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O incidente de desconsideração inversa da personalidade jurídica e a legitimidade do sócio para recorrer

quarta-feira, 17 de agosto de 2022

Atualizado em 18 de agosto de 2022 09:16

Uma das maiores e mais comemoradas inovações trazidas pelo Código de Processo Civil de 2.015 foi a criação do Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica, que possibilita o prévio contraditório sobre as alegações do Requerente, no prazo de 15 dias, e com ampla possibilidade probatória, nos termos dos artigos 133 a 137 do Código de Processo Civil.

No caso clássico de desconsideração, a empresa figura como devedora e seus sócios são tidos como responsáveis secundários no caso de ocorrência das previsões constantes do artigo 50 do Código Civil e 28 do Código do Consumidor. Temos também a desconsideração inversa, na qual o sócio é o devedor e a sociedade empresarial é a responsável patrimonial secundária, quando constatado que o sócio transferiu seu patrimônio pessoal para a sociedade empresarial com o objetivo de frustrar a satisfação de seus credores.

Mesmo não sendo positivada em nosso ordenamento, a desconsideração inversa é amplamente aceita pela Doutrina e pela Jurisprudência1, sendo que o artigo 133, § 2º, do Código acabou também prevendo a aplicação do incidente para esses casos. 

Dúvida que surgiu é se deferida a desconsideração a empresa, no caso da desconsideração tradicional e o sócio, no caso da desconsideração inversa, teriam legitimidade para recorrer de tal decisão.

A Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, após decisões conflitantes entre Turmas, já havia decidido quanto a possibilidade da empresa recorrer no caso de desconsideração tradicional da Personalidade Jurídica: 

"PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. PESSOA JURÍDICA. DESCONSIDERAÇÃO. PEDIDO DEFERIDO. IMPUGNAÇÃO. LEGITIMIDADE RECURSAL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA NÃO PROVIDOS.

1. Trata-se de embargos de divergência interpostos contra acórdão que decide legitimidade da pessoa jurídica para interpor recurso de pronunciamento judicial que desconsidera a personalidade jurídica.

2. No caso, entendeu-se que, diante do rol de legitimados à interposição de recursos (arts. 499 do Código de Processo Civil de 1973 e 996 do Código de Processo Civil de 2015), do qual emerge a noção de sucumbência fundada no binômio necessidade/utilidade, a pessoa jurídica detém a mencionada legitimidade quando tiver potencial bastante para atingir o patrimônio moral da sociedade.

Fundamenta-se tal entendimento no fato de que à pessoa jurídica interessa a preservação de sua boa fama, assim como a punição de condutas ilícitas que venham a deslustrá-la.

3. Os fundamentos trazidos no acórdão recorrido estão mais condizentes com a própria noção de distinção de personalidades no ordenamento jurídico pátrio. A pessoa jurídica, como ente com personalidade distinta dos sócios que a compõem, também possui direitos a serem preservados, dentre eles o patrimônio moral, a honra objetiva, o bom nome. De fato, o argumento da falta de interesse na reforma da decisão, tendo em vista o fato de que apenas os sócios seriam prejudicados com a resolução (já que é sobre os seus bens particulares que recairia a responsabilidade pelas obrigações societárias), mostra-se frágil.

4. "O interesse na desconsideração ou, como na espécie, na manutenção do véu protetor, pode partir da própria pessoa jurídica, desde que, à luz dos requisitos autorizadores da medida excepcional, esta seja capaz de demonstrar a pertinência de seu intuito, o qual deve sempre estar relacionado à afirmação de sua autonomia, vale dizer, à proteção de sua personalidade. Assim, é possível, pelo menos em tese, que a pessoa jurídica se valha dos meios próprios de impugnação existentes para defender sua autonomia e regular administração, desde que o faça sem se imiscuir indevidamente na esfera de direitos dos sócios/administradores incluídos no polo passivo por força da desconsideração" (REsp 1.421.464/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 24/4/2014, DJe 12/5/2014) 5. Embargos de divergência conhecidos, aos quais se nega provimento."

(EREsp n. 1.208.852/SP, relator Ministro Og Fernandes, Corte Especial, julgado em 4/5/2016, DJe de 20/5/2016.)

Em recentíssimo julgado, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça entendeu que em caso de desconsideração inversa, o sócio também seria legitimado a recorrer de tal decisão: 

"RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. DECISÃO QUE DEFERIU O PEDIDO DE DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE DO SÓCIO EXECUTADO. LEGITIMIDADE E INTERESSE RECURSAL DO SÓCIO PARA RECORRER DA DECISÃO. EXISTÊNCIA. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO.

1. O propósito recursal consiste em definir, além da ocorrência de negativa de prestação jurisdicional, a legitimidade e o interesse recursal do sócio executado para impugnar a decisão que deferiu o pedido de desconsideração inversa da personalidade jurídica dos entes empresariais dos quais é sócio.

2. Verifica-se que o Tribunal de origem analisou todas as questões relevantes para a solução da lide, de forma fundamentada, não havendo falar em negativa de prestação jurisdicional.

3. A jurisprudência desta Corte Superior assenta-se no sentido de que, sendo deferido o pedido de desconsideração, o interesse recursal da empresa devedora originária é excepcional, evidenciado no propósito de defesa do seu patrimônio moral, da honra objetiva, do bom nome, ou seja, da proteção da sua personalidade, abrangendo, inclusive, a sua autonomia e a regularidade da administração, inexistindo, por outro lado, interesse na defesa da esfera de direitos dos sócios/administradores.

4. Na desconsideração inversa da personalidade jurídica, por sua vez, verifica-se que o resultado do respectivo incidente pode interferir não apenas na esfera jurídica do devedor (decorrente do surgimento de eventual direito de regresso da sociedade em seu desfavor ou do reconhecimento do seu estado de insolvência), mas também na relação jurídica de material estabelecida entre ele e os demais sócios do ente empresarial, como porventura a ingerência na affectio societatis.

5. Desse modo, sobressaem hialinos o interesse e a legitimidade do sócio devedor, tanto para figurar no polo passivo do incidente de desconsideração inversa da personalidade jurídica, quanto para recorrer da decisão que lhe ponha fim, seja na condição de parte vencida, seja na condição de terceiro em relação ao incidente, em interpretação sistemática dos arts. 135 e 996 do Código de Processo Civil de 2015, notadamente para questionar sobre a presença ou não, no caso concreto, dos requisitos ensejadores ao deferimento do pedido.

6. Recurso especial conhecido e parcialmente provido." (g.n.)

(REsp n. 1.980.607/DF, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 9/8/2022, DJe de 12/8/2022.)

Desse modo a jurisprudência acompanha o entendimento da doutrina majoritária, que defende a existência de legitimidade recursal em face de quem tem a desconsideração decretada. Por todos cita-se o entendimento do Professor Cássio Scarpinella Bueno: "Quando se tratar de desconsideração da pessoa jurídica, para a responsabilização do sócio, contudo, tem a própria pessoa jurídica legitimidade recursal? E se tratar da chamada "desconsideração inversa", o próprio sócio tem legitimidade recursal? As respostas positivas a estas duas questões pressupõem que a pessoa jurídica e a pessoa natural consigam demonstrar interesse jurídico próprio no caso concreto para que, ainda que na qualidade de terceiros em relação ao incidente, atestem a sua legitimidade recursal. Ao caso, merece ser aplicada, portanto, a mesma diretriz que o parágrafo único do art. 966 reserva para o recurso de terceiro".2  

Portanto, em caso de desconsideração da personalidade jurídica o devedor principal terá legitimidade para recorrer nos casos em que provar que tem interesse jurídico próprio na interposição do recurso.

______________

1 Segundo o professor José Roberto dos Santos Bedaque: "Admite-se expressamente a denominada desconsideração inversa (art. 133, § 2º), aceita pela doutrina e pela jurisprudência no regime processual anterior. Trata-se de fenômeno segundo o qual a pessoa física, mediante atos simulados ou fraudulentos, procura furta-se ao cumprimento de obrigações, transferindo bens a pessoa jurídica da qual é sócio." (Comentários ao Código de Processo Civil: da intervenção de terceiros até da defensoria pública: vol. III: art. 119 a 187, coordenação José Roberto Ferreira Gouvêa, Luis Guilherme Aidar Bondioli, João Francisco Naves da Fonseca, São Paulo: Saraiva, 2019, p. 130).

2 Comentários ao Código de processo civil, vol. 1, São Paulo: Saraiva, 2017, p. 582/583.