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O Direito Real e a economia comportamental: elementos e desafios

segunda-feira, 9 de maio de 2022

Atualizado às 07:53

O papel da análise econômica da propriedade e da posse na literatura acadêmica.

Introdução

Nas últimas colunas sobre o direito privado na common law, discutimos o direito comportamental com uma perspectiva propedêutica e com uma perspectiva empírica a partir de textos publicados no The Oxford Handbook of Behavioral Economics and the Law. A presente coluna revisa e sumariza o texto elaborado pela Professora Daphna Lewinsohn-Zamir, que se trata de uma análise aplicada do behavioral law and economics para à área dos direitos reais.1 Trata-se do capítulo do manual de Oxford sobre direito e economia comportamental com a discussão específica de aplicação a uma área jurídica em particular. No âmbito do direito privado, existem estudos relativos à propriedade, responsabilidade civil, contratos, seguros, relação de consumo e direito empresarial.

O texto apresenta uma revisão da literatura sobre o direito à propriedade, diferenciando dois períodos específicos. Em primeiro lugar, existiam estudos que não conduziram pesquisa experimental independente, mas que aplicavam resultados genéricos da literatura psicológica mais ampla. Em uma segunda fase, foram realizadas pesquisas empíricas explicitamente elaboradas para fins de investigação de temas jurídicos particulares. Os trabalhos de pesquisa sobre o tema da economia comportamental aplicado aos direitos reais evidenciam a existência de variações decorrentes do contexto, exceções e refinamentos teóricos estabelecidos com base em estudos psicológicos empíricos e experimentais.

Concepções de propriedade, fungibilidade, posse, regime e redistribuição

Na primeira etapa de estudos sobre o direito à propriedade com base na análise comportamental, foram identificados fenômenos como o viés de omissão e de evitar arrependimento ('omission and regret-avoidance'), a falta de disposição de propriedade ao longo da vida apesar da rejeição aos impostos sobre herança, a liberdade do proprietário de destruição de sua propriedade como justificativa para a intervenção legal limitada e o excesso de otimismo como elemento para incentivo financeiro para a proteção de direito autoral.2 Por sua vez, na segunda etapa, foram desenvolvidas pesquisas específicas para avaliar aspectos jurídicos como o nível esperado de proteção jurídica para espécies de propriedade, o reconhecimento e circunstâncias do "efeito de doação" ("endowment effect") e a percepção sobre a distinção entre propriedade e posse nos mais variados contextos.3

Uma questão essencial na literatura estadunidense diz respeito à concepção da propriedade como uma única "coisa" ou como um "conjunto de elementos", tendo surgido a partir de uma discussão sobre o direito à moradia nas favelas pelo Professor de Yale, Bruce Ackerman, de que as pessoas leigas veem a propriedade como uma coisa e os profissionais da área jurídica a identificam como sendo um conjunto de direitos.4 Posteriormente, Frank Michelman, Professor da Universidade de Harvard, se valeu da mesma concepção de que a propriedade poderia ser analisada a partir de seus múltiplos elementos para analisar o instituto das expropriações de propriedade.5 Por um lado, a concepção de que a propriedade seria uma coisa indica uma identificação com o bem físico, que se torna mais manifesto quando é desapropriada ou esvaziada por uma regulação. Por outro lado, a concepção de propriedade como um conjunto de elementos jurídicos enfraquece a percepção do domínio do dono e a resistência à regulação de parcelas decompostas do direito através de zoneamento urbano e regras ambientais, por exemplo.

Uma outra concepção teórica relevante decorre da teoria de Margaret Radin da teoria da propriedade com base na personalidade, inspirada na filosofia hegeliana e sua justificação da propriedade privada como necessária para o desenvolvimento da personalidade.6 A partir desse insight filosófico, a teoria traça uma distinção entre a propriedade fungível e não-fungível, considerando que a propriedade seria pessoal e infungível se sua perda não pode ser recomposta através de uma compra no mercado, em contraste com o bem fungível que pode ser facilmente substituído pela aquisição de um objeto similar. Críticos questionam a proteção excessiva defendida pelos adeptos da teoria da personalidade para tais bens, já que protegeria pessoas com propriedade de bens caros e de luxo, de modo elitista e com consequências regressivas, quando a legislação deveria providenciar a garantia suficiente de uma proteção de um teto razoável para as pessoas.7

Além disso, estudos experimentais demonstram que o valor psicológico de uma residência familiar estaria associado ao período em que determinado imóvel está incorporado ao patrimônio daquela família, de modo a que quanto maior o tempo, maior é a percepção do valor do bem imóvel. Por outro lado, estudos evidenciam que o apego psicológico ao lar seria menor do que a crença comum, demonstrando que pessoas relocadas eventualmente se aclimatam para seu novo ambiente e não sofrem prejuízo psicológico.8 Apesar de serem lares, residências familiares também são commodities sujeitas a venda e locação frequente. Contudo, existem estudos que revelam que as pessoas podem considerar que seus bens constituem uma parte de sua identidade, uma ideia estendida também até os bens fungíveis e inclusive ao dinheiro, sendo que a perda involuntária desses bens poderia causar trauma e perda pessoal.9

De um jeito ou de outro, pessoas leigas e executivos profissionais preferem fortemente que direitos e remédios sejam assegurados de modo concreto com a tutela específica do bem de sua propriedade do que o recebimento de uma compensação em dinheiro. Aliás, quanto mais experientes os executivos, mais resistentes são eles em se contentar com uma compensação monetária. Também é importante para a avaliação de uma determinada situação uma série de fatores, tais como o modo de recebimento do resultado, a identidade das partes envolvidas, a voluntariedade ou não-voluntariedade da conduta e a intencionalidade ou não-intencionalidade dos atos que afetam o patrimônio. Um fator decisivo parece ser se um bem foi transferido de modo voluntário, já que a transferência involuntária costuma ser identificada como sendo uma perda de propriedade avaliada negativamente por aquela pessoa que não dispôs de seus bens.

Quanto aos conceitos de propriedade e de posse, considerados como as pedras de toque dos direitos reais, a análise comportamental pode investigar como o contexto pode justificar o tratamento jurídico dado a um locador ou a um locatário. Existe um interessante estudo de caso de situações de posse de longo prazo em Israel, em que locatários de imóveis podem ficar por décadas na locação de apartamentos residenciais públicos de baixo custo, ao ponto de se considerarem como se fossem proprietários dos bens, de modo a que o próprio poder público pode eventualmente renovar a locação sem qualquer custo ou mesmo doar os apartamentos para os antigos locatários com a transferência de propriedade do bem. Pesquisas experimentais específicas deveriam analisar o chamado "efeito de doação", em que medida se trata de um "efeito de propriedade" ou de um "efeito de posse" e o que pode ocorrer se posse e propriedade se contrapõem em conflito em um caso concreto. Um fator crucial para a sensação psicológica das pessoas é a dimensão, isto é, a magnitude do ganho ou da perda, sendo que se o proprietário perde uma residência que comprou pelo valor de mercado no passado e é privado da sua propriedade com tal valor, tal perda costuma ser sentida justamente pela sua dimensão.

Uma outra distinção importante na literatura diz respeito ao regime adotado para os remédios em caso da ocorrência de um ato ilícito em violação a direitos. Em artigo clássico da análise econômica do direito tradicional, Guido Calabresi e Douglas Melamed examinaram o regime de regras de propriedade e o regime de regras de responsabilidade, concluindo que o fato decisivo para a escolha entre os regimes deve ser os custos de transação: regras de propriedade deveriam ser adotadas quando os custos de transação são baixos e as partes podem barganhar para obter os resultados desejados; regras de responsabilidade devem ser usadas quando os custos de transação são altos, tais como os episódios relativos a partes numerosas.10 Críticos apontam situações em que o regime de propriedade pode não funcionar mesmo com custos de transação baixos, como monopólios bilaterais com assimetria de informação, por exemplo, já que o regime de responsabilidade teria a vantagem de remover o poder do proprietário e assegurar a execução de transferências de bens eficientes.11 Por outro lado, existem estudos sobre o "efeito de doação" que sugerem que tal efeito é mais fraco no regime de propriedade do que no regime de responsabilidade, sendo que o proprietário irá vender seu bem somente ao atingir um ponto em que deseje vende-lo. Já no regime de responsabilidade, existe a possibilidade de coerção da transferência diante da obrigação do proprietário de compensar as perdas decorrentes da violação de direitos.

Finalmente, um tema importante do debate contemporâneo da análise comportamental do direito real é a redistribuição de bem-estar para promoção de igualdade social como um dos objetivos do Estado. A literatura tradicionalmente considera melhor que tal redistribuição seja feita através de um regime de taxação-e-transferência ("tax-and-transfer") ao invés de uma calibração das regras jurídicas de direito material em que o efeito redistributivo esteja embutido na norma jurídica e na relação jurídica, já que existe o risco de distorção do próprio comportamento que as regras jurídicas buscam regular.12 No campo dos contratos, o mercado costuma responder de modo a evitar parcialmente ou totalmente os efeitos redistributivos eventualmente pretendidos pela regulação estatal, inclusive através da negativa de oferta de produtos e serviços. A literatura sugere que uma regra redistributiva de responsabilidade civil pode distorcer incentivos profissionais, mas existem estudos que consideram que a tributação poderia gerar distorções ainda maiores também.13 Por um lado, o argumento econômico se concentra na quantidade de recursos que uma pessoa pode receber como uma medida de sucesso da redistribuição, mas as pessoas também se importam com o procedimento e podem considerar que certas formas de redistribuição seriam humilhantes e espécie de "doação de caridade", como no exemplo do pagamento de alimentos e de pensões, eventualmente associados à falhas, necessidade, saúde, reabilitação e incapacidades, sendo o recebimento de bens como parte do esforço e decorrente de seu direito mais fortemente associado com sucesso.14

Considerações finais

Em seu texto para o Manual de Oxford sobre o Direito Real e a Economia Comportamental, a Professora Daphna Lewinsohn-Zamir elabora uma análise aplicada do behavioral law and economics para à área dos direitos reais. A revisão de literatura indica uma série de trabalhos com base em estudos de psicologia experimental cujos resultados foram extrapolados para a área do direito, seguidos de uma série de pesquisas realizadas com base em experimentos desenhados sob medida para o tratamento de problemas jurídicos. O texto revisita uma série de temas importantes para a análise do direito de propriedade, desde a concepção desenvolvida por constitucionalistas renomados de propriedade como um conjunto de direitos ao invés de uma coisa protegida juridicamente, passando pela teoria da personalidade, pela distinção entre propriedade e posse e pela visão da catedral clássica da law and economics sobre os custos de transação como fator decisivo para os regimes aplicáveis às violações de direitos decorrente de atos ilícitos, até se chegar à complexa análise dos efeitos redistributivos do direito de propriedade.

__________

1 Lewinsohn-Zamir, Daphna, Behavioral Law and Economics of Property Law: Achievements and Challenges, The Oxford Handbook of Behavioral Economics and Law, p. 377.

2 Idem.

3 Idem, p. 379.

4 ACKERMAN, Bruce. Regulating slum housing markets on behalf of the poor: of housing codes, housing subsidies and income redistribution policy. The Yale Law Journal, v. 80, n. 6, p. 1093-1197, 1971.

5 MICHELMAN, Frank. Takings, 1987. Columbia Law Review, v. 88, n. 8, p. 1600-1629, 1988.

6 RADIN, Margaret Jane. Property and personhood. Stanford Law Review, p. 957-1015, 1982.

7 SCHNABLY, Stephen J. Property and Pragmatism: A Critique of Radin's Theory of Property and Personhood. Stan. L. Rev., v. 45, p. 347, 1992.

8 STERN, Stephanie M. Residential Protectionism and the Legal Myth of Home. MICH. L. REV., v. 107, p. 1094, 1100-01, 2009.

9 BELK, Russell W. Possessions and the extended self. Journal of consumer research, v. 15, n. 2, p. 139-168, 1988.

10 CALABRESI, Guido; MELAMED, A. Douglas. Property rules, liability rules, and inalienability: one view of the cathedral. Harvard law review, p. 1089-1128, 1972.

11 KAPLOW, Louis; SHAVELL, Steven. Property rules versus liability rules: An economic analysis. Harv. L. Rev., v. 109, p. 713, 1995.

12 COOTER, Robert et al. Law and economics. 2012, 6th ed, Boston: Pearson Addison Wesley Publishing.

13 JOLLS, Christine. Behavioral economics analysis of redistributive legal rules. Vand. L. Rev., v. 51, p. 1653, 1998.

14 LEWINSOHN-ZAMIR, Daphna. In defense of redistribution through private law. Minn. L. Rev., v. 91, p. 326, 2006.