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O cabimento das ações possessórias de bens digitais

sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

Atualizado às 06:37

Em meio às eleições de 2022 percebeu-se um número cada vez mais crescente de decisões judiciais determinando a suspensão de perfis em redes sociais pelo Supremo Tribunal Federal. Além da repercussão política gerada por estas decisões, instaurou-se uma discussão na doutrina e na jurisprudência acerca desses bens digitais.

Embora a maioria das decisões tenha sido proferida em sede de juízo criminal, por meio de inquéritos instaurados pela Corte1, abre-se espaço para uma discussão mais ampla, em âmbito cível, referente ao cabimento de ações possessórias para a retomada da posse dos perfis em redes sociais. Os perfis em redes sociais estão enquadrados no conceito de bens digitais.

Este conceito é relativamente novo no Brasil e pode ser definido como o conjunto de informações virtualmente registradas por alguém, com ou sem conteúdo econômico.2

Segundo Bruno Zampier, os bens digitais podem se apresentar sob a forma de: a) um correio eletrônico (todos os serviços de e-mail, tais como Yahoo, Gmail e Hotmail); b) uma rede social (Facebook, LinkedIn, Google+, MySpace, Instagram, Orkut, etc); c) um site de compras ou pagamentos (eBay e PayPal); d) um blog (Blogger ou Wordpress); e) uma plataforma de compartilhamento de fotos ou vídeos (Flickr, Picasa ou Youtube); f) contas para aquisição de músicas, filmes e livros digitais (iTunes, GooglePlay e Pandora); g) contas para jogos online (como o World of Warcraft ou Second Life) ou mesmo em contas para armazenamento de dados (serviços em nuvem, como Dropbox, iCloud ou OneDrive).3

Uma pesquisa realizada pelo blog SignalFire constatou que mais de 50 milhões de pessoas no mundo se consideram influenciadores digitais4 (termo utilizado para definir pessoas que se utilizam das mídias sociais para influenciar pessoas a adquirirem produtos ou serviços).

O Brasil ocupa a segunda posição em número de influenciadores digitais no mundo, contendo mais de 14 milhões, perdendo, apenas, para os Estados Unidos, segundo pesquisa realizada pela plataforma Nielsen.5

Considerada como uma profissão, atualmente, os influenciadores digitais podem faturar muito com seus perfis em redes sociais. A título de exemplificação, a remuneração média por post no perfil do jogador de futebol Neymar é, em média, 4,12 milhões de reais no Instagram.6

Percebe-se, portanto, que a suspensão dos perfis em redes sociais pode causar enormes prejuízos aos usuários, de natureza material, inclusive. Porém, como o tema ainda é novo, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, ainda há pouco estudo sobre o cabimento de mecanismos para a retomada da posse destes bens digitais.

O Código Civil de 2002 adotou a teoria objetiva em relação à posse, dispondo em seu art. 1.196: Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade.

Assim, considera-se possuidor aquele que tenha o exercício de fato da coisa e possua algum dos elementos inerentes à propriedade (faculdade de usar, gozar, dispor ou reivindicar).

As políticas para o uso das mídias sociais incluem, entre outros serviços, oferecer oportunidades personalizadas de criar, conectar, comunicar, descobrir e compartilhar7, ou seja, a utilização da mídia como um bem digital, em que o usuário seria seu possuidor, conforme as condições e termos de uso da empresa.

Neste raciocínio, a empresa fornecedora da mídia social (Instagram, Facebook, WhatsApp, Twitter, YouTube...) é proprietária dos perfis e cede o uso da plataforma em um perfil ao usuário, segundo o contrato de adesão de seus usuários, considerados possuidores.

Tradicionalmente, o ordenamento jurídico brasileiro adotou o posicionamento de que somente poderiam ser objeto da posse os bens corpóreos que tivessem materialidade e que fossem suscetíveis de valor econômico. Assim, não poderiam ser considerados objeto da posse os bens imateriais e intangíveis, como os direitos autorais, patentes e softwares.

Entretanto, a doutrina vem defendendo a extensão da proteção possessória sobre os bens imateriais (incorpóreos e semicorpóreos). Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald argumentam:

Vimos que o Código Civil vigente adota a teoria objetiva de Ihering. Por essa trilha a posse não implica necessariamente na apreensão material do bem, mas na exteriorização da propriedade, ou seja, na adoção pelo possuidor de um comportamento sobre o bem análogo àquele que ordinariamente qualquer proprietário assumiria. O que releva, portanto, não é o aspecto corpóreo, mas o elemento externo e objetivamente perceptível da destinação econômica imprimida ao bem.8

O STJ já reconheceu como objeto de posse o sinal de TV à cabo na esfera criminal:

FURTO DE SINAL DE TV A CABO. TIPICIDADE DA CONDUTA. FORMA DE ENERGIA ENQUADRÁVEL NO TIPO PENAL. I. O sinal de televisão propaga-se através de ondas, o que na definição técnica se enquadra como energia radiante, que é uma forma de energia associada à radiação eletromagnética. II. Ampliação do rol do item 56 da Exposição de Motivos do Código Penal para abranger formas de energia ali não dispostas, considerando a revolução tecnológica a que o mundo vem sendo submetido nas últimas décadas. III. Tipicidade da conduta do furto de sinal de TV a cabo" (REsp. 1123747/RS, 5a T., Rel. Min. Gilson Dipp, Recurso Especial, DJe 1.2.2011).

Portanto, segundo o ordenamento jurídico, são objeto de posse os bens corpóreos e os incorpóreos suscetíveis de apropriação e comercialidade. O objeto da posse não se identificaria pela materialidade do bem, mas sim pela sua delimitação e determinação.9

Em um mundo cada vez mais digital não há razão para não abranger o objeto da posse aos bens imateriais.

Os bens digitais, como perfis em redes sociais, e-mails, nomes de domínio, são bens que, inclusive, podem ser objeto de direito sucessório e possuem valor econômico.10

Inegável, é, portanto, o cabimento de ações possessórias para a retomada do direito de uso dos perfis em redes sociais por meio de ações possessórias, com todos os seus institutos, inclusive possibilidade de concessão liminar da posse nos casos em que se demonstrarem presentes os seus requisitos.

A doutrina e a jurisprudência precisam urgentemente atualizar seus entendimentos a respeito do tema, bem como promover a sistematização dos novos meios de tutela dos bens digitais.

__________

1 Ver Inquérito das Fake News n° 4.781/DF. Trata-se de inquérito instaurado pela Portaria GP Nº 69, de 14 de março de 2019, do Excelentíssimo Senhor Ministro Presidente, nos termos do art. 43 do Regimento Interno desta CORTE. O objeto deste inquérito, conforme despacho de 19 de março de 2019, é a investigação de notícias fraudulentas (fake news), falsas comunicações de crimes, denunciações caluniosas, ameaças e demais infrações revestidas de animus caluniandi, diffamandi ou injuriandi, que atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros. Disponível aqui. Acesso em 21 dez. 2022.

2 Zampier, Bruno. Bens Digitais. Edição do Kindle. 2ª Edição. Indaiatuba: Editora Foco, 2021, p. 74.

3 Zampier, Bruno. Bens Digitais. Edição do Kindle. 2ª Edição. Indaiatuba: Editora Foco, 2021, p. 76.

4 Disponível aqui. Acesso em 21 dez. 2022.

5 Disponível aquiAcesso em 21 dez. 2022.

6 Disponível aqui. Acesso em 21 dez. 2022.

7 Ver os termos de uso do Instagram. Disponível aqui. Acesso em 21 dez. 2022.

8 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: direitos reais. Salvador: Ed. Jus Podivum, 2020, p. 117.

9 STJ, REsp. 769731/PR, 1a T., Rel. Min. Luiz Fux, DJ 31.5.2007.

10 TAVEIRA JR, Fernando. Bens digitais (digital assents) e a sua proteção pelos direitos da personalidade: um estudo sob a perspectiva da dogmática civil brasileira. Porto Alegre: Revolução E-Books, 2018.