COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas >
  3. Direito Privado no Common Law >
  4. Fundos especiais e tutela de direitos difusos: Dieselgate, plano antirracista e o potencial transformador das medidas estruturantes

Fundos especiais e tutela de direitos difusos: Dieselgate, plano antirracista e o potencial transformador das medidas estruturantes

segunda-feira, 21 de junho de 2021

Atualizado às 08:01

Introdução

Ao longo desse semestre, a maioria das minhas colunas sobre o Direito Privado na Common Law discutiu o modelo de tutela coletiva de direitos a partir de uma perspectiva comparada e empírica.1 O caso do Dieselgate foi usado como referência para a reflexão sobre a proteção dos direitos dos consumidores nos Estados Unidos, na União Europeia e no Brasil.2 Nesse contexto, discutiu-se ainda a figura do 'Special Master', isto é, de um administrador judicial para a responsabilização coletiva e espécie de síndico da massa devida.3 O caso Dieselgate também possui uma dimensão de proteção coletiva ao meio ambiente e é necessário discutir a relevância dos fundos especiais para a tutela de direitos difusos.

Aliás, os leitores da coluna já foram brindados com lições excelentes sobre o tema nas duas últimas colunas elaboradas pela professora Thais Venturi, que trataram com enorme detalhamento sobre os fundos reparatórios nos Estados Unidos para danos decorrentes da poluição ambiental a partir do Comprehensive Environmental Response, Compensation and Liability Act (CERCLA), da experiência estadunidense com o World Trade Center Victim Fund (WTCVF) e do Gust Coast Claim Facility (GCCF) e dos critérios para o desenho institucional dos fundos reparatórios.4 A eminente professora discorreu ainda sobre a existência do Fundo de Defesa de Direitos Difusos a partir da Lei da Ação Civil Pública (Lei n. 7.347/85), referindo-se à experiência brasileira com fundos reparatórios a partir das transgressões socioambientais de Mariana e Brumadinho e do acidente aéreo do Voo TAM-3054 e refletindo sobre os desafios para a implementação desses fundos no Brasil.5

O presente artigo também discute desafios brasileiros. Primeiro, com o caso do Dieselgate, reflete-se sobre a experiência dos Estados Unidos com fundos especiais desenhados para composição dos danos difusos sofridos pela coletividade. Segundo, com o compromisso por um plano antirracista celebrado no Rio Grande do Sul, valoriza-se a implementação dos fundos especiais como instrumento relevante para a tutela de direitos difusos e para a adoção de medidas de caráter estruturante em nosso país.

Os fundos especiais e a possibilidade de recomposição ambiental

Além da possibilidade de fundos reparatórios de interesses individuais homogêneos de vítimas lesadas, a experiência estadunidense revela a importância de implementação de fundos especiais para a recomposição do meio ambiente e dos interesses difusos violados pela poluição ambiental.

Exemplo pródigo foi o caso do Dieselgate nos Estados Unidos, em que a empresa responsável pela fabricação dos veículos com emissão excessiva de gases poluentes se comprometeu a disponibilizar 4,7 bilhões de dólares para serem aplicados em dois fundos especiais de recomposição do meio ambiente degradado. Um fundo de 2,7 bilhões de dólares foi criado para um programa de redução da emissão de óxido de nitrogênio na atmosfera com o financiamento da troca de ônibus escolares velhos por novos veículos elétricos, da adoção de maquinário na construção mais sustentável do ponto de vista energético e de outros projetos para liderar a redução da poluição.6

Além disso, outro fundo especial de dois bilhões de dólares foi desenhado especialmente para a promoção de veículos energizados a bateria, incluindo pesquisa e desenvolvimento e instalação de estações públicas de recarga de baterias de automóveis elétricos.7 O resultado do acordo homologado pelo Poder Judiciário foi a criação da Electrify America LLC, responsável por uma rede pública de carregamento elétrico de automóveis que já conta com cerca de 500 estações para promoção da adoção de veículos com emissão zero de ('Zero-Emission Vehicles'), bem como com o compromisso de educar e conscientizar o público a respeito dos benefícios dos veículos não-poluidores.8 O compromisso por um plano de recomposição ambiental celebrado na Califórnia deu origem a três ciclos de investimentos divididos em trinta meses para desenvolvimento da infraestrutura de acesso e para programas de educação nos Estados Unidos.

Logo, além dos fundos de reparação de interesses individuais homogêneos lesados, a reparação integral dos danos difusos e coletivos necessita eventualmente de planos, programas e medidas concretas definidas sob medida para enfrentamento das lesões decorrentes da transgressão coletiva. Em contraste com o exemplo dos Estados Unidos, contudo, o caso Dieselgate não resultou dentre nós em compromisso de recomposição ambiental dos danos causados pela poluição atmosférica devido ao excesso de emissão de oxido de nitrogênio. Além da multa de cinquenta milhões de reais aplicada pelo IBAMA em 2015,9 não existe notícia de nenhuma medida estruturante no âmbito da tutela coletiva do meio ambiente para responsabilização da empresa através da promoção de veículos com emissão zero ou da educação do público para os benefícios decorrentes dos carros elétricos.10

É importante salientar que a aplicação dos institutos varia conforme o Estado, o direito positivo e o contexto. No caso brasileiro, o Estado se caracteriza como um Estado Socioambiental de Direito, com a missão de promoção do desenvolvimento sustentável e de reparação integral do meio ambiente lesado, bem como de superar a desigualdade, pobreza e discriminação.11 Além disso, nosso direito positivo prevê expressamente fundos de recomposição de danos difusos, termos de compromisso de conduta, dever de reparação integral e obrigações de fazer e de não fazer no âmbito da tutela coletiva de direitos.12 Logo, em tese, seria possível exigir da empresa o compromisso de eletrificar o Brasil, o que, contudo, não aconteceu. Por outro lado, foram estabelecidos fundos especiais com possibilidade de transformação social no compromisso por um plano antirracista celebrado recentemente no Rio Grande do Sul.

Os fundos especiais e a possibilidade de transformação social

Na última semana, o Ministério Público Federal, o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, o Ministério Público do Trabalho, a Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, a Defensoria Pública da União, Educafro e Centro Santo Dias de Direitos Humanos celebraram um termo de compromisso de ajustamento de conduta com o Carrefour com o objetivo de estabelecimento de medidas para evitar a ocorrência de atos de racismo e discriminação racial em âmbito nacional.13 O Carrefour se compromete a estabelecer um plano antirracista com reforço e ampliação de sua política de enfrentamento ao racismo, à discriminação e à violência, bem como de promoção dos direitos humanos em todos os seus estabelecimentos no território nacional. Importante, o plano também pretende promover a diversidade.14

Foi definido um protocolo de segurança com novo modelo de atuação para sua equipe interna de prevenção e fiscalização. Além de ter aplicação interna, o plano possui impacto na cadeia de produção da rede de supermercados, na medida em que as empresas terceirizadas também devem treinar seus trabalhadores para prevenção de práticas discriminatórias. Além disso, devem ser disponibilizados canais de denúncias, cabendo ao Carrefour fiscalizar, notificar e advertir eventuais infratores. Eventual contenção física pelas equipes de segurança deve ser proporcional e moderada. Ademais, a rede de supermercados se compromete a não contratar empresas de segurança que contem com policiais da ativa, nem tenham envolvimento com organizações criminosas ou com atividades de milícia.

O Código de Ética e Conduta do Carrefour Brasil será alterado de modo objetivo para reforçar a proibição de práticas discriminatórias, maus tratos, constrangimentos e riscos de violência física e moral nos estabelecimentos, devendo os trabalhadores e trabalhadoras se submeter a treinamentos sobre os novos padrões e sobre práticas antirracistas em geral.15 Os canais de denúncias devem estar abertos para notícias de agressão, preconceito e discriminação por raça, orientação sexual ou identidade de gênero, deficiência ou qualquer forma de intolerância, atendendo clientes, colaboradores e fornecedores.

Além das medidas adotadas no âmbito das relações internas de trabalho, também foi assumido um compromisso amplo de medidas no eixo da sociedade brasileira em geral. Será estabelecido um protocolo de treinamento específico para seus dirigentes e trabalhadores com relação ao racismo estrutural,16 com carga mínima de duas horas e esclarecimento sobre as bases do racismo no Brasil, os conceitos de racismo, preconceito, discriminação, segregação, racismo estrutural e institucional, bem como incentivo de atitudes antirracistas, cumprimento da política de diversidade e dos compromissos sociais assumidos.17

Nesse contexto, existe a previsão de ações concretas de impacto social nas áreas de educação, empregabilidade e empreendedorismo, através da concessão de bolsas de estudo e permanência para pessoas negras em nível de graduação e pós-graduação no valor total de sessenta e oito milhões de reais. Também serão concedidas bolsas de estudo para pessoas negras em idiomas, inovação e tecnologia para a formação de jovens profissionais para o mercado de trabalho no valor de seis milhões de reais. Por sua vez, empreendedores negros poderão receber contribuições para investimentos em projetos de inclusão social em redes aceleradoras no valor total de oito milhões. Haverá ainda investimentos de dois milhões de reais em projetos de memória ou reflexão sobre o processo de escravidão e tráfico de escravos na região do Cais do Valongo no Rio de Janeiro. Serão disponibilizados ainda quatorze milhões de reais para campanhas educativas de combate ao racismo e projetos sociais com foco no combate ao racismo.

Além disso, serão lançados programas específicos de estágio e de trainee para pessoas negras para fomentar quadros de liderança na empresa, com investimentos de quatro milhões de reais. Também será feito um programa de desenvolvimento e de capacitação de 300 empregados negros como alavanca de carreira para facilitar o acesso a posições de liderança na empresa com investimentos da ordem de cinco milhões de reais. Além do compromisso de estabelecimento de uma cadeia de fornecimento sustentável, existe o compromisso de fomento de inclusão de comunidades tradicionais, especialmente de quilombolas, através de parcerias com cooperativas vinculadas a elas e investimentos de dois milhões de reais. Também serão contratadas empresas de consultoria para a fiscalização do cumprimento das medidas previstas no compromisso. O investimento total decorrente do compromisso é de cento e quinze milhões de reais.18

Além disso, o Ministério Público do Rio Grande do Sul também tinha expedido uma recomendação para que o Estado elabore um projeto de lei que assegure uma melhor fiscalização de empresas de segurança privada.19 Aliás, o homicídio de João Alberto Silveira de Freitas no interior do supermercado em Porto Alegre após abordagem violenta e sufocamento em 19 de novembro de 2020 nos remete ao homicídio de George Floyd no dia 25 de maio de 2020.20 Nos Estados Unidos, já houve condenação de policial pelo homicídio,21 mas o Projeto de Lei para reforma policial e proteção de direitos civis dos investigados intitulado George Floyd Justice in Policing Act não teve apoio suficiente no senado para ser aprovado em 202022 e está enfrenta resistências para se tornar lei federal nos Estados Unidos.23 Contudo, tanto nos Estados Unidos, quanto no Brasil, os movimentos sociais estão mobilizados para o enfrentamento do racismo estrutural.

O potencial transformador das medidas estruturantes

Em breve síntese, o fundo especial é instrumento com enorme potencial para a tutela de direitos difusos, para a recomposição do meio ambiente lesado e para a transformação social. Não procedem críticas de que o fundo especial não possuiria previsão legal, violaria a separação dos poderes ou seria intervenção indevida do Poder Público na esfera da atividade privada.24 Além de ser um instituto aplicado na maior economia capitalista do mundo, existe a previsão legal dos fundos genéricos de defesa de direitos difusos e de uma série de institutos que possibilitam o estabelecimento dos fundos especiais para a efetiva tutela coletiva de direitos no Brasil. Por outro lado, cabe ao Poder Judiciário o controle jurisdicional dos compromissos assumidos, inclusive para assegurar a adequação das medidas estruturantes para a reparação dos bens jurídicos lesados pela transgressão coletiva e a proteção dos interesses da coletividade. Nesse sentido, aliás, o compromisso assumido pelo plano antirracista celebrado no Rio Grande do Sul deve servir de paradigma pela sua qualidade técnica e potencial impacto estruturante.25

Considerações finais

O fenômeno jurídico varia conforme o direito positivo, mas também o contexto de sua aplicação, a interação dinâmica dos atores relevantes e a perspectiva intersubjetiva que legitima suas práticas, institutos e instrumentos. No caso dos fundos especiais, sua adoção como instrumento da tutela coletiva de direitos foi viabilizada no compromisso pelo plano antirracista por uma coalizão ampla de atores institucionais - Ministério Público Federal, Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, Ministério Público do Trabalho, Defensoria Pública da União, Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, Educafro e Centro Santo Dias de Direitos Humanos.26 Já no caso do Dieselgate, não ocorreu atuação semelhante aos Estados Unidos, nem foram mobilizados fundos especiais para a recomposição do meio ambiente no Brasil. Espera-se que o compromisso celebrado no Rio Grande do Sul sirva de paradigma para a efetiva tutela coletiva de direitos através da adoção de fundos especiais de defesa dos direitos difusos no Brasil.

*Pedro Fortes é professor Visitante no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Diretor Internacional do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e Promotor de Justiça no Ministério Público do Rio de Janeiro. Graduado em Direito pela UFRJ e em Administração pela PUC-Rio, é DPHIL pela Universidade de Oxford, JSM pela Universidade de Stanford, LLM pela Universidade de Harvard e MBE pela COPPE-UFRJ. É coordenador do CRN Law and Development na LSA, do WG Law and Development no RCSL e do Exploring Legal Borderlands na SLSA. Foi Professor Visitante na National University of Juridical Sciences de Calcutá, Visiting Scholar na Universidade de Frankfurt e Pesquisador Visitante no Instituto Max Planck de Hamburgo e de Frankfurt.

__________

1 Disponível aqui.

2 Disponível aqui.

3 Disponível aqui.

4 Disponível aqui.

5 Disponível aqui.

6 Ewing, Jack. Faster, Higher, Farther: The Inside Story of the Volkswagen Scandal. London: Bantam Press (2017), p. 236.

7 Idem, p. 236.

8 Disponível aqui.

9 Disponível aqui.

10 Existe literatura relevante sobre os processos estruturais no direito brasileiro bem representada pela seguinte coleção de textos: ARENHART, Sérgio Cruz; JOBIM, Marco Félix (Ed.). Processos estruturais. JusPodivm, 2017.

11 SARLET, Ingo Wolfgang. Estado socioambiental e direitos fundamentais. Livraria do Advogado Editora, 2010.

12 Aliás, conforme demonstrado por Edilson Vitorelli e Matheus Rodrigues Oliveira, a União Federal não aplicou os recursos do Fundo de Direitos Difusos (FDD) para a recomposição dos danos difusos. Veja: VITORELLI, Edilson; OLIVEIRA, Matheus Rodrigues. O Fundo Federal de Defesa dos Direitos Difusos e o desvio de finalidade na aplicação de seus recursos. Revista de Direito Administrativo, v. 278, n. 3, p. 221-250, 2019.

13 Disponível aqui.

14 Todas as informações apresentadas nesse artigo foram extraídos da cópia do documento disponibilizada no sítio do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul.

15 Para uma introdução ao tema, veja RIBEIRO, Djamila. Pequeno Manual Antiracista. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

16 Sobre o racismo estrutural, veja ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. São Paulo: Jandaíra, 2019.

17 Sobre outro conceito importante, de racismo recreativo, veja Moreira, Adilson. Racismo Recreativo. São Paulo: Jandaíra, 2019.

18 Disponível aqui.

19 Disponível aqui.

20 Disponível aqui.

21 Disponível aqui.

22 Disponível aqui.

23 Disponível aqui.

24 Tais críticas apareceram em formas variadas nos comentários dos leitores à seguinte reportagem do uol.

25 Essa também é a opinião de Ana Cristina Rosa, que considerou o acordo como histórico e espera que sirva de paradigma para a promoção da diversidade e o combate ao racismo e à discriminação no Brasil.

26 Disponível aqui.