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Federalismo à brasileira

Releitura do federalismo brasileiro.

Daniel Barile da Silveira, Rafael de Lazari, Emerson Ademir Borges de Oliveira e Jefferson Aparecido Dias
Rafael de Lazari   I. Assento constitucional A Constituição Federal reconhece aos índios sua organização social, seus costumes, suas línguas, suas crenças, suas tradições, bem como os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. A questão da competência para demarcação (dentre outras discussões laterais) se encontra, atualmente, envolta em espesso véu de incerteza e insegurança jurídica, inclusive com alterações via medida provisória, regulamentação de efeitos, e questionamentos no Supremo Tribunal Federal, razão pela qual o comentário não se debruçará especificamente sobre isso, mas sobre a noção federativa em torno da demarcação (partindo do estudo de caso da reserva Raposa Serra do Sol, talvez a mais emblemática dos tempos recentes). As "terras tradicionalmente habitadas pelos índios", tal como disposto no comando do art. 231, §1º, CF, são aquelas por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos costumes e tradições. Ademais, as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes (art. 231, §2º, CF). Tais terras são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas são imprescritíveis (art. 231, §4º, CF). Para que se faça a remoção de grupos indígenas destas terras deve haver concordância do Congresso Nacional, desde que isso ocorra em caso de catástrofe ou epidemia que coloque em risco sua população, ou por motivo que contrarie os interesses da soberania nacional. Nestes casos, tão logo cessem os motivos, voltarão os índios para suas terras (art. 231, §5º, CF). São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras aqui mencionadas, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé (art. 231, §6º, CF). O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei (art. 231, §3º, CF). Acerca das terras que os índios tradicionalmente ocupam, competirá à União demarcá-las, protegendo e fazendo respeitar todos os seus bens (o procedimento é atualmente dado pelo decreto 1.775/1996). Ademais, uma informação que merece ser sobrelevada é o fato de que as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se à sua posse permanente (e não à sua propriedade, como se costuma afirmar erroneamente), cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nela existentes. É errado, portanto, dizer que os índios são proprietários de suas terras. Tal propriedade, por força do art. 20, XI, da Constituição Federal, é da União. II. Roraima e a Raposa Serra do Sol No Estado de Roraima, desde há muito se fala do conflito entre índios e plantadores de arroz. O governo do Estado, bem como os "arrozeiros" (que se valiam das extensas planícies alagadas da reserva para o cultivo de arroz), desejavam a demarcação da uma reserva indígena em "blocos", de modo a permitir a coexistência entre todos os agentes geograficamente envolvidos, entendimento este que não prevaleceu pelos mais diversos motivos (não se vai entrar, aqui, na discussão histórica entre os diversos grupos atuantes na região, dentre eles não-índios que ocuparam a região de boa-fé antes do início do processo de demarcação, não índios que ocuparam a região de má-fé sabendo do processo de demarcação, índios contrários à retirada dos não-índios, índios favoráveis à retirada dos não-índios, opiniões emitidas pelas Forças Armadas acerca de questões de segurança nacional, sem prejuízo dos agentes governamentais de todas as esferas). Atualmente, a Raposa Serra do Sol possui 1.747.464 hectares, em 17.430 Km2 (7,7% da área do Estado de Roraima), albergando, contudo, apenas 4,9% da população do Estado. Para se ter ideia da imensidão da área, se está falando em um espaço equivalente ao Estado de Sergipe ou de metade da Bélgica. Questão interessante a ser lembrada diz respeito a uma tentativa infrutífera de legislar, feita pelo Supremo Tribunal Federal quando da apreciação da questão na Pet 3.388/RR (Supremo Tribunal Federal, Pleno. Rel.: Min. Carlos Britto. DJ. 19/03/2009). O então Ministro Menezes Direito chegou a propor dezoito condições para se demarcar uma terra indígena, dentre elas se podendo elencar: o usufruto das riquezas do solo, rios e lagos pode ser relativizado sempre que houver interesse da União, na forma de lei complementar; o usufruto dos índios não abrange a garimpagem e a faiscação; o usufruto dos índios não abrange recursos hídricos e potenciais energéticos (dependerá sempre de autorização do Congresso); o usufruto dos índios não se sobrepõe aos interesses da defesa nacional (a instalação de bases militares, a expansão da malha viária e exploração de alternativas energéticas independe de consulta à FUNAI e às comunidades indígenas); a atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal independe de autorização dos índios e da FUNAI; o usufruto dos índios não impede que a União instale redes de comunicação, estradas e equipamentos públicos. III. Sobre o decidido pelo Supremo Tribunal Federal e a questão federativa Ao final, contudo, foram algumas das questões reconhecidas pelo Supremo: "5.2. Todas as 'terras indígenas' são um bem público federal (inciso XI do art. 20 da CF), o que não significa dizer que o ato em si da demarcação extinga ou amesquinhe qualquer unidade federada. Primeiro, porque as unidades federadas pós-Constituição de 1988 já nascem com seu território jungido ao regime constitucional de preexistência dos direitos originários dos índios sobre as terras por eles 'tradicionalmente ocupadas'. Segundo, porque a titularidade de bens não se confunde com o senhorio de um território político. Nenhuma terra indígena se eleva ao patamar de território político, assim como nenhuma etnia ou comunidade indígena se constitui em unidade federada. Cuida-se, cada etnia indígena, de realidade sócio-cultural, e não de natureza político-territorial [...]. 8. A DEMARCAÇÃO COMO COMPETÊNCIA DO PODER EXECUTIVO DA UNIÃO. Somente à União, por atos situados na esfera de atuação do Poder Executivo, compete instaurar, sequenciar e concluir formalmente o processo demarcatório das terras indígenas, tanto quanto efetivá-lo materialmente, nada impedindo que o Presidente da República venha a consultar o Conselho de Defesa Nacional (inciso III do §1º do art. 91 da CF), especialmente se as terras indígenas a demarcar coincidirem com faixa de fronteira. As competências deferidas ao Congresso Nacional, com efeito concreto ou sem densidade normativa, exaurem-se nos fazeres a que se referem o inciso XVI do art. 49 e o §5º do art. 231, ambos da Constituição Federal [...].13. O MODELO PECULIARMENTE CONTÍNUO DE DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS. O modelo de demarcação das terras indígenas é orientado pela ideia de continuidade. Demarcação por fronteiras vivas ou abertas em seu interior, para que se forme um perfil coletivo e se afirme a auto-suficiência econômica de toda uma comunidade usufrutuária. Modelo bem mais serviente da ideia cultural e econômica de abertura de horizontes do que de fechamento em 'bolsões', 'ilhas', 'blocos' ou 'clusters', a evitar que se dizime o espírito pela eliminação progressiva dos elementos de uma dada cultura (etnocídio) [...].14. A CONCILIAÇÃO ENTRE TERRAS INDÍGENAS E A VISITA DE NÃO-ÍNDIOS, TANTO QUANTO COM A ABERTURA DE VIAS DE COMUNICAÇÃO E A MONTAGEM DE BASES FÍSICAS PARA A PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS OU DE RELEVÂNCIA PÚBLICA. A exclusividade de usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nas terras indígenas é conciliável com a eventual presença de não-índios, bem assim com a instalação de equipamentos públicos, a abertura de estradas e outras vias de comunicação, a montagem ou construção de bases físicas para a prestação de serviços públicos ou de relevância pública, desde que tudo se processe sob a liderança institucional da União, controle do Ministério Público e atuação coadjuvante de entidades tanto da Administração Federal quanto representativas dos próprios indígenas. O que já impede os próprios índios e suas comunidades, por exemplo, de interditar ou bloquear estradas, cobrar pedágio pelo uso delas e inibir o regular funcionamento das repartições públicas [...].17. COMPATIBILIDADE ENTRE FAIXA DE FRONTEIRA E TERRAS INDÍGENAS. Há compatibilidade entre o usufruto de terras indígenas e faixa de fronteira. Longe de se pôr como um ponto de fragilidade estrutural das faixas de fronteira, a permanente alocação indígena nesses estratégicos espaços em muito facilita e até obriga que as instituições de Estado (Forças Armadas e Polícia Federal, principalmente) se façam também presentes com seus postos de vigilância, equipamentos, batalhões, companhias e agentes. Sem precisar de licença de quem quer que seja para fazê-lo. Mecanismos, esses, a serem aproveitados como oportunidade ímpar para conscientizar ainda mais os nossos indígenas, instruí-los (a partir dos conscritos), alertá-los contra a influência eventualmente malsã de certas organizações não-governamentais estrangeiras, mobilizá-los em defesa da soberania nacional e reforçar neles o inato sentimento de brasilidade. Missão favorecida pelo fato de serem os nossos índios as primeiras pessoas a revelar devoção pelo nosso País (eles, os índios, que em toda nossa história contribuíram decisivamente para a defesa e integridade do território nacional) e até hoje dar mostras de conhecerem o seu interior e as suas bordas mais que ninguém". Nada obstante se diga que a autonomia federativa deva ser respeitada, e que exceções são perfeitamente invocáveis em caso de intervenção, também a demarcação de terras indígenas representa, segundo a atual jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, um mecanismo de ordem limitadora. Toma-se, contudo, o entendimento pela pobreza de detalhes técnicos e incapacidade de diálogos quando a União exige seu bem (art. 20, XI, CF), almeja exercer sua competência (o que é plenamente justificável), mas pouco importam os interesses sociais econômicos da área em que o bem está inserido (o que é absolutamente injustificável). Se hoje se fala em direito de propriedade e em inerente função social (art. 5º, XXII e XXIII, CF), também à União deve ser aplicada tal lógica quando seu exercício inquestionável colocar em risco a existência de interesses outros, como os federativos. As constantes interferências no Estado de Roraima na última década certamente contribuem para o caos econômico-social que a aludida unidade federativa se encontra: territórios fragmentados por conta de exercício do direito de propriedade da União (sem perspectiva de melhora); população com interesses divididos; entrada maciça de venezuelanos fugidos da ditadura comunista de Maduro (incapacidade do governo brasileiro em lidar com a questão, bem como acudir sua unidade federativa); dentre outros. Não é de se estranhar que Roraima tenha terminado 2018 sob intervenção federal (decreto 9.602). E o pior: em boa parte, por falta de uma política uniforme da própria União.
quarta-feira, 26 de junho de 2019

Os ministérios do Poder Executivo

Jefferson Aparecido Dias No âmbito Federal, a Administração Pública Direta inclui, além da presidência da República e os órgãos a ela vinculados, também os Ministérios, cujos nomeados ocupam cargo de confiança do presidente da República, atuando como seus auxiliares e tendo como atribuições: "I - exercer a orientação, coordenação e supervisão dos órgãos e entidades da administração federal na área de sua competência e referendar os atos e decretos assinados pelo Presidente da República; II - expedir instruções para a execução das leis, decretos e regulamentos; III - apresentar ao Presidente da República relatório anual de sua gestão no Ministério; IV - praticar os atos pertinentes às atribuições que lhe forem outorgadas ou delegadas pelo Presidente da República" (art. 87, parágrafo único, da Constituição). A partir dessa afirmação seria possível concluir que a nomeação de um ministro de Estado constitui ato discricionário do chefe do Executivo que, nessa condição, poderia optar pela livre nomeação de qualquer brasileiro, maior de vinte e um anos, no exercício dos direitos políticos (art. 87, da Constituição), de acordo com a sua conveniência e oportunidade. O mesmo ocorreria quanto à sua exoneração. Apesar dessa aparente regra, o Poder Judiciário tem proferido decisões limitando a discricionariedade de tais nomeações. Isso ocorreu no caso da nomeação do ex-presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, para o cargo de ministro da Casa Civil, pela então presidente Dilma Rousseff, por meio de ato suspenso no Supremo Tribunal Federal, por decisão do ministro Gilmar Mendes. A decisão liminar acabou não sendo apreciada a tempo e o caso foi arquivado pelo Plenário do STF1. A decisão liminar que impediu a posse do ex-presidente entendeu que a sua nomeação ofendia o princípio da moralidade administrativa, uma vez que estaria sendo realizada apenas para conceder-lhe foro privilegiado e impedir que ele fosse processado em Primeira Instância. Decisão semelhante ocorreu no caso da deputada Federal Cristiane Brasil, cuja nomeação para o cargo de ministra do Trabalho, pelo presidente Michel Temer, foi suspensa pela ministra Cármen Lúcia, também do STF2. Mais uma vez o fundamento foi a violação ao princípio da moralidade administrativa, diante das condenações que a deputada Federal possuía na Justiça Trabalhista. Entendeu-se que era uma contradição nomear para o Ministério do Trabalho alguém condenado por descumprir leis trabalhistas. No mesmo sentido o STF decidiu em relação à Medida Provisória que deu status de ministro de Estado para a Secretaria-Geral da presidência da República, na época ocupada por Moreira Franco, a qual foi considerada inconstitucional3. Além de aspectos formais, mais uma vez a violação do princípio da moralidade administrativa foi suscitada. Diante de tais decisões, a nomeação de um ministro de Estado, apesar de continuar a ser considerada um ato discricionário, passou a se submeter a novos limites, além da conveniência e oportunidade do presidente da República, pois passou-se a exigir, também, o respeito aos princípios expressos (art. 37, caput, da Constituição) e implícitos que devem nortear a atuação da Administração Pública. Além dessas limitações impostas pelo Poder Judiciário, também tramita no Congresso Nacional a Proposta de Emenda à Constituição 284/20134, a qual pretende ampliar a aplicação da Lei da Ficha Limpa, impedindo a nomeação para emprego ou para cargo efetivo ou em comissão de pessoa que esteja em situação de inelegibilidade. Assim, não poderiam ser nomeados para ministros do Estado pessoas que, por terem sofrido condenações, estejam inelegíveis, o que parece bastante razoável, já que tais pessoas não podem se candidatar para cargos eletivos. Todas essas medidas pretendem dar maior confiabilidade nas nomeações para ministros de Estado, as quais, como se viu, têm sido muito questionadas e, por consequência, suspensas pelo Poder Judiciário. Apesar de essa cruzada em nome da moralidade administrativa, o STF decidiu que a súmula vinculante 13, que impede o nepotismo, não se aplica para as nomeações para cargos políticos, os quais inclui, além dos ministros de Estado, também os de Secretários Estaduais e Municipais5. É certo que tal restrição à aplicação da súmula vinculante encontra eco em várias decisões judiciais e textos doutrinários, mas parece-me que a razão está com aqueles que defendem que o nepotismo deve ser impedido em todos os níveis, inclusive nos cargos políticos. Na verdade, o que se espera dos eleitos para cargos políticos, inclusive do Poder Executivo, e de todos os seus auxiliares é o respeito à Constituição e a correta aplicação do ordenamento jurídico o que começa, certamente, desde a sua posse, que, portanto, não pode estar eivada ab initio de qualquer vício. __________ 1 OLIVEIRA, Mariana. STF arquiva pedido para reconhecer nomeação de Lula como ministro de Dilma: Julgamento aconteceu em plenário virtual. Em 2016, Lula foi nomeado ministro da Casa Civil, mas Gilmar Mendes suspendeu ato de Dilma; petista recorreu. Para STF, pedido ficou 'prejudicado'. Data: 29/3/2019. Acesso em: 25/06/2019. 2 G1 (Brasil). Cármen Lúcia suspende a posse de Cristiane Brasil no Ministério do Trabalho: Decisão da presidente do STF foi divulgada na madrugada desta segunda (22). Posse da deputada, filha de Roberto Jefferson, estava marcada para as 9h no Palácio do Planalto, mas foi cancelada. Data: 22/1/2018. Acesso em: 25/06/2019. 3 PUPO, Amanda. STF: MP de Temer que deu status de ministro a Moreira Franco é inconstitucional. Data: 27/3/2019. Acesso em 25/6/2019. 4 BRASIL. Câmara dos Deputados. PEC 284/2013. Acesso em: 25/6/2019. 5 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Rcl 22339 AgR/SP. AG.REG. NA RECLAMAÇÃO. Relator(a): Min. EDSON FACHIN. Relator(a) p/ Acórdão: Min. GILMAR MENDES. Julgamento: 04/09/2018. Órgão Julgador: Segunda Turma. Publicação: DJe-055. Divulg. 20/3/2019. Public. 21/3/2019. Acesso em: 25/6/2019.  
quarta-feira, 19 de junho de 2019

A estruturação do Ministério Público

Jefferson Aparecido Dias A Constituição Federal de 1988 dotou o Ministério Público1 brasileiro de conformação arrojada e independente, conferindo-lhe o caráter de instituição permanente, o status de função essencial à Justiça e a incumbência de defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 129 da CF), munindo-lhe, para tanto, de aparato considerável de instrumentos vocacionados à tutela do cidadão e de interesses públicos primários. Com esses contornos, o Ministério Público brasileiro despontou como instituição sui generis no cenário mundial, desempenhando desde funções clássicas do Ministério Público, tal como a persecução criminal, a funções geralmente atribuídas a outras instituições, como as de controle da Administração Pública e tutela dos direitos do cidadão, desempenhadas em outros países, em regra, por autoridades derivadas do Poder Legislativo (Ombudsman, na Suécia; Comissário Parlamentar para a Administração, na Inglaterra; Mediateur, na França; Provedor de Justiça, em Portugal; Defensor de Pueblo, na Espanha, etc.)2. De acordo com o art. 128 da Constituição Federal, o Ministério Público abrange o Ministério Público da União e o Ministério Público dos Estados, os quais acabaram por se organizar nas formas que serão demonstradas a seguir. 1) Do Ministério Público da União O Ministério Público da União compreende o Ministério Público Federal, Ministério Público do Trabalho, Ministério Público Militar, Ministério Público do Distrito Federal e Territórios e é organizado pela Lei Complementar 75, de 20 de maio de 1993. Quanto a ele, importante destacar que a Constituição Federal, em seu art. 128, § 1°, enuncia que o chefe do Ministério Público da União é o Procurador-Geral da República, o qual é nomeado pelo Presidente da República dentre integrantes da carreira, maiores de 35 (trinta e cinco) anos, após a aprovação de seu nome pela maioria absoluta dos membros do Senado Federal, para mandato de 02 (dois) anos, sendo permitida a recondução3. Na sequência serão apresentadas as características de cada um dos ramos do MPU. 1.1) Do Ministério Público Federal (MPF) O Ministério Público Federal, conforme estabelecido no art. 37 da Lei Complementar nº 75/1993, exerce suas funções nas causas de competência do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e dos Juízes Federais, e dos Tribunais e Juízes Eleitorais e ainda nas causas de competência de quaisquer juízes e tribunais, para amparo dos direitos e interesses dos índios e das populações indígenas, do meio ambiente, de bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, integrantes do patrimônio nacional. Dispõe ainda a referida lei que a chefia do Ministério Público Federal caberá ao Procurador-Geral da República, e este designará, dentre os Subprocuradores-Gerais da República e mediante prévia aprovação do nome pelo Conselho Superior, o Procurador Federal dos Direitos do Cidadão, para exercer as funções do ofício pelo prazo de 02 (dois) anos, permitida uma recondução, procedida de nova decisão do Conselho. Para exercer suas funções institucionais previstas na Constituição Federal, bem como na supracitada Lei Complementar, o Ministério Público Federal poderá atuar judicialmente, seja como fiscal da ordem jurídica ou como parte, na área cível, defendendo interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, por meio de Ação Civil Pública, Ação Civil Coletiva e Ação de Improbidade Administrativa, e na área criminal, promovendo a Ação Penal Pública, de acordo com a Competência da Justiça Federal (art. 109 da CF), e ainda realizando o controle externo da atividade policial, garantindo o aprimoramento da persecução penal. A atuação ainda poderá se dar extrajudicialmente, por meio de medidas administrativas, como recomendações, inquérito civil público, audiências públicas e termo de ajustamento de conduta (TAC). Ainda no âmbito do Ministério Público Federal, existem os Núcleos de Apoio Operacional (NAOP) e as Câmara de Coordenação e Revisão (CCR), órgãos setoriais de coordenação, de integração e de revisão do exercício funcional dos membros da instituição, sendo organizadas por função ou por matéria e suas competências encontram-se elencadas no art. 62 da Lei Complementar 75/1993. 1.1.1) Das Câmaras de Coordenação e Revisão (CCR) Cada CCR é composta por 03 (três) membros do Ministério Público Federal, sendo um indicado pelo Procurador-Geral da República e 02 (dois) pelo Conselho Superior do Ministério Público Federal, com seus suplentes, para mandato de 02 (dois) anos. Atualmente, são 07 (sete) Câmaras as existentes, cada uma delas com sua respectiva área temática, sendo assim organizadas4: 1ª Câmara - Direitos Sociais e Fiscalização de Atos Administrativos em Geral Educação, saúde, moradia, mobilidade urbana, previdência e assistência social, conflitos fundiários e fiscalização dos atos administrativos em geral. 2ª Câmara - Criminal Matéria criminal, exceto corrupção, controle externo da atividade policial e sistema prisional. 3ª Câmara - Consumidor e Ordem Econômica Defesa do consumidor, da concorrência e da regulação da atividade econômica concedida ou delegada, políticas públicas, assistenciais ou promotoras, para o desenvolvimento urbano, industrial, agrícola e fundiário. 4ª Câmara - Meio Ambiente e Patrimônio Cultural Flora, fauna, áreas de preservação, gestão ambiental, reservas legais, zona costeira, mineração, transgênicos, recursos hídricos e preservação do patrimônio cultural, entre outros. 5ª Câmara - Combate à corrupção Atos de improbidade administrativa, crimes praticados por funcionário público ou particular contra a Administração em geral, inclusive contra a administração pública estrangeira, crimes de responsabilidade de prefeitos e vereadores. 6ª Câmara - Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais Grupos que têm em comum um modo de vida tradicional distinto da sociedade nacional majoritária, como, indígenas, quilombolas, comunidades extrativistas, comunidades ribeirinhas e ciganos. 7ª Câmara - Controle Externo da Atividade Policial e Sistema Prisional Regularidade, adequação e eficiência da atividade policial, aprimoramento da persecução penal, preservação dos direitos e garantias constitucionais dos sancionados nas execuções penais. Um dos principais papéis das Câmaras de Coordenação é realizar a coordenação de atuação dos membros do Ministério Público Federal, impedindo que ela seja contraditória e, mais que isso, que a unidade seja prestigiada, sem se descuidar, é evidente da indivisibilidade e da independência funcional. Além disso, cabe às Câmaras indicar quais são os casos prioritários nos quais deverá necessariamente ocorrer a intervenção ou atuação de seus membros. Na verdade, existe uma tendência nesse sentido, a qual foi perfeitamente apreendida por Alexandre Gavronski5: ... há uma tendência institucional a estimular que as instâncias próprias dos Ministérios Públicos elenquem hipóteses e demandas nas quais se reconhece, a priori, o cabimento de intervenção em razão da presença de interesse social ou individual indisponível, sem prejuízo da análise casuística do membro ao qual o processo é distribuído; Essa possibilidade de indicação das demandas prioritárias e, ainda, de intervenção obrigatória do Ministério Público ganha importância ímpar se prevalecer o entendimento de que a intervenção prevista no CPC é facultativa e não obrigatória. 1.1.2) Da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão À Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão incumbe precipuamente o múnus de ombudsman em âmbito nacional, incumbindo-lhe a função de "zelar pelo efetivo respeito dos poderes públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias à sua garantia", conforme art. 129, inciso II, da Constituição Federal de 1988. No exercício desse múnus, cabe à Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão a coordenação e revisão da atuação dos Procuradores Regionais dos Direitos do Cidadão, os quais desempenham a função de ombudsman em âmbito estadual, e dos Procuradores dos Direitos do Cidadão, atuantes no âmbito das localidades em que lotados6. Criou-se em 2012, por meio da Portaria PGR 653, os Núcleos de Apoio Operacional (NAOP) à Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC). Uma das atribuições do NAOP é acompanhar as políticas públicas na seara dos direitos humanos, bem como manter contato e intercâmbio com entidades públicas e privadas que se dediquem direta ou indiretamente à promoção, proteção, defesa e ao estudo dos direitos, bens, valores ou interesses na área dos direitos humanos e cidadania. 1.2. Do Ministério Público do Trabalho (MPT) O Ministério Público do Trabalho é o ramo do MPU que atua pela proteção aos direitos fundamentais e sociais do cidadão, principalmente diante de ilegalidades praticadas na seara trabalhista, tendo assim, como uma de suas atribuições, fiscalizar o cumprimento da legislação trabalhista quando houver interesse público, procurando regularizar e mediar as relações entre empregados e empregadores. Suas competências encontram-se preceituadas no art. 83 da Lei Complementar 75/1993 e suas funções institucionais são as mesmas do âmbito do Ministério Público Federal. A chefia do MPT foi incumbida ao Procurador-Geral do Trabalho, sendo nomeado pelo Procurador-Geral da República, dentre integrantes da instituição, com mais de trinta e cinco anos de idade e de cinco anos na carreira, integrante de lista tríplice escolhida mediante voto plurinominal, facultativo e secreto, pelo Colégio de Procuradores para um mandato de dois anos, permitida uma recondução, observado o mesmo processo. Caso não haja número suficiente de candidatos com mais de cinco anos na carreira, poderá concorrer à lista tríplice quem contar com mais de dois anos na carreira. O MPT, em vista à efetividade de suas atribuições, dispõe de uma estrutura composta de diversos órgãos responsáveis pelo desenvolvimento de atividades administrativas e de atividades fins. São eles: Procurador-Geral, Procuradorias Regionais, Conselho Superior, Câmara de Coordenação e Revisão, Corregedoria Geral, Ouvidoria e o Colégio de Procuradores. Ainda no âmbito do MPT, diante das irregularidades mais graves e recorrentes enfrentadas pelos procuradores, criaram-se 08 (oito) coordenadorias temáticas, as quais promovem discussões sobre suas respectivas áreas, definem estratégias e articulam planos nacionais de ações. São elas: Administração Pública, Criança e Adolescente, Fraudes Trabalhistas, Liberdade Sindical, Meio Ambiente do Trabalho, Trabalho Portuário e Aquaviário, Trabalho Escravo e Promoção da Igualdade. 1.3. Do Ministério Público Militar (MPM) O Ministério Público Militar atua na apuração dos crimes militares, no controle externo da atividade policial judiciária militar e na instauração do inquérito civil, visando a proteção dos direitos constitucionais no âmbito da administração militar. Suas competências encontram-se no art. 116 da Lei Complementar nº 75/1993, devendo promover, privativamente, a ação penal pública; promover a declaração de indignidade ou de incompatibilidade com o oficialato; manifestar-se em qualquer fase do processo, acolhendo solicitação do juiz ou por sua iniciativa, quando entender existente interesse público que justifique a intervenção; requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial-militar, podendo acompanhá-los e apresentar provas e; exercer o controle externo da atividade da polícia judiciária militar. Assim como o MPT, o MPM possui 08 (oito) órgãos para sua maior efetividade, quais sejam: Procurador-Geral de Justiça Militar, Colégio de Procuradores de Justiça Militar; Conselho Superior do Ministério Público Militar, Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Militar, Corregedoria do Ministério Público Militar, Subprocuradores-Gerais de Justiça Militar, Procuradores de Justiça Militar e Promotores de Justiça Militar. O chefe do Ministério Público Militar é o Procurador-Geral de Justiça Militar, nomeado pelo Procurador-Geral da República, dentre integrantes da Instituição, com mais de trinta e cinco anos de idade e de cinco anos na carreira, escolhidos em lista tríplice mediante voto plurinominal, facultativo e secreto, pelo Colégio de Procuradores, para um mandato de dois anos, permitida uma recondução, observado o mesmo processo. Caso não haja número suficiente de candidatos com mais de cinco anos na carreira, poderá concorrer à lista tríplice quem contar com mais de dois anos na carreira. 1.4. Do Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios (MPDFT) O Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios é o responsável por fiscalizar as leis e defender os interesses da sociedade do Distrito Federal e dos Territórios, exercendo suas funções nas causas de competência do Tribunal de Justiça e dos Juízes do Distrito Federal e Territórios. Suas atribuições encontram-se preceituadas nos arts. 151 e 152 da Lei Complementar nº 75/1993. O chefe do MPDFT é o Procurador-Geral de Justiça, sendo nomeado pelo Presidente da República dentre integrantes da lista tríplice elaborada pelo Colégio de Procuradores e Promotores de Justiça. 2) Do Ministério Público dos Estados (MPE) O Ministério Público brasileiro tem como um de seus ramos o Ministério Público Estadual (MPE), razão pela qual cada um dos 26 Estados da Federação possui um Ministério Público autônomo com lei orgânica própria. A Constituição, em seu art. 128, § 3°, enuncia que os Ministérios Públicos dos Estados e do Distrito Federal têm por chefe, cada um deles, um Procurador-Geral de Justiça que é escolhido, para um mandato de dois anos, sendo permitida uma recondução, pelo Chefe do Poder Executivo e a partir de lista tríplice formada por integrantes da carreira do Ministério Público. 3) Do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas A Constituição Federal de 1988 menciona, ainda, em seu art. 73, § 2º, o Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União, ao prever que seus membros comporão lista tríplice, por indicação do Tribunal de Contas da União, para subsidiar a escolha de um terço dos Ministros desse Tribunal pelo Presidente da República. A partir do art. 128 dessa Carta Política conclui-se que o Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União não compõe a estrutura do Ministério Público brasileiro, inobstante sejam conferidas aos seus membros os mesmos direitos e vedações aplicadas aos membros do Ministério Público, nos termos do art. 130 da Constituição Federal de 1988. Na realidade, tal órgão compõe a estrutura do Tribunal de Contas da União e, de modo simétrico, também os Ministérios Públicos junto ao Tribunal de Contas dos Estados compõem a estrutura das respectivas Cortes de Contas7. 4) Do Conselho Nacional do Ministério Público Por fim, destaca-se a criação do Conselho Nacional do Ministério Público pela Emenda Constitucional nº 45/04, com o fim precípuo de realizar o controle da atuação administrativa e financeira do Ministério Público e do cumprimento dos deveres funcionais dos seus membros. Esse órgão encontra seus contornos no art. 130-A da Constituição, inserido pela referida Emenda Constitucional, tendo caráter de órgão constitucional autônomo de controle externo do Ministério Público8, bem como a edição de normas que visam nortear a atuação dos seus membros. Assim, como se demonstrou no presente texto, fica claro que o papel do Ministério Público tem ganho, a cada dia, maior importância, sendo imprescindível, contudo, que se fixe a atuação do Ministério Público na atuação resolutiva na solução dos conflitos de interesse. __________ 1 Vide: DIAS, Jefferson Aparecido. Ministério Público In. Enciclopédia Jurídica da PUCSP, tomo III (recurso eletrônico) : processo civil / coords. Cassio Scarpinella Bueno, Olavo de Oliveira Neto - São Paulo : Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017 2 MARTINS JÚNIOR, Wallace Paiva. Controle da Administração Pública pelo Ministério Público (Ministério Público Defensor do povo). São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2002, p. 79-93. 3 A Associação Nacional do Procuradores da República (ANPR), a cada novo ciclo, realizada uma votação entre os membros do Ministério Público Federal para elaborar uma lista tríplice que é enviada ao Presidente da República para que ele realize a escolha do Procurador Geral da República. A consulta para o próximo mandato foi realizada no dia 18 de junho de 2019. ANPR. Com participação de 82% da categoria, membros do MPF elegem lista tríplice para PGR. Data: 18/06/2019. Acesso em: 18/6/2019. 4 BRASIL. Ministério Público Federal. Atuação temática. Data: s.d. Acesso em: 18/06/2019. 5 GAVRONSKI, Alexandre Amaral. A intervenção do Ministério Público no novo Código de Processo Civil. In RODRIGUES, Geisa de Assis; ANJOS FILHO, Robério Nunes dos (org). Reflexões sobre o novo Código de Processo Civil. Brasília : ESMPU, 2016, p. 22 6 GAVRONSKI, Alexandre Amaral; MENDONÇA, Andrey Borges. Manual do Procurador da República, teoria e prática. 2ª ed., rev., atual. e ampl. Salvador: Editora Juspodivm, 2015, p. 61-62. 7 GAVRONSKI, Alexandre Amaral; MENDONÇA, Andrey Borges. Manual do Procurador da República, teoria e prática. 2ª ed., rev., atual. e ampl. Salvador: Editora Juspodivm, 2015, p. 117-118. 8 GAVRONSKI, Alexandre Amaral; MENDONÇA, Andrey Borges. Manual do Procurador da República, teoria e prática. 2ª ed., rev., atual. e ampl. Salvador: Editora Juspodivm, 2015, p. 118.  
quarta-feira, 12 de junho de 2019

As votações nas Casas do Legislativo

Jefferson Aparecido Dias A máxima do "one man, one vote" (um homem, um voto), que teria sido usada pela primeira vez pelo sindicalista inglês George Howell, em 1880, para defender a adoção de um Estado democrático no qual todos pudessem ter o direito ao voto, também é aplicável nas deliberações das Casas Legislativas. Assim, seja no Congresso Nacional (Câmara dos Deputados e Senado Federal), seja nas Assembleias Legislativas e nas Câmaras dos Vereadores, a cada parlamentar é atribuído o direito ao voto de forma igualitária. As diferenças que se apresentam, no processo legislativo, diz respeito à sequência e quantidade de votações necessárias para a aprovação de determinada matéria, bem como se o voto proferido será secreto ou público. Vamos analisar o processo legislativo no âmbito do Congresso Nacional, no qual o trâmite e as votações dependerão da modalidade do tipo de proposta, ou seja, se está diante de uma lei ordinária, lei complementar, medida provisória ou emenda à Constituição. No caso de um projeto de lei ordinária, que em regra começa a sua tramitação pela Câmara dos Deputados, após passar por até 3 (três) comissões permanentes (ou uma comissão especial) que realizará a análise do mérito do seu conteúdo, o projeto é encaminhado para a Comissão de Finanças e Tributação (CFT), se tem impacto financeiro, e para a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), as quais realizarão a análise de admissibilidade do projeto. Se aprovadas por todas as Comissões, o projeto de lei ordinária sequer é enviado para o Plenário, sendo remetido direto para o Senado Federal ou, se for o caso, para a sanção presidencial. Se o projeto não for aprovado por todas as Comissões, vai ao Plenário. Importante destacar que, se a análise do projeto iniciou-se na Câmara dos Deputados, ele também precisará tramitar e ser aprovada no Senado Federal antes de ir para a sanção presidencial ou retornar para nova análise da Câmara dos Deputados, caso seja alterado pelo Senado Federal. Se o processo legislativo se iniciou no Senado, posteriormente será submetido à apreciação da Câmara. Já no caso das propostas de emenda à Constituição, o processo legislativo se inicia na CCJC da Câmara, que faz a análise de admissibilidade e, se aprovada, é remetida para uma Comissão Especial, que analisará o mérito da proposta. Antes de ser remetida para o Senado Federal, a proposta de emenda à Constituição precisa ser aprovada em dois turnos de votação no Plenário da Câmara e obter a aprovação de 3/5 dos Deputados Federais, ou seja, 308 votos favoráveis. Se aprovada no Senado Federal, a proposta de emenda à Constituição é promulgada pelo presidente do Congresso Nacional. Um quadro esquemático bastante didático do processo legislativo pode ser observado no site da Câmara dos Deputados1. Apesar de parecer bastante longo, a existência de regras de tramitação específicas para cada modalidade de ato normativo tem como objetivo garantir que o seu conteúdo, antes de ser aprovado, não viole os preceitos de atos normativos superiores e, tampouco, preceitos constitucionais. Trata-se, portanto, de controle prévio de legalidade e de constitucionalidade, impossível de ser dispensado, apesar de passível de ser agilizado, diante de interesses prementes da sociedade. Um exemplo disso é a atual proposta de emenda à Constituição que tem como objetivo promover a Reforma da Previdência que, para alguns, deveria ter seu trâmite agilizado a fim de garantir maior tranquilidade ao mercado e permitir que o país inicie a superação da crise econômica que o assola há alguns anos. Claro que essa possibilidade de agilização ou não do trâmite de um projeto de lei ou proposta de emenda à Constituição não possui adesão unânime, existindo certa divergência quanto à sua adoção ou não. Esta, porém, não é maior polêmica que envolve o processo legislativo, a qual está reservada à possibilidade ou não de votações secretas no âmbito do Congresso Nacional. No caso da Câmara dos Deputados, o seu Regimento Interno (Resolução nº 17, de 19892) prevê que o escrutínio será secreto nos seguintes casos (art. 188): "I - deliberação, durante o estado de sítio, sobre a suspensão de imunidades de Deputado, nas condições previstas no § 8º do art. 53 da Constituição Federal; II - por decisão do Plenário, a requerimento de um décimo dos membros da Casa ou de Líderes que representem este número, formulado antes de iniciada a Ordem do Dia; III - para eleição do Presidente e demais membros da Mesa Diretora, do Presidente e Vice-Presidentes de Comissões Permanentes e Temporárias, dos membros da Câmara que irão compor a Comissão Representativa do Congresso Nacional e dos 2 (dois) cidadãos que irão integrar o Conselho da República e nas demais eleições; IV - no caso de pronunciamento sobre a perda de mandato de Deputado ou suspensão das imunidades constitucionais dos membros da Casa durante o estado de sítio". O mesmo ocorre com o Regimento Interno do Senado Federal (Resolução 93, de 19703), que também prevê algumas situações nas quais a votação deverá ser secreta, dentre elas, a eleição dos membros da Mesa Diretora (art. 60). Esse preceito, inclusive, gerou intenso debate no início da atual legislatura, em polêmica envolvendo a eleição do Presidente do Senado Federal cuja solução teve que ser intermediada pelo Supremo Tribunal Federal4. Tais preceitos que preveem a adoção da votação secreta, a despeito de serem exceções, já que a regra é a votação aberta (pública), deveriam ser totalmente suprimidos, com a previsão de votação aberta para a deliberação de todas as matérias, em respeito ao princípio da publicidade, que impõe que os cidadãos tenham pleno conhecimento de como votam os parlamentares por eles eleitos. Afinal, como leciona J. J. Gomes Canotilho, "a justificação do princípio da publicidade é simples: o princípio do Estado de direito democrático exige o conhecimento, por parte dos cidadãos dos actos normativos, e proíbe os actos normativos secretos contra os quais não se podem defender. O conhecimento dos actos, por parte dos cidadãos, faz-se, precisamente, através da publicidade"5. E, no mais, como sentencia Augustín Gordillo, citando Brandeis: "La luz del sol ... es el mejor de los desinfectantes; la luz eléctrica el mejor policía"6. __________ 1 Entenda o processo legislativo. Acesso em: 11/6/2019. 2 Brasil. Câmara dos Deputados. Resolução 17, de 1989. Acesso em: 11/6/2019. 3 Brasil. Senado Federal. Resolução 93, de 1970. Acesso em: 11/6/2019. 4 Toffoli anula decisão sobre votação aberta e determina voto secreto na eleição do Senado. G1. Data: 2/2/2019. 5 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 2000, p. 870. 6 GORDILLO, Augustín A. La administración paralela: el paralelismo jurídico-administrativo. Madrid: Civitas, 1997, p. 54.  
Jefferson Aparecido Dias No início de cada nova legislatura, ressurge a polêmica envolvendo a remuneração dos nossos parlamentares e demais agentes políticos, sendo renovadas as denúncias de "super salários", muito superiores aos praticados na iniciativa privada. Afinal de contas, quanto ganha um agente político no Brasil? Inicialmente, antes de continuar com nossa análise, importante destacar que, para o presente texto, serão considerados agentes políticos, a partir de um "conceito amplo", "os componentes do Governo nos seus primeiros escalões que atuam com independência funcional, com funções delineadas na Constituição, que não se encontram subordinados aos demais agentes, pois ocupam os órgãos de cúpula ("órgãos independentes"). Inserem-se nesse conceito os chefes do Executivo (Presidente da República, Governadores e Prefeitos), os membros das Casas Legislativas (Senadores, Deputados e vereadores), membros do Poder Judiciário (magistrados), membros do Ministério Público (Procuradores e Promotores) etc.1" Feita essa observação, do ponto de vista constitucional, a remuneração salarial máxima de um agente político é o valor do subsídio recebido pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal, nos termos do art. 37, inciso XI, que prevê: "XI - a remuneração e o subsídio dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional, dos membros de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos detentores de mandato eletivo e dos demais agentes políticos e os proventos, pensões ou outra espécie remuneratória, percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza, não poderão exceder o subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal (...)". A partir de tal preceito ficou estabelecido que a remuneração do ministro do Supremo seria "teto salarial" do serviço público, o qual, num primeiro momento, seria único, independentemente do servidor ocupar mais de um cargo ou função pública. Contudo, como vários dos Ministros do Supremo Tribunal Federal também são professores na UnB (Universidade de Brasília), que é uma universidade pública, entendeu-se que a fixação de um "teto salarial único" provocaria uma situação injusta, pois os Ministros teriam que lecionar sem receber remuneração. Em razão de tal circunstância, o critério foi flexibilizado e o "teto" passou a ser considerada para cada cargo ou função, isoladamente, nos termos do art. 8º, inciso II, letra "a", da resolução 13, de 21/03/2006, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)2. Posteriormente, esse critério foi estendido para outros cargos cuja a acumulação é permitida pela Constituição. Nesse sentido, decidiu o Supremo Tribunal Federal ao analisar o Recurso Extraordinário (RE) 612975/MT: "TETO CONSTITUCIONAL - ACUMULAÇÃO DE CARGOS - ALCANCE. Nas situações jurídicas em que a Constituição Federal autoriza a acumulação de cargos, o teto remuneratório é considerado em relação à remuneração de cada um deles, e não ao somatório do que recebido"3. Assim, se um médico ocupa dois cargos públicos, em cada um deles tem o direito de receber até o limite do teto, situação que provoca certa polêmica quando noticiada pela mídia. A maior polêmica, contudo, é outra e fixa-se na distinção entre os valores recebidos a título de remuneração daqueles tidos como indenizatórios ou compensatórios. A própria Resolução nº 13/2006, do CNJ, prevê algumas verbas que não se submetem ao teto. São elas: I - de caráter indenizatório, previstas em lei: a) ajuda de custo para mudança e transporte; b) auxílio-moradia; c) diárias; d) auxílio-funeral; f) indenização de transporte; g) outras parcelas indenizatórias previstas na Lei Orgânica da Magistratura Nacional de que trata o art. 93 da Constituição Federal. II - de caráter permanente: a) remuneração ou provento decorrente do exercício do magistério, nos termos do art. 95, parágrafo único, inciso I, da Constituição Federal; e b) benefícios percebidos de planos de previdência instituídos por entidades fechadas, ainda que extintas. III - de caráter eventual ou temporário: a) auxílio pré-escolar; b) benefícios de plano de assistência médico-social; c) devolução de valores tributários e/ou contribuições previdenciárias indevidamente recolhidos; d) gratificação pelo exercício da função eleitoral, prevista nos art. 1º e 2º da lei 8.350, de 28 de dezembro de 1991, na redação dada pela lei 11.143, de 26 de julho de 2005; e) gratificação de magistério por hora-aula proferida no âmbito do Poder Público; f) bolsa de estudo que tenha caráter remuneratório. A título de exemplo, é pacífico que as diárias por viagem têm caráter indenizatório e, portanto, não se sujeitam ao "teto salarial". Assim, se uma pessoa, que já recebe o limite do teto dos servidores, fizer viagens que gerem direito a diárias, receberá um valor superior ao teto, pois o valor das diárias é considerado uma compensação por gastos dispendidos. Outros valores recebidos, porém, não são tão facilmente classificados como remuneratórios ou indenizatórios e geram grande discussão. Caso emblemático é o de um juiz do Mato Grosso que, tendo recebido por vários anos um valor inferior ao que teria direito, posteriormente recebeu tudo de uma vez, chegando o seu contracheque de julho de 2017 ao valor de R$ 503.928,794. A mesma polêmica existe em relação aos valores devidos por substituição, por atividades extraordinárias ou relativos a honorários advocatícios, verbas que para alguns são classificadas como remuneratórias e, para outros, como indenizatórias, o que faz com que elas sejam submetidas ou não ao teto constitucional. Situação peculiar também é a dos parlamentares que, além da remuneração, também têm direito ao recebimento de outras verbas decorrentes do exercício do cargo. No caso de um Deputado Federal, além do salário de R$ 33.763,00 (igual ao do Ministro do Supremo Tribunal Federal), ele tem direito a receber5: - Cota para o Exercício da Atividade Parlamentar (Ceap): o valor depende do estado de cada deputado, devido ao preço da passagem aérea. Representantes do Distrito Federal ficam com a menor quantia (R$ 30.788,66). Já os de Roraima recebem a maior: R$ 45.612,53. - Verba destinada à contratação de pessoal: o valor, que hoje é de R$ 106.866,59 por mês, destina-se à contratação de até 25 secretários parlamentares (cuja lotação pode ser no gabinete ou no estado do deputado), que ocupam cargos comissionados de livre provimento. A remuneração do secretariado deve ficar entre R$ 980,98 e R$ 15.022,32. - Auxílio-moradia: R$ 4.253, concedidos aos parlamentares que não moram em residências funcionais em Brasília. - Despesas com saúde: os deputados têm atendimento no Departamento Médico da Câmara (Demed) e podem pedir reembolso para despesas médico-hospitalares realizadas fora do Demed. Deputados em exercício do mandato e seus familiares que podem ser incluídos como dependentes no Imposto de Renda têm direito de utilizar o departamento. - Cota gráfica: o parlamentar pode solicitar a confecção de material de papelaria oficial (cartões, pastas, papel timbrado e envelopes) e a impressão de documentos e publicações. - Ajuda de custo: no início e no fim do mandato, o parlamentar recebe ajuda de custo equivalente ao valor mensal da remuneração. A ajuda é destinada a compensar as despesas com mudança e transporte e não será paga ao suplente que for reconvocado dentro do mesmo mandato. - Aposentadoria: a lei do Plano de Seguridade Social dos Congressistas (PSSC - lei 9.506/97) prevê aposentadoria com proventos proporcionais ao tempo de mandato. Nesse caso, os proventos serão calculados à razão de 1/35 (um trinta e cinco avos) por ano de mandato. No entanto, é obrigatório preencher os requisitos de 35 anos de contribuição e 60 anos de idade. Assim, como se vê, o salário é apenas parte da remuneração recebida por um parlamentar. Diante de todos esses dados, podem ser mencionados dois grandes problemas. O primeiro é que a maioria dos servidores públicos recebem os seus salários em valores muito aquém ao teto salarial e, nos debates mais acalorados, atualmente envolvendo a Reforma da Previdência, acabam sendo vítimas de generalizações indevidas, como se todos recebessem valores exorbitantes e supostamente indevidos. Nesse ponto, a solução para tais polêmicas seria que o Estado tivesse maior transparência e ficasse mais claro para o cidadão qual a remuneração de cada agente político e servidor público. Outro problema é que o cidadão não consegue mensurar como a atuação dos agentes políticos e dos servidores públicos pode beneficiá-lo, pois prevalece a sensação de que o Estado é caro e ineficiente. Nesse ponto, seria importante que o Estado e os serviços públicos, como um todo, nele incluídos os agentes políticos, conseguissem resgatar sua legitimidade perante o cidadão que, sabedor dos benefícios que lhe são proporcionados, aceitaria como justa a remuneração recebida pelos agentes políticos e pelos servidores públicos, as quais, como se sabe, são pagas com os valores arrecadados a título de impostos suportados por todos. __________ 1 Oliveira, Rafael Carvalho Rezende. Curso de direito administrativo. 6. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2018, p. 683. 2 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução 13, de 21/03/2006. Dispõe sobre a aplicação do teto remuneratório constitucional e do subsídio mensal dos membros da magistratura. Acesso em: 6/6/2019. 3 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário (RE) 612975/MT. Ministro Marco Aurélio. Julgamento: 27/04/2017. Dje 203, divulg. 6/9/2017, public. 8/9/2017. 4 CARNEIRO, Eduardo. Como um juiz do MT conseguiu remuneração de R$ 503 mil em um mês? UOL. Data: 19/8/2017. Acesso em: 6/6/2019. 5 BRASIL. Câmara dos Deputados. Conheça o valor do salário de um deputado e demais verbas parlamentares. Data: 5/10/2018. Acesso em: 6/6/2019.
quarta-feira, 29 de maio de 2019

O desenvolvimento das vias de transporte

Emerson Ademir Borges de Oliveira Ao povo da República dos Estados Unidos da Bruzundanga Um amplo leque de vias de transporte eficientes, de qualidade e com custo baixo para o usuário: eis o ideal para um país que se pretenda desenvolver. Em primeiro lugar, em países de grande extensão territorial como o Brasil, a pluralidade de meios é essencial, permitindo a concorrência entre eles, a independência em caso de eventuais paralisações categóricas e maior eficiência na utilização de combinações de transporte. Em segundo lugar, a agilidade, a qualidade e o custo dos serviços devem estimular uma maior adesão desenvolvimentista, e não refreá-la, dificultando o deslocamento e encarecendo o preço dos produtos e serviços. O Brasil nada possui nesse aspecto. Um sistema extremamente débil, direcionado quase totalmente ao pior e mais ineficiente dos modelos: as estradas de rodagem. Nos locais em que estão sob a iniciativa pública, um constante abandono. Onde há iniciativa privada, preços exorbitantes. O rodoviarismo é uma prática letal ao desenvolvimento se adotado enquanto categoria privilegiada, prática esta que, além do mais, veio a substituir o investimento nas estradas de ferro. Iniciado em Washington Luís, nos anos 20, mas acentuado sobremaneira por Juscelino Kubitschek, ao buscar expandir as rotas que ligavam as capitais a Brasília e angariar apoio do mercado automobilístico. O resultado, quando analisado nos dias atuais, é catastrófico. Sabemos que o Brasil possui a quinta maior extensão territorial do mundo, com mais de 8 milhões de quilômetros quadrados, perdendo apenas da Rússia, Canadá, China e Estados Unidos. Não por acaso, as potências possuem reflexo no PIB em escala mundial. De acordo com o FMI, em 2015, os Estados Unidos possuem o maior PIB do mundo. A China vem em segundo lugar, Brasil em nono, Canadá em décimo e Rússia em décimo segundo. Em termos populacionais, a China lidera o ranking. Em terceiro lugar, os EUA; Brasil em quinto; Rússia em nono; Canadá apenas em trigésimo oitavo. O que nos chama a atenção, contudo, é como se desenham esses sistemas quando os cruzamos com os dados de transporte. O primeiro dado fala por si só: a extensão da malha ferroviária. Os Estados Unidos lideram com quase 300 mil quilômetros, seguidos da China com 124 mil quilômetros. Em terceiro lugar, a Rússia, com 87 mil quilômetros e, em quarto, o Canadá, com 77 mil quilômetros. O Brasil aparece apenas na nona colocação, com irrisórios 30 mil quilômetros de malha ferroviária, dez vezes menos que os Estados Unidos. Embora desatualizado, um levantamento de 2012, realizado pelo Banco Mundial, indicava os Estados Unidos com o maior número de passageiros na aviação civil em um ano, superando 736 milhões. Em segundo lugar, a China; Brasil em sexto; Rússia em décimo quinto. Frise-se que, a despeito de estar desatualizado, atua como um dos parâmetros. Quanto ao transporte marítimo, de acordo com a Containerisation International - Top 100 Ports 2014, a China detém 7 dos 10 e 19 entre os 100 maiores portos do mundo, lista encabeçada pelo de Xangai. O maior porto norte-americano, de Los Angeles, aparece na décima nona posição; os EUA possuem 10 dos 100 portos mais movimentados. O brasileiro mais movimentado, de Santos, desponta na trigésima oitava posição; o único, aliás. Isso não significa que países que invistam no transporte aéreo, aquático e na malha ferroviária não deixem de investir também na malha rodoviária. A diferença é que este é apenas mais um modal e certamente não o mais importante para o comércio. Na lista das dez maiores redes rodoviárias, os Estados Unidos aparecem em primeiro; China em terceiro lugar, Brasil em quarto, Rússia em quinto e Canadá em sétimo. Chama a atenção o fato de que os Estados Unidos possuem quatro vezes mais estradas que o Brasil, que possui, ainda, três vezes menos estradas que a China. Todas essas informações reunidas podem ser projetadas na tabela abaixo, em que se nota que a pluralidade e a extensão de cada item estão intimamente conectadas com o desenvolvimento econômico do país. A preponderância mundial dos Estados Unidos e da China não são dados apartados da realidade. Apenas ilustram uma situação de estruturação física mais avançada do que os demais países, o que reflete em posição econômica. É fato que nos últimos anos tem se iniciado uma preocupação maior com a dinamização dos modais de transporte, mas neste quesito ainda somos mancebos. A greve dos caminhoneiros em 2018 é prova viva deste sistema restrito e falho. Embora alguns avanços tenham sido realizados, como a construção da ferrovia norte-sul, com 1200 quilômetros de extensão, as soluções de transporte andam a passos lentos e muito atrás das necessidades. Em uma matéria da BBC Brasil, por exemplo, demonstrou-se que, no ritmo de 2013, São Paulo levaria 172 anos para chegar na extensão do metrô londrino. O do Rio de Janeiro levaria 300 anos1. É uma inequívoca demonstração de que medidas postergadas e carentes de celeridade jamais servirão ao propósito de transformar o Brasil em um país desenvolvido no aspecto de transportes e, consequentemente, economicamente. Cumpre lembrar, ademais, que o transporte repercute não apenas no campo econômico, mas também no social, tendo sido classificado como um direito social nos termos do artigo 6º, CF. Um transporte dinâmico, plural, eficiente e de baixo custo para a população, aliado a uma priorização urgente de extensão, é o que o país necessita para pretender crescer. Enquanto vivermos em um mundo rodoviário, em que 80% das estradas não são asfaltadas ou são pessimamente asfaltadas não há muito que se propor. __________ 1 BBC Brasil.  
quarta-feira, 22 de maio de 2019

Federalismo e intervenção - Parte 2

Rafael de Lazari Na coluna passada, começamos a falar sobre intervenção, como exceção (portanto, como medida atípica) ao pacto federativo e sua natural autonomia. Como dito, o constituinte consagra um instituto, mas deseja que ele não seja utilizado, tendo em vista o grau de anomalia constitucional que representa a intervenção da União nos Estados, Distrito Federal, e nos municípios situados em Territórios, bem como dos Estados nos municípios. Por se tratar de anomalia, o mecanismo constitucional interventivo deve se dar excepcionalmente, e, ainda, com regras controladas (daí a reafirmação de nosso posicionamento de que as hipóteses interventivas são taxativas). Prova desse rígido controle, após as hipóteses interventivas serem expressamente dispostas nos arts. 34 e 35, e após os incisos do art. 36 definirem como se fará a intervenção (tudo isso já foi visto na coluna passada), os parágrafos do art. 36 disciplinam o decreto interventivo. Vejamos: a) O decreto de intervenção, que especificará a amplitude, o prazo e as condições de execução e que, se couber, nomeará o interventor, em regra será submetido à apreciação do Congresso Nacional ou da Assembleia Legislativa do Estado, no prazo de vinte e quatro horas. Se não estiver funcionando o Congresso Nacional ou a Assembleia Legislativa, far-se-á convocação extraordinária, no mesmo prazo de vinte e quatro horas: Vale lembrar, em primeiro lugar, que nem sempre haverá esta apreciação do Congresso Nacional ou da Assembleia Legislativa do Estado. O grande objetivo de tal controle é o fato de que, na grande maioria dos casos, o procedimento interventivo se dá por ato discricionário do chefe do Executivo, o que reforça a necessidade de manter-se uma análise da legalidade dos atos praticados a fim de evitar eventuais interesses escusos que possam guiar o procedimento (dá-se como exemplo a situação do Presidente da República que opta por intervir em um Estado capitaneado por Governador que lhe é ferrenho opositor, apenas para deslegitimar sua administração). Agora, quando tal controle puder ser exercido por outros meios, desnecessária a apreciação das Casas Legislativas pátrias. Está-se falando das hipóteses de intervenção federal do art. 34, VI e VII (prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judicial, bem como assegurar a observância dos princípios constitucionais sensíveis) e da hipótese de intervenção estadual do art. 35, IV (representação interventiva por parte do Procurador-Geral da Justiça). Nos casos elencados, a apreciação do Poder Judiciário retira a margem de discricionariedade do Presidente da República, e já desempenha o papel de controle a fim de evitar procedimentos interventivos desnecessários. Ademais, o decreto interventivo em tais hipóteses se limitará a suspender a execução do ato impugnado, se isso bastar para o restabelecimento da normalidade. Agora, se for uma hipótese que contempla apreciação pelas Casas Legislativas, o decreto interventivo deverá ser submetido à sua apreciação incontornavelmente no prazo de vinte e quatro horas. Se não estiver funcionando, é caso de sua convocação extraordinária no mesmo prazo de vinte e quatro horas. Noutra consideração, importa analisar o decreto interventivo, isto é, o modo pelo qual se determina o procedimento que ora se estuda. Tanto nos casos de ato discricionário do chefe do Executivo, como nas hipóteses de vinculação via comando judicial, o modo como se estabelece a situação federalista atípica é o decreto. Tal documento é que fixará os meios como a intervenção se dará, bem como especificará os prazos e limites de sua duração. O decreto deverá contemplar o rol de medidas a serem praticadas, desde que guardem relação com o motivo que ensejou o procedimento. Vale lembrar que a figura do interventor não é imperiosa no procedimento de intervenção. Ele somente se fará necessário caso seja a hipótese de afastar alguém que está dando motivo à intervenção. Toma-se como exemplo a situação de Governador do Estado que está afrontando contra o princípio constitucional sensível do federalismo defendendo que seu Estado seja anexado a um país vizinho. Em tal hipótese, nomeia-se um interventor a fim de que cesse a situação de anormalidade do agente originário ocupante do cargo. O interventor, contudo, deve se restringir a agir nos limites do decreto, zelando pelo pronto restabelecimento da ordem. Isso quer dizer que não fica tal agente "com uma carta branca em mãos", nem que gozará de irresponsabilidade se fugir das atribuições para as quais fora originariamente designado; b) Cessados os motivos da intervenção, as autoridades afastadas de seus cargos a estes voltarão, salvo impedimento legal: Tal previsão confirma o caráter excepcional e temporário da intervenção. Excepcional, pois ela viola a lógica federativa, como explanado ao longo das explicações sobre tal procedimento; temporário, pois a ideia é que sua duração se dê nos exatos termos da necessidade que a enseja. Cessados os motivos, busca-se restabelecer o "status quo" mais próximo possível da situação anterior a que a ensejou, inclusive com a volta das autoridades afastadas. Isso não ocorrerá, obviamente, caso haja algum impedimento a isso (no caso do exemplo dado outrora de necessidade de nomeação de interventor, do Governador que insiste na anexação do Estado que governa a país vizinho, afrontando contra princípio constitucional sensível, provavelmente não haverá condições para que haja um retorno ao cargo que ocupa). Por fim, questão que não encontra expressa previsão constitucional diz respeito à apuração de eventuais arbitrariedades praticadas durante o período interventivo. O decreto serve exatamente para que se saiba os termos do procedimento e seu cumprimento fidedigno. É claro que o decreto jamais conseguirá comportar tudo o que é necessário ao pronto restabelecimento da ordem, dando-se como exemplo a situação de intervenção federal em unidade federativa para prontamente repelir invasão estrangeira: neste caso se consegue delimitar o âmbito territorial em que os atos ocorrerão, mas convém reconhecer ser impossível seguir à risca a duração da medida e tudo o que se fizer necessário para proteger a integridade nacional, pois tudo dependerá da força bélica e estratégica do grupo invasor. O decreto de intervenção serve, pois, para fornecer um parâmetro objetivo e geral de atuação da medida que se está tomando, e, sobretudo, para possibilitar ao Poder Judiciário reparar eventuais arbitrariedades cristalinas que tenham ocorrido. Para finalizar, muito recentemente o Brasil passou por duas intervenções, ambas da União em Estados (primeiro, no Rio de Janeiro; depois, em Roraima). Deixa-se a seguir um quadro comparativo:  
quinta-feira, 16 de maio de 2019

Federalismo e intervenção - Parte 1

Rafael de Lazari Dentro da organização do Estado, o estudo dos mecanismos de intervenção tem elevada importância, pois implica uma contrariedade temporária de todas as lógicas federativas. Isto porque, em regra, a União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal (tão menos em municípios situados em Territórios), bem como os Estados não intervirão nos municípios. É, pois, preciso observar a autonomia de cada ente federativo, como manifesto lógico da estrutura repartida de poder que qualifica esta forma de Estado. A regra é a não intervenção. Pode-se dizer que o constituinte consagra um instituto, mas deseja que ele não seja utilizado. Todavia, em algumas hipóteses, excepcionalíssimas e temporárias, é possível a intervenção, que consiste em ato eminentemente político com a finalidade de restabelecer no ente que a sofre os valores federativos pátrios. Por ser medida excepcional (e sabendo que exceções devem ser interpretadas restritivamente), perfilha-se ao entendimento segundo o qual as hipóteses de intervenção são taxativas. Ademais, numa imperiosa consideração a ser feita, é preciso lembrar que a intervenção se dá sempre do "ente maior" no "ente menor". Não se utiliza as expressões "maior" e "menor" com o sentido de "poder", por serem absolutamente autônomos todos os entes federativos. Diz-se, isso sim, no sentido de "abrangência": a União intervém nos Estados que a formam; cada Estado intervém nos Municípios que o formam; a União intervém nos Municípios se estes estiverem situados em Territórios federais (pois, como o próprio nome já indica, eventual Território a ser instituído ficará sob a tutela da União). Vejamos, em primeira análise, um quadro elucidativo da intervenção da União nos Estados e no Distrito Federal (nos termos do art. 34, CF): Intervenção para manter a integridade nacional (art. 34, I, CF) -> Intervenção espontânea (ato discricionário do Presidente da República) Intervenção para repelir invasão estrangeira ou de uma unidade da Federação em outra (art. 34, II, CF) -> Intervenção espontânea (ato discricionário do Presidente da República) Intervenção para colocar fim a grave comprometimento da ordem pública (art. 34, III, CF) -> Intervenção espontânea (ato discricionário do Presidente da República) Intervenção para garantir o livre exercício dos Poderes das unidades da Federação, se os Poderes obstados forem o Legislativo e o Executivo (art. 34, IV, CF) -> Intervenção provocada por solicitação (ato discricionário do Presidente da República, já que "solicitação" não tem o sentido de mandamento) Intervenção para garantir o livre exercício dos Poderes das unidades da Federação, se o Poder obstado for o Judiciário (art. 34, IV, CF) -> Intervenção provocada por requisição do Supremo Tribunal Federal (ato vinculado do Presidente da República, já que "requisição" tem o sentido de mandamento) Intervenção para reorganizar as finanças da unidade da Federação (art. 34, V, "a" e "b", CF) -> Intervenção espontânea (ato discricionário do Presidente da República) Intervenção para prover a execução de ordem ou decisão judicial (art. 34, VI, CF) -> Intervenção provocada por requisição do STF, do STJ ou do TSE, a depender da matéria envolvida (ato vinculado do Presidente da República, já que "requisição" tem o sentido de mandamento) Intervenção para prover a execução de lei federal (art. 34, VI, CF) -> Intervenção provocada por requisição (representação interventiva manejada pelo Procurador Geral da República e acatada pelo Supremo Tribunal Federal) (ato vinculado do Presidente da República, já que "requisição" tem sentido de mandamento) Intervenção para assegurar a observância dos princípios constitucionais sensíveis (art. 34, VII, CF) -> Intervenção provocada por requisição (representação interventiva manejada pelo Procurador Geral da República e acatada pelo Supremo Tribunal Federal) (ato vinculado do Presidente da República, já que "requisição" tem sentido de mandamento) Em segunda análise, um quadro elucidativo da intervenção do Estado em seus Municípios, bem como da União nos Municípios situados em Território federal (nos termos do art. 35, CF): Intervenção pois deixou de ser paga por dois anos consecutivos a dívida fundada sem motivo de força maior (art. 35, I, CF) -> Intervenção espontânea (ato discricionário do Governador) Intervenção pois não foram prestadas contas devidas na forma da lei (art. 35, II, CF) -> Intervenção espontânea (ato discricionário do Governador) Intervenção pois não foram respeitados os mínimos em saúde e educação (art. 35, III, CF) -> Intervenção espontânea (ato discricionário do Governador) Intervenção para assegurar a observância de princípios indicados na Constituição estadual, ou para prover a execução de lei, ordem ou decisão judicial (art. 35, IV, CF) -> Intervenção provocada por requisição (ato vinculado do Governador, que deve respeitar representação promovida pelo Procurador-Geral de Justiça acatada pelo Tribunal de Justiça competente) Frisa-se, apenas, que apesar de disposta no art. 35, CF, a intervenção da União nos Municípios situados em Territórios deve ser vista como modalidade de intervenção federal, já que tem a União como ente interveniente. Entretanto, enquadra-se como uma espécie de "intervenção federal anômala", pois apesar de se enquadrar na modalidade federal (consagrada no art. 34, CF), sujeita-se às hipóteses do art. 35, CF, que tradicionalmente consagra a intervenção estadual. Em outros termos, a intervenção da União nos Municípios situados em Territórios é uma intervenção federal que se submete aos requisitos do art. 35, CF. Intervenção da União nos Estados (intervenção federal): hipóteses no art. 34, CF Intervenção da União no Distrito Federal (intervenção federal): hipóteses no art. 34, CF Intervenção da União nos Municípios situados em Territórios (intervenção federal): hipóteses no art. 35, CF Intervenção dos Estados nos Municípios situados em seu território (intervenção estadual): hipóteses no art. 35, CF (...continua na próxima coluna)  
quarta-feira, 8 de maio de 2019

Federalismo e precatórios

Rafael de Lazari Boa parte da crise federativa pela qual passa o Estado brasileiro atualmente concentra-se sobre a quitação de precatórios (a forma como é feita, dificuldades orçamentárias, descontrole no planejamento financeiro do ente federativo etc.). Por "precatório", há se entender a ordem de pagamento determinada pelo Poder Judiciário e dirigida às Fazendas Públicas Federal, estaduais, distrital e municipais, em virtude de sentença condenatória transitada em julgado que impôs a estas obrigação de pagar. O sistema de precatórios é determinado fundamentalmente no art. 100, da Constituição da República, sem prejuízo de consagrações constantes via emenda constitucional no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (EC 62/2009, EC 94/2016, EC 99/2017). Como se não bastasse, muitas regras foram dadas pelo Supremo Tribunal Federal, notadamente em duas decisões prolatadas em ações diretas de inconstitucionalidade em torno da EC 62/2009 (nas quais houve modulação temporal de efeitos). Neste singelo comentário, dois enfoques especiais serão dados: primeiro, quanto à atuação do Conselho Nacional de Justiça na questão; segundo, quanto às duas decisões do STF em torno da EC 62/2009 (mencionadas no parágrafo anterior), que mexeram sensivelmente na questão e ensejaram, inclusive, novas emendas constitucionais. Pois bem. Em primeiro aspecto, para tentar dirimir conflitos e padronizar procedimentos, há uma política do Poder Judiciário, atualmente, de atribuir papel protagonista ao Conselho Nacional de Justiça nas questões envolvendo o pagamento de títulos executivos consubstanciados contra os Poderes Públicos e que não mais comportem recurso. Quer-se que o Conselho capitaneie este processo, por reunir as informações necessárias à feitura de um diagnóstico consolidado e o mais próximo possível da realidade. O Conselho vem lutando para elaborar um manual de racionalização de procedimentos a fim de que os entes federativos consigam cumprir com a obrigação de quitar seus títulos decorrentes de decisão passada em julgado. Como exemplo, se pode mencionar a resolução 115/2010, que dispõe sobre o Sistema de Gestão de Precatórios, gerido pelo CNJ, e que contará, dentre outras coisas, com informações sobre o tribunal, unidade judicial e processo que ensejou o pagamento de precatório; o nome do beneficiário e a respectiva inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas ou no Cadastro de Pessoas Jurídicas; a data do trânsito em julgado da decisão condenatória ao pagamento; o valor do precatório e a natureza do crédito; o valor total dos precatórios expedidos pelo tribunal até o dia 1º de julho de cada ano; o orçamento anual da entidade pública sob a jurisdição do tribunal destinado ao pagamento dos valores etc. No mais, são sugestões de uniformização de regras processuais e procedimentais, como suporte aos Tribunais de Justiça para consulta, de modo a auxiliar seus presidentes e auxiliares na justa e disciplinada prestação jurisdicional nas execuções em desfavor da Fazenda Pública (auxiliam neste processo, ainda, o sistema REESPREC - Reestruturação de Precatórios, bem como o FONAPREC - Fórum Nacional de Precatórios). Por um segundo enfoque, duas ações diretas de inconstitucionalidade foram ajuizadas em torno da emenda constitucional 62/2009 (a qual ficou conhecida como "Emenda do Calote"), a saber, a ADI 4.357 (Supremo Tribunal Federal, Pleno. Rel.: Min. Ayres Britto. DJ. 14/3/2013) e a ADI 4.425 (Supremo Tribunal Federal, Pleno. Rel.: Min. Ayres Britto. DJ. 14/3/2013). Parte da EC nº 62 acabou sendo declarada inconstitucional: o art. 100, §2º, CF, na expressão "na data da expedição do precatório" (o que já foi modificado pela EC 94/2016); os §§ 9º e 10 do art. 100; o §12 do art. 100, na parte que estabeleceu o índice da caderneta de poupança como taxa de correção monetária dos precatórios; bem como o art. 97, do ADCT. Na época da decisão (2013), ficou pendente a modulação dos seus efeitos. O Supremo Tribunal Federal, por maioria e nos termos do voto, ora reajustado, do ministro Luiz Fux (novo Relator para acórdão da questão de ordem), resolveu a questão de ordem nos seguintes termos, modulando sua decisão no final de março de 2015: "2. In casu, modulam-se os efeitos das decisões declaratórias de inconstitucionalidade proferidas nas ADIs 4.357 e 4.425 para manter a vigência do regime especial de pagamento de precatórios instituído pela Emenda Constitucional 62/2009 por 5 (cinco) exercícios financeiros a contar de primeiro de janeiro de 2016. 3. Confere-se eficácia prospectiva à declaração de inconstitucionalidade dos seguintes aspectos da ADI, fixando como marco inicial a data de conclusão do julgamento da presente questão de ordem (25.03.2015) e mantendo-se válidos os precatórios expedidos ou pagos até esta data, a saber: (i) fica mantida a aplicação do índice oficial de remuneração básica da caderneta de poupança (TR), nos termos da Emenda Constitucional nº 62/2009, até 25.03.2015, data após a qual (a) os créditos em precatórios deverão ser corrigidos pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo Especial (IPCA-E) e (b) os precatórios tributários deverão observar os mesmos critérios pelos quais a Fazenda Pública corrige seus créditos tributários; e (ii) ficam resguardados os precatórios expedidos, no âmbito da administração pública federal, com base nos arts. 27 das Leis nº 12.919/13 e nº 13.080/15, que fixam o IPCA-E como índice de correção monetária. 4. Quanto às formas alternativas de pagamento previstas no regime especial: (i) consideram-se válidas as compensações, os leilões e os pagamentos à vista por ordem crescente de crédito previstos na Emenda Constitucional nº 62/2009, desde que realizados até 25.03.2015, data a partir da qual não será possível a quitação de precatórios por tais modalidades; (ii) fica mantida a possibilidade de realização de acordos diretos, observada a ordem de preferência dos credores e de acordo com lei própria da entidade devedora, com redução máxima de 40% do valor do crédito atualizado. 5. Durante o período fixado no item 2 acima, ficam mantidas (i) a vinculação de percentuais mínimos da receita corrente líquida ao pagamento dos precatórios (art. 97, §10, do ADCT) e (ii) as sanções para o caso de não liberação tempestiva dos recursos destinados ao pagamento de precatórios (art. 97, §10, do ADCT). 6. Delega-se competência ao Conselho Nacional de Justiça para que considere a apresentação de proposta normativa que discipline (i) a utilização compulsória de 50% dos recursos da conta de depósitos judiciais tributários para o pagamento de precatórios e (ii) a possibilidade de compensação de precatórios vencidos, próprios ou de terceiros, com o estoque de créditos inscritos em dívida ativa até 25.03.2015, por opção do credor do precatório. 7. Atribui-se competência ao Conselho Nacional de Justiça para que monitore e supervisione o pagamento dos precatórios pelos entes públicos na forma da presente decisão" (Supremo Tribunal Federal, Pleno. ADI nº 4.425 QO/DF. Rel.: Min. Luiz Fux. DJ. 25/3/2015). A emenda constitucional 94/2016 corrigiu inconstitucionalidade declarada pelo STF do art. 100, §2º, CF. Sem prejuízo, acresceu quatro parágrafos ao art. 100, CF: "§17. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios aferirão mensalmente, em base anual, o comprometimento de suas respectivas receitas correntes líquidas com o pagamento de precatórios e obrigações de pequeno valor. §18. Entende-se como receita corrente líquida, para os fins de que trata o §17, o somatório das receitas tributárias, patrimoniais, industriais, agropecuárias, de contribuições e de serviços, de transferências correntes e outras receitas correntes, incluindo as oriundas do §1º do art. 20 da Constituição Federal, verificado no período compreendido pelo segundo mês imediatamente anterior ao de referência e os 11 (onze) meses precedentes, excluídas as duplicidades, e deduzidas: I - na União, as parcelas entregues aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios por determinação constitucional; II - nos Estados, as parcelas entregues aos Municípios por determinação constitucional; III - na União, nos Estados, no Distrito Federal e nos Municípios, a contribuição dos servidores para custeio de seu sistema de previdência e assistência social e as receitas provenientes da compensação financeira referida no §9º do art. 201 da Constituição Federal. §19. Caso o montante total de débitos decorrentes de condenações judiciais em precatórios e obrigações de pequeno valor, em período de 12 (doze) meses, ultrapasse a média do comprometimento percentual da receita corrente líquida nos 5 (cinco) anos imediatamente anteriores, a parcela que exceder esse percentual poderá ser financiada, excetuada dos limites de endividamento de que tratam os incisos VI e VII do art. 52 da Constituição Federal e de quaisquer outros limites de endividamento previstos, não se aplicando a esse financiamento a vedação de vinculação de receita prevista no inciso IV do art. 167 da Constituição Federal. §20. Caso haja precatório com valor superior a 15% (quinze por cento) do montante dos precatórios apresentados nos termos do §5º deste artigo, 15% (quinze por cento) do valor deste precatório serão pagos até o final do exercício seguinte e o restante em parcelas iguais nos cinco exercícios subsequentes, acrescidas de juros de mora e correção monetária, ou mediante acordos diretos, perante Juízos Auxiliares de Conciliação de Precatórios, com redução máxima de 40% (quarenta por cento) do valor do crédito atualizado, desde que em relação ao crédito não penda recurso ou defesa judicial e que sejam observados os requisitos definidos na regulamentação editada pelo ente federado". Ademais, o ADCT ganhou os arts. 101 a 105, que além de criar novo regime especial (muito por conta da declaração de inconstitucionalidade em torno do art. 97, ADCT), fez readequações em boa parte atendendo à modulação temporal de efeitos em sede de controle concentrado de constitucionalidade realizado pelo STF nas mencionadas ações diretas de inconstitucionalidade 4.357 e 4.425. Mais recentemente, por fim, a EC 99/2017 promoveu alterações e complementos naquilo que havia sido trazido pela EC nº 94/2016 (notadamente a ampliação do prazo para pagamento de precatórios e o índice de atualização monetária no novo regime especial trazido no art. 101, ADCT). A excessiva modificação na sistemática, veja-se, é decorrência de absoluta insegurança jurídica e econômica que paira sobre a questão. O problema é que, além de decorrência, a excessiva modificação acaba por ser, também, consequência para insegurança jurídica e econômica (a solução que resolve problemas anteriores cria, por si, novos problemas). Nos últimos dez anos são três emendas, duas decisões paradigmáticas, sem prejuízo de outras decisões pontuais prolatadas pelo guardião da Constituição, o que reflete, independentemente de qualquer coisa, a dificuldade que o assunto "precatórios" representa para o Estado brasileiro.
quarta-feira, 24 de abril de 2019

Federalismo e Conselho Nacional de Justiça

Rafael de Lazari A Constituição de 1988, seguindo tendência federalista republicana iniciada oficialmente em 1891, forneceu ao modelo estatal pátrio as premissas de uma desconcentração político-financeira-administrativa alinhada à contemporaneidade constitucionalista institucional. Seja observando a organização político-administrativa brasileira - que define, dentre outros, os bens, competências, e caracteres genuínos da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios (que não são entes federativos, não custa lembrar), e dos Municípios (arts. 18 a 33) -, seja analisando a possibilidade de intervenção - da União nos Estados, Distrito Federal e nos Municípios situados em Territórios, e dos Estados nos municípios que lhes são vinculados (arts. 34 a 36) -, seja analisando o sistema remuneratório dos servidores estatais - feito em escala vinculatória entre todos os integrantes dos múltiplos entes federativos (art. 37, XI) -, seja vinculando explícita e de maneira prolixa as finanças públicas e a repartição de receitas tributárias - mediante repasses (arts. 145 a 169) -, seja atribuindo competência legislativa plena para Constituições Estaduais e Leis Orgânicas Distrital e Estadual, dentre outros, o fato é que a Constituição Federal tenta redesenhar os contornos do federalismo pátrio, com maior autonomia conferida aos Estados, e, sobretudo, aos Municípios. Se é certo que este fenômeno não tenha logrado o êxito pleno pretendido, com a discrepância entre Estados economicamente fortes e outros completamente dependentes da União, e com a existência de municípios que dependem dos repasses da União e dos Estados para arcarem com suas despesas enquanto outros se tornaram polos econômicos diferenciados em razão de sua posição geográfica privilegiada ou de políticas econômicas a longo prazo edificadas, não é esse o tema central das discussões que aqui se propõe (muito embora o debate seja claramente possível). O grande problema aqui abordado, isso sim, é que o Poder Judiciário não acompanhou este movimento fragmentário e se mantém como claro exemplo estrutural do que um dia foi o Estado Unitário, é dizer, com a nítida centralização de suas políticas e órgãos, nada obstante a interiorização da Justiça - notadamente a Federal - e sua itinerância (parágrafo sétimo, do art. 125, CF, por exemplo), iniciadas em 1988. Neste diapasão, com base em análise do Texto Constitucional, enquanto os Poderes Executivo e Legislativo claramente tratam de todos os entes da federação, o Poder Judiciário estrutura seu organograma não por ente federativo, mas de acordo com os interesses que serão postulados e com os agentes que postularão em juízo. É óbvio que não se almeja, aqui, estabelecer diretrizes sobre como poderia o Judiciário integrar-se melhor - gradativamente, é óbvio - ao federalismo cooperativo praticado por seus congêneres Legislativo e Executivo. Apesar da necessidade urgente de uma discussão neste sentido, o pouco espaço de um artigo de opinião serve, no máximo, para alertar a comunidade jurídica sobre o problema ou lançar dúvidas/fagulhas na mente do leitor. O que se almeja, isso sim, é chamar a atenção para o fato de que o Conselho Nacional de Justiça, órgão não jurisdicional integrante do Poder Judiciário, consegue realizar esta cooperação federalista, a despeito de suas competências serem restritas ao controle administrativo e financeiro da função julgadora. Além dos programas de filantropia estatal (como o "Começar de Novo" ou o "Pai Presente"), deve-se prestar atenção às resoluções emitidas pelo CNJ, que muitas vezes acabam por transpassar o maciço Judiciário e fomentam o diálogo com os demais Poderes da República e com todos os entes da federação (até mesmo aquele que não possui Poder Judiciário, como é o caso dos municípios). Como primeiro exemplo, se pode elencar a Resolução nº 104, de 6 de abril de 2010, que dispõe sobre medidas administrativas para a segurança e a criação do Fundo Nacional de Segurança. Tal Resolução, dentre outras questões, reconhece o emergir súbito de uma criminalidade "diferenciada", que deixa de respeitar as autoridades julgadoras, e, como se não bastasse, passa a amedrontá-las com o explícito objetivo de assegurar a impunidade de seus delitos. Neste sentido, tal resolução preconiza o reforço da segurança de fóruns, o fornecimento de veículos e equipamentos de segurança a magistrados (notadamente os da área criminal), o treinamento de juízes para situações de risco, dentre outros. Noutros exemplos, tem-se a resolução 156, de 8 de agosto de 2012, que proíbe a designação de função de confiança ou a nomeação para cargo em comissão de pessoa que tenha praticado atos previstos como causa de inelegibilidade na legislação eleitoral; a resolução 154, de 13 de julho de 2012, que define a política institucional do Poder Judiciário na utilização dos recursos oriundos da aplicação de pena de prestação pecuniária (valores que, quando não destinados à vítima ou seus dependentes, irão para entidade pública ou privada de caráter social previamente conveniada, ou para atividades de caráter essencial à segurança pública, à saúde ou à educação); a resolução 148, de 16 de abril de 2012, que dispõe sobre a prestação de serviços permanentes de segurança por bombeiros e policiais militares no âmbito do Poder Judiciário; a resolução 251, de 4 de setembro de 2018, que regulamenta o banco de dados de mandados de prisão (em consonância com a Lei nº 12.403/2011, popularmente conhecida por "Nova Lei de Prisões", que acresceu o art. 289-A ao Código de Processo Penal); e a resolução 133, de 21 de junho de 2011, que dispõe sobre a simetria constitucional entre magistrados e membros do Ministério Público. Não adentrando o mérito acerca de exceder ou não o Conselho Nacional de Justiça sua competência constitucional, é fato que representam tais comandos normativos uma atividade dialógica do CNJ com outros setores da sociedade e, principalmente, com outros Poderes, algo que o Judiciário por vezes pareceu tão distante de levar a efeito. Ademais, muitas destas questões envolvem políticas administrativas que devem emanar de todos os membros da federação, como na proteção à segurança dos magistrados que atuam no combate ao crime, por exemplo. Tais constatações somente reforçam o argumento de que, graças à pluralidade de agentes que o compõem, aos organismos que os indicam, às competências constitucionais que lhe são consagradas, e às matérias que vêm trabalhando, representa o Conselho Nacional de Justiça a materialização da "sociedade aberta dos intérpretes da Constituição" de que trata Peter Häberle devido a essa sua atividade dialógica, a qual acaba por irradiar, consequentemente, para um federalismo cooperativo, desta vez com a participação - ainda incipiente, é verdade - do Poder Judiciário.  
Emerson Ademir Borges de Oliveira Ao povo da República dos Estados Unidos da Bruzundanga Na abertura da XXII Conferência Nacional dos Advogados, no dia 20 de outubro de 2014, na cidade do Rio de Janeiro, o Ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso apresentou uma lista de sugestões para mudança do Estado Brasileiro. Como medida para superação dos atrasos e gargalos do direito no Brasil, Barroso sugeriu a redução drástica do foro por prerrogativa de função. Para o Ministro do STF, o foro por prerrogativa é uma "reminiscência aristocrática, sem réplica comparável em outras democracias". Um conjunto grande de autoridades é investigado e processado perante o Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça, ao passo que os demais cidadãos o são perante um juiz de 1ª instância1. Como asseverou o Ministro, os principais problemas do sistema podem ser classificados em três ordens: "(i) trata-se de uma fórmula não republicana, que faz parecer que uns são mais iguais do que outros; (ii) o STF não é aparelhado para esse tipo de função, além de sujeitar o Tribunal a um tipo de contágio político que não é bom; e (iii) o modelo é extremamente disfuncional e se presta a todo o tipo de manipulação de competência da Corte, mediante renúncia a mandato ou desistência de candidatura, entre outros expedientes. Tudo isso compromete a celeridade, induz à prescrição e gera impunidade. Sem mencionar que o julgamento em instância única entra em tensão com tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário"2. De acordo com o art. 102 da Constituição, o foro por prerrogativa no STF comporta as seguintes classes: i) nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional (isto significa 513 deputados e 81 senadores), os Ministros do STF e o Procurador Geral da República; ii) nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, Exército e Aeronáutica, os membros dos Tribunais Superiores, os membros do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática em caráter permanente; iii) habeas corpus quando o paciente for qualquer das pessoas acima referidas; iv) ainda que de forma indireta ao foro por prerrogativa, cabe ao STF julgar o mandado de segurança e o habeas data contra atos do Presidente da República, das Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, do Tribunal de Contas da União, do Procurador-Geral da República e do próprio Supremo Tribunal Federal. Esse modelo desloca para a competência originária do STF o julgamento, pelo item ii, de mais de 600 pessoas, sem mencionar o arrastamento no tocante às conexões criminosas que não puderem ser desmembradas. Barroso defende que o foro por prerrogativa no STF deva se manter apenas ao presidente da República, ao Vice-Presidente, aos Presidentes do Senado, da Câmara e do STF e ao Procurador-Geral da República. O restante seria deslocado para uma Vara Especializada em Brasília, no 1º grau de jurisdição, com titular escolhido pelo STF para um mandato de quatro anos. Ao final do período, seria esse juiz automaticamente promovido para o Tribunal Regional Federal, de forma a evitar retaliações. Além do titular, seriam dispostos ainda juízes auxiliares. "Das decisões dessa Vara Especializada, caberia recurso ordinário para o STF, conforme a autoridade. Duas razões justificam esta solução de criação de uma Vara no Distrito Federal, em vez de a competência ser da Justiça Estadual: (i) não deixar a autoridade pública sujeita à má-fé ou ao oportunismo político de ações penais em qualquer parte do país; e (ii) neutralizar a influência do poder local, impedindo-se perseguições e favorecimentos. Detalhe importante: a Vara Especializada continuaria competente mesmo após a autoridade deixar o cargo, assim eliminando as idas e vindas do processo. Um modelo simétrico poderia ser aplicado às ações de improbidade administrativa"3. A preocupação do legislador constituinte era garantir que apenas o Tribunal Supremo, em seu colegiado, distante dos fatos, pudesse oferecer um julgamento - não totalmente - mais imune às cóleras públicas e midiáticas. Com base no pensamento de Luís Roberto Barroso, vemos como solução a criação de um Tribunal por Prerrogativa de Função, que assumiria todas as competências conferidas ao STF no art. 102, I, b, c e d, inclusive em relação à infração penal comum cometida por Presidente da República. Este Tribunal seria formado por quatro juízes e estaria diretamente vinculado ao próprio Supremo Tribunal Federal, responsável pela indicação de seus membros. Os membros a serem indicados para a função devem preencher os mesmos requisitos para o cargo de Ministro do STF, isto é, idade mínima de trinta e cinco anos, ser brasileiro nato, cidadão em dias com suas obrigações políticas, sem filiação partidária, impossibilidade de cumulação com outras funções, reputação ilibada e notório conhecimento jurídico, independentemente de serem ou não juízes de carreira. Os indicados exerceriam o cargo para um mandato de oito anos ou até completarem setenta e cinco anos. Pensamos que um mandato de oito anos é mais adequado para garantir a continuidade e a celeridade processual, evitando-se que, durante os mandatos parlamentares ou executivos, ocorram sucessivas trocas no exercício da função. Ao final do mandato, o juiz volta às suas funções anteriores. O fato de tal indicação ser feita exclusivamente pelo STF tem o condão de garantir, por si só, a independência e autonomia do exercício da função. No Tribunal, os processos seriam distribuídos eletronicamente a cada um dos quatro juízes, responsáveis pela instrução, no caso de inquéritos, e que julgariam os casos de forma monocrática. Da decisão, a fim de se manter o respeito ao duplo grau de jurisdição, caberia recurso ordinário para o Plenário, formado pelos três juízes da Corte que não participaram da primeira decisão, o que seria suficiente para criar, assim, um duplo grau jurisdicional, conforme art. 144, II, do Código de Processo Civil. Dos julgamentos do Pleno, ao STF seria admitido apenas recursos extraordinários, quando houvesse ofensa à Constituição Federal, ocasião em que deveria, igualmente, ficar comprovada a existência de repercussão geral. Como forma de se evitar abusos como acima visualizado, mesmo com o encerramento da função específica, os processos obedeceriam ao sistema de perpetuatio jurisdictionis, mantendo-se no Tribunal de Prerrogativa, desde que lá se tenha iniciado pelo exercício da função ou mandato. Pensamos que, no cotejamento entre os valores envolvidos, a manutenção do processo na Corte é medida que mais se afina com um primado de justiça, evitando-se interrupções que podem conduzir ao esfacelamento da vertente punitiva do Estado. A medida opera todas as necessidades democráticas: i) a existência de um foro por prerrogativa afasta os exercentes de cargos das cóleras locais, preservando-lhes uma discussão mais técnica; ii) cria-se a possibilidade de duplo grau de jurisdição ordinário; iii) garante-se a independência dos juízes que irão exercer tal encargo; iv) não furta do STF as análises extraordinárias de ofensa à Constituição, embora diminua-lhe consideravelmente a carga de processos, para os quais não se encontra devidamente aparelhado; v) impede-se o abuso de direito como forma a dificultar a persecução do Estado. E, mais importante, a criação do referido Tribunal permitirá, em conjunto com outras medidas, que o Supremo Tribunal Federal se dedique com mais atenção e qualidade à sua função precípua: a de exercer o controle de constitucionalidade no plano abstrato. Outrossim, o gargalo sufocante do STF diz respeito, principalmente, às suas competências recursais, tanto ordinárias quanto extraordinárias. Como já dissemos, 87% dos processos que chegaram à Corte em 2015 decorreram de recursos, tanto aqueles atinentes à competência recursal ordinária (art. 102, II), quanto à competência recursal extraordinária (art. 102, III)4. Devemos nos concentrar, neste tocante, na competência recursal ordinária. De acordo com o art. 102, II, da Constituição Federal, cabe recurso ordinário ao STF de: a) habeas corpus, mandado de segurança, habeas data e mandado de injunção decididos em única instância pelos Tribunais Superiores, se denegatória a decisão; b) crimes políticos. Em realidade, tal competência aparenta-se de pequena magnitude. Todavia, como consta do relatório Supremo em Números, entre 1988 e 2009, chegaram ao STF 95.306 processos, isto é, 7,8% do total, advindos do âmbito ordinário5. Embora pareça pouco relevante, o certo é que tal quantia representa praticamente o mesmo número de processos - no total - que chegaram à Corte em 20156. Ao depois, nenhuma mudança real ocorrerá na seara de trabalho da Corte se deixar de considerar a reforma de alguma de suas competências. Não é só. O envio de tais recursos ao Supremo em nada auxilia na transformação da Corte em um inequívoco Tribunal Constitucional, que deve ser a guia principal para a reforma da instituição. Claro que tal competência tem sua razão de ser. No caso da alínea a, nota-se que não é qualquer recurso de remédio constitucional que chega à Corte, mas apenas aqueles decididos em única instância pelos Tribunais Superiores, isto é, quando tais remédios possuem competência originária em tais Tribunais. Além disso, tal esfera recursal realiza o princípio do duplo grau de jurisdição. Já no caso da alínea b, quis-se conferir à Corte o papel de decidir em última instância acerca dos crimes políticos, de especial relevo para a sociedade, mormente após o longo hiato autoritário enfrentado pelo Brasil entre 1964 e 1985. Da mesma forma, aplica-se o duplo grau de jurisdição. Pensamos, todavia, que as questões comportam soluções distintas, mas que, em ambos os casos, afastam tais competências do Supremo. No caso da alínea a, isto é, dos recursos contra remédios constitucionais de competência originária dos Tribunais Superiores, o duplo grau de jurisdição poderia ser resolvido internamente. Assim, quando distribuídos tais remédios aos Tribunais, comportam eles julgamento imediato pelas suas Turmas ou por um de seus Ministros - monocraticamente -, realizando-se o duplo grau com o recurso ao próprio Plenário. Poder-se-ia argumentar que tal solução não realiza o princípio em comento, uma vez que a decisão será desafiada no mesmo Tribunal. Mas também se olvida que na esmagadora maioria dos casos, o duplo grau se realiza dessa forma. Assim, com a decisão de 1ª instância, opõe-se recurso para o Tribunal ao qual pertence o magistrado de 1ª instância. A única diferença é que aquele que julgou em primeira instância, ainda que venha a fazer parte do corpo de segunda instância, estará impedido de participar do julgamento recursal (art. 144, II, do Código de Processo Civil). A solução é simples: da decisão monocrática ou da Turma passa a caber recurso ordinário ao Plenário, estando impedido de atuar em tal julgamento aquele ou aqueles que participaram da primeira decisão. Já com relação aos crimes políticos, entendemos que tais competências podem ser conferidas ao Tribunal de Prerrogativa, sendo vedado apenas que o juiz - ou a Turma - que proferiu a primeira decisão participe do julgamento do recurso pelos demais membros do Tribunal. Em ambos os casos, ao STF caberia apenas recurso extraordinário quando demonstrada ofensa à Constituição Federal e desde que presente a já mencionada repercussão geral. Dessa forma, o Supremo estaria preocupado com questões abstratas de controle de constitucionalidade, ou questões que embora concretas foram abstrativizadas, não devendo jamais se converter em Tribunal preocupado com a ordinarização de recursos, o que lhe induz, por exemplo, a realizar análises probatórias, absolutamente incompatível com a seriedade e a importância que se espera de um Tribunal Constitucional. ___________ 1 BARROSO, Luís Roberto. Estado, Sociedade e Direito. 2 BARROSO. Op. cit. 3 BARROSO. Op. cit. 4 BORGES DE OLIVEIRA, Emerso Ademir. Curso de jurisdição constitucional. p.225. 5 FALCÃO; CERDEIRA; ARGUELHES. I Relatório Supremo em Números: O Múltiplo Supremo. p.16. 6 A mesma preocupação dominava os quadros da Suprema Corte ainda em 1983, ao se constatar que o número de processos entrados saltou de 997 em 1943 para 4.222 naquele ano. "Este número reflete enorme aumento no número de entradas de processos durante os anos 50 e 60, seguido de um aumento mais moderado nos anos 70 e no início dos anos 80. O crescimento do acúmulo de processos na Corte (...) mostra que o acúmulo de processos na Corte em 1983 foi quase o dobro daquele de 1963 e mais de quatro vezes aquele de 1943". BAUM, Lawrence. A Suprema Corte americana. p.160.  
Daniel Barile da Silveira O Supremo Tribunal Federal possui três órgãos, absolutamente distintos e descritos em seu Regimento Interno (RISTF): é composto por um órgão monocrático, a Presidência, que tem por função atender as questões administrativas de organização e decisão sobre a atuação do Tribunal, e ainda, por dois órgãos colegiados: o Plenário, composição composta pela totalidade dos Ministros; e duas Turmas, 1ª. e 2ª., composta cada um por cinco membros, dos quais o Presidente não participa e não vota (arts. 3º e 4º, do Regimento Interno do STF). Os órgãos fracionários do STF, consistente nas duas Turmas, por disposição regimental, são presididas sempre pelo Ministro mais antigo, de maneira subsequencial, com mandato de 01 ano. Já a representação da totalidade dos membros do Tribunal, o Plenário, é presidida pelo Presidente da Corte, que organiza as atividades das sessões e conduz os processos levados a julgamento. Neste sentido, a Presidência da Corte é exercida por um mandato de 02 (dois) anos, vedada a reeleição. Sua escolha se dá por votação secreta, a partir de deliberação que alcança, ao menos, oito Ministros para sagrar-se eleito (art. 12, §§ 1º e 2º, do RISTF). Embora seja possível qualquer Ministro se candidatar e percorrer os fechados salões do STF na conquista destes votos, pela regra oculta, não expressa no Regimento Interno, sempre se adotou o hábito de o Ministro mais antigo na casa ser eleito pela quase unanimidade dos votos. Menciona-se "quase" porque, este, sabendo-se ser o virtualmente eleito, vota no segundo mais antigo, o qual, por sua vez, comporá a Vice-Presidência. Uma "regra costumeira e singular", procedimento simbólico "que nos evita desgastes necessários", como já observara o Ministro Cezar Peluso. Por tal concepção, as atividades externas e do Ministro-Presidente da Corte permite que esteja formalmente desincumbido das funções de julgamento do Tribunal. Sua atividade se concentra, em sua maior parte, na organização das tarefas administrativas e na condução da política da Corte naquele biênio. Conforme se verifica do RISTF (que me permitam a longa transcrição): Art. 13 - São atribuições do Presidente: I - velar pelas prerrogativas do Tribunal; II - representá-lo perante os demais poderes e autoridades; III - dirigir-lhe os trabalhos e presidir-lhe as sessões plenárias, cumprindo e fazendo cumprir este Regimento; IV - (suprimido); V - despachar: a) antes da distribuição, o pedido de assistência judiciária; b) a reclamação por erro de ata referente a sessão que lhe caiba presidir; c) como Relator, nos termos dos arts. 544, § 3o, e 557 do Co'digo de Processo Civil, ate' eventual distribuic¸a~o, os agravos de instrumento, recursos extraordina'rios e petic¸o~es ineptos ou de outro modo manifestamente inadmissi'veis, inclusive por incompete^ncia, intempestividade, deserc¸a~o, prejui'zo ou ause^ncia de preliminar formal e fundamentada de repercussa~o geral, bem como aqueles cuja mate'ria seja destitui'da de repercussa~o geral, conforme jurisprude^ncia do Tribunal; d)1 como Relator, nos termos do art. 38 da Lei n. 8.038/1990, ate' eventual dis- tribuic¸a~o, os habeas corpus que sejam inadmissi'veis por incompete^ncia manifesta, encaminhando os autos ao o'rga~o que repute competente. VI - executar e fazer cumprir os seus despachos, suas deciso~es monocra'ticas, suas resoluc¸o~es, suas ordens e os aco'rda~os transitados em julgado e por ele rela- tados, bem como as deliberac¸o~es do Tribunal tomadas em sessa~o administrativa e outras de interesse institucional, facultada a delegac¸a~o de atribuic¸o~es para a pra'tica de atos processuais na~o deciso'rios VII - decidir questo~es de ordem ou submete^-las ao Tribunal quando entender necessa'rio; VIII - decidir, nos períodos de recesso ou de férias; IX - proferir voto de qualidadenas deciso~es do Plena'rio, para as quais o Re- gimento Interno na~o preveja soluc¸a~o diversa, quando o empate na votac¸a~o decorra de ause^ncia de Ministro em virtude de: a) impedimento ou suspeic¸a~o;b) vaga ou licenc¸a me'dica superior a trinta dias, quando seja urgente a mate'ria e na~o se possa convocar o Ministro licenciado X - dar posse aos Ministros e conceder-lhes transferência de Turma; XI - conceder licença aos Ministros, de até três meses, e aos servidores do Tribunal; XII - dar posse ao Diretor-Geral, ao Secretário-Geral da Presidência e aos Assessores-Chefes; XIII - superintender a ordem e a disciplina do Tribunal, bem como aplicar penalidades aos seus servidores; XIV - apresentar ao Tribunal relatório circunstanciado dos trabalhos do ano; XV - relatar a arguição de suspeição oposta a Ministro; XVI - assinar a correspondência destinada ao Presidente da República; ao Vice-Presidente da República; ao Presidente do Senado Federal; aos Presidentes dos Tribunais Superiores, entre estes incluídos o Tribunal de Contas da União; ao Procurador-Geral da República; aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal; aos Chefes de Governo estrangeiro e seus representantes no Brasil; às autoridades públicas, em resposta a pedidos de informação sobre assunto pertinente ao Poder Judiciário e ao Supremo Tribunal Federal, ressalvado o disposto no inciso XVI do Art. 21. XVI-A - designar magistrados para atuac¸a~o como Juiz Auxiliar do Supremo Tribunal Federal em auxi'lio a` Preside^ncia e aos Ministros, sem prejui'zo dos direitos e vantagens de seu cargo, ale'm dos definidos pelo Presidente em ato pro'prio; XVII - convocar audie^ncia pu'blica para ouvir o depoimento de pessoas com experie^ncia e autoridade em determinada mate'ria, sempre que entender necessa'rio o esclarecimento de questo~es ou circunsta^ncias de fato, com repercussa~o geral e de interesse pu'blico relevante, debatidas no a^mbito do Tribunal. XVIII - decidir, de forma irrecorri'vel, sobre a manifestac¸a~o de terceiros, subs- crita por procurador habilitado, em audie^ncias pu'blicas ou em qualquer processo em curso no a^mbito da Preside^ncia. XVII - praticar os demais atos previstos na lei e no Regimento. Ante a descrição mencionada, para além das tarefas burocráticas, as funções da Presidência são de grande importância, de maneira a conduzir a rotina do Tribunal e de construir um perfil institucional perante os demais Poderes constituídos e os demais órgãos do Poder Judiciário. A Agenda política de relacionamentos estabelecida, o mecanismo de relacionamento com o Congresso Nacional e a Presidência da República, bem como com Cortes e autoridades estrangeiras moldam, o perfil de atuação político do Tribunal. De forma endógena, ele organiza as tarefas cotidianas da Corte, concentrando os esforços em políticas específicas de acordo com a concepção que a Presidência detém da forma de atuação organizacional da cúpula do Poder Judiciário. De certa maneira, o Presidente estabelece o ritmo e representa o perfil público do Tribunal naqueles dois anos de mandato, de maneira a cada qual que exerce o cargo querer, ainda que minimamente, construir sua história e legado. Insta mencionar que, não obstante as tarefas próprias do Supremo, a função de Presidente do Supremo é cumulada com a Presidência do Conselho Nacional de Justiça, nos termos do art. 103-B, §1º CF/88. Considerando que aquele órgão possui a função de organizar a atividade judiciária no país, regulamentar as práticas judiciais e cartoriais, bem como de preservar a autoridade do Poder Judiciário nacional, inclusive com poder de averiguação disciplinar sobre os juízes, o poder ínsito à Presidência do STF é ainda mais notório, já que coordena todas estas atividades. Sem embargo, dentre as funções mais importantes no STF é a de organizar a pauta de julgamento. Por mais que a sociedade ou o corpo político do Congresso e da Presidência da República, dentre outros atores, possam pressionar para a inclusão na agenda de julgamento determinados casos, é fato que a decisão final deriva do comando do Presidente. Aqui não existe uma agenda pré-definida de assuntos e prioridades claras, procedimento que se tornou regra, tampouco há uma previsão de pautamento de casos sem uma antecedência razoável, sendo que as demandas a serem julgadas são conhecidas do público com poucos dias de antecedência. Essa governança sobre a pauta do Tribunal determina não somente a seletividade dos casos a serem postos a julgamento, mas também faz medir o nível de enfrentamento de uma decisão com as críticas da sociedade e demais agentes políticos. Como se vê, a decisão de criar a pauta é, antes de tudo, política, muito mais que técnica, mormente em casos de debates sociais complexos. Esse modelo de colocação na pauta consegue resolver até questões de morosidade no Tribunal, perpetrada pelos Relatores dos casos. Isto porque, via de regra, não existem instrumentos processuais na Corte que permitam uma prática processual mais célere quanto à liberdade do Ministro decidir, cabendo ao talante de cada um dos gabinetes desenvolver instrumentos internos para gerir os processos. Objetivamente, o Regimento Interno é silente, não chegando nem a detalhar prazos máximos para os Ministros permanecerem com processos abertos em suas mãos. Na miríade da permissibilidade, poucos são os instrumentos resolutórios para sanar a morosidade. Emblemático foi, por exemplo, o caso da edição da resolução 278/03 do STF, a qual fixava o prazo de até 20 dias para o Ministro permanecer com um processo com pedido de vista em sessão de julgamento, podendo ser prorrogada por mais 10 dias, a pedido, durante a sessão, após o vencimento deste prazo inicial. Tal prorrogação dificilmente era negada, apesar do certo "constrangimento" de submeter o requerimento aos demais membros ante a inapreciação da matéria1. Caso descumprido o prazo, o Tribunal lançaria mão dos poderes avocatórios do Presidente em chamar o processo ao julgamento, o que faria com que o Ministro requisitado sempre se precavesse em tomar as providências devidas no prazo estabelecido, a fim de evitar indelicadezas institucionais. Entretanto, a Resolução foi sutilmente modificada em 2006, fazendo com que, ultrapassados os 20 dias iniciais do pedido de vistas, fosse feito apenas um comunicado formal ao Ministro da expiração de seu prazo, lembrando-o do afazer. Não havendo retaliações, favorece-se o prolongamento do período de um processo aberto com determinado ministro2. Não obstante ainda, em nada se impede atualmente que outro Ministro peça vistas novamente ou ainda que haja o sobrestamento do feito, situações estas que indubitavelmente atrasam o julgamento definitivo3. É este, ainda, dentre muitos outros, um ponto a ser resolvido. Referência CARVALHO, Luiz Maklouf. Quosque tandem. Revista Piauí, n. 48, set. , São Paulo, 2010. __________ 1 Vide: "Art. 1º O Ministro que pedir vista dos autos deverá devolvê-los no prazo de 10 (dez) dias, contados da data que os receber em seu Gabinete. O julgamento prosseguirá na segunda sessão ordinária que se seguir a devolução, independentemente da publicação em nova pauta. § 1º Não devolvidos os autos no termo fixado no caput, fica o pedido de vista prorrogado automaticamente por 10 (dez) dias, findos os quais o Presidente do Tribunal ou da Turma consultará, na sessão seguinte, o Ministro, que poderá, justificadamente, renovar o pedido de vista. § 2º Esgotado o prazo da prorrogação, o Presidente do Tribunal ou da Turma requisitará os autos e reabrirá o julgamento do feito na segunda sessão ordinária subsequente, com publicação em pauta". 2 Eis a nova redação: "§1º .Não devolvidos os autos no termo fixado no caput, fica o pedido de vista prorrogado automaticamente por 10 (dez) dias, findos os quais a Presidência do Tribunal ou das Turmas comunicará ao Ministro o vencimento do referido prazo". 3 Como bem expressou o ex-Ministro Maurício Corrêa, em entrevista à Revista Piauí, o pedido de vista "é o drama pior, mais terrível, mais lamentável, do Supremo. Tem ministro lá que está com processo desde que tomou posse" (2010, p. 11). E ainda complementou: "Na minha época, os prazos eram respeitados. O problema é que agora eles relaxaram, ninguém cumpre". Na mesma entrevista, o também ex-Ministro Ilmar Galvão completa: "O pedido de vista está mais para vista grossa" (2010, p.11).
Daniel Barile da Silveira Estabelece a Constituição Federal que a nomeação dos ministros do Supremo Tribunal Federal é tarefa do presidente da República, depois de aprovada a escolha por maioria absoluta do Senado Federal (art. 101, parágrafo único, CF/88). Eles serão escolhidos dentre cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada. Para tanto, o exercício desse controle demandado constitucionalmente é feito por uma Comissão Permanente, prevista no art. 72, inciso III do Regimento Interno do Senado, mais especificamente nominada de "Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania" - CCJ, sendo sua competência de julgamento acerca da escolha dos Ministros do STF descrita no art. 101, II, "i", ab initio, daquele diploma legal. É uma comissão composta de 27 titulares (art. 77, III, RISF - Regimento Interno do Sendo Federal) e são designados pelos líderes dos partidos políticos e pelo Presidente da Comissão, "tanto quanto possível, a participação proporcional representações partidárias ou dos blocos parlamentares com atuação no Senado Federal" (art. 78, RISF). Os procedimentos de "Escolha de Autoridades", nome este dado ao caso, estão descritos no art. 383 do Regimento, sendo ali previstas todas as etapas respectivas do apregoamento. A sessão é aberta com o quorum de, no mínimo, maioria de seus membros (art. 107, I, "c", RISF). Para tanto, o encaminhamento do nome do candidato ("Mensagem") é seguido de seu curriculum vitae, acompanhado de amplas informações genéricas sobre sua vida pretérita. A partir de então é indagado "sobre assuntos pertinentes ao desempenho do cargo a ser ocupado" (art. 383, inciso II, RISF). A reunião será pública, sendo sua votação secreta, vedada a justificação ou esclarecimento do voto (art. 383, inciso VI, RISF), o que é feito após a sabatina do candidato. É esperado que lhe seja perguntado praticamente qualquer questão que esteja em intimidade com a aferição dos postulados do notável saber jurídico e da reputação ilibada, o que demonstra a amplitude do leque de questionamentos que se abre. Assim, em resumo, no Brasil, o processo legal de escolha de um Ministro do Supremo Tribunal Federal segue um rito bastante pormenorizado. Envolve, especificamente, 4 etapas: 1. Aberta uma vaga no Supremo Tribunal, compete ao Presidente da República indicar um nome, ao seu livre arbítrio, desde que possa preencher os requisitos constitucionais antes mencionados, procedimento realizado através de uma Mensagem dirigida ao Senado Federal; 2. No Senado, a indicação é encaminhada para a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) para emissão de parecer sobre a indicação (art. 101, inciso II, alínea "i", do RISF), de responsabilidade de um Relator designado, o qual fará a apresentação do candidato e de seus atributos curriculares e profissionais; 3. Ao final, submete-se o candidato a uma sabatina, realizada também na CCJ, pela qual será possível aferir a postura, o saber jurídico, a compreensão de vida e o currículo do indicado, quando então, uma vez deliberado em votação secreta, emite-se um relatório da Comissão sobre a aprovação do candidato. Este relatório é encaminhado ao Plenário do Senado Federal para votação definitiva, órgão soberano para deliberar sobre tal matéria; 4. Após a aprovação no Legislativo, o Presidente da República nomeia o candidato, marcando a data da posse (art. 84, XIV, da CF/88). O caso da concordância do Senado Federal no processo de nomeação de Ministros é emblemático. Assim, compete o Senado exercê-lo de três formas diferentes, em três momentos diferentes: a) durante a leitura prévia do relatório pelo Presidente da Comissão e no decorrer da sabatina, na verificação do cumprimento dos requisitos constitucionais (em especial, notório saber jurídico e a reputação ilibada); b) na formulação de perguntas esparsas aos candidatos, no âmbito da sabatina da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), para permitir conhecer o perfil profissional do escolhido, sua visão de mundo, seu modo de entender o Direito e seu provável comportamento jurisdicional, sua visão política, o conjunto de relacionamentos pessoais e políticos do candidato, bem como outros elementos de relevância, caso seja nomeado; c ) no momento da votação pelo Plenário do Senado do relatório encaminhado pela CCJ, com o parecer favorável, após a realização da sabatina. Por mais que estas três oportunidades de averiguação do candidato possam ser realizadas, é praxe que todo o contexto de análise seja concentrado na sabatina. Tanto a leitura do relatório, feita de forma prévia, quanto a aprovação do Plenário da Casa em momento posterior à votação ocorrida na sabatina da Comissão de Constituição e Justiça, ambos os atos possuem manifestações protocolares. São, portanto, os membros da Comissão de Constituição e Justiça que decidem os destinos dos Ministros indicados, através de sua deliberação secreta. Este procedimento é formalizado e permanece vigente desde o início da Constituição de 88. Novidade interessante ocorreu em maio de 2015, quando então do agendamento da sabatina do atual Min. Luiz Edson Fachin, ocasião em que se permitiu, pela primeira vez, a participação da população através de sugestões de questionamentos ao indicado por meio da internet e telefone1. Conforme o site do Senado Federal, só nesta primeira tentativa, foram quase 700 participações de populares sugerindo perguntas para a sabatina. De tal modo, a participação popular encontra respaldo no art. 383, II, "c", do Regimento do Senado Federal, possibilitando ao relator do processo, inclusive, agendar uma audiência pública em consonância com as informações solicitadas e indagações propostas pelos cidadãos. Entretanto, mesmo havendo um modelo hígido institucionalmente, em funcionamento há décadas, não é incomum se buscar a promoção de alterações no sistema. A exemplo, citam-se os projetos de Resolução do Senado 87/2012, do Senador Pedro Taques (PSDB-MT) , ou ainda a do Senador Aécio Neves (PSDB-MG), materializada no Projeto de Resolução do Senado nº. 35/2013. Estas propostas buscam permitir que os indicados possam efetuar um relato mais minucioso acerca dos procedimentos que os levaram à Corte, de maneira a poder tornar mais explícito o caminhar dos escolhidos para galgar aquele espaço tão seleto: visa, em realidade, permitir que os Senadores conheçam os relacionamentos e contatos mais importantes que ensejarão que o escolhido atinja o cargo mais alto do Judiciário brasileiro. Entretanto, tais questões apesar de contribuir para o amadurecimento democrático na escolha de nossos juízes, não necessariamente encontram um respaldo prático de aprimoramento nestes longos anos de Constituição vigente. Isto porque é importante notar que as sabatinas brasileiras são céleres e encomiásticas. Em estudo realizado por Taíse Sossai Paes acerca das sabatinas no Senado brasileiro dos anos de 2000 a 2011 (2011, p. 61 et seq.) e Silveira (2015) de 2011 a 2015, percebeu-se que a média das arguições é de quatro horas, e o conteúdo das sessões é extremamente ablativa, permeada de elogios e desejos de boa-aventurança no cargo a ser ocupado. Assim se mostra o estudo com a atualização até os dias atuais: Quadro do tempo da sabatina dos Ministros no Senado Federal (2000-2018) Fonte: Paes (2011) e Silveira (2015), bem como o Autor, nesta oportunidade. Em análise do quadro acima, constata-se que apenas nos últimos anos tem sido apresentada uma sabatina mais longa, acima de 7 ou 11 horas. Notadamente, o tempo de discussão, embora seja um dado quantitativo, constitui-se verdadeiramente como um indicativo também qualitativo da profundidade das arguições com que se escolhe um Ministro em nosso país. Para se ter uma dimensão, concursos para provimento em cargos técnicos jurídicos ou mesmo exames acadêmicos em pós-graduações têm, em alguns casos, duração até maior que a média daqueles que têm por missão serem os guardiões de nosso sistema jurídico-constitucional. Veja-se que, em termos comparativos, para citar a diferença, nos Estados Unidos a sabatina pode durar dias, ou mesmo meses, sendo um processo contínuo de debates. Na história constitucional americana há registro, por exemplo, de processos de sabatina que atravessaram 122 dias, como o do Justice Louis Brandeis. A juíza Elen Kagan, indicada pelo Presidente Barack Obama, em agosto de 2010, teve um percurso de sabatina de três dias. Sua antecessora, Sonia Sotomayor, indicada por Obama em 26 de maio de 2009, experienciou de 13 de julho a 28 de julho daquele ano as indagações dos Senadores, contando pouco mais de duas semanas de questionamentos e investigações sobre seu conhecimento jurídico, sua visão política e moral dos fatos, seus currículos acadêmico e profissional, bem como se posicionaria ao decidir questões polêmicas caso assumisse a Corte. No Senado brasileiro, nota-se que os debates ali realizados têm se caracterizado pela ausência de discussões profundas sobre temas polêmicos, limitando-se a questionamentos formais, tais quais as de bancas examinadoras de provas e títulos, quando muito. Neste tempo, longas perorações e fartos elogios tomam conta de boa parte da sabatina, transformando o cenário solene de questionamentos em uma atmosfera celebrativa de apoio e desejos faustosos para o bom exercício do cargo. Perguntas, quando são feitas pelos Senadores, são formais, sendo que em muitos casos não refletem questões fundamentais da República ou de avaliação da posição do indicado sobre assuntos relevantes. No que se refere à vida pessoal e à trajetória profissional, uma boa parcela dos questionamentos são direcionados ao nível de discussões partidárias, no sentido de investigar como a vida pregressa e a circulação política antecessora do candidato influenciariam em sua provável confirmação para a Corte. Como consequência, além da rapidez, predomina a ausência de réplicas ou debates mais substanciais e, em especial, a falta de amadurecimento dessas discussões para o conhecimento do candidato. Em um único dia, em poucas horas, todo o processo de nomeação é resolvido, sem mais tempo para a reflexão das respostas e a discussão sobre a postura assumida do indicado em questões fundamentais. Um mal-estar na saúde do aspirante e o processo da escolha do sucessor para o cargo judiciário mais alto da Nação poderá estar perdido. Na história republicana brasileira, ao longo de 114 anos (1889 a 2003), o Senado Federal, durante o governo Floriano Peixoto (1891 a 1894), rejeitou cinco (5) indicações presidenciais, negando aprovação a atos de nomeação, para o cargo de Ministro do Supremo Tribunal Federal, das seguintes pessoas: (1) Barata Ribeiro, (2) Innocêncio Galvão de Queiroz, (3) Ewerton Quadros, (4) Antônio Sève Navarro e (5) Demosthenes da Silveira Lobo. O primeiro, médico, teve rejeição por pressões políticas dominantes. Os demais sofreram a mesma pressão pela rejeição, especialmente por advirem da ala de generais, avessa à discussão mais técnica e grave do Supremo. Na história constitucional recente do último século, o Senado não rejeitou a nomeação de nenhum dos indicados pelo Presidente. De tal maneira, ao que se vê, o Senado falta cumprir com o seu papel. Mesmo designado constitucionalmente para cumprir a tarefa de fiscalizar o nome escolhido, vem faltando com o seu dever, desde sempre. Isto porque as sabatinas não conseguem avaliar com profundidade a capacidade jurídica e o posicionamento político do candidato, reservando-se boa parte das rápidas sessões a um conjunto de elogios e conversas formais protocolares. Por mais que os últimos anos demonstrem uma tímida mudança, com sabatinas mais longas e com a adesão popular com a possibilidade de perguntar-se ao candidato, não se vê que tais instrumentos tenham alterado significativamente o modelo existente. Esta característica, iniciada no logo após-88, ainda mina a democracia atual, com uma sina, que merece urgentemente ser revista. Referências PAES, Taíse Sossai. A influência do processo de escolha dos ministros da Suprema Corte na judicialização da política: uma análise empírica do procedimento da sabatina dos indicados para o Supremo Tribunal Federal. Dissertação (Mestrado em Poder Judiciário). Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2011. SILVEIRA, Daniel Barile da. O poder contramajoritário do Supremo Tribunal Federal. São Paulo: Atlas, 2016. __________ 1 As participações são feitas por meio eletrônico no "Portal e-Cidadania" ou por via telefônica no "Alô Senado" (0800 61 22 11), pelo qual os cidadãos podem enviar perguntas e informações sobre o candidato.
quarta-feira, 27 de março de 2019

O volume processual do Supremo Tribunal Federal

Daniel Barile da Silveira O Supremo Tribunal Federal é o órgão de cúpula do Poder Judiciário brasileiro e, por força constitucional, tem-lhe reservada a incumbência de ser o guardião da Constituição. Nos termos das transformações trazidas em 1988, com a nova Carta Constitucional, um número bastante amplo de atribuições foi-lhe conferido, de maneira a que o Tribunal se ocupe tanto como intérprete oficial do texto da Constituição, exercendo o papel de um tribunal constitucional, tal qual tem exercido o mister de ser a última voz em matéria de recursos, no exercício de atribuições que são típicas de um tribunal de cassação. Por fim, ainda é palco de ações originárias de entes políticos com prerrogativa de foro, caracterizando-o como um órgão de julgamento especializado. Ademais, a Constituição ainda lhe outorgou a função de ser o árbitro último de conflitos entre outros tribunais, como na relação entre Estados e organizações estrangeiras e entes políticos nacionais, além de apresentar-se como uma diretriz unificadora da jurisprudência nacional, dentre muitas outras tarefas de modo a perfilhar um vasto papel no Poder Judiciário brasileiro. Neste sentido, boa parte da roupagem assumida por nossa Corte Suprema é fruto do desenho institucional engendrado pelo legislador constituinte, o qual se preocupou em reservar-lhe competências bastante amplas. O art. 102, da CF é o norte para o exercício da competência do tribunal, com um extenso conjunto de atribuições1. Outra parte de sua preponderância se dá pela autocrática gestão de sua jurisprudência, a qual vem congregando esforços para o seu crescimento enquanto órgão de poder na engenharia institucional atual. Como pode nos lembrar Dalmo Dallari (2002, p. 112-113), durante a Constituinte de 88, uma ampla bancada legiferante apresentou um projeto de criar-se um distinto tribunal constitucional, no sentido de destinar-lhe tão somente o julgamento das questões de agressão ao texto constitucional, bem como a responsabilização dos agentes que dessa violação auferissem vantagens ou demonstrassem a desídia pelo trato com o constituinte originário. Entretanto, no fundado receio de perder suas principais funções e, com mais razão, o prestígio decorrente da tarefa de zelar pela Magna Carta, o corpo de Ministros então ocupantes do Supremo Tribunal Federal fez oposição cerrada a essa ideia e atuou intensamente junto aos constituintes, de maneira a impedir a criação daquele tribunal. Por tal viés de compreensão, conceitualmente é possível dizer que o Supremo Tribunal Federal assumiu formalmente o desenho de um tribunal constitucional e de uma corte revisora de processos, compondo um amálgama de tarefas que são distribuídas diariamente a seus membros como dever de ofício nesses dois campos funcionais distintos. Paralelamente a estas funções primordiais, assume a atividade de uma corte especial para julgamento de ações originárias, tais quais os crimes praticados por agentes especiais, além de resolver o conflito de competências de tribunais superiores e entre Estados estrangeiros. Destarte, basicamente as funções exercidas pelo Supremo Tribunal Federal no contexto da Constituição da República de 88 podem ser definidas em competência originária (art. 102, I, da CF) e competência recursal, esta última podendo ser dividida em competência recursal ordinária (art. 102, II, da CF) e competência recursal extraordinária (art. 102, III, da CF). O fato é que nem todos os ministros do STF julgam equanimemente. Isto porque o Supremo Tribunal Federal é composto por um órgão monocrático, a Presidência, cuja função é atender às demandas administrativas de gerenciamento da cúpula do Poder Judiciário, e por dois órgãos colegiados: o Plenário, composto por todos os Ministros; e duas Turmas, formada cada um por cinco membros e de competências semelhantes, excluída a votação do Presidente (arts. 3º e 4º, do Regimento Interno do STF). A Turma, por disposição regimental, é conduzida pelo Ministro mais antigo, sendo retransmitida àquele que apresente a mesma condição depois de transcorrido 01 (um) ano de sua administração. Tanto as competências do Plenário, quanto a das Turmas, estão definidas nos arts. 5º a 11 do Regimento, dispondo os detalhes de cada um dos feitos em que atuarão. A Presidência da Corte é exercida por um mandato de 02 (dois) anos, vedada a reeleição. Ela é eleita por votação secreta, com o quorum de oito Ministros (art. 12, §§ 1º e 2º, do RISTF). Ocorre que o Supremo Tribunal Federal, de fato, não exerce suas competências nos moldes apresentados pelas Cortes Constitucionais europeias, as quais, em sua grande maioria, trabalham como exclusivos tribunais constitucionais. Pensando quantitativamente, o Supremo Tribunal Federal não é uma Corte tipicamente constitucional. Em pesquisas relativamente recentes realizadas pela Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro, percebeu-se que, de todos os processos julgados pela Corte, de 1988 a 2010, apenas 6.199 são tipicamente constitucionais (0,51%). Extraídos os 95.306 (7,80%) processos que são de competência ordinária, ou seja, que não se enquadram nem nos casos puramente constitucionais nem nos oriundos de recursos, tem-se a percentagem de que praticamente 92% (1.120.597) dos processo julgados pelo STF são meramente recursais. Isto é, a concentração de forças para o julgamento de casos em nossa Corte Suprema não é de uma Corte Constitucional por excelência, o que faz com que Joaquim Falcão et alli denominem tal tribunal de uma "corte recursal suprema" (2011, p. 21). Isto faz com que a escolha do que decidir julgar acaba não sendo uma decisão do Tribunal, mas da parte no processo, pela interpelação recursal. Da mesma forma que a construção de uma jurisprudência unificada da Corte, em grande medida, é direcionada para sufocar e reduzir a carga intensa de processos que precisa ser dado cabo, desgastando os esforços dos Ministros em paralelamente preclarar e otimizar uma jurisprudência essencialmente constitucional. Assim se vê : Processos ajuizados no Tribunal por categorias (1988-2010) Fonte: Supremo em Números. Relatório FGV-Direito, 2011. O que causaria tal estranheza a um tribunal constitucional não ser constitucional e sê-lo ao mesmo tempo, em um hibridismo pouco visto em Supremas Cortes mundo afora? Qual a consequência para o sistema judicial ter-se um Tribunal de competências superdimensionadas e quais as causas de tal deformação de suas competências originárias? Primeiramente, em uma esfera macro, boa parte das agruras sofridas por nosso Tribunal Maior é devida ao sistema constitucional brasileiro. Desde as primevas aulas insertas em manuais de Direito Constitucional, reforça-se a tese de que a Constituição brasileira é analítica e, portanto, hiperdetalhista, a ponto de disciplinar assuntos demais. A "desconfiança" (histórica) do legislador infraconstitucional em mitigar direitos teve papel decisivo no inchaço constitucional, posto que o constituinte originário na Constituição tudo buscou prever, aberta e compulsivamente. O jurista e estudioso Oscar Vilhena Vieira (2008, p. 447) chega a denominar tal torpor regulatório de um "ethos ambicioso" do legislador constituinte, caracterizando a verborragia constitucional já conhecida. Outro motivo está na jurisdição constitucional. Seguindo tal tendência expansiva de legislador originário, o caminho monolítico que inspirava o Procurador-Geral a provocar o Supremo direta e singularmente teve a expansão a outros agentes da sociedade, antes não legitimados em nossa história constitucional. A expansão do ajuizamento das ações diretas de inconstitucionalidade, nos termos do art. 103 da CF/88, bem como a adoção da sistemática do amicus curiae, como um nível de abertura a interessados participarem do debate sobre determinados julgamentos, ambos estes institutos, ampliaram ainda mais o leque de ações do Tribunal. Por outro lado, em um segundo plano, os processos fluem ao Tribunal pelo próprio exercício da liberdade constitucional de garantir aos juízes independência judicial. Como produtos de um sistema de direito romano-germânico, e consoante ao um constitucionalismo de Estado Democrático de Direito, os juízes, em regra, gozam fundamentalmente de liberdade de convicção, não se constituindo decisões pregressas um obstáculo para o julgamento da lide de maneira diversa a casos futuros. Isto significa que sempre é possível obter-se uma decisão diferente de um juiz ou tribunal. Neste amplo aspecto, enquanto não submetida a quaestio iuris ao crivo do Supremo Tribunal Federal, que em tese encerraria a escalada judicial, a gama de recursos tende a chegar ao topo da pirâmide judicial na busca de uma palavra final sobre o caso. Como terceiro e quarto fatores de "engorda" do volume processual é possível mencionar a astúcia advocatícia em manejar o processo até a mais alta Corte do país, fenômeno que não se mostra uma tarefa de expertise seleta diante de códigos permissivos. Um grupo mais ativo de advogados, somado a instrumentos processuais concessivos, é a combinação perfeita para que sejam propostos vários e vários recursos nas instâncias inferiores até sua chegada no Supremo Tribunal Federal, considerado então a última redoma de onde se pode prover a chance de um resultado processual positivo. Como bem nos adverte Claudio Weber Abramo, em casos de litigiosidade morosa "a única barreira é a renda do litigante" (2010, p. 426). Embora a prática judicial esteja submersa no amplo conjunto de fatores que estimulam externamente o crescimento de processos, como segundo grande motor de tal crescimento se deve à própria dinâmica interna do STF, no exercício de suas competências. Como é cediço, o Supremo Tribunal é composto por 11 Ministros, mas efetivamente apenas 10 trabalham rotineiramente em processos. Como explanado anteriormente, a escolha do Ministro-Presidente da Corte permite que se desincumba regimentalmente o Presidente das funções rotineiras de julgamento massivo em prol da organização e gerenciamento de todo funcionamento do Supremo Tribunal Federal. Não obstante o dito, a Constituição brasileira retira da tarefa cotidiana de julgar mais três Ministros do Supremo Tribunal Federal, fazendo-os cruzar os bastiões de Brasília até o Tribunal Superior Eleitoral, onde ocupam, também, as tarefas de Ministro daquele Tribunal. Nos termos do art. 119, I, "a", de nossa Carta Magna, o Tribunal Superior Eleitoral é composto por sete Ministros, sendo três deles, no mínimo, eleitos pelo voto secreto dentre Ministros do Supremo Tribunal Federal. Não fosse suficiente, o parágrafo único do mesmo artigo constitucional determina que a eleição do Presidente do TSE dar-se-á pela escolha de um dos membros eleitos do Supremo Tribunal Federal. Ou seja, além das tarefas de julgamento no STF, posto que estes Ministros eleitos para o TSE não são subtraídos da participação das Turmas da Corte Suprema, tal qual acontece com o Presidente desta, o legislador constituinte ainda atribui a estes Ministros emprestados o mister de atuar nos feitos eleitorais, designando um como Presidente, todos pelo período de dois anos, rotativamente. Um outro fator intestino do funcionamento da Corte Suprema que justifica seu aspecto idiossincrásico acerca do volume processual e que influi na praxis de sua competência se mostra em face do período de trabalho dos juízes. Atualmente o Poder Judiciário é detentor de férias de 60 dias, gozadas coletiva ou individualmente (art. 66, da Lei Complementar nº 35/79, Lei Orgânica da Magistratura). Soma-se a tal período os diversos feriados e recessos, os quais prolongam a atuação dos magistrados nos feitos sobre os quais estão governando. Não fossem suficientes tais considerações, a praxe processual do Tribunal possui suas peculiaridades que comprimem a marcha de suas funções constitucionalmente atribuídas. Conforme se nota, a Corte promove, em média, oito sessões plenárias por mês. Descontados os meses de recesso devido às férias comuns, são dez meses de trabalho, o que contabiliza aproximadamente 80 sessões por ano. Muito dificilmente a pauta do Tribunal consegue dar conta das necessidades de julgamento coletivo nesse âmbito. Entretanto, o Pleno do STF lida com apenas 0,7 % dos processos congestionados na Corte. Isso porque a maioria das decisões do Tribunal é monocrática, exercidas por cada um dos Ministros. A consequência desta prática é o tempo de julgamento. Segundo pesquisas contemporâneas2, o tempo médio de espera para um julgamento no STF é de 48 semanas, desde a entrada do processo no Tribunal até sua apreciação de mérito. Ao revés, não existem instrumentos processuais na Corte que permitam uma prática processual mais célere quanto à liberdade do Ministro decidir, cabendo ao talante de cada um dos gabinetes desenvolver instrumentos internos para gerir os processos. Objetivamente, o Regimento Interno é silente, não chegando nem a detalhar prazos máximos para os Ministros permanecerem com processos abertos em suas mãos. Na miríade da permissibilidade, poucos são os instrumentos resolutórios para sanar a morosidade. Por outro lado, uma outra consequência da praxe do comportamento judicial da Corte se deve ao fato de que os julgamentos são estranhos a um típico julgamento coletivo prévio, no qual, as discussões são feitas antecipadamente e o processo é julgado em um arrazoado conjunto, destacando-se os votos vencidos e vencedores. E claro que, explícita ou inadvertidamente, o excesso de tarefas permite com que haja um afastamento deste modelo. Ao revés, na sistemática adotada pelo Supremo Tribunal Federal, cada um dos Ministros produz seu voto isoladamente e o profere em sessão conjunta. Assim, embora o acórdão seja fruto de um julgamento colegiado, por certo que ele se mostra um somatório de votos e não a síntese de uma discussão prévia. Por mais que seja possível algum debate mais aberto, como de fato existe cotidianamente sobre algum assunto mais controverso, permitindo-se aos Ministros até a reformulação de sua convicção durante o transcorrer do julgamento, é praxe os magistrados já adentrarem as sessões com seus votos preparados, lendo-os monoliticamente a seus pares, o que dificulta a extração de um pensamento coletivo mais apurado. Por certo, o volume processual do STF possui causas e consequências e as constatações aqui lançadas servem de impressões de um comportamento compulsivo a redução de processos. Neste concerto, ainda falta em muito para que a seletividade seja posta como meta de trabalho. Apesar das mudanças mais recentes, com a inclusão de novos instrumentos processuais (repercussão geral, jurisprudência defensiva, súmulas vinculantes etc), existem questões endêmicas a serem revertidas. Pensar sobre estratégias conducentes a resolver esta questão ainda é um ponto a ser solucionado. Referências ABRAMO, Claudio Weber. Tempos de Espera no Supremo Tribunal Federal. In: Revista Direito GV, n. 6, v. 2, jul-dez, Sa~o Paulo: Fundac¸a~o Getu'lio Vargas, 2010, . 423- 442. BRASIL. Constituic¸a~o (1988). Constituic¸a~o da Repu'blica Federativa do Brasil. Brasi'lia: Senado, 1988. DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos jui'zes. Sa~o Paulo, Saraiva: 2002. FALCA~O, Joaquim et alli. I Relato'rio Supremo em Nu'meros. Rio de Janeiro: FGV- RIO, 2011. Acessado em 21/3/2019. SILVA, Jose' Afonso da. Comenta'rio Contextual a` Constituic¸a~o. 11.ed. Sa~o Paulo: Malheiros, 2016. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Estati'sticas: In: .Acessado em 21.03.2019. VIERA, Oscar Vilhena. Supremocracia. In: Revista Direito GV, n. 4., v. 2, jul-dez, Sa~o Paulo, 2008, p. 441-464. __________ 1 Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I - processar e julgar, originariamente: a) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal; b) nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República; c) nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, ressalvado o disposto no art. 52, I, os membros dos Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente; d) o "habeas-corpus", sendo paciente qualquer das pessoas referidas nas alíneas anteriores; o mandado de segurança e o "habeas-data" contra atos do Presidente da República, das Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, do Tribunal de Contas da União, do Procurador-Geral da República e do próprio Supremo Tribunal Federal; e) o litígio entre Estado estrangeiro ou organismo internacional e a União, o Estado, o Distrito Federal ou o Território; f) as causas e os conflitos entre a União e os Estados, a União e o Distrito Federal, ou entre uns e outros, inclusive as respectivas entidades da administração indireta; g) a extradição solicitada por Estado estrangeiro; i) o "habeas corpus", quando o coator for Tribunal Superior ou quando o coator ou o paciente for autoridade ou funcionário cujos atos estejam sujeitos diretamente à jurisdição do Supremo Tribunal Federal, ou se trate de crime sujeito à mesma jurisdição em uma única instância; j) a revisão criminal e a ação rescisória de seus julgados; l) a reclamação para a preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões; m) a execução de sentença nas causas de sua competência originária, facultada a delegação de atribuições para a prática de atos processuais; n) a ação em que todos os membros da magistratura sejam direta ou indiretamente interessados, e aquela em que mais da metade dos membros do tribunal de origem estejam impedidos ou sejam direta ou indiretamente interessados; o) os conflitos de competência entre o Superior Tribunal de Justiça e quaisquer tribunais, entre Tribunais Superiores, ou entre estes e qualquer outro tribunal; p) o pedido de medida cautelar das ações diretas de inconstitucionalidade; q) o mandado de injunção, quando a elaboração da norma regulamentadora for atribuição do Presidente da República, do Congresso Nacional, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, das Mesas de uma dessas Casas Legislativas, do Tribunal de Contas da União, de um dos Tribunais Superiores, ou do próprio Supremo Tribunal Federal; r) as ações contra o Conselho Nacional de Justiça e contra o Conselho Nacional do Ministério Público; II - julgar, em recurso ordinário: a) o "habeas-corpus", o mandado de segurança, o "habeas-data" e o mandado de injunção decididos em única instância pelos Tribunais Superiores, se denegatória a decisão; b) o crime político; III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida: a) contrariar dispositivo desta Constituição; b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição. d) julgar válida lei local contestada em face de lei federal. § 1.º A arguição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei. § 2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal. § 3º No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros. 2 Pojeto Meritíssimos. Acessado em 15/7/15.  
Emerson Ademir Borges de Oliveira Ao povo da República dos Estados Unidos da Bruzundanga Como visto no último texto, nosso sistema judicial possui quatro Cortes Superiores e uma Corte Suprema. No âmbito das Superiores, temos o Superior Tribunal de Justiça, o Tribunal Superior Eleitoral, o Tribunal Superior do Trabalho e o Superior Tribunal Militar. No âmbito Supremo, o Supremo Tribunal Federal. Para compreender as nossas propostas, salutar, anteriormente, analisar como funciona o processo atual de indicação de ministros para os respectivos Tribunais. a) Superior Tribunal de Justiça - Tribunal Superior da Justiça Comum - composto de, no mínimo, 33 Ministros, nomeados pelo Presidente da República, dentre brasileiros com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos, de notável saber jurídico e reputação ilibada, depois de aprovados por maioria absoluta do Senado Federal, sendo: I - um terço dentre juízes dos Tribunais Regionais Federais (11) e um terço dentre desembargadores dos Tribunais de Justiça (11), indicados em lista tríplice elaborada pelo próprio Tribunal; II - um terço, em partes iguais, dentre advogados e membros do Ministério Público Federal, Estadual, do Distrito Federal e Territórios (11), alternadamente, indicados na forma do art. 94 (com mais de dez anos de carreira ou efetiva atividade profissional, indicados em lista sêxtupla pelos órgãos de representação das respectivas classes. Recebidas as indicações, o tribunal formará lista tríplice, enviando-a ao Poder Executivo, que, nos vinte dias subsequentes, escolherá um de seus integrantes para nomeação). Nota-se, assim, que a despeito da origem diversa, após as indicações, o próprio Superior Tribunal de Justiça elabora lista tríplice, em relação a qual um dos nomes será escolhido pelo Presidente da República para posterior aprovação pelo Senado Federal. b) Tribunal Superior do Trabalho - composto de vinte e sete Ministros, dentre brasileiros com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos, de notável saber jurídico e reputação ilibada, nomeados pelo Presidente da República após aprovação por maioria absoluta do Senado Federal, sendo: I - um quinto dentre advogados com mais de dez anos de efetiva atividade profissional e membros do Ministério Público do Trabalho com mais de dez anos de efetivo exercício, observado o disposto no art. 94 ((com mais de dez anos de carreira ou efetiva atividade profissional, indicados em lista sêxtupla pelos órgãos de representação das respectivas classes. Recebidas as indicações, o tribunal formará lista tríplice, enviando-a ao Poder Executivo, que, nos vinte dias subsequentes, escolherá um de seus integrantes para nomeação); II - os demais dentre juízes dos Tribunais Regionais do Trabalho, oriundos da magistratura da carreira, indicados pelo próprio Tribunal Superior. c) Tribunal Superior Eleitoral - composto por, no mínimo, sete membros, escolhidos: I - mediante eleição, pelo voto secreto: a) três juízes dentre os Ministros do Supremo Tribunal Federal; b) dois juízes dentre os Ministros do Superior Tribunal de Justiça; II - por nomeação do Presidente da República, dois juízes dentre seis advogados de notável saber jurídico e idoneidade moral, indicados pelo Supremo Tribunal Federal. d) Superior Tribunal Militar - composto de quinze Ministros, nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a indicação pelo Senado Federal, sendo: I - três oficiais-generais da Marinha, da ativa e do posto mais elevado da carreira; II - quatro oficiais-generais do Exército, da ativa e do posto mais elevado da carreira; III - três oficiais-generais da Aeronáutica, da ativa e do posto mais elevado da carreira; IV - três dentre advogados de notório saber jurídico e conduta ilibada, com mais de dez anos de efetiva atividade profissional, dentre brasileiros com mais de trinta e cinco anos; V - dois, por escolha paritária, dentre juízes auditores e membros do Ministério Público da Justiça Militar, dentre brasileiros com mais de trinta e cinco anos. e) Supremo Tribunal Federal - composto por onze ministros, nomeados livremente pelo Presidente da República, depois de aprovada a indicação pelo Senado Federal, com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade, notável saber jurídico e reputação ilibada. Ademais, como visto no artigo anterior, em nossa proposta passamos a englobar a Justiça Administrativa, composta, em nível superior, pelo Tribunal Superior Administrativo. Ainda, propomos a mudança da Justiça Militar, que passa a ser unificada, englobando os militares das Forças Armadas e dos Estados; e, ao cabo, a estruturação definitiva da Justiça Eleitoral, deixando de emprestar juízes de outras Justiças. Todas essas propostas, por evidente, influenciam nossa forma de visualizar a composição e nomeação de Ministros nas respectivas Cortes Superiores. Na obra Curso de jurisdição constitucional, fruto de nossa pesquisa de Pós-Doutorado, pude propor, com base nos modelos norte-americano, alemão, português, francês, dentre outros, um novo formato de nomeação para os Ministros do STF, bem como requisitos para indicação e características do exercício da função. Manifestamo-nos no seguinte sentido: "Em nossa opinião, a base do sistema de indicação deve se manter, mas deverá ser precedida por um sistema de listas. Assim, com o intuito de ampliar a participação no processo de indicação, bem como ressaltar a importância do próprio Supremo Tribunal Federal, acreditamos como melhor solução a formação de uma lista com 8 (oito) nomes, sendo 2 deles indicados pelo próprio STF, e o restante, na razão de um por instituição, pelo Superior Tribunal de Justiça, Tribunal Superior do Trabalho, Tribunal Superior Eleitoral, Superior Tribunal Militar, Procuradoria-Geral da República e Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Tais instituições teriam ampla liberdade para realizar tal indicação, desde que preenchidos os requisitos constitucionais, não sendo necessário que o indicado fosse alguém de sua carreira. Conforme antes exposto, deve-se adicionar aos requisitos a necessidade de dez anos de experiência em qualquer carreira jurídica, inclusive de docência no ensino superior. A lista com oito nomes deverá ser elaborada no prazo máximo de 15 (quinze) dias da vacância do cargo. Após, será remetida ao Presidente da República que terá 5 (cinco) dias para indicar um dos nomes da lista ao Senado Federal, o qual terá mais 10 (dez) dias para realizar a sabatina e votar a indicação. Assim, resolvendo outro problema brasileiro, o preenchimento da vaga seria feito em no máximo 30 (trinta) dias. Se aprovado, o Presidente deverá nomear o indicado em 5 (cinco) dias. Se rejeitado, o processo se inicia novamente, não podendo constar da nova lista o nome desaprovado pelo Senado Federal. Se o Presidente não realizar a escolha no prazo de 5 (cinco) dias, tal atribuição passará ao Senado, que receberá a lista com os oito nomes. Em primeiro turno, será escolhido o nome do indicado dentre o mais votado. Em segundo turno, vota-se a aprovação ou reprovação do candidato mais votado. Se, no entanto, for o Senado o omisso no tempo estipulado, o encargo passará ao próprio STF, que deverá, nos mesmos 10 (dez) dias, realizar os dois turnos de votação. Pensamos que a solução é a que mais atende a todos os anseios acerca das indicações dos Ministros do STF: i) a escolha do Presidente passa a ser vinculada a uma lista composta por várias instituições, inclusive o próprio STF e o Conselho Federal da Ordem dos Advogados; ii) dessa forma, na escolha do nome diminui-se a chance de um jogo de cartas marcadas entre Presidente e Senado, deixando a sabatina mais livre e independente, voltada ao preenchimento dos requisitos subjetivos do indicado; iii) o sistema passa a ter prazos fatais, e consequentemente perda de competência, diminuindo possibilidades atentatórias à democracia de se retardar a nomeação de Ministros; iv) a própria indicação das instituições trará consigo enorme cuidado em relação aos nomes e ao preenchimento dos requisitos"1. Além disso, pensamos que os Ministros do Supremo Tribunal devem exercer um mandato, nem tão curto que banalize a função e gere insegurança jurídica, nem tão longo que perpetue as relações de poder e traga acomodação típica do exercício longo do Poder. "Considerando-se a média de exercício de atividade na Corte, pensamos que um mandato de 8 a 10 anos, não renovável, seria adequado a tais pretensões, ressaltando-se que, no caso de alcance da idade máxima (75 anos), o mandato é interrompido mesmo não tendo sido integralmente cumprido"2. A nosso ver, tais mudanças de perspectiva apresentar-se-iam fundamentais para um desenvolvimento da Corte mais alinhado ao princípio de cidadania e de empoderamento do cidadão enquanto real dono do Poder. No tocante ao Superior Tribunal de Justiça, pensamos que seu formato de nomeação é condizente com a representatividade que busca. Considerando ser o Tribunal unificador da Justiça Estadual e da Justiça Federal, nada mais natural que cada uma participe de forma equânime. Além disso, relevante a participação, em igualdade, do Ministério Público e da Advocacia. Ao depois, essencial o afunilamento realizado pelo próprio STJ no tocante às indicações, vinculando, por consequência, a indicação presidencial a um dos três nomes indicados. Igualmente adequado o quantitativo e formato no tocante ao Tribunal Superior do Trabalho, seja pela representatividade, seja pela vinculação prévia à indicação presidencial e afunilamento realizado pela própria Corte. Já no tocante ao Tribunal Superior Eleitoral, somos por medidas de mudança extremada. Em primeiro lugar porque passamos a defender que a Justiça Eleitoral se estruture a partir de quadros próprios de juízes, não mais admitindo que tome de empréstimo magistrados de outras carreiras. É preciso especializá-la, dedicá-la, especialmente diante de sua relevante função e objetivo. O primeiro efeito seria, naturalmente, não mais admitir os curtos mandatos, de apenas dois anos, e nem que seus magistrados exerçam outras funções, seja no Supremo Tribunal Federal, seja no Superior Tribunal de Justiça ou mesmo na advocacia. Em toda a carreira, a incluir o TSE, deverão haver magistrados exclusivamente dedicados. Mantendo a mesma lógica dos demais Tribunais, o ideal é que um quinto dos membros provenha da advocacia e do Ministério Público e os demais a partir da promoção dos Tribunais Regionais Eleitorais. O problema é que, em vista da reestruturação, não haveria como se dar, por ora, essa promoção. Além disso, seria necessário aguardar a criação consequente do próprio Ministério Público Eleitoral. Necessário, assim, que se apresente uma regra de transição, a viger por pelo menos dez anos, antes que a regra acima passe a ser aplicada. Após dez anos, todos os membros indicados neste novo modelo deixariam a Corte e os novos membros seriam indicados conforme a regra definitiva e de forma vitalícia. Enquanto regra de transição, apresentamos a seguinte proposta: a) dois membros a partir de indicação do Conselho Federal da Ordem dos Advogados, com redução da lista para tríplice, a ser realizada pelo Supremo Tribunal Federal e escolha pelo Presidente da República, dependente de aprovação por maioria absoluta do Senado Federal; b) dois membros a partir de indicação dos Ministérios Públicos Estaduais e Federal, com redução da lista para tríplice, a ser realizada pelo Supremo Tribunal Federal e escolha pelo Presidente da República, dependente de aprovação por maioria absoluta do Senado Federal; c) três membros, a partir de indicação dos Tribunais de Justiça e Regionais Federais, com redução da lista para tríplice, a ser realizada pelo Supremo Tribunal Federal e escolha pelo Presidente da República, dependente de aprovação por maioria absoluta do Senado Federal. No tocante ao Superior Tribunal Militar, nossa proposta fora a de unificação da competência da Justiça Militar, a englobar as forças federais e estaduais. Por evidente, este novo modelo passaria a exigir a participação de membros dos Tribunais de Justiça Militar dos Estados. Nossa proposta seria algo próximo do atual funcionamento do STJ: a) um terço destinado aos oficiais-generais das Forças Armadas, de quaisquer ramos; b) um terço por promoção a partir dos juízes dos Tribunais de Justiça Militar dos Estados; c) um terço a partir de membros da advocacia e do Ministério Público Militar. Em todos os casos, os membros seriam indicados pelas respectivas instituições e o próprio STM reduziria à tríplice a lista original. O Presidente da República faria a indicação, dependente de aprovação por maioria absoluta do Senado. Por fim, quanto ao Tribunal Superior Administrativo, o plano definitivo seria no mesmo sentido do Tribunal Superior do Trabalho, com um quinto formado por membros do Ministério Público Estadual ou Federal e advocacia e o restante a partir de promoção dos Tribunais Regionais Administrativos. Todos seriam indicados pelas respectivas instituições, com lista reduzida à tríplice pelo próprio TSA e indicação do Presidente vinculada à aprovação de maioria absoluta do Senado. Contudo, como a carreira estaria se iniciando, inclusive em primeira instância, seria necessária uma regra de transição de pelo menos quinze anos. Ao cabo destes quinze anos, todos os Ministros seriam desligados e passaria a se aplicar a regra definitiva. Como transição, propomos: a) um quinto dos Ministros decorrentes da advocacia, a partir de indicação da OAB; b) um quinto dos Ministros decorrentes do Ministério Público Estadual e Federal, a partir de indicação das instituições; c) um quinto dos Ministros decorrentes dos Tribunais Regionais Federais, a partir de indicação dos Tribunais; d) um quinto dos Ministros decorrentes dos Tribunais de Justiça; e) um quinto dos Ministros decorrentes do Conselho Administrativo de Recursos Federais e dos Tribunais de Impostos e Taxas, conforme respectivas indicações. Após as indicações, o STF reduziria a lista para três nomes em cada vaga e o Presidente indicaria um, dependente de aprovação por maioria absoluta no Senado Federal. Note-se que, em geral, a regra de vitaliciedade se mantém, exceto para o Supremo Tribunal Federal, em que passa a viger a regra de mandato, em especial diante da aproximação política que consubstancia as análises do Tribunal e a necessidade constante de oxigenação dos pares. Pensamos que, a partir deste formato, os Tribunais Superiores e Supremo estariam melhores vocacionados, direcionados, especializados e representados, compostos por elementos humanos plurais e hábeis. Não nos furtamos, contudo, às críticas e outras propostas. __________ 1 BORGES DE OLIVEIRA, Emerson Ademir. Curso de jurisdição constitucional. p.220-221. 2 BORGES DE OLIVEIRA, Emerson Ademir. Curso de jurisdição constitucional. p.224.
Emerson Ademir Borges de Oliveira Ao povo da República dos Estados Unidos da Bruzundanga A existência de alta demanda judicial conduz à especialização. Em países litigiosos como o Brasil, é normal que, ao lado da Justiça comum, existam as chamadas "especializadas", destinadas a atender segmento específico do Direito. Assim, tudo aquilo que não fosse alcançado pelos setores específicos do Judiciário, recairia à Justiça Comum. Na organização Judiciária brasileira, é cediço que são especializadas as Justiças do Trabalho, Eleitoral e Militar, cada qual detendo seu respectivo Tribunal Superior e todas elas sob a égide da União. São, assim, Justiças Federais especializadas. No topo de cada uma, respectivamente, o Tribunal Superior do Trabalho, o Tribunal Superior Eleitoral e o Superior Tribunal Militar. A estrutura é muito próxima da alemã, onde existem cincos Tribunais Superiores: o Tribunal Federal da Justiça (Bundesgerichtshof), o Tribunal Federal Administrativo (Bundesverwaltungsgericht), o Tribunal Federal das Finanças (Bundesfinanzhof), o Tribunal Federal do Trabalho (Bundesarbeitsgericht) e o Tribunal Federal Social (Bundessozialgericht), com propósito de jurisdição, respectivamente, ordinária, administrativa, financeira, do trabalho e da previdência. Há, assim, na Alemanha, quatro justiças especializadas. Os Estados Unidos adotam, como a Alemanha, Tribunais Federais especializados para determinados temas (Legislative Courts). Assim, temos, o Tribunal de Ações Federais (Court of Federal Claims), para ações de indenização contra o país; o Tribunal de Comércio Internacional (Court of International Trade), para julgamento de ações cíveis contra o país, seus órgãos ou funcionários quando a questão envolver lei de comércio internacional; o Tribunal de Recursos para as Forças Armadas (Court of Appeals for the Armed Forces), para análise de recursos de decisões impostas pelas Cortes Marciais; o Tribunal de Recursos para os ex-Combatentes (Court of Veterans Appeals), para revisão de decisões do Departamento de Veteranos de Guerra; o Tribunal Fiscal dos Estados Unidos (U.S. Tax Court), para análise de matéria tributária federal; as Varas de Falências e Concordatas (Bankruptcy Courts). As Cortes especializadas atuam em 1ª Instância, sendo que de suas decisões cabe recurso para as Circunscrições Federais (Tribunais de 2ª Instância na esfera federal). Corwin ressalta, no entanto, que os poderes de tais Tribunais, por vezes, englobam elementos não-judiciais, sendo que não podem ser eles classificados como parte do Poder Judiciário dos Estados Unidos, sendo que a garantia aos seus juízes existe por conta de lei1. Em Portugal, a estrutura é mais enxuta. Tem-se o Tribunal Constitucional, enquanto um órgão supra, responsável pela guarda da Constituição, e três outras divisões judiciais, a saber: a) Supremo Tribunal de Justiça; b) Supremo Tribunal Administrativo; c) Tribunal de Contas (art. 209º). Além disso, é possível a existência de Tribunais Marítimos, Tribunais Arbitrais e Julgados de Paz2. A existência de Justiças especializadas é, evidentemente, um processo natural decorrente da necessidade de juízes mais bem preparados para lidar com temáticas de grande demanda. Frequentemente surgem propostas que busquem extinguir determinados ramos, como tanto se fala acerca da Justiça Trabalhista no Brasil. Particularmente, penso que o problema da Justiça do Trabalho nunca foi seu propósito e sua especialização, extremamente necessária. Mas sim o desvio quanto à sua finalidade. Isso porque o direito material já tem uma vertente protecionista ao trabalhador, que não precisa ser acentuada por desastradas posições processuais tomadas por alguns juízes e tribunais. Vale frisar que os princípios protetivos do trabalhador são de cunho material, e não autorizadores de conduta processual na avaliação da prova. Valentin Carrion vai mais longe, afirmando que a proteção do trabalhador já está na própria confecção da norma, não admitindo inovações casuísticas3. É perceptível, aliás, que grande parcela da reforma trabalhista operou justamente no sentido de combater essas práticas, mantendo o direito material como protetivo do trabalhador, mas sem permitir sua extensão às condutas processuais. Daí porque não haver razão para extinção da especializada trabalhista. Quanto à Justiça Eleitoral, penso que já é mais do que hora de extirpar-lhe os empréstimos e estruturar-lhe enquanto uma Justiça específica e autônoma, com quadro próprio de juízes. É que, como dissemos, se a razão de uma justiça especializada é justamente garantir que seus exercentes sejam pessoas dotadas de um conhecimento técnico-específico, então é natural que este grupo permaneça a ela vinculado em carreira, e não para um mandato de apenas dois anos. A Justiça Militar, por sua vez, lida com um problema de índole federalista, razão pela qual dedica-se apenas à União, sendo que cada Estado estrutura, se for o caso, a sua própria Justiça Militar do Estado. O modelo não é muito prático. Melhor seria que existisse uma única Justiça Militar, com Tribunais Estaduais, atendendo aos militares das Forças Armadas e das polícias militares. O Superior Tribunal Militar seria, assim, uma instância superior para todos os militares. Proposta realmente nova, no entanto, seria a criação da Justiça Administrativa, como já ocorre em muitos países. Para elas seriam carreadas todas as discussões que hoje tramitam dentro da Administração Pública, incluindo tributárias, e a decisão, nesta nova jurisdição, faria coisa julgada, extinguindo assim o trabalho duplicado que comumente ocorre com decisões administrativas - que não produzem coisa julgada - e sua revisão em sede de Poder Judiciário. Prima-se, aqui, pela máxima da eficiência. Assim, todas as vezes em que houver algum conflito entre administrado e Administração, por manifestação simples de qualquer uma das partes, o conflito seria deslocado para a Justiça Administrativa local. Diante disso, e unindo as propostas do artigo anterior, nosso quadro Judiciário passaria a se estruturar conforme abaixo. Note-se que, primeiramente, o Poder Judiciário Municipal atuaria como instância necessária para qualquer demanda judicial, salvo aquelas que viessem diretamente da Administração Pública. Como já afirmamos, teria ele o poder de mediar, conciliar ou acordar, mesmo na seara criminal, em que exercer-se-ia o plea bargaining. O objetivo, evidentemente, é que a minoria das demandas avance para as demais esferas jurisdicionais. Em segundo lugar, as demandas administrativas que não se iniciassem no Poder Judiciário Municipal diretamente, e provenham da Administração Pública, como eventuais recursos tributários ou de multa, insiram-se diretamente nas Varas Administrativas, em que passam a tramitar. Por fim, a Justiça Militar passa a ser uma, englobando militares estaduais e federais, com Auditorias Militares locais e Tribunais Regionais, inclusive para os membros das Forças Armadas, e um Tribunal Superior único. Trata-se de um sistema arrojado e dinâmico. A máxima, contudo, é fazer com que o Poder Judiciário Municipal atue como peneira de acesso ao restante do Judiciário, estimulando-se a resolução de conflitos por meio do acordo. Evidente que o Ministério Público passa a receber incrementos legais para uma atuação mais dinâmica quanto ao plea bargaining, mantendo-se as garantias inerentes à proteção dos direitos indisponíveis. __________ 1 CORWIN, Edward. A Constituição Norte-Americana e seu significado atual. p.167. 2 BORGES DE OLIVEIRA, Emerson Ademir. Curso de jurisdição constitucional. p.100. 3 "O princípio in dubio pro misero não existe; o que há é proteção ao hipossuficiente pela própria norma legal, que para isso é posta. Menos ainda em direito processual. Busca-se o ônus da prova; quem o tinha, e não provou, será vencido na sentença". Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho. p. 630.
Emerson Ademir Borges de Oliveira Ao povo da República dos Estados Unidos da Bruzundanga A divisão do Poder Judiciário em Federal e estadual é inerente à forma federalista de Estado. Desta forma, concede autonomia aos entes federados em relação aos três poderes, pois todos passam a gozar de um Legislativo, Executivo e Judiciário na esfera da União - Federal - e na esfera dos Estados - estadual. Vale dizer, todos os entes federados - o todo e as partes - têm sua parcela de representatividade do Poder. No Brasil, com a elevação do município a ente federativo há uma falha desse sistema, tendo em vista que tal ente possui Legislativo e Executivo, mas não Judiciário. Já defendemos aqui nesta coluna, no texto "A competência da União III", de 1º de agosto de 2018, a criação de um Poder Judiciário Municipal. Naquela ocasião, afirmamos: "Por derradeiro, uma verdadeira inovação: a criação de um Poder Judiciário Municipal: o Judiciário de Resolução de Conflitos. O Judiciário Municipal será vocacionado para a solução pacífica dos conflitos, por meio de conciliação e mediação. Será instância obrigatória para todas as demandas judiciais que envolvam direitos disponíveis ou que possam ser negociados pelas partes. Apenas o insucesso da solução pacífica abrirá portas para a Justiça Estadual ou Federal. Ademais, a solução não violaria o princípio de inafastabilidade da Jurisdição porque o Judiciário Municipal estaria inserto no próprio Poder Judiciário. Por consequência, a nova atribuição retiraria a função primordial de negociação das demais Justiças, que passariam a atuar para a solução do conflito por meio de decisão judicial. A prática certamente traria impactos relevantes para as Justiças Estadual e Federal, que passariam a atuar de forma mais específica e quantitativamente muito mais suavizadas, em razão do Judiciário Municipal. Ademais, os atores municipais encontram-se mais próximos às partes, a fim de compreender suas realidades e poder auxiliar o encontro da solução com mais presteza". Neste modelo proposto, estaria completada a representatividade de todos os entes federativos em relação a cada uma das funções estatais. O Poder Judiciário Federal teria sua competência dilatada, equilibrando com as competências da própria União, e desafogando o Judiciário Estadual. Como dissemos em "A competência da União I", em 18 de julho de 2018, os crimes Federais, a merecer competência da União, seriam aqueles que ofendem a União e a soberania do país e cuja legislação e administração já seriam da própria União. Oferecemos como exemplo os atos corruptivos, pois ofendem o Brasil como um todo. Também estariam sob a esfera federal as questões que atribuímos a União - para legislar e administrar: a) crimes federais e respectiva anistia; b) direito marítimo, aeronáutico, espacial, ferroviário e militar; c) direito da terra; d) requisição; e) águas, energia (inclusive nuclear) e combustíveis: f) comunicação de nível regional (entre mais de um Estado), nacional ou internacional; g) correios; h) nacionalidade; i) áreas e direitos indígenas; j) armas, Forças Armadas, guerra, paz e defesa do território brasileiro; k) polícias federais; l) registros públicos, civis e comerciais; m) fronteiras; n) ciência e tecnologia. Ora, se a competência para legislar e administrar tais questões é da própria União por serem considerados assuntos de interesse nacional, nada mais óbvio que o julgamento de demandas que envolvam tais assuntos se dê na Justiça Federal. Claro que, como já dissemos, após a passagem obrigatória pelo Judiciário Municipal de Conciliação e Mediação. Este Judiciário deteria, inclusive, competência para o plea bargaining, enquanto espécie de conciliação penal pré-processual. Os demais assuntos, cuja legislação e administração caiba aos Estados, estariam inseridos na sorte de competências da Justiça Estadual. Assim, por exemplo, os crimes que não atinjam o país considerado em seu todo, como aqueles comuns contra a vida ou patrimônio particular. Na realidade, é basicamente este o modelo que fora tomado como base no cenário norte-americano. Homogêneo ou simétrico na estrutura federalista, o Judiciário americano é dividido em estadual e federal - dual -, de forma que esta, representando a União, não se imiscua nos assuntos típicos da competência estatal e de interesse meramente local1. Em regra, adota-se o sistema de especialização para o Judiciário Federal e o sistema residual para o Judiciário Estadual. Na base jurisdicional norte-americana, tanto estadual como federal, tem-se os juizados de primeira instância (trial courts), dos quais caberá recurso para os tribunais de apelação (affirm). O Tribunal do Júri, destinado apenas a realizar análise fática, tem competência cível e criminal nos Estados Unidos, considerando-se, nesta, os crimes de maior potencial ofensivo (felonies) e, naquela, danos materiais (money damages), perda de propriedade (recovery of property) e danos em geral decorrentes de culpa ou dolo (torts). Por uma questão de eficiência, não somos favoráveis a uma utilização tão ampla do Júri, mas apenas para os crimes dolosos contra a vida, como hoje ocorre. As Justiças Estadual e Federal, em nossa proposta, contariam com uma primeira e segunda instâncias, sendo a primeira monocrática e a segunda colegiada, como ocorre hoje, mas apenas, repise-se, após a passagem pelo Judiciário Municipal. A junção e a uniformidade em direção a um Tribunal Superior único da Justiça Comum se manteria, mas seu acesso seria ainda mais excepcional do que atualmente. No próximo texto, apresentaremos as propostas para a divisão entre a Justiça Comum e as Especializadas. __________ 1 A classificação é de Raul Machado Horta. O federalismo no direito constitucional contemporâneo. Revista da Academia Brasileira de Letras Jurídicas, Rio de Janeiro, n.19-20, p.223-249, 2001.
quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

O Judiciário como guardião de promessas

Daniel Barile da Silveira A concepção que formamos no estágio civilizatório atual sobre o Poder Judiciário nada mais é do que uma consequência de promessas não cumpridas do papel desempenhado até então pelo Legislativo e Executivo. Se adotarmos o paradigma federalista em se conceber os 3 Poderes como modelos racionais (ou tipos-ideais, na linguagem weberiana), é possível perceber que os modelos estatais, aliados às concepções de Constituição, andam em consonância com a predominância de um ou outro daqueles poderes constituídos, sendo que a ascensão do Judiciário como "guardião das promessas não cumpridas" foi um resultado desta conjuntura de falha ou descrédito nos dois outros Poderes. Os primeiros estágios do constitucionalismo revelam o formato de Estado constituído por nossos antecessores, representado pela ideia de Estado de Direito (RechtStaat). Nesta concepção, buscava-se elidir com uma visão arcaica do antigo regime de que os privilégios de uma Idade Média estamental, marcada pelo direito divino dos reis e pelo uso de prerrogativas de nascimento, produziriam uma situação degeneradora de desigualdades e de redução da liberdade individual. Nesse contexto, a tradição serviria como elemento consolidante do enrijecimento das camadas sociais, reforçando a condição das pessoas a um laço imemorável reproduzido no tempo. Tal postura atribuiu durante séculos ao Direito um papel de mantenedor e leitimador de vantagens pessoais a estratos minoritários, relegando uma massa de desvalidos a uma condição de subserviência ao império da tradição. Certamente que, em meio a tal sedimentação da sociedade, a naturalização das posições sociais assumiu um discurso formalmente libertário, na medida em que a filosofia política informadora do constitucionalismo daquela época enveredou por contestar tal condição. Assim, o modelo de Constituição adotado conforma uma visão resultante destes anseios contingenciais, pela qual seria preciso garantir, em normas gerais, universais e abstratas, a liberdade e a igualdade das pessoas. Tal modelo de igualdade e liberdade, reproduzido em especial pelo contratualismo clássico, legou um conceito jurídico de que se faria necessário atribuir aos indivíduos a necessidade de autoafirmarem-se como livres e iguais perante uma sociedade estagnada em sua própria estratificação. E a justificativa filosófica de tal mudança de postura se mostra a revelar tais direitos como uma ordem de valores que decorre da natureza das coisas, portanto, imutável e eterna, devendo por todos ser obedecida e a todos aplicada universalmente. Destarte, nesse paradigma constitucional, o centro do sistema residiria no Poder Legislativo, malgrado todos os outros em sua importância. Seria na "racionalidade fria" do legislador que se concentrariam os esforços em maximizar a escrita de direitos a normas previamente pensadas, no sentido de dar garantia e segurança jurídicas aos cidadãos acerca de seus direitos e obrigações. Logo, a produção legislativa converteria as atenções do sistema político, posto que a racionalidade nela presente, quanto maior, mais garantiria de que os ideais de liberdade e igualdade estariam sendo ali concretizados. De uma mesma maneira, a simples forma da lei vigente garantiria que sua observância desencadeasse como consequência lógica a realização desses princípios básicos de navegação social. Note-se que Montesquieu já acenava o conceito de liberdade como um princípio corolário da lei, fruto de sua permissão. Assim, dizia que "liberdade é o direito de fazer tudo que as leis permitem; se um cidadão pudesse fazer tudo o que elas proíbem, não teria mais liberdade, porque os outros teriam também tal poder" (2000, v. 1, p. 200)1. Esta visão posteriormente seria reforçada por John Locke e uma série de pensadores liberais, tal qual John Stuart Mill, no sentido de asseverar que liberdade é a possibilidade de fazer tudo aquilo que um mínimo de leis não proíba. No Estado de Direito, entendido aqui, como dito, como um primeiro paradigma de organização do sistema jurídico moderno, a gravitação de todo sistema residiria na noção de supremacia do Parlamento, órgão produtor de toda a matéria legal instituidora da ordem coletiva. Assim, deveria o governo incumbir-se do fiel comprimento de suas disposições, no sentido de poder, a mesmo tempo, retribuir o respeito aos desejos da vontade do povo, como bem também fazer zelar pela primazia do ordenamento jurídico em prol de interesses egoísticos, no imediato repúdio a ordens autocráticas e gerenciadoras de vontades tirânicas do antigo regime. Por fim, o papel do Poder Judiciário é de ser a mera "boca que pronuncia as palavras da lei" (Le juge est "la bouche qui prononce les paroles de la loi", como diria Montesquieu), à pena de, se assim não o fizesse, o juiz sofreria o risco de tornar-se legislador e constituir-se como um desertor das finalidades sociais a que a norma se destina. A própria interpretação do direito se torna um procedimento mecânico, realizado por exegetas e não se abrindo espaço ao alvitre de magistrados, dadas suas concepções políticas ou morais. Neste paradigma, portanto, o papel do Poder Judiciário estaria minimizado pela importância dada à legislação como ordenadora da realidade e produtora de todo direito existente. Bastaria que as leis fossem claras e evidentes ao suficiente para assim facilitar o pronunciamento do direito ao caso concreto. Já um segundo paradigma marcante enquanto modelo de estruturação do Estado em termos da regulação da separação de poderes é o engendrado pelo Estado do Bem-Estar (Welfare State), por muitos denominado "Estado-Assistencialista", ou L'État Providence, na linguagem dos franceses. Nesta nova concepção engendrada, não se tornaria suficiente para uma sociedade distribuída em classes a afirmação de liberdade e igualdade como substratos de um rol de direitos mínimos do cidadão, dispostos na lei. Ao revés, afirmar direitos como estes, na perspectiva de que todos seriam livres parar alcançar suas potencialidades e perseguir seus objetivos mais ocultos em uma situação de pé de igualdade, fazia do discurso filosófico um plano de completo desencontro com a realidade apresentada a cada um dos indivíduos. Careceria da igualdade de oportunidades para atingir tais objetivos, dada a composição de forças sociais presentes em um ambiente de capitalismo industrial recém inaugurado e de histórias de vida completamente adversas, agora reconhecidas pelo Estado. Percebe-se, então, que naquele antigo modelo de organização social, desde então combatido, separavam-se as pessoas em categorias de rendas e sedimentava um padrão de desigualdade que, embora não mais explicado por privilégios de sangue, reproduzia-se pela capacidade das pessoas possuírem bens e serviços à sua disposição, em maior ou menor proporção. De tal maneira, é no paradigma do Estado de Bem-Estar que o centro gravitacional dos Poderes se encapsula no Poder Executivo, responsável por ser o executor destas políticas assistencialistas. Nestes moldes, há uma diferenciação de funções, potencializada por uma condição histórico-cultural, de reorganização das estruturas estatais, ao ponto do Legislativo assumir a função de produzir normas com o fulcro de serem efetivamente executadas pelo Governo. Tal lógica faz com a racionalidade legislativa migre do simples pronunciamento de direitos negativos para uma racionalidade de meios e fins no que corresponde às possibilidades do Poder Executivo dar curso às normas por aquele produzidas. É o nascimento dos direitos positivos, expressos em obrigações estatais, executivas, sobretudo. Com o crescimento exponencial das atividades promotoras do Estado em face da distribuição de benesses públicas em formato de programas assistenciais, o paradigma do Estado Social, além de promover a sobrecarga da função Executiva, permite que o controle das expectativas de ações estatais chegue ao limite do risco insuportável, tornando as funções executórias sobrecarregadas. Neste ponto, oportuno salientar que o estabelecimento de um "Estado administrativo" é fator que sucede a um "inchaço" legislativo, justamente engendrado para poder suprir as demandas sociais infindáveis e exponencialmente crescentes a um Estado que a todos protege. O Estado se torna ineficiente, lento e burocratizado. Nesta circunstância histórica, o papel dos juízes se transforma em um agente que deixa de pronunciar candidamente as palavras da lei e busca então a acomodar sua atividade ao cerne da legislação existente. Com a descrição aberta das leis, que no mais das vezes se propugnam a descrever finalidades públicas ou princípios gerais, abre-se um fértil terreno para um maior protagonismo do Poder Judiciário em dar densidade a estas fórmulas gerais. O legalismo e a segurança jurídica são substituídos pelo ativismo e a discricionariedade judiciais. Abre-se espaço, então, para a formação de uma remodelada função judicial, oportuna ao desenvolvimento do chamado "terceiro gigante" no dizer de Alexander Hamilton, desperto de uma posição menos expressiva, tal qual concebida pela fórmula original montesquieuana. Em nossa história do constitucionalismo parcamente aqui relembrada, é no Estado Democrático de Direito que o Poder Judiciário toma a frente como elemento central da regulagem do sistema de freios e contrapesos, imerso na problemática da separação de poderes, chave central do controle do Estado e de respeito à supremacia da Constituição. Por óbvio, as promessas efetuadas pelo Estado Social tornaram-se precárias frente ao nascimento de uma cidadania participativa e na proteção do direito das minorias, quase sempre sufocadas por um Estado gigantesco que sempre pensava no todo e relegava a inclusão de minorias em um sistema de distribuição de direitos massificado, sem o atendimento das idiossincrasias e da pluralidade de uma sociedade complexa, já do século XX e em curso em nossos dias atuais. Neste modelo, igualdade e liberdade não estão mais assentadas em uma hipostasia de direitos promocionais, mas se refletem como um campo complexo de tensões que proporciona a análise de questões particularizadas, situações únicas, típicas do fragmentarismo que a modernidade inaugura. Surgem novos direitos fundamentais e reconhecem-se os grupos que compõem essa sociedade plural atual. Destarte, igualdade e liberdade são entendidas como uma comunidade de princípios que a todo momento se chocam e tem sua conformação dada pelo debate, pelas reivindicações e pelos usos estratégicos dos poderes para a defesa de direitos essencialmente mutáveis, flexíveis às oscilações contingenciais e a demandas de grupos pulverizados no círculo social. Essa relação, naturalmente conflituosa, permite que a plêiade de direitos lançada nos textos seja objeto de intensa discussão, fato que impulsiona as demandas judiciais e incrementa a participação deste Poder com um elemento forte na relação do processo de separação de poderes, já que é intérprete decisivo da lei e das políticas estatais. Ao Judiciário, inclusive, possibilitou-se um crescimento sem precedentes que, sobretudo, coloca-o como fiscal do próprio legislador, quase como um "legislador implícito". Como aponta Luiz Werneck Vianna, há uma mudança estrutural na Justiça, porém não linear, "[...] de transformação universal do Poder Judiciário em agência de controle da vontade do soberano, permitindo-lhe invocar o justo contra a lei" (1997, p. 21)2. Antoine Garapon denomina essa assunção de poderes do Judiciário como um evento contemporâneo, entendido como um "guardião de promessas", tanto para o sujeito como para a comunidade política, "um último refúgio de um ideal democrático desencantado", um substituto clerical praticamente, como assevera - quase uma "Justiça de salvação" (2001, p. 26)3. Em Dworkin, os magistrados como representantes simbólicos de uma intelligentzia clássica nas instituições, reaparecem no cenário dos três poderes como personagens míticos como um Hércules, capazes de desbravar os horizontes de uma legislação fria e produzir decisões exemplares a uma sociedade complexa, cada vez mais carente dos valores da Justiça e de segurança jurídica. Assim, a presença do Judiciário como um "terceiro gigante" acaba se mostrando como um reflexo dos modelos anteriores, construído a partir das falhas e das promessas de salvação erigidos por estruturas que reconheceram, sem sucesso, o protagonismo do Legislativo (no modelo de Estado de Direito) e do Executivo (no modelo do Estado de Bem-Estar Social). O certo é, independentemente da constatação trazida, surge a pergunta: o que ocorre se o Judiciário não cumpre as promessas que lhe foram incumbidas? Algumas demonstrações deste cenário parecem surgir. Resta-nos acompanhar melhor seus desdobramentos. __________ 1 MONTESQUIEU. Do espírito das leis. 2 v. São Paulo: Nova Cultural, 2000. (Os Pensadores). 2 VIANNA, Luiz Werneck; CARVALHO, Maria Alice Rezende de; MELO, Manuel Palacios Cunha; BURGOS, Marcelo Baumann. Corpo e alma da magistratura brasileira. 2a edição, Rio de Janeiro, Revan, 1997. 3 GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardião das promessas. Rio de Janeiro: Renavan, 2001.
quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Polícias, Forças Armadas e segurança nacional

Emerson Ademir Borges de Oliveira Ao povo da República dos Estados Unidos da Bruzundanga A defesa de um país no plano internacional e a manutenção de estabilidade razoável interna são requisitos necessários para o atingimento de diversas outras finalidades, incluindo o próprio desenvolvimento econômico. Para tanto, há duas instituições que cumprem, precipuamente, tais missões: as Forças Armadas para a primeira; as polícias para a segunda. Não que se restrinjam a tais finalidades, mas, como se observa, a função principal das Forças Armadas é a defesa da soberania, ao passo que às polícias caberá a paz intestina. As Forças Armadas, como idealizado no plano internacional, divide suas atribuições entre terra (Exército), água (Marinha) e ar (Aeronáutica), com ações conjuntas e integradas para o atingimento de suas finalidades. Consoante ressalta o artigo 142 da Constituição, as Forças Armadas "são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem". Ao contrário das diretivas comuns em tempos de governos autoritários, o papel das Forças Armadas volta-se mais para o exterior do que para o interior. Em tempos de paz, defende o Brasil de ameaças externas, não o governo dos próprios brasileiros. Em conformidade com o artigo 144 da Constituição, a segurança pública, enquanto dever do Estado, é exercida pelos seguintes órgãos: I - polícia federal; II - polícia rodoviária federal; III - polícia ferroviária federal; IV - polícias civis; V - polícias militares e corpos de bombeiros militares. Nos termos do mesmo artigo, a finalidade de tais órgãos é a "preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio". Como adiantado, sua finalidade volta-se à proteção interna. Há, no entanto, em suas funções, um misto de atribuições ostensivas e judiciárias. As primeiras buscam preservar a ordem pública e garantir a segurança interna. As segundas tratam da investigação das práticas ilícitas de interesse público, no intuito de se alcançar autoria, conduta e punibilidade aos responsáveis. A Polícia Federal, nesse aspecto, e nos termos do §1º do referido artigo, traz um misto de competências que a situa entre o combate direto à criminalidade e o desenvolvimento investigativo de alta qualificação, dadas as suas condições materiais consideráveis. De outro lado, as polícias civis, militares e corpos de bombeiros militares vinculam-se aos Estados-membros sendo as primeiras com finalidade investigativa, as segundas ostensivas e os terceiros para a defesa civil. A Constituição, ainda, prevê que os municípios criem guardas municipais para a "proteção de seus bens, serviços e instalações" (art. 144, §8º, CF), embora, conforme entendimento jurisprudencial, esta atribuição tenha sido extrapolada. Tendo em vista que a imensa maioria das demandas ostensivas e investigativas acabam ficando a cargo das polícias militares e civis, individualmente consideradas em cada Estado, é evidente que as questões federalistas acabam gerando certa ineficiência e transtorno, mormente em se considerando a dimensão territorial brasileira e a falta de comunicação entre os órgãos de segurança pública. Basta pensar nos registros gerais realizados de forma distinta por cada Secretaria de Segurança Pública. Alia-se a isso o fato de que, algumas vezes, as atribuições entre a Polícia Federal e a dos Estados se confunde e aquilo que deveria se transformar em auxílio se converte em imprecisão. Somos da opinião de que, embora a prática ostensiva e a defesa civil mereçam atenção estadual e municipal, a investigação carece de uma unidade Federal. Explicamos. A prática da polícia ostensiva, além de ser emergencial, mais se fará eficiente quanto maior for a proximidade e confiança estabelecidas junto à sociedade. A preservação imediata da ordem pública depende, neste aspecto, da ação policial, independentemente de ser realizada de forma uniforme em todo território nacional, pois a polícia local possui maior compreensão de suas necessidades e estratégias de ação. Não haveria comparação, assim, entre o tipo de conduta de uma polícia ostensiva em comunidades cariocas e em pequenas cidades do interior. Para essas pequenas cidades, aliás, defendemos a existência de uma polícia municipal, mais afinada com as imprescindibilidades locais. De resto, as polícias ostensivas e defesa civil devem se manter estaduais. Logo, como se vê, a eficiência da polícia ostensiva depende justamente do seu modo de ação diante das situações contínuas e emergenciais, atuando de modo a preservar ou reestabelecer tão prontamente a ordem pública. Já a investigação carece de uniformidade de ação e conjunção informativa, sem questões pormenores como delimitações fronteiriças entre Estados. Em tempos tecnológicos, a união investigativa e a alimentação dos mesmos sistemas permitem o rastreamento e elucidação criminal, sem necessidade de quaisquer convênios ou ações conjuntas. Basta que se trate, em todo país, da mesma polícia, a qual alcunhamos, por liberalidade, de Polícia Judiciária Unificada, responsável não apenas pelas atribuições da Polícia Federal atual, mas também as da Polícia Civil, estando, ainda, espalhada por todo território nacional. As polícias Civis, assim, seriam englobadas por este novo modelo, sob responsabilidade da União. Sob as mesmas práticas, desenvolvimentos, armamentos, alimentação de dados e sistemas de armazenagem, a Polícia Judiciária Unificada possuiria maior êxito na investigação criminal e também de ilícitos civis. Por derradeiro, às Forças Armadas cumpre a defesa dos objetivos comuns à federação, em especial, em um país como o nosso, a defesa das fronteiras e a proteção do país no plano externo e, emergencialmente, o auxílio temporário às funções ostensivas em momentos de crise. Neste tocante, em vista do objetivo de proteção do país como um todo, sobreleva-se a unidade e a direção de uma autoridade nacional1. __________ 1 HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. O federalista. Brasília: UnB, 1984. p.265.
quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Da possibilidade de recall

Daniel Barile da Silveira Nem sempre somente a eleição de um líder político se mostra como um momento de grande celebração democrática. É comum que também a destituição de fortes lideranças populares de seus postos seja acompanhada de grande agito das massas, dividindo opiniões e recrudescendo o debate político sobre preferências e paixões, erros e acertos dos eleitos. No caso, estamos a falar do impeachment. De uma forma mais genérica, por este procedimento, aquele membro eleito ou nomeado para exercício de um cargo público relevante, pode ser destituído da atividade caso cometa determinados atos contrários ao texto constitucional daquele país, consistente em crimes de responsabilidade. Embora não imbuído de um aspecto penal propriamente dito, trata-se de uma destituição das funções públicas após um processo legislativo de julgamento, constitucionalmente demarcado. No Brasil, como é cediço, fomos telespectadores de um procedimento aberto e televisionado que culminou no afastamento e perda da função pública da presidente eleita. Tal movimento afinou as discussões políticas e polarizou as tendências de opinião então existentes, próprio do agito que o instituto causa nas bases sociais. Mas a análise do processo de impeachment deve ser deixada para um outro momento. O objeto de análise hoje desta coluna é para debater sobre outro mecanismo de retirada forçada do cargo: o recall político. Por este procedimento entende-se a possibilidade de se revogar o mandato de um político, de forma individual, cuja preferência popular tenha perdido seu interesse no decorrer da delegação. Há aqui, portanto, uma revogação de mandato por força popular, sem que haja necessariamente a conotação da ocorrência de um crime de responsabilidade ou a prática de um delito propriamente dito. Diferentemente do procedimento de impeachment, cuja base persecutória e decisória é atribuída a um órgão legislativo, desde que subsistam suspeitas fundadas de existência de crime de responsabilidade, o recall envolve tão somente uma escolha popular, baseada na insatisfação com o exercício do mandato do eleito. Poder-se-ia dizer aqui que existem motivações mais políticas do que necessariamente jurídicas para o afastamento do cargo, lastreadas no princípio da soberania popular. No caso, o povo não somente vota no candidato, porém o subtrai seu mandato, conquanto insista em não se coadunar com a representação que lhe fora delegada. O recall, assim, é um mecanismo político de afastamento de um agente público, podendo este ser um presidente da República (como na experiência da Constituição de Weimar1) ou mesmo cargos parlamentares (como na Suíça) ou mesmo na destituição de todos os cargos eletivos (como no instituto do "referendo convocatório", presente na Constituição da Venezuela)2. Em outros modelos, inclusive, poderá recair sobre todos os cargos públicos eletivos ou de nomeação política (como no modelo americano, instaurado pela "Carta de Los Angeles", de 1903). Trata-se, em verdade, de um instrumento que busca reverberar a perda de confiança do povo no político, revogando seu mandato do cargo que assumiu pelo mandato popular. Instituto parecido com este é o "direito de revogação", tradução literal da expressão de origem alemã "Abberufungsrecht". Presente nos cantões suíços, refere-se a um sistema de revogação coletiva de cargos: uma dissolução dos mandatos de toda a Casa Legislativa por vontade popular, in casu (o que diferencia a dissolução do Parlamento, por exemplo, pela vontade do governante, fenômeno que está mais alinhado a experiências antidemocráticas, como ocorrido nas ditaduras brasileiras do século passado). No Brasil, não se identificam experiências deste porte em nossa Constituição mais nova, de 1988, não havendo o instituto do recall político. Como reflexo das formas de manifestação da vontade popular direta, a Carta Magna prevê apenas o voto, o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular de lei (art. 14, CF/88)3. Entretanto, a Proposta de Emenda 21/2015, tramitante no Senado Federal, busca instituir o modelo de recall político no Brasil, consistente na inclusão, no art. 14, da Constituição, da possibilidade de revogação do mandato do Congresso Nacional e do Presidente da República, como formas de manifestação direta do povo nos assuntos públicos. Como apresentado na justificativa da PEC, "Esse sistema representa uma soluc¸a~o de equili'brio entre a concretizac¸a~o do princi'pio da soberania popular e a responsabilidade, evitando-se o risco de a revogac¸a~o ser utilizada como mero instrumento de instabilidade poli'tica4". Nesta acepção, complementa, "o recall garante a responsabilidade conti'nua das autoridades pu'blicas, ja' que os eleitores na~o precisam aguardar ate' a pro'xima eleic¸a~o regular para destituir um agente pu'blico incompetente, desonesto, despreocupado ou irresponsa'vel". O presente projeto foi aprovado pela CCJ no ano de 2017, sendo que o debate mais contemporâneo gira em torno da manutenção de recall apenas do Presidente da República e sobre o quórum de convocação do procedimento, com sendo de 9% ou 15% do eleitorado nacional que compareceu à última votação. Discute-se, ademais, a necessidade ou não de estarem distribuídos os solicitantes em vários Estados da Federação (no mínimo, 15, ao que se defende)5. Aprovado ou não no Plenário, o fato é que esta proposta de revogação popular de mandato pode alterar a percepção que o povo tem sobre a escolha de seus representantes. De uma certa maneira, ao que se julga, mostra-se como uma aproximação do sistema majoritário quase que intocável em países de presidencialismo para um mecanismo de substituição parlamentar, próprio do modelo parlamentarista. Por detrás de todo esse debate jaz a insegurança e a desconfiança das pessoas para com os candidatos eleitos, de forma a se poder renovar as oportunidades institucionais antes do prazo tradicionalmente conferido, de 4 anos. Em uma análise rápida, seu ponto forte é apoderar o povo ainda mais de instrumentos participativos, fomentando a democracia e instaurando um sentimento de republicanismo mais longevo, o qual preza pela rotatividade do poder de forma mais intensa. A qualidade do mandato pode, assim, ser reforçada, haja vista que o eleito tende a se esmerar mais em suas funções tendo o cadafalso como uma ameaça aparente. Negativamente, a instabilidade institucional pode ser instaurada, sem a segurança do mandato fixo, o que pode permitir que instrumentos de troca, repetição e recompensa possam ser valorizados no jogo dos debates e barganhas políticas. De uma forma geral, o debate de tal tema já gera aprendizados: de início, de que a democracia se constrói com a inafastável participação popular, não podendo fugir a titularidade do poder político de seu exercício mais imediato. Segundo, de que o povo não assiste "bestializado" o comportamento dos agentes estatais, podendo intervir para controlá-lo e expulsar seus entes mais infiéis do jugo do serviço público. Por fim, contribui para que o protagonista da história dos acontecimentos não seja alguém que não o próprio povo, fazendo substituir a cidadania por qualquer comportamento intermediário, sempre interesseiro e adstrito às regras tão compulsivas que o jogo político gera. __________ 1 Vide art. 43, da Constituição de Weimar; "O mandato do presidente do Reich dura sete anos. A reeleição é permitida. O presidente do Reich pode ser deposto por plebiscito, o que deve ser sugerido pelo Reichstag. Esta decisão do Reichstag requer uma maioria de dois terços dos votos. Tal decisão impede o Presidente do Reich de continuar exercendo seu ofício. Uma rejeição do depoimento é considerada como uma reeleição e resulta na dissolução do Reichstag. O Presidente do Reich não pode ser perseguido em uma questão penal sem a aprovação do Reichstag".  2 Na Constituição da República Bolivariana da Venezuela, art. 72: "Transcurrida la mitad del período para el cual fue elegido el funcionario o funcionaria, un número no menor del veinte por ciento de los electores o electoras inscritos en la correspondiente circunscripción podrá solicitar la convocatoria de un referendo para revocar su mandato. Cuando igual o mayor número de electores y electoras que eligieron al funcionario o funcionaria hubieren votado a favor de la revocatoria, siempre que haya concurrido al referendo un número de electores y electoras igual o superior al veinticinco por ciento de los electores y electoras inscritos, se considerará revocado su mandato y se procederá de inmediato a cubrir la falta absoluta conforme a lo dispuesto en esta Constitución y la ley. La revocatoria del mandato para los cuerpos colegiados se realizará de acuerdo con lo que establezca la ley. Durante el período para el cual fue elegido el funcionario o funcionaria no podrá hacerse más de una solicitud de revocación de su mandato." Chama-se atenção também para o art. 85, da Constituição Cubana, que dispõe: "a los diputados a la Asamblea Nacional del Poder Popular les puede ser revocado su mandato en cualquier momento, en la forma, por las causas y según los procedimientos establecidos en la ley." 3 Alguns também acrescentam a ação popular como instrumento do exercício direto da cidadania. Apesar de ser uma ação judicial, pela matéria e pelo acesso direto à denúncia de atos lesivos ao patrimônio público, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico-cultural, a doutrina atribui uma forte força popular de construção denunciativa diretamente ao Judiciário, sem intermediários, sem substitutos. 4 In: . Acessado em 12.02.19. 5 Idem.
quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

O afastamento do presidente da vida pública

Emerson Ademir Borges de Oliveira Ao povo da República dos Estados Unidos da Bruzundanga No sistema federalista inaugurado pelos Estados, o Poder Executivo é chefiado por um presidente com mandato de quatro anos, sendo permitida, atualmente, apenas uma reeleição. No passado, até a Emenda XXII, de 1951, o presidente poderia ser reeleito indefinidamente. Na realidade, a partir da Emenda XXII, a limitação passou a ser ainda maior, impedindo-se que qualquer pessoa seja eleita presidente por mais de duas vezes, seguidas ou não. O modelo norte-americano identifica-se com o modelo brasileiro, diferindo, contudo, nas eleições indiretas naquele caso e na eleição direta neste. Mas há uma diferença substancial: o exercício da presidência por dois mandatos impede que se concorra novamente ao cargo. Note-se que, na realidade, não impede o exercício de outros cargos, mas ao de presidente da República em específico. De qualquer forma, nos Estados Unidos é raro que ex-presidentes voltem a exercer cargos políticos, tendo em vista a percepção de uma aposentadoria vitalícia e transmissível, além de outros benefícios. Na história do país, apenas John Quincy Adams (1825-1829) e Andrew Johnson (1865-1869) retornaram a outros cargos, sendo o primeiro eleito para a Câmara dos Representantes e o segundo para o Senado. Somos por uma proposta mais ousada, mas antes cabem algumas considerações. Há marcas inafastáveis que se internalizam no exercente do cargo político mais importante de uma República. Devemos lembrar que o presidente da República é a autoridade suprema das Forças Armadas, além de ser chefe do serviço público Federal. Em sua atividade, tem funções de contrabalanceamento do Poder Legislativo, poder decisório sobre o orçamento público Federal e competência para nomeação, inclusive, dos ministros do Supremo Tribunal Federal, dentre várias outras funções descritas no art. 84 da Constituição. No tocante ao orçamento, decide sobre sua aplicação, destinação e prioridades, o que, evidentemente, traz em si gostos e desgostos aos beneficiados e prejudicados. A política monetária e as escolhas executivas podem agregar alta lucratividade a alguns e bancarrota a outros. E isso tudo sem considerar as possibilidades de desvios éticos que não podemos olvidar. Um presidente que, em conluio, tenha favorecido esquema fraudatório e positivo para um grupo de empresas ou setor terá nestes todo o apoio para o retorno ao mesmo cargo ou outro politicamente relevante. Da mesma forma, o presidente que tenha agido de forma irresponsável em termos fiscais, concedendo aumentos exorbitantes ao funcionalismo público, rompendo com os limites legais, será certamente agraciado por parte dele caso se candidate novamente. O exercício da presidência pode trazer em si relações muito próximas da promiscuidade política e da corrupção de caráter, com possíveis transtornos financeiros ao erário. Claro que algumas questões práticas não devem ser ignoradas. Ao contrário do que se aventa nos dias atuais, penso que a possibilidade de reeleição - apenas uma - é necessária para a garantia de eficiência de projetos de longo prazo. Sábias, nesse sentido, as palavras de Hamilton: "Julgo o problema da reeleição ligado ao de uma duração razoável do mandato. Esta deve ser de molde a permitir ao ocupante do cargo oportunidade e ânimo para cumprir bem sua tarefa, ao mesmo tempo em que a comunidade observa o acerto ou erro de sua atuação, formando um juízo de seus méritos. A reeleição tem a vantagem de habilitar o povo, quando há motivos para aprovar a atuação do magistrado, a mantê-lo em suas funções, a fim de beneficiar-se por mais tempo de sua competência e suas virtudes, além de assegurar ao governo as vantagens da continuidade de um sistema eficiente de administração"1. Mas a reeleição só faz sentido em termos de continuidade. Vale dizer, um novo mandato descontínuo perde a sua razão de ser. Nossa proposta é a de que aquele que venha a assumir a presidência da República possa buscar sua continuidade uma única vez, como funciona atualmente. Contudo, não tendo sido reeleito, ou, tendo sido, após o exercício de dois mandatos, deve se aposentar em definitivo da vida pública, não lhe sendo mais possível o exercício de qualquer cargo eletivo ou público concursado ou comissionado. Trata-se de um afastamento definitivo de quaisquer relações que possam ter sido estabelecidas outrora em razão de seu cargo. A medida deve ser acompanhada, por óbvio, de benefícios que garantam sua aposentadoria em definitivo, se assim o pretender. Ou, ao contrário, sem benefícios caso deseje rumar à iniciativa privada, percebendo nova remuneração em razão de seu expertise, mas sem quaisquer vínculos que lhe possibilitem vantagens indevidas de que não gozam os particulares comuns. Vejo, pessoalmente, a medida como rejuvenescedora e oxigenante da classe política, ao mesmo tempo em que impede que relações espúrias motivem novas eleições do mesmo ex-exercente. Há aqui duas vantagens: a renovação e a licitude. __________ 1 HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. O federalista. Brasília: UnB, 1984. p.542.
quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

Eleição e reeleição presidencial

Daniel Barile da Silveira A eleição presidencial no Brasil é o maior momento de celebração democrática de nossa jovem democracia, sendo uma verdadeira efeméride nacional, de ampla repercussão nos mais diversos setores da sociedade. Centro da maior parte dos discursos político e jornalístico que a antecede, a eleição para chefia do Executivo Federal não somente se mostra à população como um debate de ideias para a conquista do poder político, mas também se assenta em uma diversificada construção de opiniões e tendências, de maneira a fortalecer as posições populares sobre o papel da liderança política do país, a função do Estado, a maneira estabelecida das políticas públicas e, ainda, a forma pela qual as leis e as decisões estatais devem ser construídas. As eleições nacionais, momento quando então se realiza a escolha da presidência da República, são um palco de edificação de imaginários, pela qual se forjam as opiniões sobre os destinos do país e se desenham mais fortemente as ideologias que sustentam a visão de Estado e da política. Estes diálogos concretos entre os candidatos e a população, propiciados pelo momento da campanha, permitem construir subprodutos intelectuais que alimentam o debate político e fortalecem um maior nível de densificação das opiniões políticas que organizam a sociedade. Mas antes que as eleições sejam um valor em si, revestidas de uma concepção mais finamente atrelada ao princípio democrático, ela se mostra como um procedimento, um ritual legalmente demarcado que orienta todo o processo. Por força da Constituição Federal de 1988, as eleições presidenciais ocorrem no primeiro domingo de outubro, a cada quatro anos. Para vencer o pleito, o candidato deverá atingir a maioria dos votos válidos, isto é, mais da metade dos votos, excetuados os brancos e nulos. Caso o número de votos não seja superior a 50% dos votantes, um segundo turno é diretamente convocado, com eleições no último domingo de outubro daquele mesmo ano (art. 77), pelo qual os dois primeiros colocados são levados a uma nova votação. Ali, entre os dois, aquele que obtiver o maior número de votos será considerado o Presidente da República. Nesta maneira, a escolha do presidente passa por uma decisão popular, direta, majoritária e, ainda na esteira da Constituição, goza da universalidade de votantes, fulcrado no denominado sufrágio universal (art. 1º, parágrafo único, CF/88)1. De forma curiosa, esta concepção está longe ser o modelo originalmente formulado pelos founding fathers americanos. Nos artigos federalistas, mais precisamente o de n. 68, Publius (pseudônimo de Alexander Hamilton, James Madison e John Jay) justifica que o melhor modelo a ser seguido é o da escolha indireta do Presidente da República. No sentido dos autores, um menor número de pessoas poderia favorecer o conhecimento mais apurado sobre a pessoa do candidato, permitindo-se uma espécie de accountability (ou, na tradução mais simples, de controle e fiscalização) mais pessoal, por um grupo mais restrito de indivíduos, os quais seriam os delegados do povo. Este modelo garantiria certo gerenciamento sobre a ordem do processo eleitoral, bem como satisfaria o requisito de que este seleto grupo de representantes no colégio eleitoral estrangularia a possibilidade de que aventureiros e oportunistas tomassem o governo através de um voto popular conquistado com base em estratégias populistas, ou ainda, na leitura dos autores, seria uma forma mais eficaz de evitar que o eleito pudesse servir a interesses de outros povos (Paper 68). De outra maneira a esclarecer, a votação indireta serviria com um filtro de opções, protegendo o próprio povo contra suas escolhas menos refletidas. Por certo, um ponto de grande crítica por parte de inúmeros estudiosos, porém é este o modelo de eleição (indireto) que hoje sobrevive naquele país. Apesar da forte inspiração da primeira Constituição republicana estar ancorada no modelo americano, o Brasil principiou uma referência diversa, em que a escolha do Presidente seria por votação popular, vedada a reeleição "para o período presidencial imediato", como ditava a Constituição de 1891 (art. 43). Já no art. 47 mostrava-se bastante clara a intenção antes mencionada: "O Presidente e o Vice-Presidente da República serão eleitos por sufrágio direto da Nação e maioria absoluta de votos". O mandato seria de quatro anos. Esta fórmula foi repetida na Constituição de 34 (art. 52), bem como na Constituição de 46 (arts. 81 e 82). Nas Cartas de 37 e 67, por regulamentarem períodos políticos de regimes de exceção, suas fórmulas são diferenciadas. Na Carta de 67, assim se verifica: "Art 76 - O presidente será eleito pelo sufrágio de um Colégio Eleitoral, em sessão, pública e mediante votação nominal". O mesmo sistema de eleição indireto foi experimentado na Carta de 37, quando, por um período de seis anos de mandato (art. 80), seria escolhido o Presidente por um colégio eleitoral2. No modelo constitucional de 1988, desenhou-se o regime democrático seguido pelas Constituições votadas, lastreadas a escolha por votação derivada do sufrágio universal. Curiosa mudança se dá em face da reeleição. A Constituição originária, de 1988, vetou a reeleição, buscando a vedação à continuidade no poder, sinônimo mais explícito e maximizado do princípio republicano, que preza pela alternância no governo. Ao revés, o mandato fora estendido em face das fórmulas mais tradicionais anteriores: "Art. 82. O mandato do Presidente da República é de cinco anos, vedada a reeleição para o período subseqüente, e terá início em 1º de janeiro do ano seguinte ao da sua eleição". Pela Emenda Constitucional nº 16, de 1997, contudo, esta regra foi alterada, aditando-se a permissão para a reeleição para "um único período subsequente" (art. 14, §5º, CF/88), restringindo-se, ainda, o mandato para 4 anos, regra esta mantida desde então. Este mecanismo, como é possível compreender, permite a reeleição a um período posterior apenas, não proibindo que os candidatos se reelejam futuramente, feita a janela eleitoral de quatro anos. Esta modalidade, cumpre dizer, é diversa dos originários americanos, os quais, apesar de permitirem a reeleição, vedam a eleição futura, após a recondução constitucionalmente garantida, nos termos da Emenda XXII à Constituição dos Estados Unidos3. Diante deste arquétipo brasileiro, já passados mais de 21 anos da reforma, todos os Presidentes que se elegeram foram reeleitos. O apelo dos defensores da reeleição está ancorado em alguns argumentos: na defesa da continuidade das atividades administrativas, no seguimento de boas políticas públicas, na crítica ao curto tempo de 4 anos para administrar, na dificuldade de se gerir parcialmente o mandato com base no orçamento deixado pelo governo anterior, na defesa da vontade popular que reconduz seu competente preferido. Ou ainda, defende-se que, uma vez que há a continuidade, o governante não tomará excessivas decisões impopulares e se precaverá contra atos corruptivos, eis que poderiam macular a imagem política do exercente do mandato. Por último, seria mais responsável para com o dinheiro público, uma vez que seria o próprio que administraria com aquele orçamento anteriormente legado. Sem embargo, os tempos parecem mudar. Tramita no Senado, a Proposta de Emenda à Constituição 113A/2015, já aprovada pela Câmara dos Deputados, que autoriza o fim da reeleição no país, para os cargos executivos (Prefeito, Governador e Presidente da República)4. O próprio Presidente da República, recentemente eleito em 2018, apoia a ideia e já declarou publicamente que se empenhará neste desiderato5. Para quem comunga desta opinião, o fim da reeleição: garantiria maior rotatividade no poder, contribuiria para que o candidato se empenhasse mais no cargo ao invés de dividir seus esforços para buscar reeleger-se, estabeleceria uma maior igualdade entre os candidatos no pleito, evitaria o risco de fraude eleitoral e uso da máquina pública para fins eleitoreiros, diminuiria a tentação pelo uso do cargo para a distribuição de favores para a obtenção da reeleição, além de que diminuiria a constância no poder como elemento de perpetuidade de privilégios e de consolidação de práticas administrativas homogêneas. De uma maneira ou de outra, cada uma das escolhas acaba por ser válida, tanto em suas virtudes quanto em suas críticas. Eleger o Presidente, reelege-lo, é um ato de grande responsabilidade para a Nação, enquanto decisão fundamental da política. Esta escolha permite a construção da esperança, trazido pelo virtuoso eleito, ou mesmo poderá gerar o lamento quadrienal do fracasso. O certo é que a decisão é politicamente de alta envergadura, tamanhos são os poderes presenciais na nossa conjuntura institucional. Assim, do ponto de vista do cidadão, importa conhecer mais bem os argumentos, posicionar-se e decidir pelo caminho que traga mais realizações aos valores que a democracia brasileira defende. Mas como, na leitura dos clássicos, "a política é um camaleão", em que tudo pode acontecer e se transformar, identificar os riscos e acertos de tais decisões fundamentais é nossa tarefa mais complexa, envolto nesse cenário de interesses que o tema encerra. __________ 1 "Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição". 2 Vide: "Art. 84. O collegio eleitoral reunir-se-á na Capital da Republica vinte dias antes da expiração do periodo presidencial e escolherá o seu candidato á Presidencia da Republica. Si o Presidente da Republica não usar da prerogativa de indicar candidato, será declarado eleito o escolhido pelo collegio eleitoral". Como é consabido, o período do Governo Vargas foi de 1937-1945 (Estado Novo). 3 "Seção 1. Ningue'm podera' ser eleito mais de duas vezes para o cargo de presidente, e pessoa alguma que tenha sido Presidente, ou desempenhado o cargo de Presidente por mais de dois anos de um peri'odo para o qual outra pessoa tenha sido eleita Presidente, podera' ser eleita para o cargo de Presidente mais de uma vez". 4 Câmara aprova fim da reeleição para presidente, governador e prefeito. 5 Bolsonaro diz que vai propor fim da reeleição para presidente.
Rafael de Lazari No texto passado, se falou a respeito das escolhas plebiscitárias feitas pela população brasileira em 1993, que consagraram (na verdade, mantiveram) a República e o presidencialismo como forma e sistema de governo, respectivamente. Se disse, ademais, sobre as divergências doutrinárias quanto à natureza implicitamente pétrea dos institutos, tomando-se partido pela não petrificação dos modelos republicano e presidencialista (passíveis de alteração por eventual emenda constitucional, portanto). Atualmente, o presidente da República, importando essencialmente o modelo norte-americano, exerce as funções de chefia de Estado e de chefia de Governo. Suas atribuições estão dispostas no art. 84, CF, em exemplificativo rol que não distingue atuação interna (chefia de Governo) de atuação externa (chefia de Estado). Desta forma, num mesmo dispositivo, do mesmo modo que se fala em nomeação e exoneração dos Ministros de Estado (inciso I - típico caso de chefia de Governo), se dispõe sobre as relações com Estados estrangeiros (inciso VII - típico caso de chefia de Estado). O presidencialismo vem passando por críticas no país, por uma série de fatores (com boa dose de razão, é verdade): hipertrofia do Poder Executivo (inchaço da máquina estatal presidencialista), excessiva concentração de poder nas mãos de um só homem, dificuldade de contornar crises políticas quando o chefe da função perde a governabilidade etc. A história recente pátria, ademais, mostra que, "talvez", as coisas não estejam realmente tão bem: dois impeachments, em 1992 e 2016, com o país paralisado durante o processo e o quase colapso político e econômico de suas instituições. Consequentemente, defesas pela Monarquia e/ou pelo Parlamentarismo acabam sendo um processo natural no debate sobre formas e sistemas governamentais. Aliás, especificamente no que tange ao sistema de governo, é preciso lembrar, ainda, de um modelo híbrido, comumente chamado semipresidencialista, que busca reunir os aspectos positivos do presidencialismo e do parlamentarismo (notadamente mediante a desconcentração do poder, que é tão forte se predominantemente nas mãos do Presidente - como ocorre no presidencialismo - ou se predominantemente nas mãos do Parlamento - como ocorre no parlamentarismo). No semipresidencialismo, o Presidente da República reparte suas funções com o Primeiro-Ministro, e ambos coexistem com o Parlamento (e com as demais instituições republicanas). Expressão cunhada pelo cientista político francês Maurice Duverger, o semipresidencialismo é adotado em países como Portugal e França, e são fortes os adeptos de sua implantação no Brasil caso se queira fazer por aqui uma profunda e real reforma política. No mais, desde já externando extremo respeito aos adeptos de uma e/ou outra corrente, manifesta-se aqui, ao menos no atual estágio de conhecimento dos fatos, pela manutenção do Presidencialismo Republicano. Mas, ao invés de "desmerecer" argumentos parlamentaristas e monárquicos, toma-se o sentido de ressaltar os argumentos presidencialistas e republicanos. Veja-se, portanto: os argumentos monárquicos e parlamentaristas são excelentes e contundentes (notadamente a melhor governabilidade e a diluição do poder no Parlamentarismo, bem como a colocação do Rei acima de interesses partidários na Monarquia), mas entende-se que o Presidencialismo Republicano é, simplesmente, mais bem embasado que as hipóteses anteriores, e substancialmente mais adequado para o contexto histórico brasileiro. Vamos sintetizar em dois argumentos (pelas limitações que uma coluna impõe). Primeiro, porque forma e sistema de governo devem dialogar com a forma de Estado pátria, que é federativa. A diluição geográfica de poder que o federalismo (especificamente o brasileiro) possibilita (vide a posição dos Municípios desde a CF/1988, com ênfase), pressupõe órgãos fragmentados e vinculados a autoridades locais e regionais, o que somente o Presidencialismo Republicano possibilita com satisfação. Para alterar forma e sistema de governo no Brasil, portanto, seria preciso repensar a Federação, e nesse caso uma simples emenda constitucional talvez não fosse suficiente para resolver a questão (afinal, neste caso, além da divisão de Poderes, se mexeria também na própria estrutura existencial do Estado). Se é possível um modelo parlamentarista parecido com o da Alemanha para o caso dos Estados da federação brasileiros, vislumbra-se grande dificuldade em encaixar tal modelo nos Municípios. Noutro giro, se é tão difícil desconstituir um Presidente da República do cargo quando ele pratica ilícitos, o que dizer de um Rei que governa arbitrariamente? Pegando o caso britânico de exemplo, não se consegue pensar no "impeachment" da Rainha Elizabeth II, com o perdão da licença poética. Em segundo lugar, não é verdade que exista concentração de poder em demasia na República Presidencialista. Tanto a República quanto o Presidencialismo são excessivamente controlados, com base em critérios sólidos e constitucionalmente dispostos. O segundo dispositivo da Constituição Federal, por exemplo, de pronto traz a noção de freios e contrapesos para a República, o que se revela em vários momentos (um exemplo clássico é o do impeachment do Presidente da República, em que o chefe do Executivo é julgado pelo Senado após juízo autorizativo da Câmara dos Deputados, sendo o Senado presidido pelo Ministro Presidente do Supremo Tribunal Federal). Igualmente, o Presidente da República não age de forma incondicionada: se indica Ministro para o Supremo Tribunal Federal que não reúna bons atributos, o Senado tem a prerrogativa de rejeitar; se adere a tratado internacional que ofende o ordenamento jurídico brasileiro, o Congresso pode refutá-lo; se pratica crime comum relacionado ao exercício de suas funções, o Supremo Tribunal Federal pode julgá-lo. Isso sem contar várias outras manifestações, como os Conselhos da República e da Defesa Nacional, bem como os controles desempenhados em caso de estado de sítio, estado de defesa e intervenção federal. Deste modo, se é verdade que o republicanismo e o presidencialismo têm defeitos, não menos correto é o fato de que ambos são mais completos e abrangem o maior número possível de situações. Não se exclui, a título de conclusão, a possibilidade de uma mudança futura de posicionamento, dada a solidez dos argumentos monarquistas e parlamentaristas (e a cujos estudiosos são tecidos elogios, aliás). Entretanto, é preciso antes demonstrar como é possível superar qualitativamente o Presidencialismo Republicano, que tem defeitos, mas defeitos ajustáveis pontualmente.
Rafael de Lazari Nada obstante variações doutrinárias, há duas tradicionais formas de governo, a saber, Monarquia e República. Na Monarquia, o poder fica concentrado nas mãos de poucas pessoas, sendo suas características a irresponsabilidade política do governante (versão clássica), o poder vitalício, e a hereditariedade. Já na República, o poder fica concentrado nas mãos de pessoas que representam os interesses de todos, sendo suas características a responsabilidade política do governante (versão moderna), o poder temporário (alternância no poder), e a eletividade. Igualmente, nada obstante variações doutrinárias, há dois tradicionais sistemas de governo, a saber, o Presidencialismo e o Parlamentarismo. No Presidencialismo, o Presidente da República acumula as funções de Chefe de Estado (representa o país na ordem internacional, perante outras nações) e de Chefe de Governo (cuida da política interna do país). Já o Parlamentarismo caracteriza-se pela separação entre as funções de chefia de Estado e da chefia de Governo, que são exercidas por pessoas diferentes (com efeito, o Parlamentarismo pode ser um Parlamentarismo Republicano - se a chefia de Estado é exercida pelo Presidente da República -, ou um Parlamentarismo Monárquico - se a chefia do Estado fica a cargo do Rei). Insiste-se que estes modelos são altamente mutáveis, de forma que foram trazidas características genéricas apenas para introduzir a questão e situar o leitor. No mais, constitucionalmente falando, o Brasil sempre pendeu pela preponderância da chefia do Executivo no direcionamento do país (Poder Executivo hipertrofiado). Não bastasse isso, sempre preponderou a chefia do Executivo pelo Presidente da República, dentro de um modelo presidencialista como regra: na Constituição de 1824, o chefe do Poder Executivo era o Imperador, nos termos temos do art. 102; na Constituição de 1891, o chefe do Poder Executivo era o Presidente da República (art. 41); na Constituição de 1934, o chefe do Poder Executivo era o Presidente da República (art. 51); na Constituição de 1937, o chefe do Poder Executivo era o Presidente da República (art. 73); na Constituição de 1946, o chefe do Poder Executivo era o Presidente da República (art. 78); na Constituição de 1967, o chefe do Poder Executivo era o Presidente da República (art. 74); na emenda constitucional nº 1/1969, o chefe do Poder Executivo era o Presidente da República (art. 73); na Constituição de 1988, manteve-se a "tradição" no art. 76. Por fim, analisando a partir do republicanismo, lembra-se que por um único e curto período na história abandonou-se o modelo presidencialista em prol do modelo parlamentarista (ainda que este parlamentarismo tenha se dado por motivos questionáveis). Em dois de setembro de 1961, para tentar apaziguar os ânimos causados pela renúncia de Jânio Quadros à Presidência da República após sete meses de governo, com a consequente dificuldade de aceitação institucional ao direito de seu Vice, João Goulart, assumir o cargo, instalou-se, por força da emenda constitucional nº 4 à Constituição de 1946, o sistema parlamentar de governo, que permitiu a posse de Goulart, mas reduziu-lhe sensivelmente os poderes. Esta emenda acabou revogada pela EC nº 6, de vinte e um de janeiro de 1963, que restabeleceu o modelo presidencialista (esta emenda é decorrência de um plebiscito realizado logo no começo de 1963, no qual o povo brasileiro optou pelo retorno ao presidencialismo). Questão interessante é que, por ocasião da Constituinte de 1987-1988, pairava grande dúvida quanto às melhores forma e sistema de governo para o país. Disso decorreu a inclusão de um art. 2º no ADCT, pelo qual no dia 7 de setembro de 1993 o eleitorado deveria definir, através de plebiscito (consulta prévia à população, portanto), a forma (República ou Monarquia constitucional) e o sistema de governo (Parlamentarismo ou Presidencialismo) que deveriam vigorar no País (a Constituição adotou provisoriamente a República Presidencialista, mas condicionou essa continuidade à participação popular). A consulta plebiscitária acabou acontecendo em 21 de abril daquele ano (por força da EC nº 2/1992 que adiantou a data), marcando para primeiro de janeiro de 1995 o início da vigência dos novos modelos, caso fossem adotados. Ao fim, as teses monarquistas e parlamentaristas não vingaram, e como tudo continuou como já estava, boa parte da Revisão Constitucional que deveria começar após a Constituição completar cinco anos (art. 3º, ADCT) perdeu sua razão de existir (a lógica era simples: a Revisão poderia reajustar uma Constituição Republicana Presidencialista para uma Constituição Republicana Parlamentarista, por exemplo). Antes do debate sobre termos feito a escolha mais acertada (bem como a abertura para um possível "reajuste de rota" pós-escolha de 1993), uma discussão que se afigura pontual é se, com a aprovação popular, Republicanismo e Presidencialismo adquiriram a condição de cláusulas pétreas implícitas na atual manifestação de poder constituinte. Para se ter ideia, a Resolução nº 1, de 18 de novembro de 1993 (oriunda do Congresso Nacional) dispôs sobre o funcionamento dos trabalhos da Revisão Constitucional que começou em outubro daquele ano, bem como estabeleceu normas complementares específicas. Especificamente seu art. 4º, §3º, IV, vedou a apresentação de propostas revisionais que contrariassem a forma republicana e o sistema presidencialista de governo (afinal, admitir o contrário seria desrespeitar a vontade popular manifestada pouco antes, em abril). Isto posto, há dois posicionamentos extraíveis deste contexto: o primeiro, de que a votação popular pela República e pelo Presidencialismo ratificou a condição pétrea de tais forma e sistema de governo, respectivamente; o segundo, de que, justamente em sentido contrário ao posicionamento anterior, a falta de unanimidade/consenso do constituinte enfraqueceu a adjetivação entrincheirada de tais preceitos. Comumente, se costuma acenar pela natureza não pétrea do sistema de governo (sob o argumento de que a compatibilidade da separação de Poderes restaria mantida), e pela natureza pétrea da República (sob o argumento de que a Monarquia seria incompatível com a separação de Poderes). Não é o posicionamento que se adota aqui, contudo: ambos os institutos - forma e sistema de governo - não devem ser entendidos como cláusulas pétreas. Concorda-se com o argumento dado para a questão atinente ao parlamentarismo. Discorda-se do argumento dado para a questão inerente à Monarquia: seria perfeitamente possível uma Monarquia no Brasil, desde que esta fosse uma Monarquia constitucional, de modo que a separação de Poderes assegurasse sua existência, assim como fosse mantida a fiscalização interna e externa das funções e instituições republicanas.
quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

O exercício direto pelo povo

Daniel Barile da Silveira A democracia moderna está intimamente ligada a um procedimento de tomada de decisões, pelo qual a maioria decide assuntos públicos, que afetam toda uma comunidade de pessoas. Nesta abordagem, uma decisão para ser considerada democrática está atrelada a identificar quem está autorizado a tomar estas decisões e quais os procedimentos que essa deliberação deve seguir para ser chamada minimamente de justa aos seus participantes. Neste contexto específico, a vinculação das decisões públicas adota um caráter mais procedimentalista em sua razão de existir: definir quais as pessoas e quais regras seguir, em um acordo prévio e consabido, garante a realização maior do valor democrático. Portanto, para compreender a democracia nestes moldes, deve-se ter em consideração que, quanto mais pessoas decidirem e, ainda, quanto mais simples, igualitárias e claras são as regras deliberativas, mais nos aproximamos deste ideal, realizando as promessas da soberania popular (entendida esta, como o poder soberano do povo para a tomada de decisões coletivas). Como nos alerta com perspicácia Norberto Bobbio1, iluminado pelos clássicos gregos, a "onicracia", entendida como governo de todos, é, no mínimo, um ideal, em que um povo por completo exerceria diretamente, e sempre, o poder de deliberação. Especialmente falando, esse modelo "puro" jamais foi visto na história, encontrando-se mais facilmente arquétipos deliberatórios que estão próximos de um sufrágio universal, tal como conceitualmente se atribui, em que a maior parte da população decide seus destinos. A cada tempo que passa, a ideia de sufrágio universal atinge novos grupos, alargando o seu rol de cidadãos ativos, mas, e em contraposição, sempre algum grupo é excluído de fora desta categoria de votantes, posto ser um conceito socialmente e historicamente erigido. Apenas para se ilustrar o acima dito em um caso, no Brasil, como regra, os menores de 16 anos hoje não votam, apesar de poderem decidir sobre muitos aspectos em sua vida privada. Seria esta uma violação ao princípio da participação popular destas pessoas? Haveria uma falácia no discurso da soberania popular entregue a todos os cidadãos de forma livre e igualitária? Uma resposta destas apenas pode ser dada em aspectos comparativos: certamente, há mais democracia, e mais sufrágio dito por universal, no modelo atual em que idosos, jovens, mulheres, não proprietários, analfabetos decidem, do que no da Constituição Imperial de 1824, em que o voto era censitário, para homens maiores2. Mas certamente este regime do Brasil dos oitocentos era mais aberto em relação a modelos em que as eleições eram exclusivamente indiretas, ou não existiam, para determinados casos, como no uso de nomeações "biônicas" da Constituição de 1937, pelo Estado Novo, ou mesmo da suspensão do voto direto constante das alterações da Constituição de 1967, durante o regime militar. Isto demonstra que, em termos de democracia, tempo não é sinônimo de progresso ou evolução dos valores democráticos, podendo haver intercursos e retrocessos. Portanto, para se medir o grau do exercício direto de decisões por um povo, a quantidade de pessoas que decide importa, sendo o quantum de partícipes um elemento de medição de democracias consolidadas e em desenvolvimento. Mas talvez valha acrescentar neste índice que quantidade deve ser analisada não somente do ponto de vista da quantidade de pessoas decidindo (quanto?), mas também em quais locais estão decidindo (onde?). De fato, é observável que a expansão da democracia, em sociedades de sufrágio universal, acaba por estar ligada mais a quais espaços de decisão o povo decide do que a quantidade propriamente de decididores que participam do jogo. Por outro lado, a preocupação com a qualidade da democracia também está afeta ao modelo de regras que se adota, consubstanciada no modus operandi de sua prática. Aqui a explicação parece ser mais simples, posto que a própria ideia de quantidade nos leva a crer que quanto mais pessoas decidem a favor de algo, mais essa visão torna aceita por todos. Eis a regra. Logo, a maioria decide sobre seus destinos, sendo taxada de antidemocrática, autoritária ou personalista aquela decisão que leva em consideração as preferências da minoria da vontade imposta de alguns ou de alguém mais influente no desenho social. Isto não quer dizer que apenas a unanimidade deva ser considerada, como a realização da "máxima maioria" e, portanto, sinônima de "máxima democracia". Esta fórmula só é possível de se conceber apenas em caráter muito exclusivo, vez que muito raramente ela é conseguida, ainda que a regra do jogo seja desenhada para tal, como em modelos de júri em alguns países ("guilty or not guilty", nos EUA), ou ainda em decisões de aceitação ou veto em organismos internacionais (a exemplo do poder de veto no Conselho de Segurança da ONU). Nestas situações específicas, o que se percebe é que o modelo de decisão unânime apenas se aplica em dois casos muito exponenciais: ou no caso de direito de vetar uma decisão grave ou quando a decisão não expressa relevância, como no caso do consenso tácito3, pela qual, diante da simplicidade da questão discutida (um voto de aplauso, p. ex., em sessões colegiadas), a não manifestação unânime ganha expressividade. Entretanto, seu uso restringe-se a corporações, entidades e parlamentos, jamais aplicáveis a grandes massas de pessoas, em países continentais. Além de irrazoável, inútil, seria inegavelmente injusto. A regra, pois, para um exercício democrático direto do povo é que as decisões sejam tomadas por maioria, e que, após tomadas, vinculam todo o grupo. Estas duas condições clássicas para o exercício direto pelo povo de decisões públicas, quais sejam, uma quantidade máxima de votantes, em espaços cada vez mais ampliados, e o procedimento de votação pela maioria, compõem aquilo que se denomina de visão procedimental das regras do jogo democrático. Mas é de se julgar que, a par desta visão moderna, uma nova condição seja imposta, revestida de outros dois aspectos mais substanciais: primeiramente, embora quantidade de regras seja importante para o exercício democrático pelo povo, há de se conciliar estes elementos com a possibilidade efetiva de o povo poder participar das decisões. Isto é, para que possa efetivamente decidir, faz-se necessário que lhe seja dado condições prévias para deliberar, consistentes em alternativas reais de decisão (e não dentre elementos ficticiamente apresentados ao público, representantes de uma mesma ideia ou facção). Um plebiscito ou referendo em que as alternativas decisórias sejam "sim" ou "não" acerca de certo assunto não podem ser analisadas apenas do ponto de vista procedimental, mas devem guardar realidade conquanto à substância deliberativa: ambos representam lados opostos? Rejeitar algo seria apenas postergar o "sim" para um momento posterior? A escolha do "não" representa o "não" mesmo? Não restam críticas, neste último aspecto, para o referendo sobre a possibilidade de comercialização de armas de fogo no Brasil, em 2005, em que havia intenção manifesta do Governo à época de proibir a venda, lançando a seguinte pergunta: "O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?". Votar "sim", neste caso, em realidade significaria decidir pela proibição, de nítido código linguístico negativo ("não"), sendo o inverso verdadeiro. Por falta de informação, muitos decidiram por proibir a comercialização, quando queriam dizer "não às armas"4. Portanto, as condições reais da democracia estão também em seu conteúdo, merecendo seu destaque. De outra banda, por fim, é necessário apoderar o povo à decisão. O direito ao exercício do sufrágio pelo povo não pode se mostrar como um direito isolado, mas deve estar ancorado em outros direitos antecedentes àquele, como que um pressuposto de sua realização: o direito à saúde como garantia de interesse mínimo para votar, à liberdade de expressão e opinião como veículos de externalização da consciência, o direito de transporte público até os locais de votação, o direito de reunião em locais públicos para a discussão das escolhas, a liberdade de imprensa, a liberdade de informação, enfim, elementos todos que possam garantir um "mínimo existencial e de cidadania", que permitam a todos decidir com um certo grau de autonomia decisória e dignidade de espírito. Por isto dizer que as regras que a Constituição estabelece para o exercício direto do poder popular de decidir não estão apenas nos direitos políticos, mas se espraiam por todo o bloco de direitos fundamentais, em todo o seu texto. Normalmente, o colapso de um direito individual ou social acarreta o enfraquecimento da democracia deliberativa, ainda que inadvertidamente. É por isto que o voto regular, o plebiscito e o referendo devem ser concretizados como elementos substanciais de decisão, com reais possibilidades deliberatórias para o exercício direto da soberania. De igual monta, a iniciativa popular de lei deve ser um elemento factível, talvez ainda muito distante das dificultosas possibilidades estabelecidas atualmente em nosso texto constitucional5. Por fim e não menos importante, cultivar-se um Judiciário efetivamente acessível à população, a qual queira fazer uso da ação popular ou de ações que questionem a regularidade do pleito, são princípios basilares para o atingimento de uma qualidade democrática cada vez maior em nosso país. __________ 1 O Futuro da Democracia:uma defesa das regras do jogo. 6.ed.São Paulo, Paz e Terra, 1986, p.19. 2 Vide art. 90 e ss. da Constituição Imperial. 3 O Futuro da Democracia:uma defesa das regras do jogo. 6.ed.São Paulo, Paz e Terra, 1986, p.20. 4 Como é sabido de muitos, ao final, fora proibida a comercialização das armas de fogo. Mas a confusão estava posta. Veja um excerto dos jornais à época: "A pergunta que se faz é confusa. Os que são contra as armas devem votar Sim (de maneira duplamente contra-intuitiva, Sim é o número 2 nas máquinas eletrônicas de votação), e os que são a favor delas, Não (número 1). O jornal "O Estado de S.Paulo" recentemente fez a pergunta a cem pessoas no centro de São Paulo: 29 delas entenderam errado (isto é, votaram contra a proibição quando eram a favor dela, e vice-versa)". 5 Assim se diz pela dificuldade de reunir 1% de eleitores no país, distribuídos em 5 Estados e que, em cada um deles, haja, pelo menos, 0,3% de eleitores. Vide dispositivo do art. 61, § 2º, CF/88.
quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

O modelo distrital

Emerson Ademir Borges de Oliveira Ao povo da República dos Estados Unidos da Bruzundanga Sou entusiasta do sistema distrital para as eleições legislativas proporcionais, vale dizer, para os cargos de vereador, deputado estadual, deputado distrital e deputado Federal. Há algo de intrínseco neste modelo que há muito fora esquecido no contexto nacional: a necessidade de um vínculo contundente entre o representante e o representado. É dizer que a existência de um liame de proximidade entre o eleitor e o eleito permite uma contraprestação e uma responsabilização muito maior, além de direcionar o representante para atender as necessidades exclusivas de sua base, deixando para outros representantes as necessidades alheias. Quem está próximo tem melhores condições de conhecer os problemas locais. Para melhor compreensão, cumpre explanar mais detalhadamente como se opera o sistema distrital. Neste modelo, a região geográfica é dividida em um número de sub-regiões que tenham aproximadamente o mesmo número de eleitores e na mesma quantidade das vagas em disputa. Imagine-se, por exemplo, que o Estado X possua 30 cadeiras no Legislativo Federal (Deputado Federal). O Estado será, então, dividido em 30 regiões, equivalentes em número de eleitores ou de população, e cada uma das regiões elegerá um único representante. O representante mais votado será eleito nos sistemas de maioria simples, como nos Estados Unidos, ou haverá um segundo turno entre os dois mais votados nos sistemas de maioria absoluta, como na França. Existem sistemas mistos, alguns conhecidos por voto distrital misto, em que existe uma mescla entre o voto distrital e o voto proporcional. Assim, por exemplo, dentro de uma determinada região, o eleitor vota em um candidato e em um partido e existe uma relação entre os votos para escolha do vencedor ou vencedores. Mas este sistema misto varia a depender das regras de cada país. Em termos teóricos, contudo, entendo que voto distrital é apenas aquele em que o voto é destinado ao candidato, sendo um único representante eleito por distrito. Os demais modelos nada passam do que arremedos do sistema proporcional que buscam atenuar os efeitos danosos deste. Hás duas razões principais que me atraem no modelo distrital de maioria simples: a já indicada proximidade eleitoral, aumentando o nível de representatividade, e o custo das campanhas. A proximidade eleitoral gera aquilo que é conhecido por accountability. Noutras palavras, a prestação de contas do representante perante o seu eleitorado. A aproximação constante com a base permite estabelece uma via de mão dupla entre eleitor e eleito, de forma que aquele possa pretender explicações e oferecer proposituras a este e este sinta-se no dever de trabalhar em prol das necessidades de sua base. Vale dizer, o accountability gera responsabilidade. Como ressalta Simões Coelho: "Uma pessoa ou instituição é accountable quando é responsável por decisões e pelas consequências de suas ações e inações, e o de, portanto, ser um exemplo para outros. Aquele que é accountable aceita a responsabilidade e mantém sua integridade, evitando a 'aparência de improbidade' e resguardando (no caso de uma organização) sua reputação"1. Trágicas as situações que tanto assistimos em que parlamentares viajam todo o Estado, distribuindo parcelas insuficientes e ineficazes de suas emendas aos fins que se destinam. Antes que apenas um o faça e, se a população entender que não o fez bem, possa retirá-lo no próximo pleito. De outra via, ao limitar a atuação geográfica do representante, não há necessidade de alcançar votos em todo o Município ou Estado, mas apenas em sua própria região, o que, sem dúvida, diminui drasticamente o custo das campanhas. Evidente que, havendo participação pública no fomento eleitoral, há também benefícios públicos, exigindo-se menor parcela para os respectivos fundos2. Os críticos do modelo costumam lembrar o famoso Gerrymandering norte-americano, ou "efeito salamandra"3, em que o mapeamento dos distritos é realizado de forma intencional para favorecimento de um ou outro partido. A medida, contudo, é fácil de ser contornada em solo brasileiro, atribuindo-se ao Tribunal Superior Eleitoral e aos Tribunais Regionais Eleitorais o estabelecimento dos distritos, com base nos dados estatísticos atualizados do IBGE. Uma outra crítica diz respeito à ameaça da proporcionalidade, uma vez que é possível a obtenção de um número alto de cadeiras ao mesmo tempo em que a votação total venha a ser diminuta. É costumeiramente lembrada a eleição britânica de 1974, em que o partido trabalhista obteve 319 das 635 cadeiras em disputa com apenas 39% dos votos, ao passo que o partido liberal, com 18% dos votos, obteve apenas 13 cadeiras. É evidente que todo modelo traz um risco e a ocorrência de efeitos colaterais dele advindos. A questão é simplesmente a opção por benefícios maiores do que os riscos. A despeito das disparidades das conquistas partidárias, mais importa que o distrito seja representado e exista proximidade entre eleitorado e eleito, realidade tão distante no nosso sistema. Ademais, não se olvide que disparidades tão grandes entre as cadeiras alcançadas e o número de votos obtidos não se faz comum, mas uma anomalia dentro do sistema. Mais estranha, ao nosso ver, é a possibilidade de candidatos de baixa representatividade serem eleitos, em vista do quociente eleitoral, ao passo que candidatos extremamente bem votados podem acabar ficando de fora, mesmo com toda a força de sua localização geográfica. E, pior do que isso: a possibilidade de candidatos que não representem uma única região e que se tornem eleitos por "pescarem" votos ao longo de todo o Estado. A contraprestação, como soa óbvio, nunca advém. Não se deve olvidar, outrossim, que a opção por um representante por distrito tende a afastar correntes ideológicas extremistas, calcando-se no equilíbrio necessário para que o representante possa atuar em prol de todo distrito. No círculo brasileiro atual, em que a população parece crescentemente se politizar, é imprescindível trazer o político para perto do povo. Urge lembrá-lo cotidianamente de quem obteve e obtém, cotidianamente, procuração para trabalhar. __________ 1 COELHO, Simões de Castro Tavares. Terceiro setor: um estudo comparado entre Brasil e Estados Unidos. São Paulo: Senac, 2000. 2 Referimo-nos ao Fundo Partidário e ao Fundo Especial de Financiamento de Campanha, temática abordada nesta coluna, no texto "O financiamento das campanhas eleitorais", em 28 de novembro de 2018. 3 O termo fora cunhado por Elbridge Gerry, governador de Massachussetts e vice-presidente dos Estados Unidos. No ano de 1802, em seu estado, novos desenhos dos distritos eleitorais foram construídos com o intento de favorecer os republicanos, partido de Gerry. Observou-se que o desenho de um dos distritos ficou parecido com uma salamandra (salamander). A junção dos termos levou ao jargão político.
quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

O sistema proporcional nas eleições parlamentares

Jefferson Aparecido Dias No dia 17 de abril de 2016 o povo brasileiro acompanhou pela televisão um espetáculo que, para muitos, assemelhou-se a uma tragicomédia: a votação do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. Na verdade, a surpresa se deu não tanto pelo teor dos votos, a favor ou contra o impedimento da ex-mandatária geral do Brasil, dado que, há alguns dias, já haviam sido antecipados pela imprensa, mas sim diante dos argumentos trazidos pelos parlamentares para justificar os seus votos e pela postura por eles adotada no momento de proferi-los. Pairou sobre muitos a dúvida sobre quem realmente estava sendo representado por tais parlamentares, pois muitos não se sentiram representados por eles. A hashtag #nãomerepresenta ganhava força. E, nunca é demais reforçar, não pelo resultado da votação, que, afinal, contou com amplo apoio popular, mas sim pelas invocações utilizadas para justificar os votos. O que parece uma mera sensação, se confrontada com os dados, se revela a pura realidade. Na verdade, dos 513 deputados eleitos em 2014, dos quais 511 votaram naquele dia, apenas 35 conseguiram conquistar a sua cadeira graças aos próprios votos, o que representa 7% dos eleitos, pois os demais foram eleitos graças aos votos recebidos pelos seus companheiros de legenda ou da coligação da qual fizeram parte1. O maior problema é que essa situação se agravou nas últimas eleições, nas quais apenas 27 Deputados Federais conseguiram se eleger com os próprios votos2, o que representa uma queda de 22,8% em relação ao cenário anterior. Essa situação acaba gerando uma sensação inusitada, pois os eleitores não se consideram representados pelos eleitos e, em consequência, não veem utilidade em seu voto. Na verdade, muitos eleitores sequer se lembram em quem votaram. Cria-se um círculo vicioso, no qual os eleitores não se consideram representados pelos eleitos que, por sua vez, votam as leis sem se considerarem vinculados a qualquer eleitor. A situação poderia ser ainda pior, caso não tivesse sido aplicada a cláusula de barreira trazida pela lei 13.165, de 29 de setembro de 2015, que alterou o Código Eleitoral (lei 4.737, de 15 de julho de 1965), dando ao seu art. 108 a seguinte redação: "Estarão eleitos, entre os candidatos registrados por um partido ou coligação que tenham obtido votos em número igual ou superior a 10% (dez por cento) do quociente eleitoral, tantos quantos o respectivo quociente partidário indicar, na ordem da votação nominal que cada um tenha recebido". Assim, atualmente, para aproveitar-se dos votos recebidos pelos demais candidatos do Partido ou da coligação, o candidato deverá obter pelo menos 10% do quociente eleitoral, o qual é obtido pela divisão do número de votos válidos pelo número de vagas de uma determinada circunscrição eleitoral Essa situação deve ser parcialmente alterada nas eleições municipais de 2020, pois já está em vigor o art. 2º, da Emenda Constitucional nº 97, de 4 de outubro de 2017, que expressamente veda a "celebração de coligações para as eleições proporcionais". Outro ponto, porém, colabora para essa sensação de não representatividade dos eleitos: o número excessivo de partidos políticos, pois, afinal, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral, o país conta atualmente com 35 partidos políticos devidamente registrados3 e outros 76 partidos que aguardam registro, estando em formação4, o que poderá resultar na incrível marca de 111 partidos políticos em funcionamento no Brasil. Essa marca somente não deverá ser atingida em razão de outro preceito trazido pela Emenda Constitucional nº 97 que, com o fim de restringir o acesso dos partidos aos recursos do Fundo Partidário e ao tempo de rádio e TV, estabeleceu uma cláusula de desempenho, a partir da qual tais benefícios somente serão garantidos aos partidos que "na legislatura seguinte às eleições de 2018: a) obtiverem, nas eleições para a Câmara dos Deputados, no mínimo, 1,5% (um e meio por cento) dos votos válidos, distribuídos em pelo menos um terço das unidades da Federação, com um mínimo de 1% (um por cento) dos votos válidos em cada uma delas; ou b) tiverem elegido pelo menos nove Deputados Federais distribuídos em pelo menos um terço das unidades da Federação;" (art. 3º, parágrafo único, inciso I). A Emenda prevê, ainda, o gradativo aumento dos percentuais nas eleições seguintes, até as eleições de 2026. Nas últimas eleições, 14 dos 35 partidos registrados no TSE não conseguiram atingir a cláusula de desempenho e não terão mais acesso aos recursos do fundo partidário, bem como ao horário gratuito5. Como se vê, as medidas até agora adotadas, aparentemente, tendem a levar a uma redução no número de partidos, o que, em certa medida, pode tornar um pouco menos confusas nossas eleições. Mas apenas a redução do número de partidos não basta, pois são necessárias medidas que permitam que o eleitor volte a se sentir representado pelos candidatos eleitos. Uma das possibilidades é a adoção do voto distrital misto, o qual é objeto do Projeto de lei 9.212/20176, já aprovado no Senado Federal e que, atualmente, aguarda a aprovação na Câmara dos Deputados. Nesse sistema, existe "uma combinação do voto proporcional e do voto majoritário. Os eleitores tem dois votos: um para candidatos no distrito e outro para as legendas (partidos). Os votos em legenda (sistema proporcional) são computados em todo o estado ou município, conforme o quociente eleitoral (total de cadeiras divididas pelo total de votos válidos). Já os votos majoritários são destinados a candidatos do distrito, escolhidos pelos partidos políticos, vencendo o mais votado"7. Assim, por meio do voto distrital misto, o candidato mais votado em cada distrito estaria automaticamente eleito e, ainda, existiriam cadeiras a serem preenchidas segundo o sistema proporcional, de acordo com os votos recebidos pelos partidos políticos, que também sairiam valorizados. A expectativa é que o voto distrital misto reduza os valores gastos com as campanhas eleitorais, pois os candidatos teriam que conquistar os votos apenas de seu distrito e não em todo o Estado, no caso dos Deputados Estaduais e Federais. No caso dos Vereadores a representatividade seria ainda maior. Essa redução dos custos das campanhas eleitorais, por outro lado, tendem a produzir uma maior renovação dos eleitos, pois, atualmente, por serem muito onerosas, as campanhas acabam por favorecer aqueles que já ocupam cargos públicos e seus parentes ou que sejam muito abastados. Outra vantagem trazida pelo projeto é que ele "favorece o aumento da transparência eleitoral pois, apesar de não eliminar o voto em lista, determina que a lista seja ordenada e registrada no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) antes da eleição, para que os eleitores saibam, de antemão, quais serão os candidatos eleitos por proporcionalidade em cada partido, diferente do que acontece hoje com a votação em lista aberta"8. Assim, como se vê, a expectativa é que a adoção do voto distrital misto possa trazer muitas vantagens para o processo eleitoral. O problema, contudo, é que este e os demais projetos relacionados à Reforma Política serão votados pelos atuais Deputados Federais que, ao que parece, estão pouco motivados a adotar novos mecanismos que, no futuro, possam dificultar a sua reeleição. Assim, eles acabam votando tendo em vista os próprios interesses e não o interesse dos eleitores. Neste cenário, é imprescindível que os eleitores fiquem atentos, pressionem os eleitos e exijam que eles votem em defesa do interesse público. É importante lembrar que, no "jogo democrático", os eleitores são os protagonistas, pois são os titulares dos votos que podem eleger ou não um candidato. No mais, que venha a Reforma Política, pois precisamos eleger candidatos que realmente nos representem. __________ 1 EBC, Agência Brasil. Cai número de deputados eleitos com votos próprios em 2018. Data: 15/10/2018. Acesso em: 5/12/2018. 2 EBC, Agência Brasil. Cai número de deputados eleitos com votos próprios em 2018. Data: 15/10/2018. Acesso em: 5/12/2018. 3 BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Partidos políticos registrados no TSE. Acesso em: 5/12/2018. 4 BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Partidos em formação. Acesso em: 6/12/2018 5 EBC. Agência Brasil. Partidos perdem direito ao Fundo Partidário e ao horário gratuito. Data: 09/10/2018. Acesso em: 6/12/2018. 6 BRASIL. Câmara dos Deputados. PL 9212/2017. Acesso em: 10/12/2018. 7 BRASIL. Senado Federal. Voto distrital misto. Acesso em: 10/12/2018. 8 CASTRO, Ana Marina; RAMOS, Tiago Sousa. Blog Fausto Macedo: O que você precisa saber sobre o voto distrital misto. Data: 27/07/2018. Acesso em: 10/12/2018.
Jefferson Aparecido Dias A frase "one man, one vote" (um homem, um voto), teria sido usada pela primeira vez pelo sindicalista inglês George Howell, em 1880, para defender a adoção de um estado democrático. Nesse sentido, é interessante relembrar a democracia teria surgido em Atenas, por volta do ano 500 a.C., num sistema no qual, supostamente, os cidadãos participavam diretamente das decisões que interessavam à cidade-estado. Uma análise mais detida daquela época, contudo, demonstra que essa visão da democracia ateniense é bastante romantizada, pois, na verdade, somente participavam das deliberações as pessoas que pertenciam à elite local, uma vez que várias pessoas sequer possuíam o status de "cidadão" e, portanto, praticamente não tinham direitos. Estima-se que apenas 10% da população tinham direito de participar das deliberações democráticas. Atualmente, porém, prevalece a máxima de que todos podem (ou devem) votar, tendo sido adotada na maioria dos países desenvolvidos e em desenvolvimento um modelo de democracia representativa, como é o caso do Brasil. A democracia brasileira, contudo, esconde algumas distorções, dentre as quais a falsa proporcionalidade representativa da população dos Estados Federados na Câmara dos Deputados. A Constituição Federal de 1988 prevê que "O número total de Deputados, bem como a representação por Estado e pelo Distrito Federal, será estabelecido por lei complementar, proporcionalmente à população, procedendo-se aos ajustes necessários, no ano anterior às eleições, para que nenhuma daquelas unidades da Federação tenha menos de oito ou mais de setenta Deputados" (art. 45, §1º). Assim, nenhum Estado poderá ter menos de oito ou mais de setenta deputados e a distribuição de deputados por Estados deve sofrer ajustes periódicos para garantir a representatividade das suas populações. Essa distribuição periódica, contudo, não é atualizada desde 1994, pois a última fez que ela ocorreu foi por meio da Lei Complementar 78, de de 30 de dezembro de 1993. Atualmente, esse é o número de Deputados por Estado: Acre (8), Alagoas (9), Amazonas (8), Amapá (8), Bahia (39), Ceará (22), Distrito Federal (8), Espírito Santo (10), Goiás (17), Maranhão (18), Minas Gerais (53), Mato Grosso do Sul (8), Mato Grosso (8), Pará (17), Paraíba (12), Pernambuco (25), Piauí (10), Paraná (30), Rio de Janeiro (46), Rio Grande do Norte (8), Rondônia (8), Roraima (8), Rio Grande do Sul (31), Santa Catarina (16), Sergipe (8), São Paulo (70) e Tocantins (8), totalizando 513 Deputados. Essa distribuição, levando-se em consideração a projeção populacional do IBGE para 2018, permite a elaboração do seguinte gráfico no qual pode ser visualizada o total de habitantes representado por um Deputado Federal1: Assim, pelos dados acima apresentados, é possível verificar que, enquanto um Deputado Federal representa 72 mil habitantes de Roraima, um Deputado Federal pelo Estado de São Paulo representa 650.500 habitantes, quase dez vezes mais. O Tribunal Superior Eleitoral, diante da inércia do Congresso Nacional em atualizar a distribuição de Deputados por Estados, tentou corrigir parcialmente tais distorções e editou a Resolução nº 23.389/2003, a qual foi julgada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, porque invadiria competência exclusive do Poder Legislativo2. Se essa Resolução fosse considerada constitucional, cinco Estados teriam aumentado o número de Deputados Federais (Amazonas, Ceará, Minas Gerais, Santa Catarina e Pará) e outros oito perderiam Deputados (Alagoas, Espírito Santo, Pernambuco, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Paraíba e Piauí). A não atualização dessa distribuição, causa "uma das principais patologias dos sistemas representativos das democracias contemporâneas [que] é a não-proporcionalidade entre a população (ou eleitorado) de uma determinada circunscrição eleitoral e seu número de representantes na Câmara dos Deputados"3. Essa distorção acaba por atribuir "pesos" diferentes para os votos dos habitantes dos Estados, pois em alguns Estados o voto do eleitor acaba "valendo mais", violando, de certa forma, a igualdade que deve prevalecer num regime democrático. Nesse sentido, vários autores são enfáticos em sustentar que "a alocação de cadeiras da Câmara entre as unidades da Federação, por critérios não-proporcionais, produz resultados deletérios para o sistema representativo brasileiro"4. Além disso, essa distribuição desproporcional de Deputados pelos Estados não raras vezes pode influenciar de forma decisiva nas deliberações envolvendo certas demandas que, a despeito de interessarem para alguns Estados, pode ser indesejada para outros. Assim, é premente que seja readequada a distribuição de Deputados pelos Estados, o que se pretende fazer pelo Projeto de Lei do Senado 3155, de 2016, o qual "Dispõe sobre o número total de Deputados Federais, fixa a representação por Estado e pelo Distrito Federal para a Quinquagésima Sexta Legislatura (2019-2023), nos termos do art. 45, § 1º, da Constituição Federal, e dá outras providências". A aprovação de tal Projeto de Lei seria a primeira medida visando corrigir essa distorção que, como se viu, concorre para o comprometimento do Pacto Federativo, o qual, além disso, conforme temos demonstrado nas artigos publicados semanalmente nesta coluna, carece de uma reformulação em vários de seus aspectos, visando readequá-lo à realidade. __________ 1 BRASIL, Câmara dos Deputados. Proporção de deputados eleitos por estado tem distorções já previstas na Constituição. Data: 10/9/2018. Acesso em: 4/12/2018. 2 BRASIL, Tribunal Superior Eleitoral. Supremo julga inconstitucional resolução do TSE sobre bancadas na Câmara dos Deputados. Data: 20/6/2014. Acesso em: 3/12/2018. 3 NICOLAU, Jairo Marconi. As Distorções na Representação dos Estados na Câmara dos Deputados Brasileira. Dados vol. 40, nº 3, Rio de Janeiro, 1997. Acesso em: 4/12/18. 4 NICOLAU, Jairo Marconi. As Distorções na Representação dos Estados na Câmara dos Deputados Brasileira. Dados vol. 40, nº 3, Rio de Janeiro, 1997. Acesso em: 4/12/18. 5 BRASIL. Câmara dos Deputados. Atividade Legislativa. Projeto de Lei do Senado n° 315, de 2016 (complementar). Acesso em: 4/12/2018.
quarta-feira, 28 de novembro de 2018

O financiamento das campanhas eleitorais

Emerson Ademir Borges de Oliveira Ao povo da República dos Estados Unidos da Bruzundanga Nos últimos anos, a sequência de fatos públicos e notórios envolvendo esquemas de corrupção e campanhas políticas arrefeceu os debates acerca do financiamento das campanhas eleitorais. Questões como o aumento da contribuição pública, limitação de doações e proibição de contribuição de pessoas jurídicas perpassam cotidianamente em um ambiente em que o dinheiro pode fazer a diferença em termos de eleição. Como asseveram Bruno Silva e Emerson Cervi, a universalização do sufrágio nas democracias conduz a quadros de "encarecimento das campanhas e o consequente protagonismo do dinheiro"1. Primeiro, gostaria de compartilhar dois pressupostos que tomo para a análise deste tema: 1) campanhas muito caras tendem ao abuso do poder econômico, alcançando o voto pela força financeira e não pelo convencimento real do eleitor; 2) campanhas muito caras tendem a ficar ainda mais caras depois que o candidato alcança seu mister e a conta sempre será, em grande parte, pública. Digo isso, antes de mais nada, porque tenho para mim que o convencimento sadio não necessita de campanhas faraônicas. Ao contrário, as inserções em excesso acabam conduzindo ao malfadado quadro de adesão ao voto por insistência. É o mesmo que ocorre com a publicidade comercial: quanto maior o seu leque, maior o alcance. O problema é que o voto não está - ou não deveria estar - à venda. E, quanto ao segundo item, a experiência recente demonstrou que o superfaturamento de obras públicas tinha como destino a alimentação de campanhas políticas. Logo, quem paga o preço somos nós. Desde a Minirreforma Eleitoral de 2015, levada a efeito pela lei 13.165, com alterações da lei 13.488/2017, há quatro possibilidades de financiamento das campanhas eleitorais, que se fundem em um sistema misto, mesclando financiamento público e privado2: a) Fundo Partidário; b) doações de pessoas físicas; c) recursos próprios; d) Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC). Como se vê, na esteira da decisão do STF, na ADI 4.650, o legislador vedou, com acerto, a doação realizada por pessoas jurídicas, muitas vezes contaminada pela troca de favores no pós-eleição, como a vitória em licitações e celebração de contratos com valores superfaturados. Nesse sentido, ressaltam Luciana Ferreira e Luiz Magno Pinto Bastos Junior: "O financiamento misto de campanhas, apontado no contexto da reforma política como um dos fomentadores da crise de representatividade vivida no Brasil, é comumente associado a casos de corrupção, e foi alvo recente de ação direta de inconstitucionalidade, a qual julgou inconstitucional o financiamento de partidos e de campanhas eleitorais por empresas"3. Pois bem. A utilização do Fundo Partidário dá-se da seguinte forma: 5% é distribuído de forma igual entre todos os partidos; os restantes 95% são distribuídos de forma proporcional ao tamanho da bancada do partido na Câmara dos Deputados. Nas eleições presidenciais de 2018, o Fundo alcançou a cifra é R$ 880 milhões. Vale lembrar: em grande parte, dinheiro público constituído por dotações da União, multas, penalidades, doações e outros recursos. Já as doações de pessoas físicas encontram-se sob a égide do novel artigo 23 da lei 9.504/97. Tais doações, em dinheiro ou valor auferido em dinheiro, serão limitadas a 10% do rendimento bruto do doador no ano anterior à eleição. Assim, quem auferiu R$ 100 mil em 2017 poderia doar apenas R$ 10 mil nas eleições de 2018. Para quem extrapolar o excesso, incidirá multa de 100% sobre o valor excedido. A identificação precisa do doador, enquanto requisito, proporcionará a verificação do enquadramento nos limites legais, conforme Declaração de Imposto de Renda. Seguindo a mesma linha, para as próximas eleições, o autofinanciamento estará restrito a 10% dos rendimentos brutos auferidos pelo candidato no ano anterior às eleições. Por fim, quanto ao FEFC, tem-se a seguinte distribuição: a) 2% igualmente entre todos os partidos; b) 15% proporcionalmente ao número de representantes no Senado Federal; c) 48% proporcionalmente ao número de representantes na Câmara dos Deputados; d) 35% de acordo com o percentual de votos obtido na última eleição para a Câmara dos Deputados. Para 2018, foram distribuídos R$ 1,7 bilhão. Frise-se, novamente: dinheiro público fornecido pelo Tesouro Nacional. Não se olvide que o estabelecimento do teto de gastos para as campanhas partidárias colabora, em grande parte, para evitar o abuso do poder econômico. Nas eleições de 2018, o limite de gastos para Presidente, no primeiro turno, fora fixado em R$ 70 milhões e, para o segundo turno, em R$ 35 milhões (art. 5º da lei 13.488/2017). Para que se tenha uma ideia, nas eleições de 2014, a campanha vitoriosa de Dilma Rousseff custou R$ 350,4 milhões. Em 2018, a campanha mais cara registrada, do candidato Henrique Meirelles atingiu R$ 44,2 milhões, ao passo que a campanha vitoriosa de Jair Bolsonaro custara R$ 1,7 milhão, incluindo os dois turnos. Seu adversário, no segundo turno, Fernando Haddad declarou despesas de R$ 34,4 milhões. Dentre os candidatos à Presidência em 2018, Geraldo Alckmin recebera R$ 44,8 milhões de recursos públicos, oriundos do FEFC e do Fundo Partidário, do total de R$ 46 milhões que registrara como possíveis gastos. A restrição da arrecadação, todavia, não pode ignorar os riscos decorrentes da omissão de créditos na contabilidade partidária. Medida que também deve ser duramente combatida, sob pena de tornar qualquer outra ineficaz, é o famigerado Caixa Dois de campanha, tomando base em créditos não oficialmente contabilizados. O Caixa 2 merece combate severo, não apenas na esfera penal (art. 350 do Código Eleitoral), mas também na esfera eleitoral, com a inelegibilidade da chapa ou candidato sempre que o valor omitido superar dez salários mínimos. O financiamento de campanhas deve ser, para o bem da própria Administração, e para proporcionar maior inserção dos eleitores na vida política, realizada quase totalmente por pessoas físicas, com sistemas, inclusive, de crowdfunding, minimizando os recursos públicos decorrentes do Fundo Partidário e do FEFC, que certamente fazem falta em outros setores. Mantida deve restar a proibição de doações por pessoas jurídicas e a limitação percentual na doação das pessoas físicas, como ocorre atualmente, assim como a limitação de gastos de acordo com o cargo em concorrência. Medidas como tais, certamente, auxiliam a democracia, conduzem a um quadro eleitoral hígido, com eleições justas e limpas. E o erário público agradece, direta e indiretamente! __________ 1 SILVA, Bruno Fernando da; CERVI, Emerson Urizzi. Padrões de financiamento eleitoral no Brasil: as receitas de postulantes à Câmara dos Deputados em 2010 e 2014. Revista Brasileira de Ciência Política, n.23, mai./ago. 2017, p.77. 2 GOMES, José Jairo. Direito eleitoral. 5.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. 3 FERREIRA, Luciana; BASTOS JUNIOR, Luiz Magno Pinto. O financiamento de campanhas eleitorais sob a ótica da democracia. Resenha Eleitoral, v. 20, n.2, ago./dez. 2016, p.84.
quarta-feira, 21 de novembro de 2018

A utilização das urnas eletrônicas

Jefferson Aparecido Dias Nas últimas eleições as urnas eletrônicas foram alvo de muitas críticas, uma vez que não seriam confiáveis e facilmente aptas a serem fraudadas. As principais "fakes" indicavam que: 1) estudos indicam chance de 73,14% de fraude em urnas eletrônicas; 2) o ex-deputado federal Protógenes Queiroz recebeu asilo do Governo Suíço após por ter denunciado fraudes em urnas eletrônicas; 3) Diretor da OEA, Gerardo de Icaza, teria assumido fraudes em urnas eletrônicas; e 4) PF apreendeu urnas com votos para Haddad. Todas essas informações foram checadas pelo programa "Fato ou Fake"1 e constatadas como falsas, apesar de terem sido compartilhadas, visualizadas e curtidas milhões de vezes. As críticas às urnas eletrônicas encontraram eco até mesmo no clã Bolsonaro, maior vencedor das eleições, que suscitou dúvidas quanto à sua confiabilidade, o que exigiu uma pronta resposta do presidente do Supremo Tribunal Federal em defesa do atual sistema de coleta de votos utilizado no Brasil. O problema é que, se os vencedores questionam a confiabilidade das urnas eletrônicas, quem dirá os perdedores. O mais interessante dessa grande suspeita levantada contra as urnas eletrônicas é que ela contraria os próprios motivos que levaram à sua adoção, ou seja, o combate às fraudes. Façamos uma viagem ao passado. As urnas eletrônicas foram adotadas parcialmente a partir de 1996, ou seja, há 22 anos, em substituição às urnas de lonas, as quais, à época, eram acusadas de serem as grandes facilitadoras de fraudes. Como a apuração era manual e envolvia milhares de pessoas, uma das principais fraudes denunciadas era o preenchimento indevido, pelos escrutinadores, dos votos em branco em favor desse ou daquele candidato, ou mesmo a interpretação dos votos supostamente nulos como destinados a determinado candidato, o que poderia alterar de forma definitiva o resultado de uma eleição. Outra fraude tida como bastante comum era o chamado voto "formiguinha"2 por meio do qual um primeiro eleitor recebia a cédula de votação, ia até a urna e depositava um papel em branco, levando a cédula ainda em branco para o líder da fraude. Esse, por sua vez, preenchia a cédula de votação com os votos de seus candidatos, entregava-a para outro eleitor que, comprometido (por bem ou por mal) com o esquema fraudulento, tinha a obrigação de depositar a cédula preenchida na urna e trazer de volta a cédula em branco, realimentando a votação fraudulenta. Também existia a fraude chamada de "urnas emprenhadas"3, segundo a qual as urnas chegavam às seções eleitorais já "grávidas", ou seja, cheias de cédulas com votos em favor de determinado candidato, uma vez que o seu fecho era extremamente frágil e facilmente violável. Assim, como se vê, a defesa do retorno puro e simples das cédulas impressas e das urnas de lona, com o abandono das urnas eletrônicas, é totalmente inconcebível!! Claro que é possível imaginar-se alguns aperfeiçoamentos, como a impressão do voto após a votação eletrônica, conforme o art. 2°, da lei 13.165/15), que determinou que: "No processo de votação eletrônica, a urna imprimirá o registro de cada voto, que será depositado, de forma automática e sem contato manual do eleitor, em local previamente lacrado". Infelizmente tal preceito foi suspenso pelo STF, ao apreciar Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) 5889, proposta pela Procuradoria Geral da República, sob o argumento de que a impressão do voto "colocaria em risco sigilo e a liberdade do voto, contrariando a Constituição Federal."4, bem como "a falta de proporcionalidade e razoabilidade da medida, uma vez que impõe altos custos de implantação - estimados em mais de R$ 2 bilhões - e traz riscos para a segurança das votações, sem haver garantia de que aumenta a segurança do sistema"5. Claro que essa impressão, como bem alertaram os ministros do STF, teria que ser feita de forma a garantir o sigilo dos votos, bem como ampliar a segurança das votações, o que seria perfeitamente possível diante da tecnologia já disponível, que permite a impressão do voto, sua visualização e depósito em um recipiente inviolável. Ao que parece, o argumento definitivo, apesar de não explicitado com tamanha ênfase, foi o econômico (custo). De qualquer forma, não me parece que a impressão dos votos, conforme preceitua a referida lei, impedirá que surjam dúvidas quanto à confiabilidade do processo eleitoral pois o problema, a meu ver, não está na utilização das urnas eletrônicas ou das urnas de lona, mas sim no pouco interesse que o processo eleitoral como um todo suscita no brasileiro. Na verdade, o brasileiro, como os nacionais de outros países, dedicam pouco ou quase nenhuma atenção ao processo eleitoral, a não ser às vésperas das eleições, o que justifica o grande número de eleitores que deixaram de fazer o recadastramento da biometria e, por isso, foram impedidos de votar nas últimas eleições6. A nossa democracia, apesar de ansiar por ser participativa e dispor de vários preceitos constitucionais e legais que incentivam a participação popular na gestão política e administrativa, há muito tem sido meramente formal e parcialmente representativa. Nesse sentido, foram estabelecidas regras supostamente imparciais e democráticas que, imagina-se, ao serem adotadas, levam a resultados também (supostamente) imparciais e democráticos. A solução, no meu entender, seria, além da adoção do voto facultativo, conforme defendeu o prof. dr. Emerson Ademir Borges de Oliveira neste mesmo espaço7, que a população brasileira passasse a aproveitar às oportunidades que tem de participar da gestão do país, começando, a título de sugestão, por um maior interesse pelas votações das Câmaras de Vereadores de seu município e, se possível, pela efetiva participação nos Conselhos Municipais, como os Conselhos Municipais da Saúde, da Educação, etc. Essa maior participação da população na vida política e na gestão administrativa de seu país permitirá, provavelmente, a construção de mudanças no sistema eleitoral, pois, conforme lembra Hamilton, "Era impossivel inserir numa: constituição huma lei de eleições applicavel a todas as mudanças porque o paiz naturalmente deve passar"8. Que o povo brasileiro possa construir novas mudanças no processo eleitoral visando aperfeiçoá-lo, tornando-o mais confiável e respeitado, passível de fazer frente às "fake news". ______________ 1 Mensagens com conteúdo #FAKE sobre fraude em urnas eletrônicas se espalham nas redes. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 19/11/2018. 2 Antes e depois das urnas eletrônicas: veja o que mudou. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 19/11/2018. 3 Urna eletrônica extinguiu ocorrências de fraudes em eleições. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 19/11/2018. 4 Liminar suspende regra da minirreforma eleitoral que prevê voto impresso. Disponível em: clique aqui. Acesso em 18/11/2018. 5 Liminar suspende regra da minirreforma eleitoral que prevê voto impresso. Disponível em: clique aqui. Acesso em 18/11/2018. 6 Segundo dados da Justiça Eleitoral, cerca de 3,3 milhões de eleitores deixaram de fazer a biometria e tiveram os títulos cancelados. Por 7 votos a 2, STF mantém cancelamento de títulos sem biometria. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 20/11/2018. 7 Direito ou dever ao voto? Disponível em: clique aqui. Acesso em: 20/11/2018. 8 HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY John. O federalista. Tomo terceiro. Rio de Janeir : Typ. Imp. e Const. de J. Villeneuve e Comp., 1840.