Vejamos. Destaque-se, então, e ademais, que a disposição normativa da segunda parte do inciso I do art. 51 foi feita exatamente pensando no consumidor-pessoa jurídica que adquire produto ou serviço de consumo para fins de produção. Trata-se de previsão legal a permitir que o fornecedor em circunstâncias especiais justificáveis, possa estabelecer cláusula contratual limitando seu dever de indenizar.  O que aqui interessa especificamente é a parte final da proposição da norma do inciso I do art. 51: "Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: I - impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos. Nas relações de consumo entre o fornecedor e o consumidor-pessoa jurídica, a indenização poderá ser limitada, em situações justificáveis". Pergunta-se: Por que é que a lei resolveu excetuar do amplo e expresso sistema de responsabilidade civil objetiva, no qual o fornecedor não pode, de maneira alguma, desonerar-se de seu dever de indenizar, exatamente um caso especial de aquisição de produto ou serviço quando o consumidor é pessoa jurídica? Justamente porque sabe que é possível adquirir produto e serviço de consumo para fins de produção. Explica-se. A regra geral é a do dever de o fornecedor indenizar por vícios e defeitos (arts. 12 a 14 e 18 a 20). Não pode ele, mediante cláusula contratual, exonerar-se dessa obrigação, mesmo que seja em parte, por expressa disposição do caput do art. 25, que dispõe, verbis: "Art. 25. É vedada a estipulação contratual de cláusula que impossibilite, exonere ou atenue a obrigação de indenizar prevista nesta e nas seções anteriores". Logo, essa é a regra geral para todas as relações jurídicas de consumo regulares. Mas a lei resolveu abrir uma exceção (a do citado inciso I do art. 51). E não foi para os casos comuns, mas apenas os que envolvam o consumidor-pessoa jurídica em "situações justificáveis". E quais seriam elas? A exceção legal de permissão para fixação de cláusula contratual limitadora do dever de indenizar pressupõe duas hipóteses para o atingimento de sua finalidade: Que o tipo de operação de venda e compra de produto ou serviço seja especial, fora do padrão regular de consumo; Que a qualidade de consumidor-pessoa jurídica, por sua vez, também justifique uma negociação prévia de cláusula contratual limitadora. Para o fornecedor exercer a prerrogativa de negociar a inserção de cláusula contratual limitadora de seu dever de indenizar é necessário que estejam presentes as duas situações previstas nas letras "a" e "b", simultaneamente. Examine-se a letra "a": Não basta que a compra seja fora do padrão para que ele possa incluir a cláusula. Por exemplo, se um consumidor-pessoa física quiser adquirir vinte laptops para distribuir a seus amigos e parentes, isso não é suficiente para a negociação e inclusão da cláusula. A compra está fora do padrão, mas não está presente o outro requisito. E, quanto à letra "b", o mesmo ocorre com duas alternativas: b.1) Não é suficiente que o consumidor seja pessoa jurídica fazendo uma aquisição dentro do regular. Por exemplo, a pessoa jurídica que adquire um laptop numa loja de departamentos ou diretamente do fabricante. Essa é uma aquisição comum, que recebe as garantias gerais das disposições regulares do sistema de responsabilidade civil instituído no CDC. Não pode o fornecedor limitar sua responsabilidade. b.2) Não é suficiente que a compra seja fora do padrão. É necessário que a pessoa jurídica consumidora seja também de porte razoável para que a cláusula limitadora possa ser negociada e inserida no contrato. Evidente que cada caso terá suas particularidades, na medida em que a norma está utilizando de termos indeterminados, que remetem a situações concretas variáveis. Mas, é possível desde já dizer que pessoa jurídica "de porte", para os fins instituídos no inciso I do art. 51, é aquela que tem corpo jurídico próprio ou pode pagar consultor jurídico, que negocie em nome dela a cláusula contratual limitadora. Sem isso, isto é, sem que se estabeleça um equilíbrio prévio para a negociação da cláusula, esta não poderá ser inserida no contrato. Voltando, então, aos nossos argumentos para a definição de consumidor, percebe-se, pelo que se examinou do inciso I do art. 51, que o CDC abraça nossa tese no sentido de que há bens de consumo (produtos e serviços) que são adquiridos com o fim de produção, sem que a relação jurídica estabelecida deixe de ser de consumo, tanto que recebe ela o tratamento diferencial da norma do inciso I do art. 51 comentado. *** Continua na próxima semana.
Hoje continuo examinando a relação jurídica de consumo estabelecida no Código de Defesa do Consumidor (CDC), ainda com o conceito de consumidor. No artigo anterior, terminamos lembrando que o exemplo da compra e uso da caneta pelo professor e pelo aluno tinha a virtude de elucidar a questão: A lei 8.078 regula o polo de consumo, isto é, pretende controlar os produtos e serviços oferecidos, postos à disposição, distribuídos e vendidos no mercado de consumo e que foram produzidos para serem vendidos, independentemente do uso que se vá deles fazer. Quer se utilize o produto (ou o serviço) para fins de consumo (a caneta do aluno), quer para fins de produção (a caneta idêntica do professor), a relação estabelecida na compra foi de consumo, aplicando-se integralmente ao caso as regras do CDC. Dessa maneira, repita-se, toda vez que o produto e/ou o serviço puderem ser utilizados como bem de consumo, incide na relação as regras do CDC.  No entanto, é possível fazer-se uma objeção ao que foi dito, especificamente no que diz respeito aos bens que, apesar de serem típicos de produção, sejam adquiridos por consumidores enquanto tal e destinatários finais. No desenvolvimento de nossa argumentação apresentamos o exemplo do usineiro que adquire uma usina - bem que não é de consumo - como destinatário final e dissemos que, claro, a relação jurídica dele com o fabricante da usina era tipicamente comercial. No entanto, pode acontecer - e ocorre mesmo, na realidade - de um produto ser típico de produção e ser adquirido por um consumidor para seu uso pessoal. É o exemplo de um grande avião, digamos, um Boeing 737. Não há dúvida de que esse avião é típico de produção, (utilizado no transporte comercial de cargas e passageiros), porém há pessoas milionárias que o adquirem para seu uso pessoal.  Nessa hipótese, temos de aplicar, pela via de exceção, a regra geral do destinatário final - consumidor. É que, no caso, atuando como comprador-consumidor que quer o bem para uso próprio, mesmo que ele não tenha sido planejado, projetado e montado para o fim de consumo, foi vendido e adquirido para tal. Daí, nessa relação jurídica específica também incidem as regras da lei 8.078/90. O problema, no caso, será apenas o da identificação da relação jurídica de consumo, que se dará pela pessoa do adquirente: surgindo disputa de direitos, lide, processo, caberá ao consumidor-comprador demonstrar que comprou o produto (no exemplo, o avião) como bem de consumo.  Resumindo e concluindo as cinco partes desenvolvidas: O CDC regula situações em que haja "destinatário final" que adquire produto ou serviço para uso próprio sem finalidade de produção de outros produtos ou serviços; Regula também situações em que haja "destinatário final" que adquire produto ou serviço com finalidade de produção de outros produtos ou serviços, desde que estes, uma vez adquiridos, sejam oferecidos regularmente no mercado de consumo, independentemente do uso e destino que o adquirente lhes vai dar; O CDC não regula situações nas quais, apesar de se poder identificar um "destinatário final", o produto ou serviço é entregue com a finalidade específica de servir de "bem de produção" para outro produto ou serviço e, por regra, não está colocado no mercado de consumo como bem de consumo, mas como de produção; o consumidor comum não o adquire. Por via de exceção, contudo, haverá casos em que a aquisição do produto ou serviço típico de produção será feita pelo consumidor, e nessa relação incidirão as regras do CDC. *** Continua na próxima semana.
Hoje continuo examinando a relação jurídica de consumo estabelecida no Código de Defesa do Consumidor (CDC), ainda com o conceito de consumidor. Para deixar clara a questão que envolve o conceito, vou apresentar um caso exemplar que, penso, bem elucida os vários pontos envolvidos.  Suponhamos que um professor esteja dirigindo-se ao prédio de uma faculdade para dar aula no curso de especialização em Direito do Consumidor. Digamos que ao chegar ao prédio ele constate que esqueceu de levar caneta. Como sempre, ele usa caneta durante as exposições para fazer marcações e, na parte do seminário, para anotar as questões dos alunos. Portanto, antes de ir para a sala, deve adquirir uma caneta. Vamos supor, então, que, ao chegar à papelaria, ele se encontre com um aluno do mesmo curso que também estava em busca de uma caneta. Este por outro motivo: Para anotar a aula. E que na papelaria haja para vender apenas um estojo com duas canetas esferográficas iguais. Constatando o problema, o professor e o aluno resolvem comprar o estojo e dividir o preço ao meio: 50% para cada um; uma caneta para cada um. Note-se que as tais duas canetas foram fabricadas no mesmo dia, hora e minuto, na linha de montagem do mesmo fabricante, tendo a mesma classificação seriada: São idênticas. Vamos supor também que ambas, exatamente por serem idênticas, produzidas na mesma série, tenham as mesmas características e, no caso, o mesmo vício de fabricação: Se ficarem na posição vertical por mais de dez minutos a tinta vai sair pelo bico. Bem. O professor e o aluno compraram as canetas, cada um pegou a sua e foram juntos para a sala. Veja-se claramente: Até aquele momento, ali na papelaria, eram, o professor e o aluno, dois consumidores típicos. Porém, ao ingressarem na sala, toma o professor a posição atrás da mesa e o aluno se acomoda numa das cadeiras da sala. No momento em que ingressaram na sala, a caneta do professor tornou-se bem de produção; a do aluno, bem de consumo. Na verdade, desde o início a caneta do professor era bem de produção (foi para isso que ele a adquiriu) e a do aluno, de consumo. O professor aparece lá como prestador do serviço, dando aula, e o aluno, como consumidor-aluno, assistindo. Digamos que no intervalo o professor coloque a caneta no bolso de seu paletó e o aluno, faz o mesmo com sua caneta no seu paletó. Dez minutos depois as canetas vazam, manchando e inutilizando os paletós de ambos. De onde se extrairia o princípio lógico ou jurídico a garantir ao aluno como consumidor o direito de pleitear indenização, com base na responsabilidade civil objetiva do fabricante (art. 12 do CDC), e ao professor apenas o direito de pleitear indenização, mas fundado nas normas do Código Civil, que não dá a mesma proteção? Isso não só seria ilógico como feriria o princípio de isonomia constitucional; além do mais, não está de acordo com o sistema do CDC. Na realidade, o exemplo singelo que aqui relatamos tem a virtude de elucidar a questão: A lei 8.078 regula o polo de consumo, isto é, pretende controlar os produtos e serviços oferecidos, postos à disposição, distribuídos e vendidos no mercado de consumo e que foram produzidos para serem vendidos, independentemente do uso que se vá deles fazer. Quer se utilize o produto (ou o serviço) para fins de consumo (a caneta do aluno), quer para fins de produção (a caneta idêntica do professor), a relação estabelecida na compra foi de consumo, aplicando-se integralmente ao caso as regras do CDC. Dessa maneira, repita-se, toda vez que o produto e/ou o serviço puderem ser utilizados como bem de consumo, incide na relação as regras do CDC.  *** Continua na próxima semana.
Hoje continuo examinando a relação jurídica de consumo estabelecida no Código de Defesa do Consumidor (CDC), ainda com o conceito de consumidor.  No artigo anterior apontávamos o problema do exemplo que envolvia uma usina produtora de álcool e uma montadora de veículos.  Quanto a montadora de veículos, apontamos o prédio utilizado para a montagem do veículo. Perguntamos: nesse caso, a montadora é "destinatária final" do prédio e, portanto, consumidora?  E a situação da usina parece diversa porque, diferentemente da montadora, que envia as peças com o automóvel para o consumidor, na produção do álcool, este vai para o consumidor, mas a usina fica.  Mas não serão simplesmente a usina e o prédio "bens de produção", e, assim, não se pode querer aplicar ali a lei consumerista?  Para responder a essas questões e tentar elucidar todas as possíveis alternativas que o quadro interpretativo denota, examinaremos, detalhadamente, as situações envolvidas.  Um dos problemas está em que o CDC não fala em bens de produção ou de consumo. Limitou-se a dizer "consumidor" como "destinatário final" e a definir o fornecedor (art. 3º). Há meios, porém, de solucionar a pendência.  Antes de tentar responder, analisemos um outro exemplo, o de uma pessoa que pretende constituir-se como despachante. Para isso vai a uma loja e compra um laptop, que utilizará para o exercício de seu trabalho. É o despachante "destinatário final" do laptop e, portanto, consumidor?  Poderíamos responder no caso do álcool que o usineiro é "destinatário final" da usina e assim aquela relação estaria protegida pelo Código. Da mesma maneira, a montadora seria "consumidora" do prédio utilizado para montagem de veículos. E, assim, resolvido estaria o caso do despachante, que é "destinatário final" do laptop.  Contudo, todos esses bens não são típicos "bens de produção"? O laptop pode ser e pode não ser. Os outros dois são.  Seria adequado dizer, então, que o Código regula aquelas três situações? Sem dúvida que não. Em casos nos quais se negociam e adquirem bens típicos de produção, o CDC não pode ser aplicado por dois motivos óbvios: primeiro, porque não está dentro de seus princípios ou finalidades; segundo, porque, dado o alto grau de protecionismo e restrições para contratar e garantir, o CDC seria um entrave nas relações comerciais desse tipo, e que muitas vezes são de grande porte. A resposta para o caso da usina e da montadora é, portanto, a aplicação do direito comum:  Acontece que essa resposta não resolve o problema do despachante. Quer dizer, então, que o laptop é um bem de produção, e quando ele tiver vício o despachante não poderá utilizar-se da Lei n. 8.078/90? Ora, que diferença existe entre o despachante pessoa jurídica, que utiliza o laptop para preencher guias, e o despachante enquanto pessoa física, que leva o laptop para casa e escreve uma carta de amor?  A solução não pode ser a mesma que a da usina e a da montadora. Tem de ser outra.  O CDC ajuda em parte, pois o despachante é "destinatário final", mas o bem é de produção. Porém, para encontrarmos uma solução, precisamos utilizar certos princípios do Código e transferi-los para a noção de bens - aliás, conforme fizemos para falar de "bens de produção", excluindo-os de sua abrangência.  O Código de Defesa do Consumidor regula situações em que produtos e serviços são oferecidos ao mercado de consumo para que qualquer pessoa os adquira, como destinatária final. Há, por isso, uma clara preocupação com bens típicos de consumo, fabricados em série, levados ao mercado numa rede de distribuição, com ofertas sendo feitas por meio de dezenas de veículos de comunicação, para que alguém em certo momento os adquira.  Aí está o caminho indicativo para a solução. Dependendo do tipo de produto ou serviço, aplica-se ou não o Código, independentemente de o produto ou serviço estar sendo usado ou não para a "produção" de outros.  É claro o que estamos falando: não se compram "usinas" para produção de álcool em lojas de departamentos, ao contrário de laptops. Para quem fabrica laptops em série e os coloca no mercado de consumo não é importante o uso que o destinatário deles fará: pode muito bem empregá-los para a produção de seu serviço de despachante.  Não podemos esquecer que, no mesmo sentido, uma simples caneta esferográfica pode ser "bem de produção", como da mesma forma o serviço de energia elétrica é bem de produção para a montadora de automóveis.  Assim, podemos responder que, como o despachante adquiriu o laptop produzido e entregue ao mercado como um típico bem de consumo, a relação está protegida pelo CDC.  ***  Continua na próxima semana.
Hoje continuo examinando a relação jurídica de consumo estabelecida no Código de Defesa do Consumidor (CDC), ainda com o conceito de consumidor.  No artigo anterior apontávamos o problema do uso do termo "destinatário final", que está relacionado a um caso específico: o daquela pessoa que adquire produto ou serviço como destinatária final, mas que usará tal bem como típico de produção. Por exemplo, o usineiro que compra uma usina para a produção de álcool. Não resta dúvida de que ele será destinatário final do produto (a usina); contudo, pode ser considerado consumidor?  E a empresa de contabilidade que adquire num grande supermercado um microcomputador para desenvolver suas atividades, é considerada consumidora?  Para responder a essas questões e tentar elucidar todas as possíveis alternativas que o quadro interpretativo denota, examinaremos, detalhadamente, cada situação.  Não se duvida do fato de que, quando uma pessoa adquire um automóvel numa concessionária, estabelece-se uma típica relação regulada pelo CDC. De um lado, o consumidor; de outro, o fornecedor:  Em contrapartida, é evidente que não há relação protegida pelo Código quando a concessionária adquire o automóvel da montadora como intermediária para posterior venda ao consumidor.  Nos dois quadros acima as situações jurídicas são simples e fáceis de serem entendidas. Numa ponta da relação está o consumidor (relação de consumo). Na outra estão fornecedores (relação de intermediação/distribuição/comercialização/produção). O Código de Defesa do Consumidor regula o primeiro caso; o direito comum, o outro.  Mas o que acontece se a concessionária se utiliza do veículo como "destinatária final", por exemplo, entregando-o para seu diretor usar?  A resposta a essa questão é fácil: para aquele veículo a concessionária não aparece como fornecedora, mas como consumidora, e a relação está tipicamente protegida pelo Código (o que será confirmado pela exposição que se segue).  Todavia, existem outras situações mais complexas.  Quando, por exemplo, a montadora adquire peças para montar o veículo, trata-se de situação na qual as regras aplicadas são as do direito comum. São típicas relações entre fornecedores partícipes do ciclo de produção, desde a obtenção dos insumos até a comercialização do produto final no mercado para o consumidor:  A visualização do quadro é simples. Estamos diante de situações cíclicas da produção, em que num dos polos aparece alguém adquirindo o produto como "destinatário final".  Porém, vamos recolocar o exemplo da usina: um fazendeiro resolve transformar-se em usineiro e para tanto encomenda uma usina para produção de álcool. Seria esse usineiro "destinatário final" da usina? Denotaria essa relação uma típica situação protegida pelo Código de Defesa do Consumidor? Examinemos o gráfico:  A situação parece diversa da anterior, porque, diferentemente da montadora, que envia as peças com o automóvel para o consumidor, na produção do álcool, este vai para o consumidor, mas a usina fica.  Contudo, há coisas na montadora que também não vão para o consumidor. Por exemplo, o prédio utilizado para a montagem do veículo. Nesse caso, a montadora é "destinatária final" do prédio e, portanto, consumidora?  Mas não serão simplesmente a usina e o prédio "bens de produção", e, assim, não se pode querer aplicar ali a lei consumerista?  Responderemos à essas questões no próximo artigo. ***  Continua na próxima semana.
Hoje examino a relação jurídica de consumo estabelecida no Código de Defesa do Consumidor (CDC), especificamente o conceito de consumidor.  Com efeito, o CDC incide em toda relação que puder ser caracterizada como de consumo. Insta, portanto, que estabeleçamos em que hipóteses a relação jurídica pode ser assim definida.  Conforme se verá na sequência, haverá relação jurídica de consumo sempre que se puder identificar num dos polos da relação o consumidor, no outro, o fornecedor, ambos transacionando produtos e serviços.  Vejamos, então, primeiramente, como é que a lei 8.078/90 trata o consumidor.  O CDC resolveu definir consumidor. Sabe-se que a opção do legislador por definir os conceitos em vez de deixar tal tarefa à doutrina ou à jurisprudência pode gerar problemas na interpretação, especialmente porque corre o risco de delimitar o sentido do termo. No caso da lei 8.078/90, as definições foram bem-elaboradas1. É verdade que na hipótese do conceito de "consumidor" restam alguns obstáculos a serem superados, para cuja suplantação vamos propor alternativas.  Apesar de algumas dificuldades, a definição de consumidor tem a grande virtude de colocar claramente o sentido querido na maior parte dos casos.  De qualquer maneira, antes de buscarmos a delimitação do conceito, é necessário dizer que ele está basicamente exposto no art. 2º, caput e seu parágrafo único2, sendo completado por outros dois artigos. São eles os arts. 17 e 293.  Para bem elucidar a definição de consumidor, parece-nos mais adequado começar a interpretar o caput do art. 2º, que é exatamente o que apresenta a maior oportunidade de problemas, especialmente pelo uso do termo "destinatário final".  Temos dito que a definição de consumidor do CDC começa no individual, mais concreto (art. 2º, caput), e termina no geral, mais abstrato (art. 29). Isto porque, logicamente falando, o caput do art. 2º aponta para aquele consumidor real que adquire concretamente um produto ou um serviço, e o art. 29 indica o consumidor do tipo ideal, um ente abstrato, uma espécie de conceito difuso, na medida em que a norma fala da potencialidade, do consumidor que presumivelmente exista, ainda que possa não ser determinado.  Entre um e outro, estão as outras formas de equiparação.  Comecemos, então, a tratar do caput do art. 2º.  A mera interpretação gramatical dos termos da cabeça do artigo não é capaz de resolver os problemas que surgem. Todavia, devemos lançar mão dela, porquanto permitirá a explicitação da maior parte das questões.  Diga-se, de início, o que decorre da obviedade da leitura. Consumidor é a pessoa física, a pessoa natural e, também, a pessoa jurídica. Quanto a esta última, como a norma não faz distinção, trata-se de toda e qualquer pessoa jurídica, quer seja uma microempresa, quer seja uma multinacional, pessoa jurídica civil ou comercial, associação, fundação etc.  A lei emprega o verbo "adquirir", que tem de ser interpretado em seu sentido mais lato, de obter, seja a título oneroso ou gratuito.  Porém, como se percebe, não se trata apenas de adquirir, mas também de utilizar o produto ou o serviço, ainda quando quem o utiliza não o tenha adquirido. Isto é, a norma define como consumidor tanto quem efetivamente adquire (obtém) o produto ou o serviço como aquele que, não o tendo adquirido, utiliza-o ou o consome.  Assim, por exemplo, se uma pessoa compra cerveja para oferecer aos amigos numa festa, todos aqueles que a tomarem serão considerados consumidores4.  A norma fala em "destinatário final". O uso desse termo facilitará, de um lado, a identificação da figura do consumidor, mas, por outro, trará um problema que tentaremos resolver.  Evidentemente, se alguém adquire produto não como destinatário final, mas como intermediário do ciclo de produção, não será considerado consumidor. Assim, por exemplo, se uma pessoa - física ou jurídica - adquire calças para revendê-las, a relação jurídica dessa transação não estará sob a égide da lei 8.078/90.  O problema do uso do termo "destinatário final" está relacionado a um caso específico: o daquela pessoa que adquire produto ou serviço como destinatária final, mas que usará tal bem como típico de produção. Por exemplo, o usineiro que compra uma usina para a produção de álcool. Não resta dúvida de que ele será destinatário final do produto (a usina); contudo, pode ser considerado consumidor?  E a empresa de contabilidade que adquire num grande supermercado um microcomputador para desenvolver suas atividades, é considerada consumidora?  Responderemos à essas questões no próximo artigo. ***  Continua na próxima semana. __________ 1 Há definições de fornecedor, produto, serviço, contrato de adesão etc. 2 Art. 2º Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo." 3 "Art. 17. Para os efeitos desta Seção, equiparam-se aos consumidores todas as vítimas do evento." "Art. 29. Para os fins deste Capítulo e do seguinte, equiparam-se aos consumidores todas as pessoas determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas." 4 Bem como os que, não as tendo tomado, participarem de um acidente de consumo. Por exemplo, a garrafa de cerveja explode, atingindo os convivas. Comentaremos esse aspecto posteriormente.
Continuo a análise dos direitos básicos dos consumidores. Hoje com a terceira parte da avaliação do caráter principiológico do CDC - Código de Defesa do Consumidor e, também, dos pressupostos para interpretação de seu texto. No artigo anterior, terminamos lembrando que a lei 8.078/90 tinha de vir, pois já estava atrasada. O Código Civil de 1916, bem como as demais normas do regime privatista, já não davam conta de lidar com as situações tipicamente de massa. É verdade que já dispúnhamos de algumas normas tratando da questão da economia popular1, bem como, no campo adjetivo, tínhamos a lei da ação civil pública, que é de 27/7/85 (lei 7.347). Contudo, era necessário que tivéssemos uma lei capaz de dar conta das relações jurídicas materiais que haviam surgido e estavam em pleno vigor, porém sem um suporte legal que lhes explicitasse o conteúdo e que impedisse os abusos que vinham sendo praticados. Já dissemos, e é importante frisar, o regime privatista do Código Civil é inoperante em questões ligadas à sociedade de massa, como da mesma forma o é o sistema das ações judiciais individuais do CPC. Assim, consigne-se que, para interpretar adequadamente o CDC, é preciso ter em mente que as relações jurídicas estabelecidas são atreladas ao sistema de produção massificado, o que faz com que se deva privilegiar o coletivo e o difuso, bem como que se leve em consideração que as relações jurídicas são fixadas de antemão e unilateralmente por uma das partes - o fornecedor -, vinculando de uma só vez milhares de consumidores. Há um claro rompimento com o direito privado tradicional. O Código Civil de 2002 revela essa tendência ao atenuar o direito privado, que deixa de ser puramente individualista para considerar que em certas relações jurídicas as partes não estão em pé de igualdade, criando mecanismos de proteção aos direitos destas, como as hipóteses de responsabilidade objetiva, por exemplo. Conforme o art. 927, parágrafo único, "haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem". É exatamente a hipótese de responsabilidade objetiva que têm aqueles que desenvolvem atividade de risco. O novo Código Civil, portanto, incorporou no seu regramento um dos aspectos marcantes das sociedades capitalistas contemporâneas, o de que o sistema de produção e a consequente exploração das reservas naturais, a criação, a produção e a distribuição de produtos e serviços com seus reflexos no modo de vida social, na alimentação, na saúde, na moradia, no transporte etc., implicam riscos à integridade das pessoas. E esse risco se põe independentemente da ação do produtor, vale dizer, há risco - e eventual dano - mesmo que não haja culpa. O modelo é, assim, o mesmo da lei consumerista. E, com efeito, a partir de 11/3/91, com a entrada em vigor da lei consumerista, não se cogita mais em pensar as relações de consumo (as existentes entre fornecedores e consumidores) como reguladas por outra lei. Conforme exposto, o CDC compõe um sistema autônomo dentro do quadro constitucional. Dir-se-á um subsistema próprio inserido no sistema constitucional brasileiro. Dessa forma, de um lado as regras do CDC estão logicamente submetidas aos parâmetros normativos da Carta Magna, e, de outro, todas as demais normas do sistema somente terão incidência nas relações de consumo se e quando houver lacuna no sistema consumerista. Caso não haja, não há por que nem como pensar em aplicar outra lei diversa da 8.078. O CDC, como sistema próprio que é, comporta, assim, que o intérprete lance mão de seus instrumentos de trabalho a partir e tendo em vista os princípios e regras que estão nele estabelecidos e que interagem entre si. O uso da técnica de interpretação lógico-sistemática é tão fundamental para o entendimento das normas do CDC como a de base teleológica, que permitirá entender seus princípios e finalidades. Assim, como a lei 8.078 é norma de ordem pública e de interesse social, geral e principiológica, ela é prevalente sobre todas as demais normas anteriores, ainda que especiais, que com ela colidirem. As normas gerais principiológicas têm prevalência sobre as normas gerais e especiais anteriores. Dito de outro modo: A norma jurídica principiológica, como é o caso do CDC, atinge para afastar toda e qualquer norma jurídica da mesma hierarquia que com ela conflite. A outra não é revogada, mas é deixada de lado da incidência do caso concreto, sendo substituída pelos princípios e regras da lei consumerista. __________ 1 Por exemplo, a lei n. 1.521, de 26 de dezembro de 1951, que regula crimes contra a economia popular; a lei n. 4.137, de 10 de setembro de 1962, que trata da repressão ao abuso do poder econômico; a lei Delegada n. 4, de 26 de setembro de 1962, que regulamenta a intervenção no domínio econômico para assegurar a distribuição de produtos necessários ao povo etc.
Continuo a análise dos direitos básicos dos consumidores. Hoje com a segunda parte da avaliação do caráter principiológico do CDC e, também, dos pressupostos para interpretação de seu texto. Lembro que a Constituição Federal estabelece que o regime econômico brasileiro é capitalista, mas limitado (CF, art. 1º, IV, c/c arts. 170 e s.): São fundamentos da república os valores sociais do trabalho e os valores sociais da livre iniciativa (CF, art. 1º, IV), e a defesa do consumidor é princípio fundamental da ordem econômica (CF, art. 170, V). Ora, o CDC nada mais fez do que concretizar numa norma infraconstitucional esses princípios e garantias constitucionais. Assim está previsto expressamente no seu art. 1º. O respeito à dignidade, à saúde, à segurança, à proteção dos interesses econômicos, e à melhoria de qualidade de vida está, também, expressamente previsto no seu art. 4º, caput. A característica de vulnerabilidade do consumidor prevista no inciso I do art. 4º decorre diretamente da aplicação do princípio da igualdade do texto magno. O CDC é categórico no que respeita à prevenção e reparação dos danos patrimoniais e morais (art. 6º, VI), e o acesso à justiça e aos órgãos administrativos com vistas à prevenção e reparação de danos é outra regra manifesta (art. 6º, VII). A adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral é, da mesma forma, norma clara na lei (art. 6º, X) etc. Logo, fica patente o caráter principiológico da lei 8.078/90. Agora, avalio alguns outros pontos que são fundamentais para a compreensão das regras instituídas pela lei consumerista. Lembre-se que as bases jurídicas existentes no século XIX estão ligadas ao liberalismo econômico e às grandes codificações, que se iniciam com o Código de Napoleão de 1804. Os pressupostos do pensamento liberal aparecem no sistema jurídico codificado, como, por exemplo, foi estabelecido em nosso Código Civil de 1916 (e que entrou em vigor em 1917).i Destaque-se, dentre os vários pontos de influência do liberalismo, a chamada autonomia da vontade, a liberdade de contratar e fixar cláusulas, o pacta sunt servanda etc. Nessa mesma época, ou seja, no começo do século XX, instaura-se definitivamente um modelo de produção, que terá seu auge nos dias atuais. Tal modelo é o da massificação: Fabricação de produtos e oferta de serviços em série, de forma padronizada e uniforme, no intuito de diminuição do custo da produção, atingimento de maiores parcelas de população com o aumento da oferta etc. Esse sistema de produção pressupõe a homogeneização dos produtos e serviços e a estandartização das relações jurídicas que são necessárias para a transação desses bens. A partir da Segunda Guerra Mundial o projeto de produção capitalista passou a crescer numa enorme velocidade, e, com o advento da tecnologia de ponta, dos sistemas de automação, da robótica, da telefonia por satélite, das transações eletrônicas, da computação, da microcomputação etc., a velocidade tomou um grau jamais imaginado até meados do século XX. A partir de 1989, com a queda dos regimes não capitalistas, o modelo de globalização, que já se havia iniciado, praticamente completou seu ciclo, atingindo quase todo o globo terrestre.  O Direito não podia ficar à margem desse processo e, em alguma medida, seguiu a tendência da produção em série, mormente de especialização (outra característica desta nossa sociedade). Mas, de início, a alteração observada foi a do lado do fornecedor, que passou a criar contratos-padrão e formulários (que depois vieram a ganhar o nome de contratos de adesão) de forma unilateral e a impingi-los aos consumidores. A lei 8.078/90 tinha de vir, pois já estava atrasada. O Código Civil de 1916, bem como as demais normas do regime privatista, já não davam conta de lidar com as situações tipicamente de massa. *** Continua na próxima semana. _________ i No novo Código Civil esses pressupostos do pensamento liberal, embora ainda presentes, sofreram mitigação pela inserção de outras de cunho social e ético. Assim, por exemplo, está assegurada a função social do contrato (art. 421), estabelecendo-se a boa-fé objetiva como o modelo de conduta (art. 422) etc.
Continuo a análise dos direitos básicos dos consumidores. Hoje mostrando o caráter principiológico do Código de Defesa do Consumidor (CDC).  Antes de examinar as normas estabelecidas na lei 8.078/90 (CDC) é necessário avaliar  uma questão preliminar, que deve nortear o trabalho de todos aqueles que pretendem compreendê-las.  Chamo a atenção para um fato conhecido: o CDC tem vida própria; foi criado como subsistema autônomo e vigente dentro do sistema constitucional brasileiro.  Além disso, os vários princípios constitucionais que o embasam são elementos vitais ao entendimento de seus ditames.  Não é possível interpretar adequadamente a legislação consumerista se não se tiver em mente esse fato de que ela comporta um subsistema no ordenamento jurídico, que prevalece sobre os demais - exceto, claro, o próprio sistema da Constituição, como de resto qualquer norma jurídica de hierarquia inferior -, sendo aplicável às outras normas de forma supletiva e complementar1.  Além disso, a edição do Código de Defesa do Consumidor inaugurou um novo modelo jurídico dentro do Sistema Constitucional Brasileiro.  Em primeiro lugar, a lei 8.078/90 é Código por determinação constitucional (conforme art. 48 do ADCT/CF), o que mostra, desde logo, o elemento de ligação entre ele e a Carta Magna.  O CDC é uma lei principiológica, modelo até então inexistente no Sistema Jurídico Nacional.  Como lei principiológica entende-se aquela que ingressa no sistema jurídico, fazendo, digamos assim, um corte horizontal, indo, no caso do CDC, atingir toda e qualquer relação jurídica que possa ser caracterizada como de consumo e que esteja também regrada por outra norma jurídica infraconstitucional.  Assim, por exemplo, um contrato de seguro de automóvel continua regulado pelo Código Civil e pelas demais normas editadas pelos órgãos governamentais que regulamentem o setor (Susep, Instituto de Resseguros etc.), porém estão tangenciados por todos os princípios e regras da lei 8.078/90, de tal modo que, naquilo que com eles colidirem, perdem eficácia por tornarem-se nulos de pleno direito.  E mais e principalmente: o caráter principiológico específico do CDC é apenas e tão somente um momento de concretização dos princípios e garantias constitucionais vigentes desde 5 de outubro de 1988 como cláusulas pétreas, não podendo, pois, ser alterados.  Com efeito, o que a lei consumerista faz é tornar explícitos, para as relações de consumo, os comandos constitucionais. Dentre estes destacam-se os Princípios Fundamentais da República, que norteiam todo o regime constitucional e os direitos e garantias fundamentais.  Assim, à frente de todos está o superprincípio da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), como especial luz a imantar todos os demais princípios e normas constitucionais e apresentando-se a estes como limite intransponível e, claro, a toda e qualquer norma de hierarquia inferior.  A seguir, no texto constitucional estão os demais princípios e garantias fundamentais que são reconhecidos no CDC e que aqui relembramos: o princípio da igualdade (CF, art. 5º, caput e inciso I); a garantia da imagem, da honra, da privacidade, da intimidade, da propriedade e da indenização por violação a tais direitos de modo material e também por dano moral (CF, art. 5º, V, c/c, os incisos X e XXII); ligado à dignidade e demais garantias está o piso vital mínimo insculpido como o direito à educação, à saúde, ao trabalho, ao lazer, à segurança, à previdência social, à maternidade etc. (CF, art. 6º); e unidos a todos esses direitos está o da prestação de serviços públicos essenciais com eficiência, publicidade, impessoalidade e moralidade (CF, art. 37, caput). Não se pode olvidar que é também cláusula pétrea, como dever absoluto para o Estado, a defesa do consumidor (CF, art. 5º, XXXII).  ***  Continua na próxima semana. __________ 1 A designação do alcance específico da lei 8.078/90 se dá pela explicitação do sentido de relação de consumo, fixada no estabelecimento da definição do conceito de consumidor, de fornecedor, de produto e de serviço.
quinta-feira, 2 de maio de 2024

Aspectos básicos da publicidade

Continuo a avaliação dos direitos básicos dos consumidores. Hoje cuidando de aspectos importantes sobre a publicidade.  Com efeito, a publicidade como meio de aproximação do produto e do serviço ao consumidor, tem guarida constitucional, ingressando como princípio capaz de orientar a conduta do publicitário no que diz respeito aos limites da possibilidade de utilização desse instrumento.  É que todos os demais princípios constitucionais, em especial os aqui retratados anteriormente, devem ser respeitados, além, é claro, dos próprios limites impostos pelo princípio da publicidade da Carta Magna.  Mas, antes de prosseguirmos, é importante elucidar um problema muito comum do uso da linguagem sobre o assunto. Costuma-se usar o vocábulo "publicidade", algumas vezes, como espécie de "propaganda"; noutras, a palavra "propaganda" é reservada para a ação política e religiosa, enquanto "publicidade" é utilizada para a atividade comercial etc. Mas não há razões para a distinção.  Tomado pela etiologia, vê-se que o termo "propaganda" tem origem no latim "propaganda, do gerundivo de 'propagare', 'coisas que devem ser propagadas'"1. Donde afirmar-se que a palavra comporta o sentido de propagação de princípios, ideias, conhecimentos ou teorias.  O vocábulo "publicidade", por sua vez, aponta para a qualidade daquilo que é público ou do que é feito em público2.  Ambos os termos, portanto, seriam bastante adequados para expressar o sentido buscado pelo anunciante de produto ou serviço.  O mais importante, porém, é o fato de que a própria Constituição Federal não faz a distinção. Assim, por exemplo, ela fala em "propaganda" (art. 220, § 3º, II), "propaganda comercial" (art. 22, XXIX, e § 4º do art. 220), "publicidade dos atos processuais" (art. 5º, LX), "publicidade" (art. 37, caput e § 1º).  Poder-se-ia objetar que o tipo da "propaganda comercial" é aquele voltado para o meio utilizado pelos empreendedores para estabelecer contato com os consumidores, uma vez que quando fala em propaganda e propaganda comercial a Carta Magna está-se referindo a bebidas alcoólicas, medicamentos, terapias e agrotóxicos (§ 4º do art. 220) ou a produtos, "práticas e serviços" nocivos à saúde e ao meio ambiente (inciso II do § 3º do art. 220).  Acontece que os serviços públicos são também em parte dirigidos ao consumidor e a todos os indivíduos, e ao tratar desses serviços a norma constitucional usa o termo "publicidade" (§ 1º do art. 37).  Logo, os dois vocábulos podem ser usados como sinônimos3.  Continuando, anoto que não se deve confundir a publicidade com a produção, ainda que aquela represente a "produção" realizada pelo publicitário, agência etc., pois sua razão de existir funda-se em algum produto ou serviço que se pretenda mostrar e/ou vender.  Dessa maneira, é de ver que a publicidade não é produção primária, mas instrumento de apresentação e/ou venda dessa produção.  Já tivemos oportunidade de verificar que a exploração de qualquer atividade tem fundamento na Constituição Federal, que estabelece limites para harmonizá-la com as demais garantias fundamentais. E se, então, a própria exploração e produção primária são limitadas, por mais força de razão pode e deve haver controle da atividade publicitária, que, como se disse, é instrumental, ligada àquela de origem, uma vez que serve como meio de fala dos produtos e serviços: a publicidade anuncia, descreve, oferece, divulga, propaga etc.  Assim, tanto a atividade de exploração primária do mercado, visando a produção, tem limites estabelecidos na Carta Magna quanto, naturalmente, a publicidade que dela fala (da produção) é restringida.  E há mais. A Constituição Federal cuidou da publicidade do serviço público no art. 37, que regula, entre outros, o princípio da moralidade (§ 1º desse art. 37). E tratou da publicidade de produtos, práticas e serviços no capítulo da comunicação social (inciso II do § 3º do art. 220), guardando regra especial para anúncios de bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias (§ 4º do art. 220).  Pois bem. O inciso II do § 3º do art. 220 referido estabelece que se deve proteger a pessoa e a família contra a publicidade nociva à saúde e ao meio ambiente. A pessoa e a família, além de outras garantias, têm assegurado o respeito a valores éticos (inciso IV do art. 221).  Assim, tanto no art. 37 quanto no capítulo da comunicação social, a Carta Magna protege a ética. E para fins de publicidade em matéria de relações de consumo, o valor ético fundamental é o da verdade.  O anúncio publicitário não pode faltar com a verdade daquilo que anuncia, de forma alguma, quer seja por afirmação quer por omissão. Nem mesmo manipulando frases, sons e imagens para, de maneira confusa ou ambígua, iludir o destinatário do anúncio. __________ 1 Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 2 Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 3 Do ponto de vista das normas infraconstitucionais somente o uso dos termos como sinônimos resolve a confusão. É que a situação nessa esfera é pior: A lei 8.078 fala em "publicidade" (arts. 6º, IV, 30, 35, 36, 37, Seção III, arts. 67, 68 e 69) e "propaganda" (especificamente "contrapropaganda": arts. 56, XII, e 60, caput e § 1º). A lei 4.137, de 10 de setembro de 1962, que regulou a repressão ao abuso do poder econômico, fala em "propaganda publicitária" (art. 2º, V, a). O Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária, criado pelos experts no assunto, usa os dois termos: "publicidade" (art. 5º, 7º etc.); "publicidade comercial" (art. 8º, 10 etc.); "propaganda política" (art. 11); "publicidade governamental" (art. 12) etc. E a Lei n. 4.680, de 18 de junho de 1965, que regulamenta a profissão de publicitário e agenciador de propaganda, dispõe: "compreende-se por propaganda qualquer forma remunerada de difusão de ideias, mercadorias ou serviços por parte de um anunciante identificado" (art. 5º - a regra é repetida no regulamento da lei: decreto 57.690, de 1º -2-1966, art. 2º).
Continuo a avaliação dos direitos básicos dos consumidores. Hoje com a terceira parte da análise dos princípios gerais da atividade econômica fixados na Constituição Federal e que afetam diretamente as relações de consumo e o direito do consumidor.  No artigo anterior, terminamos apontando que outro aspecto fundamental para o entendimento do direito material do consumidor é o princípio que se extrai da harmonização dos demais princípios do art. 170 na relação com os outros mais relevantes (dignidade da pessoa humana, vida sadia, justiça etc.). É o do risco da atividade do empreendedor.  Pois bem. A garantia da livre iniciativa tem uma contrapartida: a pessoa  empreendedora age porque quer. Cabe unicamente a ela decidir se vai ou não explorar o mercado. Ela não está obrigada a desenvolver qualquer negócio ou atividade. Se o fizer e obtiver lucro, é legítimo que tenha o ganho. Mas, se sofrer perdas, estas também serão suas.  Assim, a pessoa (física ou jurídica) que quiser promover algum negócio lícito, pode fazê-lo, mas deve saber que assume integralmente o risco de a empreitada dar certo ou não. E o Código de Defesa do Consumidor assimilou do texto constitucional corretamente essa imposição.  Repise-se, então, que, do ponto de vista do texto constitucional, a possibilidade de produção implica um sistema capitalista de proteção e livre concorrência, o que importa em risco para quem for ao mercado explorá-lo.  A característica fundamental da produção na sociedade capitalista a partir do sistema jurídico constitucional brasileiro é esse do risco da atividade. Quem corre risco ao produzir produtos e serviços é o fornecedor, jamais o consumidor.  Desse modo, um banco, uma operadora de plano de saúde, uma indústria de automóveis, uma prestadora de serviço público essencial, enfim, qualquer empreendedor está proibido de repassar o risco de seu negócio para o consumidor.  Portanto, quem quiser se estabelecer produzindo pneus, abrindo bancos, vendendo produtos e serviços, pode fazê-lo, mas, repetimos,  corre o risco natural de seu empreendimento. É por isso que, quando se vai estudar responsabilidade civil objetiva na lei 8.078, vê-se que ela foi estabelecida de forma clara e precisa, impedindo qualquer possibilidade daquele fabricante, produtor, prestador de serviço etc. se esquivar.  Esse risco fará com que aquela pessoa que vai ao mercado oferecer produtos e serviços assuma integralmente a responsabilidade por eventuais danos que seus produtos e seus serviços possam causar aos consumidores, assim como impede que, mesmo mediante cláusula contratual, ele seja repassado ao consumidor.  É preciso que se afirme esse princípio com todas as letras: a decisão de empreender é livre; o lucro decorrente dessa exploração é legítimo; o risco é total do empreendedor. Isso implica que, da mesma forma como ele não repassa o lucro para o consumidor, não pode, de maneira alguma, passar-lhe o risco, nem mesmo parcial. Ressalte-se que esse risco não pode ser dividido quer por meio de cláusula contratual, quer por meio de ações concretas ou comportamentos reais.  A outra previsão importante, como dissemos, é a da livre concorrência, estampada no inciso IV do art. 170 da Constituição Federal.  Por que é que a Constituição Federal brasileira assimilou da história essa ideia de livre concorrência? Na verdade, ela assimilou porque a livre concorrência implica proteção ao consumidor.  Pensar, então, essa questão constitucional é entender o que ela quer dizer com livre concorrência e isso só pode significar melhores produtos e serviços a iguais ou menores preços. "Melhor" produto ou serviço quer dizer mais segurança, mais eficiência, mais economia de uso, maior durabilidade, menor índice de quebra (vício) e menor possibilidade de acidente (defeito) etc.
Continuo a avaliação dos direitos básicos dos consumidores. Hoje com a segunda parte da análise dos princípios gerais da atividade econômica fixados na Constituição Federal e que afetam diretamente as relações de consumo e o direito do consumidor. Repito que, é importante lembrar que os princípios e as normas constitucionais têm de ser interpretados de forma harmônica, ou seja, é necessário definir parâmetros para que um não exclua o outro e, simultaneamente, não se autoexcluam. No artigo anterior, eu havia dito que a livre iniciativa está garantida. Porém, a leitura do texto constitucional define que: o mercado de consumo aberto à exploração não pertence ao explorador; ele é da sociedade e em função dela, de seu benefício, é que se permite sua exploração; como decorrência disso, o explorador tem responsabilidades a saldar no ato exploratório; tal ato não pode ser espoliativo; se lucro é uma decorrência lógica e natural da exploração permitida, não pode ser ilimitado; encontrará resistência e terá de ser refreado toda vez que puder causar dano ao mercado e à sociedade; excetuando os casos de monopólio do Estado (p. ex., do art. 177), o monopólio, o oligopólio e quaisquer outras práticas tendentes à dominação do mercado estão proibidos; o lucro é legítimo, mas o risco é exclusivamente do empreendedor. Ele escolheu arriscar-se: não pode repassar esse ônus para o consumidor. Essas considerações são decorrentes da interpretação dos princípios já expostos e que devem ser harmonizados. Com efeito, a da letra a decorre das garantias constitucionais da função social da propriedade, da defesa do consumidor, da construção de uma sociedade livre, justa e solidária e da promoção do bem comum. Tudo fundado no princípio máximo da garantia da dignidade da pessoa humana. Quanto ao estabelecido nas letras b, c, d e e, as bases são as mesmas. Contudo, reforce-se o aspecto da livre concorrência e da defesa do consumidor. O estabelecimento de um princípio como o da livre concorrência tem uma destinação específica. Pretende que o explorador seja limitado pelo outro explorador e, também, pelo próprio mercado. Investiguemos de perto. Que é o mercado? De que ele se compõe? O mercado é uma ficção econômica, e além disso é uma realidade concreta. Como dissemos, ele pertence à sociedade. Não é da propriedade, posse ou uso de ninguém em particular e também não é exclusividade de nenhum grupo específico. A existência do mercado é confirmada por sua exploração diuturna concreta e histórica. Mas essa exploração não pode ser tal que prejudique o próprio mercado ou a sociedade. O mercado é composto, como se sabe, não só pelos empreendedores da atividade econômica, mas também pelos consumidores. Não existe mercado sem consumidor. Ao estipular como princípios a livre concorrência e a defesa do consumidor, o legislador constituinte está dizendo que nenhuma exploração poderá atingir os consumidores nos direitos a eles outorgados (que estão regrados na Constituição e também nas normas infraconstitucionais). Está também designando que o empreendedor tem de oferecer o melhor de sua exploração, independentemente de atingir ou não os direitos do consumidor. Ou, em outras palavras, mesmo respeitando os direitos do consumidor, o explorador tem de oferecer mais. A garantia dos direitos do consumidor é o mínimo. A regra constitucional exige mais. Essa ilação decorre do sentido de livre concorrência. Quando se fala em regime capitalista fundado na dignidade da pessoa humana, nos valores sociais e na cidadania, como é o nosso caso, o que se está pressupondo é que esse regime capitalista é fundado num mercado, numa possibilidade de exploração econômica que vai gerar responsabilidade social, porque é da sociedade que se trata. Livre mercado composto de consumidores e fornecedores tem, na ponta do consumo, o elemento fraco de sua formação, pois o consumidor é reconhecidamente vulnerável como receptor dos modelos de produção unilateralmente definidos e impostos pelo fornecedor. A questão não é, pois - como às vezes a doutrina apresenta -, de ordem econômica ou financeira, mas técnica: o consumidor é mero espectador no espetáculo da produção1. O reconhecimento da fragilidade do consumidor no mercado está ligado à sua hipossuficiência técnica: ele não participa do ciclo de produção e, na medida em que não participa, não tem acesso aos meios de produção, não tendo como controlar aquilo que compra de produtos e serviços; não tem como fazê-lo e, na medida em que não tem como fazê-lo, precisa de proteção. É por isso que quando chegamos ao CDC há uma ampla proteção ao consumidor com o reconhecimento de sua vulnerabilidade (no art. 4º, I). A livre concorrência é essencialmente uma garantia do consumidor e do mercado. Ela significa que o explorador tem de oferecer ao consumidor produtos e serviços melhores do que os de seu concorrente. Essa obrigação é posta ad infinitum, de forma que sempre haja melhora. Evidente que esse processo de concorrência se faz não só pela qualidade, mas também por seu parceiro necessário: o preço. O forte elemento concorrencial na luta pelo consumidor é o binômio "qualidade/preço"2. Dessa maneira, há sim uma meta na exploração: é a da produção e oferta de produtos e serviços com a melhor qualidade e o menor preço possíveis. Além disso, como todo substrato dos princípios é o da garantia da dignidade da pessoa humana, mesmo atingindo esse nível de excelência constitucional o empreendedor ainda remanesce com uma imputabilidade ética: seu lucro, ainda que legítimo nos termos que apresentamos, deve contribuir para a construção de uma sociedade fundada nesse princípio. Todo explorador tem responsabilidade social para com todos os indivíduos, mesmo para com aqueles que não são seus clientes3. O outro aspecto fundamental para o entendimento do direito material do consumidor é o princípio que se extrai da harmonização dos demais princípios do art. 170 na relação com os outros mais relevantes (dignidade da pessoa humana, vida sadia, justiça etc.). É o do risco da atividade do empreendedor. __________ 1 Há, claro, consumidores abastados, pessoas físicas ou jurídicas, o que não lhes retira a vulnerabilidade técnica. 2 O grande desenvolvimento da indústria japonesa deveu-se, em larga medida, à compreensão dessa dicotomia. Tornou-se conhecida a capacidade dos empreendedores japoneses de oferecer produtos de melhor qualidade que a concorrência a menores preços 3 No caso brasileiro, infelizmente, há pessoas que não podem ser clientes de ninguém, por falta de condições mínimas de subsistência.
Continuo a análise dos direitos básicos dos consumidores. Hoje com a primeira parte da análise dos princípios gerais da atividade econômica, fixados na Constituição Federal e que afetam diretamente as relações de consumo e o direito do consumidor.  Desde logo, é importante lembrar que os princípios e as normas constitucionais têm de ser interpretados de forma harmônica, ou seja, é necessário definir parâmetros para que um não exclua o outro e, simultaneamente, não se autoexcluam.  Isso, todavia, não impede que um princípio ou uma norma limite a abrangência de outro princípio ou norma. Assim, por exemplo, deve parecer evidente ao intérprete que "dignidade da pessoa humana" é um princípio excludente de qualquer outro que possa atingi-lo. E, também, essa constatação não elimina outros princípios e normas; apenas os delimita nos exatos termos em que devem ser interpretados.  Realcemos, então, alguns princípios estampados na Carta Magna para contrapô-los a outros que interessam diretamente à questão das relações de consumo. Guardemos em mente a garantia absoluta da "dignidade da pessoa humana", depois a dos "valores sociais do trabalho e valores sociais da livre iniciativa"; a da construção de "uma sociedade livre, justa e solidária"; a da erradicação da "pobreza e da marginalização e da redução das desigualdades sociais e regionais"; a da promoção do "bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação", e ainda a da igualdade de todos "perante a lei, sem distinção de qualquer natureza", com a garantia da "inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade".  Agora, remetamo-nos diretamente aos princípios gerais da atividade econômica, capítulo importante do título que cuida da ordem econômica e financeira. Vejamos o art. 170, seus incisos e parágrafo único - que terá de ser examinado à luz dos princípios acima mencionados (e em consonância com eles).  Dispõe o art. 170, in verbis: "Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I - soberania nacional; II - propriedade privada; III - função social da propriedade; IV - livre concorrência; V - defesa do consumidor; VI - defesa do meio ambiente; VII - redução das desigualdades regionais e sociais; VIII - busca do pleno emprego; IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei".  O art. 170, como um todo, estabelece princípios gerais para a atividade econômica. Estes têm de ser interpretados, também, como já o dissemos, de modo a permitir uma harmonização de seus ditames. Acontece que não basta examinar os princípios estampados nos nove incisos dessa norma apenas entre si mesmos. É necessário adequá-los àqueles outros aos quais chamamos a atenção.  O caput do art. 170 está já em harmonia com aqueles outros princípios. Dos nove princípios instituídos nos incisos, quatro nos interessam em nosso exame. São eles: propriedade privada; função social da propriedade; livre concorrência; defesa do consumidor, e a possibilidade de exploração da atividade econômica - com seu natural risco - prevista no parágrafo único do art. 170. Ora, a Constituição Federal garante a livre iniciativa? Sim. Estabelece garantia à propriedade privada? Sim. Significa isso que, sendo proprietário, qualquer um pode ir ao mercado de consumo praticar a "iniciativa privada" sem nenhuma preocupação de ordem ética no sentido da responsabilidade social? Pode qualquer um dispor de seus bens de forma destrutiva para si e para os demais partícipes do mercado? A resposta a essas duas questões é não.  Os demais princípios e normas colocam limites - aliás, bastante claros - à exploração do mercado. É verdade que a livre iniciativa está garantida. Porém, a leitura do texto constitucional define que: a) o mercado de consumo aberto à exploração não pertence ao explorador; ele é da sociedade e em função dela, de seu benefício, é que se permite sua exploração; b) como decorrência disso, o explorador tem responsabilidades a saldar no ato exploratório; tal ato não pode ser espoliativo; c) se lucro é uma decorrência lógica e natural da exploração permitida, não pode ser ilimitado; encontrará resistência e terá de ser refreado toda vez que puder causar dano ao mercado e à sociedade; d) excetuando os casos de monopólio do Estado (p. ex., do art. 177), o monopólio, o oligopólio e quaisquer outras práticas tendentes à dominação do mercado estão proibidos; e) o lucro é legítimo, mas o risco é exclusivamente do empreendedor. Ele escolheu arriscar-se: não pode repassar esse ônus para o consumidor.  Essas considerações são decorrentes da interpretação dos princípios já expostos e que devem ser harmonizados.  *** Continua na próxima semana.
Continuo a análise dos direitos básicos dos consumidores. Hoje com a terceira parte da questão da informação.  Lembro que a informação, ou melhor, o direito de informação, na Constituição Federal pode ser contemplado sob três espécies: a) o direito de informar; b) o direito de se informar; c) o direito de ser informado1.  O direito de se informar cuidei na semana passada e de informar na semana anterior. Falta cuidar do direito de ser informado.  O direito de ser informado No âmbito constitucional o direito de ser informado é menos amplo do que no sistema infraconstitucional de defesa do consumidor. O direito de ser informado nasce, sempre, do dever que alguém tem de informar.  Basicamente, o texto magno estabelece o dever de informar que têm os órgãos públicos. No que tange ao dever de informar das pessoas em geral e das pessoas jurídicas com natureza jurídica privada, é o Código de Defesa do Consumidor que estabelece tal obrigatoriedade ao fornecedor. Tendo em vista que a Lei n. 8.078/90 nasce das determinações constitucionais que obrigam a que seja feita a defesa do consumidor, implantada em meio a uma série de princípios, todos interpretados e aplicáveis de forma harmônica, não resta dúvida de que o dever de informar só podia ser imposto ao fornecedor.  A Carta Magna regra o dever dos órgãos públicos. Essa obrigação nasce do estabelecido no inciso XXXIII do art. 5º, em consonância com o princípio da publicidade do caput do art. 37.  Com efeito, dispõem tais normas: "Art. 5º (...) XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo em geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado". "Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:" (grifamos).  Vê-se, pela leitura dos dois dispositivos, que os órgãos públicos têm não só a obrigação de prestar informações como a de praticar seus atos de forma transparente, atendendo ao princípio da publicidade. A exceção fica por conta das hipóteses em que o sigilo seja necessário para o resguardo da segurança da sociedade e do Estado, como acontece nos casos em que a informação possa causar pânico.  A publicidade prevista no caput do art. 37 impõe ao Poder Público, nos seus atos regulares, que aja aberta e transparentemente. O Superior Tribunal de Justiça já se manifestou a esse respeito, dizendo que tal princípio impede que a Administração avalie, mediante procedimento secreto, os antecedentes e a conduta de candidato em concurso público, para alijá-lo da disputa2.  Dessa maneira, no sistema constitucional, o dever de informar - donde decorre o direito de ser informado - está dirigido aos órgãos públicos.  Além disso, como a informação está ligada ao princípio da moralidade, é de extrair daí o conteúdo ético necessário que deve pautar a informação fornecida. E ele é o valor ético fundamental da verdade.  A informação não pode faltar com a verdade daquilo que informa de maneira alguma, quer seja por afirmação, quer por omissão. Nem mesmo manipulando frases, sons e imagens para, de maneira confusa ou ambígua, iludir o destinatário da informação. __________ 1 Cf. Vidal Serrano Nunes Júnior, A proteção constitucional da informação e o direito à crítica jornalística,  São Paulo: FTD, 1997. p. 31 e s. 2 RDA 184/124.
Continuo a análise dos direitos básicos dos consumidores. Hoje com a segunda parte da questão da informação. Lembro que a informação, ou melhor, o direito de informação, na Constituição Federal pode ser contemplado sob três espécies: o direito de informar; o direito de se informar; o direito de ser informado1. O direito de informar cuidei na semana passada. Falta cuidar do direito de se informar e do direito de ser informado. O direito de se informar O direito de se informar é uma prerrogativa concedida às pessoas. Decorre do fato da existência da informação. O texto constitucional, no inciso XIV do art. 5º, assegura primeiramente esse direito no que respeita à informação em geral, mas garante o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional. Esse é um limite. Mas há outros: o do inciso X, já estudado (no artigo anterior) e o do inciso XXXIII, que ainda examinaremos. Quando se trata de informação relativa à própria pessoa, a Constituição Federal garante-lhe inclusive um remédio processual específico: o habeas data, tratado no inciso LXXII do art. 5º. Mas vejamos cada um desses dispositivos. Inciso XIV: "é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional". Sabe-se que o exercício de um direito subjetivo significa a possibilidade da exigência de alguém. Isto é, a prerrogativa de um corresponde à obrigação de outro. Assim, quando a Constituição garante a todos o acesso à informação, tem-se de entender que essa informação deve estar com alguém que terá a obrigação de fornecê-la. Já falamos do direito de informar no artigo anterior. Trata-se de uma garantia de comunicação social (com os limites também já abordados). Uma vez produzida, essa informação torna-se pública, social, pertencendo a toda a coletividade. É desse caráter difuso da informação que decorre o direito de todos receberem-na - e exigirem-na -, previsto no inciso em comento. O acesso à informação, todavia, não é absoluto: encontra limites no próprio inciso XIV e no inciso X, já comentado. Com efeito, é possível exigir a informação de quem a detém, desde que sejam respeitadas a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, da maneira como se deve entender tais outras garantias. Quanto ao sigilo profissional, dois aspectos devem ser abordados: de um lado, a efetiva garantia do sigilo nos casos em que profissionalmente ela seja necessária ou signifique a garantia de outros direitos. Por exemplo, no caso do sigilo de fonte do jornalista, ela é necessária; na hipótese do psicanalista e seu cliente, ela é necessária e representa também a garantia do direito à intimidade; de outro lado, o sigilo da fonte não pode significar o acobertamento de violações a garantias constitucionais, especialmente aquelas entendidas como princípios fundamentais ou supranormas, tais como a garantia do direito à vida e à dignidade da pessoa humana. Dizendo em outros termos, ainda que o sigilo profissional esteja previsto como possibilidade de garantia, é necessário compreender sua correlação com as garantias constitucionais primeiras. *** Continua na próxima semana ____________________  1 Cf. Vidal Serrano Nunes Júnior, A proteção constitucional da informação e o direito à crítica jornalística,  São Paulo: FTD, 1997. p. 31 e s.
Continuo a análise dos direitos básicos dos consumidores. Hoje analiso a questão da informação.  Com efeito, a informação, ou melhor, o direito de informação, na Constituição Federal pode ser contemplado sob três espécies: a) o direito de informar; b) o direito de se informar; c) o direito de ser informado1.  O direito de informar é basicamente uma prerrogativa conferida pela Carta Magna; os outros dois são obrigações e bastante relevantes para a questão do consumidor. Examinemos cada um deles. O direito de informar  O direito de informar é uma prerrogativa constitucional (uma permissão) concedida às pessoas físicas e jurídicas. Vale ler o texto magno. É o dispositivo do caput do art. 220 que dispõe, in verbis: "A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição".  Essa norma é solidificada por outra pétrea das garantias fundamentais. A do inciso IX do art. 5º, que dispõe, in verbis: "é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença".  Esses dispositivos, todavia, não são absolutos, uma vez que o direito de informar encontra limites no próprio texto constitucional.  É no mesmo art. 5º que esses limites aparecem. Inicie-se pelo inciso X. Lembremos sua dicção: "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação".  "São invioláveis", diz o texto. Logo, o direito de informar não pode transpor os limites estabelecidos nessa norma. Não pode violar a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas.  Como decorrência do direito de informar, a norma fundamental deixou garantido o direito da informação jornalística, e já nesse aspecto até mesmo declarou certos limites. Leia-se a propósito o § 1º do citado art. 220, que dispõe: "§ 1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV".  O inciso X acabamos de comentar. De fato ele é um limite à informação em geral e à informação jornalística em particular.  Todavia, gostaríamos de recolocar nossa tese a respeito da informação jornalística e do interesse público que a norma envolve.  O direito de informação jornalística é, com efeito, simultaneamente um direito de receber informação jornalística. É o interesse público que está em jogo. Como a norma constitucional do direito de informar aparece com uma prerrogativa, isto é, está posta com o modal deôntico da permissão, tem-se uma espécie de paradoxo: permissão dos dois lados. O direito de informar tem relação com o direito de ser informado.  Dois direitos, nenhum dever. O ciclo normativo mandar-obedecer não se completa.  Todavia, é exatamente esse outro direito de ser informado que vai permitir, em nossa opinião, a construção da teoria capaz de fazer com que, também, os limites estabelecidos no inciso X do art. 5º não sejam absolutos.  Se há direito de se informar há, portanto, interesse público e é este que definirá a possibilidade de ser transmitida a informação jornalística. __________ 1 Cf. Vidal Serrano Nunes Júnior, A proteção constitucional da informação e o direito à crítica jornalística, São Paulo: FTD, 1997. p. 31 e s. 
Amanhã, 15 de março, é comemorado o dia mundial do consumidor. Famoso, porque foi nesse dia, há mais de sessenta anos (1962), que o então Presidente dos Estados Unidos da América, John Kennedy, enviou uma mensagem ao Congresso Americano tratando da proteção dos interesses e dos direitos dos consumidores. Foi um marco fundamental do nascimento dos chamados direitos dos consumidores e que causou grande impacto nos EUA e no resto do mundo. Na mensagem foram estabelecidos quatro pontos básicos de garantia aos consumidores: a) o do direito à segurança ou proteção contra a comercialização de produtos perigosos à saúde e à vida; b) o do direito à informação, incluindo os aspectos gerais da propaganda e o da obrigatoriedade do fornecimento de informações sobre os produtos e sua utilização; c) o do direito à opção, no combate aos monopólios e oligopólios e na defesa da concorrência e da competitividade como fatores favoráveis ao consumidor; d) e o do direito a ser ouvido na elaboração das políticas públicas que sejam de seu interesse. O Dia Mundial dos Direitos do Consumidor foi instituído no dia 15 de março em homenagem ao Presidente Kennedy; inicialmente foi comemorado em 15 de março de 1983; em 1985 a Assembléia Geral das Nações Unidas (ONU) adotou os Direitos do Consumidor como Diretrizes das Nações Unidas, o que lhe deu legitimidade e reconhecimento internacional. Não resta dúvida que, de 1962 para cá houve um avanço na proteção ao consumidor em várias partes do mundo, inclusive no Brasil. No nosso caso, a verdadeira proteção surgiu com a promulgação do Código de Defesa do Consumidor  (CDC) em 11-9-1990 (e que entrou em vigor em 11-3-1991).   É mesmo importante que se comemore esta data. Mas, falta ainda muito para que a batalha pelos direitos dos consumidores esteja ganha. Aproveitemos, então, este dia para fazer uma reflexão a partir de certos fatos. Sempre que me deparo com abusos perpetrado pelas empresas, me vem à mente não só a imagem do empresário aproveitador, mas também a do funcionário que executa suas ordens. Esse mesmo empregado, que sabe muito bem que está abusando de alguém, ele próprio é também consumidor e certamente será enganado em algum lugar: numa loja, pelo serviço de transporte ou telefônico, por um gerente de um banco etc. É, podemos dizer, uma falta de consciência de que todos somos consumidores. É essa falta de consciência que faz com que no telemarketing ativo o atendente viole a tranquilidade do consumidor em seu lar e, muitas vezes, o engane com ofertas miraculosas; ou no telemarketing passivo, quando o atendente se nega a fazer o cancelamento solicitado etc. A ironia é que neste mercado que só conhece o lucro, todos esses "pequenos infratores" a mando de seus patrões violam o direito de outras pessoas no horário de seu trabalho, mas assim que vão às compras são também enganados e violados É por essas e outras que os consumeristas têm defendido que o mercado de consumo precisa ser mais diretamente controlado pelo Estado, posto que se deixado à própria sorte os abusos contra os consumidores existirão sempre em grandes quantidades. Para ficarmos apenas com um exemplo: o da crise financeira internacional de 2008. Ficou demonstrado como é perigoso para toda a sociedade (mundial!) deixar que os próprios operadores criem as regras de trabalho. O capitalismo contemporâneo exige vigilância sobre os procedimentos e observância estrita do cumprimento das normas já existentes.                                  Não é possível mais acreditar que o mercado de consumo resolve suas questões por conta própria, como se houvesse uma espécie de "lei" natural que fosse capaz de corrigir os excessos e as faltas. A verdadeira lei de mercado é aquela que aparece estampada nos jornais de negócios e nas manchetes dos grandes jornais e revistas: o empresário moderno e as grandes corporações que ele dirige quer, cada vez mais e sempre, faturar mais alto, nem que para isso ele tenha que eliminar postos de trabalho, baixar salários, eliminar benefícios e piorar a qualidade de seus produtos e serviços. Há esperança? Já comentei por aqui, que vejo com bons olhos os empresários que se preocupam com a questão ambiental, com o impacto que seus produtos e serviços tem na sociedade, que se envolvem em projetos sociais etc. Tudo isso é bem-vindo, mas penso que para melhorar mais é necessário que o consumidor possa e saiba escolher os produtos e serviços que adquire e que o Estado tenha regras rígidas de controle do sistema de produção capitalista, fazendo com que a lei seja cumprida.
quinta-feira, 7 de março de 2024

A imagem do consumidor pessoa jurídica

Continuo a análise dos direitos básicos dos consumidores. Hoje analiso a imagem da pessoa jurídica como consumidora. Como se sabe, a pessoa jurídica é também considerada consumidora (caput do art. 2º do Código de Defesa do Consumidor) Inicialmente, anoto que a pessoa jurídica não sofre dano estético, nem pode ser violada em sua honra. O primeiro por compor o aspecto físico, mecânico e fisionômico do corpo humano e a segunda por dizer respeito a valor que só pode ser atribuído ao indivíduo1. Não sofre também, propriamente, dano moral, uma vez que sentir dor é uma exclusividade humana. Nem tem intimidade, essa esfera mais concêntrica dentro da órbita privada. A pessoa jurídica, porém, goza de privacidade e tem imagem. Privacidade, que, oposta à publicidade, garante-lhe o direito a segredos comerciais, fórmulas e métodos que lhe pertencem reservadamente. Esses elementos compõem a esfera privada da pessoa jurídica. De resto, a característica básica de atuação da pessoa jurídica é sempre pública, independentemente de sua natureza jurídica (pública, privada, sociedade civil, comercial etc.). Isto porque a ação da pessoa jurídica sempre se dá no meio social: no mercado ou na ação política governamental. Ela é, por isso, essencialmente pública. A pessoa jurídica tem, também, imagem. Apesar da discussão que já se fez a respeito, atualmente não resta dúvida de que a pessoa jurídica tem imagem, e, como visto, protegida constitucionalmente. A imagem da pessoa jurídica pode ser classificada nos moldes da imagem da pessoa física. Ela tem imagem-retrato, representada por seu nome, sua marca, seu logotipo, seus produtos, seus serviços, enfim, por tipos, sinais, letras e símbolos que a representem. É claro que, ao colocarmos aqui a pessoa jurídica como possuidora de uma imagem-retrato, o estamos fazendo de forma figurativa, por analogia ao conceito de imagem-retrato da pessoa física. Todavia, o tipo "imagem-retrato" encaixa-se como uma luva quando se quer entender o que está ocorrendo no uso sem autorização de uma marca ou na violação de um logotipo ou mesmo de um produto ou serviço. Percebe-se que no caso do produto há várias circunstâncias que envolvem não só o nome do produto mas também sua embalagem, seu conteúdo, a ligação de tudo isso ao nome do fabricante e sua respectiva imagem etc. A pessoa jurídica tem, ainda, imagem-atributo. E é aqui que residirá certa confusão, no caso, não só para admitir a outra, a imagem-retrato, como para entender a distinção entre os dois tipos. Com efeito, a imagem-atributo é construída pelo meio social. Ela é, pode-se dizer, mais o que os outros reconhecem na pessoa jurídica do que sua própria designação ou construção. Seria uma espécie de "reputação" da pessoa jurídica. É por isso que, embora a imagem-retrato guarde em alguns casos relação com a imagem-atributo, com ela não se confunde: é que a imagem-retrato é criada pela própria pessoa jurídica tão logo ela passe a existir. Por exemplo, o nome. Mas a imagem-atributo dependerá da atuação dessa pessoa jurídica - desse nome - no meio social. Quando se disser que esse nome ou essa marca tem alta credibilidade, estar-se-á diante da imagem-atributo. E o texto constitucional protege a ambas: a) a imagem-retrato de uma simples e inócua empresa de contabilidade, conhecida apenas por seu único cliente ou que ainda não tenha nenhum. Ninguém pode usar aquele nome sem autorização; b) a imagem-atributo daquela mesma empresa, que formou a maior auditoria do País, com notável reputação ou credibilidade. Ninguém poderá usar seu nome sem autorização, nem poderá denegrir sua imagem e reputação. Não nos esqueçamos de dizer, que a Constituição não faz distinção de pessoa jurídica: pode esta ser nacional ou estrangeira, pública ou privada, sociedade comercial ou civil, fundação, associação sem fins lucrativos, enfim, qualquer figura reconhecida como pessoa jurídica. Por extensão, garante-se a imagem do ente despersonalizado, como a "massa falida". __________ 1 Quando se fala em honra de uma instituição, tal conceito aparece em sentido meramente figurativo: estar-se-á referindo tecnicamente à imagem. É, na verdade, reputação, garantida constitucionalmente pela imagem-atributo, como se verá.
quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

As compras compulsivas se alastram

O aumento do consumo, especialmente, de produtos, nem sempre é bom. Se tiver fundamento na necessidade dos consumidores, tudo bem. Mas, o que ocorre quanto a ampliação do consumo está relacionada ao simples ato (e prazer) de consumir?  Volto, pois, ao tema do vício das compras.    O vício, como se sabe, é uma doença de há muito detectada e tratada terapeuticamente. E  que pode atingir qualquer pessoa, independentemente de classe social, condição econômica e formação intelectual. E um dos vícios marcantes da sociedade de consumo em que vivemos é a chamada oneomania (também se escreve oniomania). A palavra significa, ao pé da letra, "mania de comprar" e também é utilizada para identificar os compradores compulsivos. Se uma pessoa tem essa doença, age como viciada.  A pessoa compradora compulsiva é aquela que se satisfaz não com o objeto da compra, mas com o ato de comprar. Por isso, ela pode literalmente adquirir qualquer coisa que lhe surja na frente. O ápice de sua satisfação se dá no momento da aquisição. Depois, quando chega em casa, os objetos podem ser abandonados porque não têm mais utilidade. Só a próxima compra a satisfará.  O problema para identificar a doença está em que, naturalmente, esse tipo de pessoa é uma consumidora típica e, portanto, frequenta os mesmos lugares que as demais. Daí, ela acaba comprando imoderadamente, mas os produtoso são aqueles que todos compram, inclusive ela mesmo quando não tinha a crise. Gasta em roupas, sapatos, bolsas, canetas, artigos de luxo etc. e com isso, às vezes, nem ela nem as demais que estão à sua volta percebem o problema. Parece apenas que ela é exagerada ou uma espécie de colecionadora.  O estímulo para a compra de produtos e serviços é feito pelo sistema de marketing, com propagandas em profusão e todos os outros meios de indução. Crescemos comprando e não conseguimos imaginar-nos vivendo sem fazê-lo.  E, como se sabe, a partir da segunda metade do século XX houve um brutal incremento do sistema de créditos e de facilitação para as compras. A expansão do sistema financeiro internacional e o largo acesso ao crédito tem como base o aumento da produção industrial, pois se assim não fosse seria impossível vender o que se fabrica.                                 Na atualidade, com a espetacular utilização da web/internet/redes sociais, não só as compras tornaram-se instantâneas e feitas de dentro do lar, como os pagamentos também. As transferências bancárias on line (ted e pix), os pagamentos com cartões de crédito e débito, os pagamentos automáticos de contas e faturas de todos os tipos, desde serviços essenciais como gás, água e energia elétrica, até aluguéis de tevê à cabo, compras parceladas etc., tudo é feito rápida e imperceptivelmente. Nos débitos automáticos, o consumidor nem precisa mais participar: é o sistema que age por ele.  Tudo isso vai alienando o consumidor do que realmente ocorre. Ele não se dá conta do gasto efetivo de suas economias nem de seu endividamento constante. Logo, pode-se dizer que o mercado insufla os "vírus" da doença que pode atingir qualquer pessoa mais ou menos avisada, já que as armadilhas estão muito bem engendradas.  Assim, como em qualquer tipo de vício, impõem-se a necessidade de instituição de vigilância. É importante, por exemplo, que as pessoas de uma família prestem atenção à atitude de compra e endividamento das demais, para tentar detectar a doença.  Um sintoma frequente está, de fato, ligado ao endividamento. O comprador compulsivo ou a compradora compulsiva adquire produtos sem parar e vai se endividando para pagar por coisas que ele ou ela não precisa. Muitas vezes já as tem em excesso, mas continua comprando. Essa pessoa gasta todo seu salário, estoura o limite do cartão de crédito e do limite de crédito em conta, e até faz empréstimos apenas para continuar adquirindo o que não lhe faz falta.  É claro que, se o comprador ou a compradora com oneomania for uma pessoa de posses e puder gastar muito dinheiro, será mais difícil identificar a doença, pois ela acumulará produtos e mais produtos ainda que nunca os utilize. Assim, um outro modo  de  identificação da doença está em verificar o excesso da compra de bens, que jamais são usados.                                   Como já fiz antes neste espaço, encerro dizendo que, para quem estiver passando por esse tipo de problema ou que tenha algum familiar com a doença, é bom saber que existem em algumas cidades brasileiras os grupos de autoajuda intitulado "Devedores Anônimos", que funcionam nos mesmos moldes dos "Alcoólatras Anônimos", que acolhem os doentes pessoalmente ou virtualmente (on line). Basta uma consulta à internet para ter acesso a essas associações. O tratamento com psicoterapia é também recomendado.
Os consumidores estão sendo violados na Europa.  No artigo de 4 de janeiro deste ano, eu já havia mostrado uma violação feita pelo sistema bancário em Portugal.  E há mais violações em outros países. Vejamos.  Meu amigo Outrem Ego foi, recentemente, passar férias na Europa. E, para sua decepção, viu que o consumidor por lá não está sendo respeitado como devia e numa questão básica: a forma de pagamento.  Centenas de estabelecimentos comerciais só aceitam pagamento com cartão de crédito ou débito. E não só fornecedores privados, locais públicos também.  Por exemplo, no Museu Van Gogh, em Amsterdam, se a pessoa quiser comprar uma garrafa de água e pagar com moeda corrente não pode. Lá só se compra algo pagando com cartão. No Aeroporto de Barcelona, dá-se o mesmo: pagamento só com cartão.  Não dá para entender o que  está acontecendo. Sempre foi direito básico do consumidor, em qualquer lugar do mundo, poder pagar suas compras com moeda corrente. E, do outro lado, sempre foi obrigação receber nessa forma de pagamento.  A violação é flagrante, pois pode muito bem acontecer de alguma pessoa (por motivos que não interessam) não possuir cartão de crédito ou débito e precisar (ou querer) comprar algo, pagando em moeda corrente. Digamos que ela esteja com sede dentro do Museu em Amsterdam ou no Aeroporto em Barcelona, não poderá comprar uma garrafa de água?  Por aqui, temos leis que cuidam do tema.  No Código de Defesa do Consumidor, há a regra do inciso V do artigo 39, nesses termos: "Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:             (...) V - exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva;"  E a Lei das Contravenções Penais (decreto-lei 3.699, de 3-10-1941), apesar de desatualizada,  é expressa nesse sentido:  "Art. 43. Recusar-se a receber, pelo seu valor, moeda de curso legal no país: Pena - multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis."  O que está acontecendo na Europa é, realmente, lamentável.  Espero que o modelo não se alastre.
Hoje começo a analisar as garantias constitucionais previstas no inciso X do art. 5º da Constituição Federal e que são relevantes para uma reflexão sobre os direitos do consumidor, eis que, na realidade há violações que a norma magna pretende evitar. Vejamos o conteúdo expresso do inciso X: "Art. 5º (...) X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação". Como se observa, a Constituição Federal pretende dar guarida absoluta ("são invioláveis") à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem. Tomemos cada um desses conceitos para compreender a extensão do preceito normativo. Primeiramente, a intimidade e a vida privada. Os dois termos não podem ser dissociados, uma vez que, obviamente, o valor semântico de um lembra o outro. Porém, como a norma constitucional utiliza os dois, é preciso esclarecê-los. Aliás, de pronto, surge a indagação: são os dois conceitos designativos do mesmo sentido? A doutrina que já analisou a questão respondeu que não, apesar da necessária imbricação de ambos1. Para entender o exato significado dos conceitos, tem-se de lembrar certos aspectos da vida social na qual estão presentes as pessoas, naquilo que diz respeito a sua individualidade na relação com o coletivo. É preciso distinguir o âmbito público do âmbito privado. Com efeito, o público é sempre aquilo que, como o nome diz, aponta para a participação aberta a todos ou para a possibilidade de participação de todos. É o que pertence ao povo ou à coletividade; ou mesmo apenas os atos vivenciados por poucas testemunhas, mas, assim, com caráter público. É ainda o formato real e abstrato dos atos do governo2. O privado é o oposto do público, e, embora o conceito seja da Antiguidade, ainda guarda o sentido de privus, "ser privado de", isto é, ser privado do público. É o que ocorre no domínio do lar, na órbita pessoal, no restrito âmbito doméstico. Dessa maneira, pode-se perceber que todo indivíduo tem uma esfera privada de direitos e interesses. Mas nem todos têm uma atuação no âmbito público. As pessoas, em geral, podem, é verdade, ter uma aparição ou reconhecimento público, quando, por exemplo, agem, ainda que esporadicamente, de forma pública: participando de um programa de televisão, cometendo um delito numa praça, enganando consumidores na venda de produtos falsificados. A distinção entre as duas esferas pode ser feita a partir da hipótese do papel social, conforme estudado pela sociologia jurídica3. O surgimento dos papéis está ligado ao crescimento da sociedade, de maneira que o conceito atualmente utilizado é o de complexidade, ou melhor, alta complexidade social. O sentido de complexidade social está relacionado ao dado concreto e real das ações possíveis do indivíduo. Ou, melhor dizendo, o mundo real se apresenta ao indivíduo oferecendo latentemente ações que ele pode realizar. Mas a quantidade de ações é tão grande que, de fato, real e historicamente, o mundo apresenta sempre muito mais possibilidades do que aquelas que o indivíduo vai realizar em toda a sua vida. O indivíduo está, assim, fadado a escolher. Desde que entra no mundo, vai agindo a partir de escolhas; não há alternativa. A essas escolhas se dá o nome de seletividade. Esta é uma operação de seleção para optar diante da complexidade de ações possíveis. A cada ato, a cada passo, o indivíduo age por seleção e vai compondo o quadro de seu destino. A inexorabilidade da seleção tem como função reduzir a complexidade do mundo: a cada escolha que a pessoa faz, opera-se a seleção e reduz-se a complexidade - escolheu algo entre muitos4. Mas, simultaneamente, enquanto se opera a seleção, vai-se produzindo um enorme contingente que ficou de lado: escolheu ser advogado; em compensação, não será juiz, promotor de justiça, procurador, delegado etc. Continuo na próxima semana. __________ 1 Acompanho aqui os Professores David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior (Curso de direito constitucional, São Paulo: Saraiva,  1998. Item 2.1.1). 2 Ressalvem-se os chamados "segredos de Estado", justificáveis apenas na exata medida em que são segredos para preservar o bem público: segurança, paz etc. 3 Assim, por exemplo e pelos demais: Niklas Luhmann, Legitimação pelo procedimento.,Brasília: Ed UNB, 1980. Especialmente, p. 71 e s. 4 A escolha gera um alívio ao indivíduo. Como o mundo se apresenta com alta complexidade e milhões de possibilidades, isso por si só é fator gerador de angústia. A seleção a diminui.