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O curioso caso da substituição do depoimento testemunhal por declaração escrita

sexta-feira, 27 de maio de 2022

Atualizado às 10:45

Em razão do acúmulo de audiências a serem realizadas por conta da Pandemia da Covid-19, alguns juízos brasileiros estão substituindo a audiência de instrução e julgamento por declarações escritas de testemunhas, pretende-se analisar se tal conduta contraria o devido processo constitucional.

A pandemia do Covid-19 chegou de repente fazendo com que todos precisassem adaptar as vidas a uma realidade de isolamento social. Não foi diferente com o Poder Judiciário, que teve que acomodar atos processuais predominantemente presenciais a um ambiente virtual e isolado.

A possibilidade de realização de atos processuais presenciais no ambiente virtual, como é o caso da sustentação oral nos Tribunais, foi recebida com entusiasmo, seja porque consistia em uma mudança já esperada (positivada nos arts. 236, §3º c/c 937, §4º, CPC) e que, muito provavelmente, não havia sido implementada antes de 2020 pela falta de necessidade ou por simples comodidade; seja porque não implicava em mitigação a princípios processuais. No entanto, esse entusiasmo não se deu de maneira geral, pois alguns atos processuais realizados exclusivamente no ambiente virtual acabaram sofrendo indesejadas alterações em sua essência. É o caso das audiências de instrução e julgamento.

A audiência de instrução e julgamento se presta como um meio de produção de prova oral perante um juiz togado (depoimentos pessoais, depoimento de testemunhas e oitiva de perito - art. 361, CPC). Embora não haja impedimento para a coleta de prova oral no ambiente virtual (previsto no CPC/15 nos arts. 386, § 3º e 453, §1º), tem se constatado, na prática, que a forma como as audiências telepresenciais estão sendo conduzidas, em alguns casos, evidencia violação ao devido processo legal, tendo-se como exemplo disto, a impossibilidade de fiscalização a respeito da necessária incomunicabilidade das testemunhas[1].

De toda sorte, a prova oral não deixou de ser praticada na presença, ainda que virtual, do juiz (art. 453, CPC), havendo possibilidade de inquirição por ambas as partes (autora e ré). Vale dizer que neste contexto, a produção de prova testemunhal, ainda que de certa forma mitigando o comando descrito na parte final do art. 456, CPC, funda-se em uma ponderação de princípios, sopesando-se a respeito do que era mais importante: o andamento dos processos com realização de produção de provas orais em audiência virtual ou a suspensão desses processos por tempo indeterminado (não se sabia ao certo quanto tempo a pandemia iria durar).

Alguns juízos, mesmo diante destes possíveis questionamentos em torno da produção da prova oral, optaram pelo seguimento de suas atividades por intermédio da realização de audiências virtuais, enquanto outros entenderam ser melhor suspendê-las enquanto perdurasse o período de isolamento social.

Hoje, em um momento que já pode ser considerado como pós-pandêmico, tem se observado em alguns juízos, uma tendência - em tese, justificada pela necessidade de atendimento de demandas represadas em torno da produção de provas orais - no sentido de determinar a substituição da prova testemunhal por declarações escritas das testemunhas arroladas.

A maior parte das decisões que determina a substituição da prova oral pela declaração escrita das testemunhas é fundamentada no art. 139, II do Código de Processo Civil, e há diversos equívocos na narrada fundamentação.

Não é novidade que justiça que tarda não é justiça[2], assim como não é novidade que, tão importante quanto a velocidade é a qualidade das decisões. Nas palavras de José Carlos Barbosa Moreira:

 

"Se uma Justiça lenta demais é decerto uma Justiça má, daí não se segue que uma Justiça muito rápida seja necessariamente uma Justiça boa. O que todos devemos querer é que a prestação jurisdicional venha a ser melhor do que é. Se para torná-­la melhor é preciso acelerá-­la, muito bem: não, contudo, a qualquer preço." [3]

 

Dizer que a substituição de prova testemunhal por declarações de testemunhas garante a celeridade processual é uma falácia, saltando aos olhos como questão velha, já decidida inúmeras vezes pelos Tribunais[4]. A declaração escrita de testemunha não substitui a produção de prova oral - e isto deve ser novamente frisado, sob uma nova perspectiva, na qual se evidencia um maior uso das tecnologias à distância[5].

Se, à época em que não eram utilizados mecanismos tecnológicos, a substituição de prova testemunhal por declarações encontrava resistência dos Tribunais, com muito mais razão chegar-se-ia à mesma conclusão nas atuais circunstâncias.  

Não que a declaração de testemunhas não seja válida, mas não é prova testemunhal, consiste em meio de prova atípico (art. 332, CPC) e que, portanto, somente pode ser utilizado se a prova típica não for possível[6]. A declaração de testemunhas, seja produzida sozinha e assinada com firma reconhecida, ou produzida na presença de um notário, equipara-se ao depoimento em inquérito policial, que, devido à ausência de contraditório no momento da produção não é considerado prova oral[7].

Afora as características formais na produção da prova testemunhal (possibilidade de a parte contrária contraditar a testemunha, possibilidade de todos os sujeitos inquirirem a testemunha no mesmo momento etc.) que deixam de ser observadas quando se substitui a produção da prova oral por meras declarações, há elemento pragmático que não pode deixar de ser levado em consideração: as impressões do juiz.

As impressões do julgador são tão importantes que nosso sistema consagra as máximas da experiência como meio de prova, sendo certo que, nos termos do art. 375, CPC, não se aplicam somente na ausência de outros meios de prova, aplicando-se a todo e qualquer momento em que o juiz esteja exercendo sua função de julgador[8].

Nas lições de Humberto Theodoro Junior: "[...] é pelo contato direto ou pessoal com os interessados que o julgador melhor se capacita a perceber os reais interesses em conflito, e, com isso, pode se aproximar da melhor maneira de compô-los, jurídica e eticamente[9]."

As declarações de testemunhas por escrito são meros indícios e não provas. Não podem ser qualificadas como provas orais (pois não seguem o rigor da produção com contraditório simultâneo[10]), nem tampouco provas documentais[11].

A dispensa da realização destas audiências, quando requeridas provas orais no processo, contraria o ideal de humanização do processo, bem como sua oralidade.

O art. 139 do Código de Processo Civil incumbiu o juiz, como gestor do processo, de velar pela duração razoável do processo. Entretanto, a celeridade não pode representar o atropelamento de outras garantias processuais, como a ampla defesa, na qual está inserido o direito a produção de prova.

O termo substituição, tal qual vem sendo empregado nas decisões judiciais que dispensam a realização de audiência de instrução e julgamento, traz a ideia de que uma medida (declarações de testemunhas) pode ocupar o lugar da outra (prova testemunhal). Pelas razões sucintamente expostas, verificou-se que não há identidade qualitativa entre prova testemunhal e as declarações escritas de testemunhas, portanto, não existe substituição de prova testemunhal.

O que pode existir, em todo e qualquer processo, é a juntada de declarações de testemunhas, que, no entanto, não substitui a produção de prova oral. Assim, a audiência de instrução e julgamento somente pode ser dispensada se: (i) as provas documentais ou a confissão da parte contrária forem suficientes para a comprovação dos fatos (art. 443, I); (ii) se os fatos apenas puderem ser provados por prova pericial ou documental (art. 443, II); e (iii) se as partes concordarem com a não produção de prova oral. Do contrário, a dispensa de audiência de instrução e julgamento significará ofensa ao direito à prova, que, vale dizer, está inserido no conceito de acesso à Justiça.

________________________

[1] ALVES, Lucélia de Sena. As audiências de instrução e julgamento por videoconferência: uma análise empírica. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/redp/article/view/56768. Acesso em 12 maio 2022.

[2] Célebre frase de Rui Barbosa no discurso na Faculdade de Direito de São Paulo no ano de 1920."Mas justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta. Porque a dilação ilegal nas mãos do julgador contraria o direito das partes, e, assim, as lesa no patrimônio, honra e liberdade."

[3] MOREIRA, José Carlos Barbosa. O futuro da justiça: alguns mitos. Disponível em:< http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bibli_servicos_produtos/bibli_boletim/bibli_bol_2006/RDC_06_36.pdf>. Acesso em 10 maio 2022.

[4] "Por isso mesmo, está correto o entendimento no sentido de que não se pode obstar a produção oral da prova testemunhal ao argumento de já haver declarações escritas nos autos: "(...) Declaração escrita de testemunha. Dispensa da prova oral. Impossibilidade. Violação ao devido processo legal. I- O indeferimento da prova testemunhal requerida pela parte, que seja essencial para a adequada compreensão dos fatos controvertidos, configura cerceamento de defesa. Precedentes jurisprudenciais. II- A juntada de declaração de testemunha, por escrito, mesmo que autenticada por Tabelião, não tem força idêntica à prova testemunhal produzida em audiência, sob o crivo do contraditório. III- Existindo relevante matéria de fato, torna-se inafastável a realização de prova oral, imprescindível para a plena constatação do direito do postulante. A sua não realização implica violação ao princípio constitucional da ampla defesa e do devido processo legal. IV- Recurso provido." (TRF da 3ª Região, 8ª Turma, AI 00823030820074030000, Des. Federal Newton de Lucca, e-DJF3:27/07/2010)

[5] Muito antes da pandemia, discorrendo sobre o princípio da oralidade como sendo um princípio fundamental das provas cíveis, William Santos Ferreira escreveu com propriedade que: "Em alguns momento o princípio da oralidade será até mais valorizado como está acontecendo com o surgimentos das novas tecnologias e a redução de custos decorrentes da utilização em larga escala (gravadores digitais, webcams, arquivamento em mídia baixo custo, entre outras)[...]" (FERREIRA, William Santos. Princípio fundamentais da prova cível. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 158)

Esse momento chegou, mas curiosamente o uso habitual da tecnologia parece ter afastado a oralidade.

[6] Um dos nortes da atipicidade dos meios de prova é o art. 244, CPC que diz que "quando a lei prescrever determinada forma, sem cominação de nulidade, o juiz considerará valido o ato se, realizado de outro modo, lhe alcançar a finalidade."

No caso da substituição da prova testemunhal pela declaração da testemunha por escrito, não se atinge a finalidade do meio de prova oral. O objetivo da prova testemunhal não é trazer aos autos uma extensão das razões do autor ou do réu por meio de outra pessoa (que é o que ocorre com meras declarações), mas sim permitir que um terceiro (testemunha) uma vez inquirido por todos os sujeitos do processo (pouco importando quem o trouxe aos autos, se é 'testemunha do autor' ou 'testemunha do réu'), possa auxiliar no convencimento do magistrado. 

[7] "[...] 3. Na espécie, o Tribunal de origem adotou a referida providência, ao constatar que, como se trata de ação de improbidade administrativa cujos efeitos da sentença tem natureza sancionatória, é conveniente a ouvida do réu e das testemunhas por ele arroladas até para que não se alegue em momento futuro a nulidade da sentença por cerceamento de defesa (fls. 577). A Corte Regional determinou a colheita da prova oral, para posterior continuidade do julgamento de Apelação.

4. Todavia, ao que se dessume da espécie, a condenação teve lastro apenas em prova emprestada adveniente de Inquérito Policial, consoante narra o próprio aresto recorrido.

5. Em situações tais, dúvida não há de que houve o clássico cerceamento de defesa, conforme reconheceu a Corte Regional, que considerou importante a produção de prova oral primitivamente indeferida na espécie.

6. Inegavelmente, a colheita de prova oral poderá - ou não, é uma questão de contingência filosófica - ser a gênese de outro desfecho processual, isto é, distinto daquele que já se operou com a prolação de sentença condenatória.

7. Diz-se isso não para antecipar qualquer efeito sobre a prova de que se lançará mão na espécie, mas por ser lógico que as informações que uma testemunha pode prestar nos autos são hábeis a ensejar cruciais conclusões ao Julgador."

(AgInt no REsp 1390312/SE, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 22/09/2020, DJe 29/09/2020)

[8] O juiz presente pode, diante de sua experiência, perceber a postura da testemunha, a fim de identificar algum tipo de nervosismo por não estar dizendo a verdade, por exemplo.

[9] THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil: procedimentos especiais. Vol. I. 60ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 64.

[10] "Na prova testemunhal normalmente produzida - i.e., de forma oral -, como se sabe, o contraditório é muito mais eficaz, porque realizado para a produção da prova, no exato momento de sua produção; na forma documentada, ao revés, o contraditório incide sobre a prova, e o máximo que as partes que não produziram o documento podem fazer é interpretá-lo, nunca elaborá-lo ou construir conjuntamente seu conteúdo." (GUEDES, Clarissa Diniz, Tese de doutorado defendida na USP, persuasão racional e limitações probatórias: Enfoque comparativo entre os processos civil e penal, 2013, p. 206).

[11] Diferença entre prova documental e documentada.