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Marizalhas

Crônicas variadas.

Antônio Claudio Mariz de Oliveira
terça-feira, 7 de maio de 2019

Fatos e fitas: tragédias

Não só amenidades, brincadeiras, boêmia, trotes, penduras e uma já intensa vida cultural marcaram o Largo de São Francisco do século 19. Fatos trágicos passaram para a história da Academia e de São Paulo, pois envolveram antigos alunos, transformados em destacadas figuras públicas e sociais. Dentre outros casos, dois merecem destaque. Abalou São Paulo o assassinato que envolveu Francisco de Assis Peixoto Gomide Júnior e sua filha, cometido na residência de ambos, situada à rua da Princesa, atual Benjamin Constant. Peixoto Gomide Júnior, formado no Largo de São Francisco em 1873, teve uma presença marcante na vida social e política de São Paulo, chegou a ser presidente da Província. Sua casa era frequentada diariamente por políticos, advogados, antigos companheiros da Faculdade, e por pessoas pertencentes a variadas camadas sociais, que vinham prestar-lhe solidariedade política e, especialmente, pedir-lhe favores. Além de filhos, Peixoto Gomide amparou e educou um mulato, Batista Cepelos, que graças ao seu apoio tornou-se promotor de Justiça e conhecido poeta parnasiano. Cepelos e uma das filhas de Gomide tinham um relacionamento estreito, que logo se transformou em namoro com vistas a um próximo casamento. Gomide desconhecendo o namoro, via nesse relacionamento uma amizade fraterna, pois Cepelos fora criado com os seus filhos, como se filho fosse. Aliás, veremos que na verdade filho era. No entanto, quando o casal revelou os seus sentimentos e comunicou a sua intenção, houve uma reação enérgica por parte do pai da moça, que se colocou ardorosamente contra o enlace. Inconformada, a filha não se submeteu à vontade paterna, desobediência pouco comum à época, e de forma obstinada e persistente tentou levar avante o seu intento. Recebeu o apoio de seus familiares, que não entendiam a resistência do patriarca. Até então ele demonstrara um afeto paternal por Cepelos. Estranho e inexplicável que não apoiasse o matrimônio. A resistência do pai, horrorizado pela possibilidade da filha se envolver em uma relação incestuosa e a obstinação da filha em se casar com aquele que ignorava ser seu irmão, um não querendo revelar a verdade e a outra a desconhecendo, transformaram esse drama humano em um tragédia que chocou São Paulo. Como não lograsse fazê-la desistir, Peixoto Gomide, para evitar a consumação do incesto, matou a moça e suicidou-se em seguida. Batista Cepelos era seu filho fruto de um relacionamento fora do casamento. Marcado pela tragédia, o poeta anos após, foi encontrado morto no Rio de Janeiro, para onde se mudara, após cair de uma elevação. Não foi elucida a natureza da morte, se acidental, assassinato ou suicídio. Outro homicídio repercutiu intensamente em São Paulo e em outras Províncias, especialmente no Maranhão, onde ocorreu. Teve como seu autor o desembargador José Cândido de Pontes Visgueiro, formado na turma de 1834 da nossa Academia. Vítima desse homicídio foi a jovem Maria da Conceição. Pontes Visgueiro nasceu em Maceió e cursou os dois primeiros anos de Direito na Faculdade de Olinda, transferindo-se para São Paulo onde completou o curso. Segundo consta, a sua vinda se deu porque, nas férias escolares, passou a namorar uma moça de Maceió, que não era do agrado de sua família. Esta obrigou-o a vir estudar em nossa cidade. Já nos primeiros anos na Academia mostrou ser portador de um temperamento agressivo. Andava armado com uma longa faca, fato que trazia intranquilidade para os colegas. E não era gratuito o receio dos demais estudantes. Certa ocasião, agrediu com canivetadas a um colega pois este fizera uma pisada que o desagradara. Consta, ainda, que em uma noite atirou pedras contra as janelas da Casa da Marquesa de Santos, onde se realizava um baile. Exerceu a magistratura em Maceió e posteriormente em cidades da Província do Piauí, após um período na política, tendo sido deputado pelas Alagoas. Posteriormente, foi desembargador na Província do Maranhão. Quando já desembargador, conheceu em São Luiz uma moça que mendigava pelas ruas do centro. Contava ela não mais do que 15 anos de idade. Ele beirava os setenta. Apaixonado pela jovem, o ancião foi tomado por avassalador ciúmes, que o levava a agir violentamente contra a moça e contra quem ele entendia a estar cortejando. Toda a pequena sociedade local comentava o comportamento do magistrado e antevia a tragédia que acabou por ocorrer. Mariquinhas, assim era conhecida Maria da Conceição, desapareceu por uns tempos, após ter sido flagrada por Pontes Visgueiro aos beijos com um jovem estudante. Ela conseguiu safar-se da ira do velho amante, o que não ocorreu com o moço que sofreu enfurecida agressão. Durante várias semanas insistiu para um reencontro com Mariquinhas, que se esquivava por medo de represália. Cedeu por fim. Acompanhada por uma amiga foi à casa do desembargador. Durante algum tempo o encontro foi agradável, com o velho apaixonado desdobrando-se em gentilezas. No entanto, quando a amiga se retirou, o martírio de Maria da Conceição teve início. Ela foi segura por um empregado de Visgueiro, que estava escondido na casa e colaborou na prática do crime, que já vinha sendo planejado há vários dias. Enquanto o empregado cúmplice chamado Guilhermino, a agarrava e a imobilizava pela garganta, o criminoso a esfaqueava e dava-lhe mordidas por todo o corpo, após aplicar-lhe clorofórmio nas narinas. Os requintes de crueldade, impressionaram as autoridades, que de plano vislumbraram um grave distúrbio mental, antes mesmo que Pontes Visgueiro fosse submetido a exames psiquiátricos. O trecho comporta um parêntese para lembrar que o velho desembargador quando criança já fora acometido por grave enfermidade, que o marcou física e talvez psicologicamente, pela vida afora. Uma febre retirou-lhe a fala e a audição. Os sentidos voltaram, mas, aos quarenta anos perdeu a escuta por completo. Após o horrível crime, cometido com fúria e com perversidade, o corpo de Mariquinhas foi colocado em um caixão e enterrado no quintal da casa. O caixão fora encomendado há dias. O advogado Franklin Doria, um dos mais notáveis da época, década de 70, do século XIX, discordou da tese do acusador que afirmara ter sido o homicídio premeditado, meticulosamente planejado, especialmente em razão da encomenda do caixão. O defensor, ademais, postulou fosse reconhecida a ausência de higidez mental por parte do desafortunado magistrado. No entanto, sobreveio a condenação imposta pelo Supremo Tribunal de Justiça. A pena originária foi a de galés perpétua, substituída pela prisão perpétua, pois contava o velho desembargador com mais de sessenta anos. Foi encarcerado na Casa de Correção do Rio de Janeiro. Em certa ocasião, quando da visita do ministro da Justiça ao presídio, Pontes pediu e foi atendido, para se avistar com a autoridade. As perguntas do condenado eram respondidas por escrito em razão da surdez que o acometia. Perguntou ao ministro sobre a sua aposentadoria, pois se dizia desembargador. A resposta o teria chocado e abatido profundamente - "Foi".  
sexta-feira, 29 de março de 2019

Estripulias de estudantes e de professores

O contraste entre a pacatez de uma sociedade acostumada às rígidas rotinas familiares e às poucas atividades sociais, marcadas também por não menos rígida liturgia, e a febril, buliçosa e provocativa conduta dos seus novos habitantes, vindos de várias partes do país, começavam a imprimir uma conotação cosmopolita à cidade e a lhe proporcionar novos horizontes culturais, políticos e sociais Os estudantes de Direito do Largo de São Francisco inauguraram novos hábitos e, principalmente, foram responsáveis por eventos jamais vistos na pauliceia. Alguns hilários, outros assustadores, mas que sempre retiravam a cidade do marasmo costumeiro e forneciam abundante material para comentários, disque disques, fofocas, bisbilhotices de toda ordem e natureza. Estava a sociedade de São Paulo se civilizando. Como exemplo de um desses eventos, imagine-se, naquela época, uma figura eminente no meio jurídico e social ser flagrado, por outra não menos importante, no quintal da casa, em idílio amoroso com uma escrava serviçal. Não se pense ser o fato raro, mesmo à época. Raro era o flagrante. Pois bem, o juiz de órfãos de São Paulo, dr. Elias Chaves, certa noite, ouviu estranhos ruídos no vasto quintal de sua casa, localizada no então Largo da Glória. Tratava-se de uma chácara com vasto pomar, árvores e aprazíveis locais cercados por flores e plantas de todas as espécies. Aliás, assim eram todas as residências daquela época. Chácaras de grande extensão que abrigavam casas senhoriais, amplas e imponentes. Estando-se nesses locais, a impressão era de se estar em uma propriedade rural. Essa ideia era reforçada pela existência de animais criados nas vastas áreas externas à casa. Em face da inusitada movimentação o juiz armou-se com uma longa bengala de rumou para fora. Estivéssemos nos dias de hoje, o dr. Elias Chaves se municiaria de arma de fogo. Assim agiria, influenciado por estímulos oficiais, que pregam a utilização de armas de fogo, para que cada cidadão não titubei em aplacar os seus receios, resolver as suas pendências e superar as suas frustrações, à bala. Quando se aproximou da zona de perigo, reconheceu uma sua escrava, doméstica da casa, em ardoroso idílio com um parceiro, prontamente desaparecido. No dia seguinte, o juiz de órfãos levou o ato ao conhecimento do delegado Francisco Maria de Souza Furtado de Mendonça, formado em São Francisco em 1838 e futuro professor da escola. Residia ele na hoje rua da Glória, chamada então de Chácara dos Ingleses, quase em frente ao Largo da Glória, local da Chácara de Elias Chaves. As investigações não lograram descobrir o companheiro da jovem no bucólico e furtivo encontro amoroso. No entanto, posteriormente, o Dr. Francisco Furtado empenhou-se fortemente para conseguir a libertação de uma escrava que executava serviços caseiros para a família do dr. Chaves. Esse fato parece ter reavivado a memória do juiz de órfãos, pois teve confirmada uma desconfiança que lhe assaltou desde a visão do vulto que fugia de seu quintal. O suspeito deveria mesmo ter sido o seu vizinho, delegado de polícia. Já nos primórdios da Faculdade, os estudantes passaram a adotar condutas e práticas que se perpetuaram pois foram assimiladas por todas as gerações vindouras. Uma delas foi o pendura. Não há registros sólidos dos primeiros penduras dados em São Paulo. No entanto, é certo que as mesmas razões que impeliram os estudantes à prática das famosas rapinagens motivaram-nos a "pendurar" despesas em bares e restaurantes. E qual a razão? Sem dúvida foram duas as razões, a fome e a falta de dinheiro. Rapinagens e penduras famélicos. Aliás, os penalistas podem afirmar sem medo de erro que o furto famélico encontra as suas raízes no Largo de São Francisco, ou melhor na situação de penúria de inúmeros de seus primeiros estudantes. Há registro de um acontecimento ocorrido em um restaurante da então freguesia da Penha, que pode ser considerado o embrião dessa tradicional prática que perdura até hoje. Os alegres estudantes, depois de se fartarem com iguarias e fartas doses etílicas, verificaram estar desprovidos de numerário suficiente para fazer frente às despesas constantes da conta apresentada pelo já preocupado proprietário. Em face do impasse, liderados por Filástrio Nunes Pires, saíram em defesa de um colega, cuja companheira estaria sendo molestada com gestos e olhares pelo caixa do estabelecimento. Da grande algazarra, os estudantes passaram a ameaçar fisicamente o funcionário que nada entendia, pois nada fizera. Tão grande foi a confusão, que o dono do restaurante pediu que os acadêmicos se retirassem. Foi prontamente atendido pelos jovens, que saíram eufóricos pois aplacaram a fome e a sede e mantiveram intactas as suas parcas finanças.
segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

Fatos e fitas: Academia de Direito e de Música

Ao diversificado universo das atividades estudantis, desde as desenvolvidas em sala de aula, talvez essas as de menor intensidade, passando por seus folguedos e peraltices, passeios, serenatas, saraus, escritos em jornais, poesias, clubes literários, proselitismo político, discursos, até a intensa boemia, não poderia faltar a música. Ela já surgiu no próprio dia da instalação do Curso de Direito, em 1º de março de 1828. Dia de festa, de gala, de discursos infindáveis, muito formalismo e de farta mesa de doces. Afinal, a efeméride estava a justificar toda a pompa e circunstância que a sociedade da época sabia produzir. O discurso principal ficou a cargo do primeiro professor da Faculdade, José Maria de Avelar Brotero. Registros da época, inclusive do jornal Farol Paulistano, talvez o único de São Paulo, mostraram que a fala procurou retratar a alegria e o orgulho de toda a população paulistana, pelo histórico acontecimento. São Paulo estava a partir dessa data sediando o primeiro curso superior do Brasil, a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Lembre-se que de acordo com a lei de 11 de agosto de 1827, além de São Paulo a cidade pernambucana de Olinda iria abrigar como efetivamente o fez, um curso de Direito para os jovens das regiões norte e nordeste. No entanto, a sua primeira aula se deu em maio de 1828, portanto após a inauguração da Faculdade de São Francisco. Nesse dia, não constam erros de pronúncia, nem trocas de palavras por parte de Brotero, fatos que passariam a ser corriqueiros compondo um folclore que acompanhou o professor por toda a sua vida, as famosas "broteradas", palavras pronunciadas em conjunto: "limenta com pimão", ao invés de pimenta com limão; "vidrada quebraça", no lugar de vidraça quebrada, "cidadeira brasilão" em substituição a cidadão brasileiro. As trapalhadas igualmente estavam presentes nas frases completas. Assim, ficou célebre o dito campestre "o gado a saltar de galho e galho, os passarinhos a pastarem pelo campo". O Imperador Pedro II também pode testemunhar as confusões verbais do professor Brotero. Quando em visita à Faculdade, Brotero apresentou ao Imperador o Cônego Fidelis, professor de Retórica: "Apresento Vossa Majestade o Cônego Retórica, professor de Fidelis". Uma outra característica de Brotero era o seu temperamento irascível e o seu mau gênio. O seu alvo principal era o Diretor da Faculdade Coronel José Arouche de Toledo Rendon. No entanto, atingia outros professores, alunos e até funcionários da escola. Um bedel que terminado o seu expediente ia ler jornais na biblioteca, não conseguia o seu intento, pois quando Brotero o via, dava-lhe algo para fazer, não permitindo que permanecesse parado, lendo. Aliás, a alcunha desse servente era Zé Quieto. Tratava-se de um negro. Em relação a outro funcionário, Chico Guaiaca, sabendo que tocava em uma banda, determinou que optasse, ou a Faculdade ou as exibições musicais. Não se sabe se a opção foi feita. Além de Zé Quieto e de Chico Guaiaca um terceiro servente caiu em desgraça. Era o Mendonça, que no entanto, não permaneceu silente diante das provocações. Após algumas implicâncias, enfrentou o professor Brotero dizendo-lhe "não me persiga, porque eu também sou maluco". Voltando à instalação do curso jurídico em São Paulo, nessa data houve a primeira manifestação musical no Largo de São Francisco. Foi executado o denominado "Hino da Inauguração". Segundo algumas fontes o único registro existente a respeito foi feito pelo jornal "Farol Paulistano", que, no entanto, não informou o seu autor. Esse hino parece ter tido vida efêmera, pois foi substituído pelo "Hino Acadêmico", com letra de Bittencourt Sampaio e música de Carlos Gomes. Inúmeras outras composições, durante a história da Faculdade, cantaram e louvaram as Arcadas e os seus estudantes, inclusive as famosas trovas acadêmicas, relegando ao esquecimento o Hino da Inauguração. A respeito da autoria desse primeiro hino há uma especulação em torno do nome de André da Silva Gomes, um antigo professor de música que residia em São Paulo. Alguns dizem poder ter sido ele o responsável pela peça ou, mesmo, algum de seus alunos. O violão, a viola e a flauta eram os instrumentos mais utilizados pelos estudantes. No entanto, houve um, hoje pouco conhecido com esse nome, o oficlide ou oficleide, que não era executado por aluno, mas sim pelo contínuo da Faculdade de alcunha Chico Guaiaca, o mesmo que foi alvo de Brotero, que o tocava em uma banda de música. Os estudantes portadores de dom musical, quando revelado, recebiam algumas vantagens e privilégios dos professores simpáticos à música. Consta que um sisudo mestre era generoso e benevolente com um aluno, aliás péssimo aluno, mas um exímio tocador de flauta. Por tal razão, o professor dava-lhe altas notas não consentâneas com a qualidade de suas provas. Alguns mestres se insurgiram e negaram a aprovação ao flautista. O seu protetor, no entanto, disse que agiria da mesma forma em relação aos alunos protegidos pelos seus colegas de congregação, reprovando-os. Sem oposição, o mau aluno pode ser matriculado no ano posterior. Houve um momento no início da Faculdade, que os professores resolveram agir com maior rigor na avaliação dos alunos. Consta de um ofício às autoridades do Império, que os professores seriam mais rigorosos e não aprovariam os "vadios, que se ocupavam em fazer travessuras e desordens". Vê-se que os seresteiros, boêmios, os que perambulavam pela cidade e seus arredores, os dedicados às letras, à música e a outras atividades extracurriculares teriam dificuldades em obter êxito nos exames. No entanto, como em regra os travessos, peraltas e desordeiros possuíam uma inteligência ágil e vivaz, o pouco que estudavam era suficiente para a aprovação. Assim era e assim é. Dentro desse sistema de maior rigidez e disciplina, nem sequer apresentações artísticas de estudantes eram permitidas. Foram, inclusive, proibidas exibições no recém criado "Teatro Acadêmico" e nos outros poucos palcos existentes em São Paulo. Os estudantes, no entanto, não aceitaram as imposições superiores e passaram a atuar em locais aonde o povo pudesse ir. O Largo de São Gonçalo, hoje Praça João Mendes, tornou-se palco de apresentações teatrais e musicais especialmente nas tardes de domingo. Os pendores artísticos musicais dos estudantes de Direito foram manifestados, por vezes, em situações as mais inusitadas. Em razão de um atrito com a polícia dentro do Teatro do Pátio do Colégio, na presença do então Presidente da Província Coronel Joaquim José de Luiz e Souza, vários estudantes foram presos. Não se sabe exatamente por quantos dias. Segundo uns registros por vinte quatro horas, de acordo com outros durante onze dias. No entanto, durante o tempo que estiveram encarcerados a cantoria não cessou. Entoavam músicas conhecidas ou improvisavam letras, que ecoavam por toda a redondeza. Em outra oportunidade, um estudante que fora preso por agredir o professor Brotero, ficou durante todo o período de encarceramento na cadeia pública localizada no Largo de São Gonçalo, a cantar e a tocar violão. Nos primórdios da Faculdade alguns estudantes se destacaram, em razão de seus dotes musicais. O magistral jurista Teixeira de Freitas, quando estudante do Largo de São Francisco, deliciava os seus colegas de República com o seu violão, que tocava deitado em uma rede. O notável baiano tinha preferência pela música "A vida do Estudante", composta por seu colega Antônio Queiroga. Teixeira de Freitas veio transferido da Faculdade de Olinda, mas não se formou em São Paulo. Colou grau na mesma Olinda, para onde retornou, quando estava no quarto ano. O autor de "O Guarani" e de outras obras que o elevaram à condição de um dos maiores escritores do Brasil, José de Alencar, formado em 1850, embora não fosse músico, além de haver inspirado Carlos Gomes, na composição da ópera do mesmo nome, escreveu a letra de outra ópera, "Noite de São João" . A música foi do também famoso maestro Elias Lobo. É interessante notar que os dois grandes músicos, Carlos Gomes e Elias Lobo, embora não tivessem estudo Direito, tiveram as suas carreiras ligadas aos estudantes de Direito do Largo de São Francisco.
terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

Fatos e fitas : Academia de Direito e de Letras

As crônicas da época já registravam o comportamento dos estudantes e a vida que passaram a levar em São Paulo, com influência marcante no próprio modo de ser da pacata sociedade do pequeno burgo. O comportamento, o modo de ser, os hábitos trazidos pelos acadêmicos acompanharam todas as gerações de franciscanos, até as mais recentes. Souberam elas honrar o legado construído desde os primórdios da Faculdade e que passou a constituir as gloriosas tradições acadêmicas: a boêmia, a irreverência, a permanente alegria de viver, a dedicação à poesia e à música, as disputas ideológicas, a adoção das causas libertárias, a solidariedade, enfim o culto ao belo e ao humanismo. Eram os acadêmicos informais, indisciplinados, buliçosos, segundo um cronista da época, travessos, acriançados, autores de peraltices e de aventuras nunca antes presenciadas pela pacata população de São Paulo. Esses epítetos não incomodavam os estudantes, que tinham a consciência clara do tipo de vida que levavam e que desejavam mesmo levar, pois seu modo de ser brotava da própria essência de cada qual, da essência mesmo do acadêmico de Direito. Fagundes Varela pôs em verso o sentir do estudante: "Pode bem ser que livros não abrisse Que não votasse amor à sábia castaMas tinha o nome inscrito entre os alunos Da escola de São Paulo, e é o quanto basta". Um visitante da época, observador atento e arguto, fez uma análise comparativa entre os "dois povos" que habitavam São Paulo. "A capital da província e a Faculdade de Direito, o burguês e o estudante, a sombra e a luz, o estacionarismo (sic) e a ação, a desconfiança de uns e a expansão muitas vezes libertina de outros". Esse mesmo visitante, Augusto Emílio Zaluar, referiu-se aos acadêmicos como uma "colmeia mais ruidosa, infatigável em sua ação", que estava repleta de vida e de vontade, uma vontade que "produz o desvario e alimenta o gênio". A colmeia era habitada pelas "abelhas douradas que fabricam ao sol da juventude os primeiros favos da sabedoria e da ciência". Outros cursos nos meados do século XIX começaram a ser instalados na cidade. O Curso Anexo, como preparatório ao ingresso na Faculdade; o Gabinete Topográfico, que funcionou no Palácio do Governo, para a formação de engenheiros a serem preparados para a construção de estradas. A sua duração, no entanto, foi efêmera. Uma outra instituição de ensino criada em São Paulo, após a instalação dos cursos jurídicos, foi a Escola Normal de São Paulo, para a formação de professores. Surgiram, ainda seminários e várias escolas particulares, dentre as quais o Colégio Fonseca; o Colégio Emulação; o Colégio Ipiranga; o Culto à Ciência; o Ateneu Paulistano e outros. No entanto, mesmo posteriormente, com o funcionamento de outras Faculdades, especialmente Engenharia e Medicina, os estudantes de Direito continuaram a reinar absolutos em uma cidade que os havia incorporado em seu patrimônio social, cultural e político. São Paulo carecia de bibliotecas e de livrarias. O maior acervo estava na Faculdade de Direito, constituído majoritariamente por obras de teologia, menos de Direito e poucas de literatura. A falta de livros atingia as escolas primárias e secundárias. Segundo registro dos anos trinta e quarenta do século XIX, tal deficiência era suprida por cartões que reproduziam trechos das sagradas escrituras. A criação das primeiras tipografias possibilitou o início da imprensa na cidade. Jornais como "O Farol Paulistano"; "O Constitucional"; "O Correio Paulistano", assim como outras pequenas publicações sempre contaram com a colaboração de acadêmicos. Já por volta da década de 1860, eram inúmeras as publicações literárias e políticas redigidas por estudantes de Direito: Esboços Literários; Memórias do Culto à Ciência; Revista Dramática; Murmúrios Juvenis do Amor à Ciência; O Lírio; A Legenda; O Caleidoscópio; O Acadêmico, entre outras. Algumas dessas publicações eram manuscritas e outras eram impressas nas tipografias já existentes na cidade. Interessante notar que para suprir a falta de livros de ensino as tipografias foram de grande utilidade. Além da impressão de jornais e publicações variadas, elas foram responsáveis pela impressão de alguns manuais, especialmente de história. Assim, em uma tipografia existente na hoje extinta rua de São Gonçalo, foi impresso o livro "Resumo de História Universal". Júlio Frank idealizador da Bucha teria sido o responsável por tal publicação. As livrarias igualmente eram escassas. Uma das maiores e mais bem surtidas era a Garraux. Tornou-se um centro de confluência de professores e de estudantes. Além da atração básica que eram os livros, os seus frequentadores estavam sempre prontos ao intercambio de ideias, às discussões políticas e à troca de experiências literárias. Nessa época, meados do século 19, começaram a ser editados clássicos da literatura universal, assim como obras de autores nacionais, inclusive muitas escritas por acadêmicos ou antigos acadêmicos do Largo de São Francisco. Entre os que se dedicaram às letras, ainda como estudantes nos primeiros dez ou vinte anos da Faculdade, tiveram destaque Antonio Joaquim Ribas, Firmino Rodrigues da Silva, Francisco Bernardino Ribeiro e Francisco Otaviano. Posteriormente, a Faculdade veio a produzir nomes que se consagrariam na poesia e na prosa: José de Alencar; João Cardoso de Menezes; Almeida Rosa; Bernardo Guimarães; Alvares de Azevedo; Fagundes Varela e Castro Alves; Vicente de Carvalho e tantos outros. Contribuíram para o avanço das letras naqueles tempos as sociedades literárias e científicas então criadas. A primeira delas foi a Sociedade Filomática, fundada em 1833, pelo acadêmico Bernardino Ribeiro e pelos professores Carlos Carneiro de Campos, José Joaquim Torres e Tomaz Cerqueira. A Filomática foi seguida pelo Ateneu Paulistano, pela Associação Amor à Ciência, pela Arcádia Paulistana, pela Culto à Ciência, pelo Recreio Instrutivo, dentre outras agremiações. Há quem considere tais associações como embriões do Centro Acadêmico 11 de agosto. A literatura, em prosa e verso, a beleza da palavra falada e a música sempre estiveram presentes na história da Faculdade. O culto à estética e ao belo nunca se apartaram do culto ao direito e a Academia, do seu início até os nossos dias, abrigou juristas e poetas, advogados e musicistas, juízes e literatos. Eram prestigiados tanto os estudiosos, quanto aqueles que se destacavam nas artes. Dizem que esses eram até protegidos em homenagem aos seus dotes. Segundo um autor, Castro Alves, por vezes, foi aprovado pela beleza de seus versos, pois alguns de seus exames eram de duvidoso mérito.
terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Fatos e fitas: alegrias e lágrimas

Os estudantes da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, desde sua fundação, deram à então tristonha cidade de São Paulo um vigor extraordinário. As peculiaridades da vida social, cultural e política que a marcaram no século XIX tiveram como gênese o Largo e seus acadêmicos. Naquele período não foram poucas as manifestações, inclusive de estudantes, de desagrado e pouca estima pela São Paulo da época. O retrato que passavam da cidade era desprimoroso. No entanto, transcorridas não muitas décadas a sua população deu mostras da generosidade e da grandeza da alma paulista, pois rendeu homenagens e reverenciou aqueles que no passado haviam sido seus detratores, e que se tornaram admirados poetas, literatos e homens públicos. Alvares de Azevedo, que segundo a lenda teria nascido na própria Faculdade, se referia a São Paulo como "cidade dos mortos", pois tudo nela lhe parecia "velho e centenário" a ela lhe provocava "tédio e aborrecimento". O futuro romancista Bernardo Guimarães mencionou que São Paulo, embora se apresentasse como um núcleo intelectual respeitável possuía características que lembravam a cidade tradicional da época de "Amador Bueno", o "paulista que não quis ser rei". Aclamado rei dos portugueses e espanhóis no século XVIII, na porta da Igreja de São Bento, abdicou da coroa antes de ser coroado. Olavo Bilac, por sua vez, em uma carta a um amigo dizia não poder viver "numa terra onde só há frio, garoa, lama, republicanos, separatistas, camelos e tupinambás". Em seguida afirmou viver trancado em casa decorando o texto da "Corpo Juri". Terminou informando ter a cabeça "cheia de rimas e de latim. Uma calamidade". Deve-se notar a falta de coerência do poeta. Veio a São Paulo do Rio de Janeiro onde trabalhara em jornal e cursara a Faculdade de Medicina. Abandonou o curso, e mudou-se para São Paulo, onde pretendia cursar Direito. Ao que parece saiu da Corte em razão de uma frustação amorosa. Passou a trabalhar na imprensa paulista, mas não se matriculou na Faculdade de Direito. Assistia aulas esporadicamente, na condição de ouvinte. Deu continuidade em São Paulo à vida boemia que levava no Rio de Janeiro. Frequentava com assiduidade o Bar do Jaça, o Grande Hotel, o Restaurante Faria e a Sereia Paulista, locais de encontro dos boêmios da época, constituída especialmente por estudantes, poetas e jornalistas. E a cidade, acidamente criticada por ele, como se viu, dele mesmo receberia, mais tarde, palavras de carinho e benquerença. Recordando os tempos em que aqui residiu, referiu-se a São Paulo como "esplêndida metrópole". Fez evocações sentimentais dessa época. "Naqueles dias de pouco sol e naquelas noites de muita garoa, já tínhamos dentro de nós esta atual cidade, esta esplêndida metrópole". Os estudantes, dentre eles o próprio Bilac, como se disse estudante de ocasião, entoavam orgulhosos uma cantiga alusiva à vida alegre que levavam: "andamos rindo às estrelas, boêmios endiabrados; apedrejando janelas; dos burgueses sossegados". A influência dos estudantes se fazia notar quando sobrevinham as férias. Com a academia sem atividades, muitos dos estudantes regressavam para as suas cidades e Províncias de origem. Nesse período, São Paulo mudava de fisionomia. Voltava a ser insossa, sem graça, quase sem vida. Segundo a afirmação de alguém que acompanhava a vida paulistana daquela época, durante o ano "São Paulo era uma cidade onde dominava soberana e despoticamente o estudante, e só ele". Esta opinião é compartilhada por Emílio Zaluar, escritor nascido em Portugal, mas radicado no Brasil, em seu livro Peregrinação pela Província de São Paulo. Afirmou nesta preciosa obra que a cidade deveria ser analisada sempre sob dois pontos de vista. De um lado, a cidade em si, a capital da Província e de outro a Faculdade de Direito. "O burguês e o estudante a sombra e a luz, o estacionário e a ação" e após outras analógicas comparações, concluiu como derradeiro contraste, a rotina da população com as "audaciosas tentativas de progresso encarradas na população transitória e flutuante". O estudante de Direito entrou na vida da cidade, quer formando um núcleo peculiar, quer exercendo uma influência decisiva para alterar a fisionomia de São Paulo e de sua sociedade a partir mesmo de 1828, ano do início das atividades da Faculdade. Os estudantes não só deram vida "às sombrias ruas da vetusta cidade colonial" como passaram a compor uma classe intelectual unida e homogênea, sensível aos apelos liberais e nativistas que agitavam a sociedade da época. Época na qual a coroa do Imperador não estava bem fixada em sua cabeça, aliás, segundo se dizia, na "cabeça amalucada de D.Pedro I". Na verdade, logo a partir de 1828, os estudantes de Direito passaram a predominar no pequeno burgo, impondo uma agitação e uma alegria até então inexistentes. Por outro lado, passaram a construir um ambiente de debates políticos e de formação intelectual e literária que deitou raízes na história de São Paulo, tornando-a nos anos vindouros o grande centro propulsor da cultura brasileira. Assinale-se que nos primeiros vinte anos de vida da Faculdade de Direito já era expressivo o número de estudantes de outros Estados, como, aliás, ocorreu nas décadas posteriores, até a criação de outras escolas no país. Os estudantes vinham do Rio de Janeiro; de Minas; da Bahia; de Mato Grosso; do Maranhão e de outros Estados, então Províncias. Em uma cidade, cuja vida social, intelectual e boêmia dependia dos estudantes, não poderiam faltar locais para as diversões menos ortodoxas. As casas das chamadas "mulheres de vida alegre", os lupanares, ou bordeis ou castelos, se já existentes, obviamente, aumentaram consideravelmente as suas "atividades" com a instalação da Faculdade de Direito. Uma das responsáveis pelas "casas" mais conhecidas, era Rita Clementina de Oliveira, conhecida por "Ritinha Sorocabana". As chamadas "madalenas" ou "dalilas" ou "cortesãs" eram reverenciadas e protegidas pelos estudantes, que em não raras vezes se apaixonavam. Muitas dessas mulheres quando os seus preferidos terminavam o curso e voltavam para os seus locais de origem, iam despedir-se na "árvore das lágrimas". Localizada no hoje bairro do Ipiranga, a árvore era o local do adeus, era a testemunha das tristezas, melancolias e lagrimas vertidas nas separações entre estudantes e suas amadas e entre os próprios acadêmicos ligados por sólida amizade constituída durante os cinco anos vividos no Largo de São Francisco.
quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

Fatos e fitas: refregas e conflitos

Não foram raras as ocasiões nas quais os estudantes se viram envolvidos em conflitos coletivos ou interpessoais. Interessante notar duas peculiaridades desses conflitos. Eles tinham início em locais fechados e se estendiam para as ruas. Ademais, em regra, as brigas não ocorriam entre estudantes, mas sim com a polícia ou mesmo com professores da Faculdade. Uma delas teve início pela obstinação de um militar que teimava em permanecer no teatro com o seu quepe na cabeça. Foi repreendido por um estudante, mas não atendeu aos reclamos do acadêmico. A apresentação acabou sendo interrompida, fato que provocou uma reação da plateia, contra o teimoso militar, que acabou abandonando o local. A paz voltou a reinar no pequeno teatro. No entanto, terminada a sessão, teve início um conflito entre estudantes que foram socorrer seus colegas e militares que os estavam esperando na porta. Nos dias subsequentes os ânimos se acirraram e, em decorrência, ocorreram vários incidentes. Em um dos conflitos, um militar foi empurrado de um barranco, fato que lhe causou ferimentos generalizados. Os estudantes, em face das ameaças dos companheiros do militar ferido, constituíram uma comissão, para pedir providencias ao presidente da Província, Jósimo do Nascimento Silva, que os atendeu e informou que os militares haviam sido removidos para outras cidades. A interferência do presidente foi providencial, pois evitou consequências graves no confronto que se avizinhava, entre estudantes e militares. Em outro momento, em um teatro localizado no Pátio do Colégio, os estudantes presentes passaram a tossir insistente e continuamente. Tosses incômodas para a plateia, mas que provocavam risos daqueles acadêmicos que paravam de tossir, apenas para poder gargalhar. Assistia ao espetáculo o coronel Joaquim José Luis de Souza, presidente da Província. Assumiu ele a palavra para advertir os estudantes. Nesse exato instante, um deles levantou-se na plateia e elevou a sua voz, ou melhor, a tosse forçada. Esse estudante recebeu voz de prisão dada pelo delegado João Carlos da Silva Teles, presente ao evento, em cumprimento à ordem do coronel presidente. Como o delegado fosse egresso da Faculdade, os jovens acreditaram que a ordem não seria cumprida. Enganaram-se. Tristão da Cunha Menezes e Martim Francisco Ribeiro de Andrade ambos acadêmicos, foram presos, pois se colocaram ao lado do colega que recebera ordem de prisão, o também acadêmico José Caetano de Andrade Pinto. Os demais estudantes aos gritos, passaram a lançar impropérios contra as citadas autoridades. Todos eles foram ameaçados de prisão, mas não se intimidaram, pois além de continuarem a esbravejar dirigiram-se à cadeia e lá ficaram com os colegas presos. Segundo registro, cerca de setenta estudantes teriam passado a noite na delegacia. Foram eles postos em liberdade em razão de um habeas corpus concedido pelo ex-acadêmico do Largo e juiz de Direito, Carlos Antonio de Bulhões Ribeiro. Apesar desses incidentes, os estudantes possuíam a capacidade de alegrar uma cidade austera e sisuda. Serenatas, cantorias, recitais, saraus, passeios em grupos, a pé ou a cavalo, brincadeiras com transeuntes, por vezes brigas e algazarras compunham todo um rol de entusiasmadas atividades que davam uma especial animação a São Paulo. No entanto, não eram unânimes os aplausos às estripulias estudantis. Especialmente os padres reagiam. E, o faziam, talvez com alguma dose de razão. Dentro das igrejas, o inadequado comportamento de alguns estudantes também se fazia presente. Tantas foram as denúncias de mau comportamento, que o presidente da Província determinou a abertura de um inquérito para apurar as denúncias contra os acadêmicos. Foi o procedimento policial instaurado com ofícios subscritos por várias autoridades eclesiásticas, narrando a maneira como se portavam os estudantes durante as cerimonias religiosas. Em um desses ofícios, a queixa se referia ao posicionamento dos jovens que não se ajoelhavam quando deveriam fazê-lo. Para o subscritor do documento esse fato representava "mui pouca decência". Um outro, dizia respeito aos "abusos" cometidos por esses "indiscretos moços". Considerou-se, em um ofício, ser a conduta da "atual mocidade" nas igrejas tão "escandalosa" a ponto de afligir "ainda aqueles que são indiferentes à religião". Nem sempre o "mau" comportamento nos templos podia ser atribuído aos estudantes, pois não eram eles identificados. No entanto, dificilmente outros jovens poderiam ser responsabilizados, em face da ausência de indícios de autoria, e porque os "antecedentes" dos acadêmicos indicavam serem eles os principais suspeitos. Um desses "antecedentes" teria ocorrido na Ordem 3ª de São Francisco e foi narrado pelo seu vigário. Teria ele visto dois jovens "jogando bola com uma caveira no jazigo da Ordem". Não soube, no entanto, informar se eram estudantes. Tudo levou a crer que... O procedimento coletivo ou individual dos acadêmicos não ensejava reação apenas das autoridades policiais ou eclesiásticas. Casos houve que a repressão foi comandada pelo próprio presidente da Província. O fato em foco, no entanto, não se revestiu da gravidade que justificasse a dura reação do presidente da província, Vicente Pires da Mota. O estudante Antonio José de Figueiredo Vasconcelos, em certa ocasião, praticou um fato que já se tornara uma tradição entre os acadêmicos: participou das chamadas rapinagens famélicas, tendo como alvo perus e galinhas. Não se tem conhecimento de consequências gravosas para inúmeros outros estudantes que desde a instalação dos cursos jurídicos visitaram os quintais das casas paulistanas, no afã de abastecerem suas repúblicas com as saborosas aves. No entanto, na gestão do presidente Vicente Pires da Mota o tacão da repressão caiu pedaço sobre alguns acadêmicos da época, praticantes ousados e corajosos da já arraigada tradição. Embora formado nas Arcadas, Pires da Mota considerava grave transgressão o furto dos galináceos. E, coerente com essa visão, determinou a prisão de Antonio José de Figueiredo Vasconcelos. Houve resistência por parte do acadêmico, que acabou sendo amarrado pelos pés e pelas mãos em uma vara, na posição horizontal, como se fosse um animal conduzido para o sacrifício. Houve pronta reação dos colegas de Vasconcelos, que publicamente e em altos bradodos censuraram a violência praticada por Pires da Mota. Em face das pressões exercidas pelos estudantes, o acadêmico, após ser conduzido à delegacia da forma animalesca já descrita, foi posto em liberdade. Destacou-se no meio estudantil e na própria sociedade paulistana, nos primórdios da Faculdade, o estudante José Joaquim Ferreira da Veiga. Boêmio inveterado, gozava de liderança junto àqueles que também professavam a mesma crença nessa opção existencial. Seu afeto à Faculdade foi demonstrado pelo longo período em que lá cursou Direito: oito anos. Ingressou em 1829 e formou-se em 1836. Talvez inspirados em seu porte físico e em seu temperamento, seus colegas o apelidaram de "Boi". Possuía compleição avantajada, e um gênio irascível e belicoso. Exercia uma atividade incomum para um estudante: era um exímio capoeirista. Tornou-se popular, querido e respeitado não só por um considerável número de estudantes, como por populares, especialmente pelos boêmios e pelos notívagos. A época de atuação de Boi e de seu grupo esteve marcada por graves agitações. Pedro I havia abdicado. Os ânimos exaltados dividiram a sociedade de São Paulo: de um lado os portugueses que desejavam a volta do Imperador, de outro o nativismo tomava conta do espirito dos brasileiros, que desejavam a consolidação de nossa Independência, mas sem a presença de D. Pedro. Comícios em praças públicas e nas portas de bares, ocorriam especialmente à noite, impedindo o sossego noturno das famílias paulistanas. Os livros se referem ao grupo brasileiro como "jacobinos", pela exaltação e radicalismo do sentimento nativista. Registram, ainda, as constantes provocações dos portugueses, que não desprezavam oportunidades para dar vivas a D. Pedro e exigir o seu retorno ao Brasil. A bem da verdade, a eles faziam coro alguns brasileiros, chamados de restauradores. Poucos brasileiros, diga-se.
Nas décadas de 1830 e 1840, os conflitos políticos que agitaram o país atingiram o Largo de São Francisco, especialmente em relação a duas questões que empolgaram a sociedade brasileira durante até o final do século XIX: a república e a escravidão. Mas, com a abdicação de Pedro I em 1831, a então recém-instalada Academia, também passou a discutir a sucessão do Imperador e, especialmente, se viu envolvida pelas disputas entre os liberais e conservadores. Após a ida de D.Pedro para Portugal, em face da pouca idade de seu filho, instalou-se no país uma regência trina, composta por Nicolau Pereira de Campos Vergueiro, Francisco de Lima e Silva e José Joaquim Carneiro de Campos. O sistema de Regências Trinas durou até 1835, quando, em cumprimento ao Ato Adicional de agosto do ano anterior, houve eleições, aliás as primeiras do país, para a escolha de um único regente. Esse mesmo Ato Adicional também criou as Assembleias Legislativas Provinciais. Foi eleito como Regente do Império, o Padre Diogo Antônio Feijó. Ex-deputado por São Paulo às Cortes de Lisboa, posteriormente ministro da Justiça e senador, sua trajetória política foi controvertida e repleta de críticas, mas também de entusiasmados apoios. Possuiu adeptos leais e desafetos raivosos. No entanto, sempre foi reconhecido como um homem probo, de conduta ilibada. Feijó era padre secular, pois não se formou em seminário, prestou exames denominados de civis e foi aprovado. Talvez por tal razão fosse contra o celibato imposto aos sacerdotes. Ademais, expunha um outro fator de rebeldia contra a orientação clerical: era maçom. Sua loja era de Porto Feliz, no interior de São Paulo, aliás a primeira loja maçônica de São Paulo. A antiga rua da Freira, hoje leva o seu nome, rua Senador Feijó, onde nasceu em uma grande casa situada na esquina dessa rua com a rua Cristóvão Colombo. A criação das Assembleias Provinciais representou um importante fator de descentralização do poder e de fortalecimento das lideranças regionais. Ao mesmo tempo, com o poder nas mãos dos políticos locais houve um recrudescimento das disputas entre os grupos rivais. Diogo de Feijó renunciou à regência em 1837, em meio a uma situação política extremamente conturbada, sendo sucedido por Araújo Lima. Várias revoltas eclodiram em Províncias, desde o Rio Grande do Sul, até o Pará passando por São Paulo e por Minas, as quais foram responsáveis pela revolução de 1842. A causa remota dessa revolução, que teve início na cidade paulista de Sorocaba, foi a rivalidade entre liberais e conservadores. No entanto, o pavio da explosão revolucionária foi a promulgação de duas leis no final de 1841. Uma criou o Conselho de Estado, em novembro e a outra, promulgada um mês após, trouxe modificações ao Código de Processo Criminal do Império. A criação do Conselho de Estado, segundo os liberais tinha por escopo permitir que os conservadores controlassem o poder central, trazendo ao jovem Imperador uma série de restrições que impediam o pleno exercício do governo, sem a permanente e pontual interferência do Partido Conservador. As modificações operadas pela outra lei no Código Criminal, por sua vez, alteravam e retiravam importantes avanços inseridos pelos liberais quando da sua promulgação no inicio da década de trinta, quando estavam no poder. Um fato que colaborou para mais incitar a rivalidade em ter liberais e conservadores foi a presença de um conservador, vindo da Bahia, no governo de São Paulo, José da Costa Carvalho. Ocupou o cargo de juiz de fora em nossa Estado. Posteriormente, foi diretor da Faculdade de Direito e presidente da Província. Anteriormente, participara da Regência Trina, que governou a Nação antes da eleição de Feijó. A maioria dos deputados da Assembleia Provincial de São Paulo era composta por liberais convictos e aguerridos. Maioria liberal também era encontrada nas Câmaras Municipais de várias cidades paulistas. Dentre elas Sorocaba, que deu início à Revolução de 1842. O levante foi chefiado por Rafael Tobias de Aguiar, que criou a chamada Coluna Libertadora, composta por voluntários que marcharam contra São Paulo. Inúmeras outras cidades paulistas participaram da rebelião: Taubaté; Quatiz; São Carlos; Porto Feliz; Bragança; Areias; Lorena; dentre outras, nas quais os liberais possuíam supremacia política. O Governo Imperial designou o Duque de Caxias para vir a São Paulo combater a revolta. Desceu em Santos e rumou para Sorocaba. No entanto, os revolucionários já haviam se afastado, permanecendo apenas Diogo Antonio Feijó, que aderira aos revoltosos. Como estivesse em cadeiras de rodas, não pode se locomover. Em São Paulo, as tropas revolucionárias pararam na região do Butantã, em uma das margens do Rio Pinheiros. As comandadas por Caxias ficaram no outro lado do Rio. Após um combate de pouca duração os revoltosos se retiraram. Caxias veio a São Paulo com aproximadamente quinhentos homens, contra quase mil de Tobias de Aguiar. Para dar aos revoltosos a impressão de que seu contingente era maior, Caxias solicitou ao presidente da Província mantimentos para mais de mil homens. A crença nesse número se instalou no seio dos revoltosos. Em São Paulo foi criado um Corpo de Voluntários, para a defesa da cidade, chefiado pelo Tenente Jaime da Silva Teles, que foi bibliotecário da Faculdade de Direito. Antes da eclosão do movimento, políticos de São Paulo enviaram um ofício ao Governo Central pleiteando a revogação das mencionadas leis promulgadas no final de 1841. Desejavam também ser recebidos, o que não ocorreu, pois o Imperador e seus ministros entenderam inadequados os termos do ofício reivindicatório. Segundo afirmado, estava ele exposto em "linguagem desmedida". Uma das expressões consideradas ofensivas e "criminosas" foi aquela que se referiu aos ministros responsáveis pelas leis, como "abutres esfomeados". Um dos integrantes da Comissão encarregada da entrega do ofício foi Nicolau de Campos Vergueiro, que foi punido com o seu afastamento da Faculdade de Direito, onde exerceu o cargo de Diretor durante alguns anos. Em Minas Gerais, os liberais também se revoltaram. Um dos líderes foi Teófilo Otoni, formado no Largo de São Francisco, e que se tornou um importante líder político liberal. Caxias rumou para Minas e debelou a conspiração que se tornou acirrada especialmente nas cidades de Sabará e Ouro Preto. Com a ajuda de seu irmão, Coronel José Joaquim, Caxias também venceu os rebeldes mineiros. Em Minas houve um combate na localidade de Santa Luzia, no qual os rebeldes foram derrotados. A partir desse fato, os liberais passaram a ser chamados de "Luzias". Os conservadores eram conhecidos por "Saquaremas", em alusão a uma região do Estado do Rio de Janeiro, onde se reuniam com frequência. Além de Rafael Tobias de Aguiar, destacou-se na revolta de São Paulo um antigo acadêmico de Direito, Gabriel José Rodrigues dos Santos, que exerceu na Faculdade e fora dela, junto à sociedade paulistana, uma marcante influência, quer pela sua conduta como cidadão prestante, quer como intelectual, jurista e homem de letras. Gabriel dos Santos foi promotor público. Teria abandonado a carreira em face de uma ardorosa acusação que levou o acusado a ser sentenciado à morte. Embora convicto da responsabilidade criminal do acusado, sentiu-se amargurado pelas consequências de sua acusação, pois imaginava que houvesse comiseração por parte dos jurados e do juiz sentenciante. Esse é um bom exemplo para os acusadores modernos, que se comprazem em colaborar com a morte civil de cidadãos por eles acusados, com empenho e veemência, em processos nos quais haja provas, não as tenha ou mesmo contra as provas dos autos. Gabriel de Rezende foi levado a julgamento realizado no Convento do Carmo. Foi defendido por João Crispiniano Soares e acusado por Antônio Duarte Moraes. O magistrado que presidiu a sessão foi Rafael de Araújo Ribeiro. Tanto o defensor quanto o juiz eram egressos do Largo de São Francisco, formados nas suas primeiras turmas. Sobreveio um decreto absolutório. E, os demais revoltosos, em 1844 foram anistiados. Feijó, no entanto, não foi beneficiado, pois já havia falecido, quando da edição do decreto de anistia. A Revolução de 1842 teve um aspecto sentimental e romântico, marcado pelo casamento, em Sorocaba, de Rafael Tobias de Aguiar com a Marquesa de Santos, pouco antes das tropas por ele comandadas virem para São Paulo.
quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Fatos e fitas: sociedades secretas e solidariedade

Não eram poucos os estudantes carentes de recursos para o próprio sustento. Muito deles, inclusive, não conseguiam sequer pagar a hospedagem em uma pensão. Viviam do favor que lhes era prestado por outros colegas em melhor situação financeira. Alguns deles, inclusive, viviam nos Conventos de São Francisco e do Carmo, onde os padres lhe forneciam abrigo e alimentação. Lembre-se que nas repúblicas, por vezes, as refeições eram fartas, dignas das mesas mais abastadas e bem sortidas. Recorde-se também da origem dessa fatura ocasional: as rapinagens, as já conhecidas rapinagens famélicas. Eram os perus, galinhas, porcos, procedentes dos vastos quintais da casa de então, que saciavam a fome dos acadêmicos. O Mercado Municipal também abastecia, compulsoriamente, as mesas das repúblicas e fornecia iguarias finas e boas bebidas para os famosos piqueniques nos arredores de São Paulo. Especificamente, à margem dos rios Tamanduateí e Tiete, nas imediações da Igreja da Penha, ou mesmo em Santos. Desprovidos de recursos para frequentar os poucos restaurantes existentes em São Paulo, os acadêmicos menos favorecidos, tinham acesso a uma boa casa de pasto localizada em frente à Faculdade: a casa de Nhá Umbelina. Lá se regalavam pela manhã com bolos, doces, empadas, café, leite, mingaus e outras iguarias. O largo nem sempre foi um Largo. Em seu lugar havia um grande quintal cercado, com um grande chafariz no meio, pertencente ao Convento e o acesso à Faculdade se dava por uma portinhola por onde entravam também os fiéis para a igreja. Nhá Ubelina desenvolveu uma atividade que se tornou muito comum em São Paulo. Uma outra quituteira conhecida foi Nhá Maria Café, que servia suas iguarias na rua das Casinhas, depois rua do Tesouro. Lá os fregueses inclusive muitos estudantes, deliciavam-se com empadas de piquiri ou de lambari, cuscuz de bagre e de camarão de água doce e tantas outras delicias. A venda de iguarias nas ruas de São Paulo já existia desde o século XVIII. As vendedoras eram chamadas de vendeiras, e vendiam doces e salgados, principalmente na porta das Igrejas. Vendedoras de rua também eram as quitandeiras, especializadas na venda das hortaliças. A população de São Paulo protestou de forma veemente quando essas vendedoras foram obrigadas a sair da rua das Casinhas. O seu destino foi a Praça do Mercado. As dificuldades e carências dos estudantes pobres não se limitavam à moradia e à alimentação. Não. Outras existiam e os afligiam. Quando eram convidados para algum sarau ou baile organizados pelas famílias, especialmente por aquelas que possuíam. A solidariedade mais uma vez se fazia presente. Bastava encontrar o colega que possuísse medidas semelhantes e, uma vez encontrado, o problema estava resolvido. Óbvio, que o colega precisaria ter pelo menos duas fatiotas. As carências também se faziam sentir nas atividades boêmias noite a fora. Para beber, comer, adquirir algum instrumento, na hipótese de praticar a serenata, o estudante necessitava de recurso. Despesas naturais de uma vida notívaga intensa e variada tinham que ser arcadas, pois não bastava a lua e as estrelas, essas eram gratuitas. No entanto, havia, além dos bares e restaurantes, outros locais onde os gastos eram elevados e compulsórios. Despesas com a saúde igualmente recebiam o auxilio dos solidários colegas. Enfim, a camaradagem que ultrapassava os limites da amizade e entravam no espaço da fraternidade. Eram irmãos. Pois bem, foi com esse espírito, o da ajuda mútua recíproca que surgiu a ideia da criação de uma Sociedade que praticasse a filantropia. Houve ampla discussão que antecedeu a criação da Sociedade, a respeito da natureza e dos meios a serem empregados para a ajuda efetiva que deveria ser prestada aos muitos estudantes pobres que cursavam a Faculdade de Direito. Havia um ponto de convergência: a indispensabilidade, ditada pela sensibilidade dos estudantes que participavam das reuniões, de prestar o auxílio fraterno aos colegas necessitados. Formavam todos, ricos, remediados e pobres em conjunto uno e indivisível de jovens ligados por um elo indestrutível, que era o de saber direito e praticar a Justiça. As diferenças políticas, monarquistas ou republicanas; eram liberais ou conservadores; escravocratas ou abolicionistas, os dividiam os conceitos políticos, mas não os sentimentos de amizade, solidariedade e amor ao próximo, e o próximo pertencia à Academia Brasileira do Largo de São Francisco. Dentro desse espírito foi fundada a "Sociedade Filantrópica", dois anos após a instalação dos cursos jurídicos de São Paulo. Participou desse ato, não só com sua presença física, mas como um dos idealizadores da iniciativa, o estrangeiro Júlio Frank, recém-chegado ao Brasil. Sensível à preocupação dos estudantes Júlio discorreu sobre as iniciativas adotadas entre Universidades atentas para os mesmos problemas das carências, que atingiam também os estudantes europeus. Contou sobre a existência da Burschenschaff, que em várias faculdades da Alemanha congrega estudantes pobres que são auxiliados pelos colegas abastados. A ideia entusiasmou os participantes de algumas reuniões preparatórias. No entanto, manifestaram a sua dificuldade em pronunciar o nome da entidade. Júlio Frank então, reduziu a longa e impronunciável palavra para Bucha, Abrasileirada, a Bucha incorporou-se não só no nosso vocabulário como deixou raízes indestrutíveis nas tradições da Faculdade de Direito. Dirigiam inicialmente a nova Sociedade, que na verdade encobria a Bucha, pois essa tinha o caráter de sociedade secreta. Figuras importantes de São Paulo passaram a integrá-la, alguns alunos da São Francisco: Antonio Mariano de Azevedo Marques, Diogo Antonio Feijó, Luiz Monterio de Orvelha, José Inácio Silveira da Mota, Manoel Alves Alvim. Inúmeras e importantes figuras das Arcadas foram "bucheiros". No entanto, sempre pairou dúvidas sobre as suas identidades. A "Bucha" foi uma sociedade secreta. O escopo beneficente e filantrópico impedia a divulgação de quem auxiliava para evitar solicitações de mais ajuda e evitava constrangimentos a quem recebia. A Sociedade Filantrópica, como se disse, era a entidade que encobria a Bucha, era a sua face externa. As arrecadações eram feitas em seu nome e logo nos seus primórdios angariou um número considerável de sócios. Um dado relevante é que logo passou a prestar assistência judiciária a quem necessitasse. Pode-se dizer ter sido ela o embrião do Departamento Jurídico do Centro Acadêmico XI de Agosto, e de outros existentes em Faculdades de Direito espalhadas pelo país. A Bucha se perpetuou em dois símbolos inestimáveis para a Faculdade e para os "bucheiros" de ontem de hoje e de sempre. A "Chave" e o túmulo de Júlio Frank existente em um dos pátios da Faculdade. A "Chave" representava o acesso à entidade. Anualmente era entregue ao "Bucheiro". Sempre um aluno do 5º ano que a passava, em uma cerimônia, a um sucessor que estava terminando o quarto ano. O "mandato" deste era por um ano. O grande símbolo da Bucha, no entanto, é o sepulcro onde corpo de Julio se encontra, em um dos pátios da Faculdade. Pequeno pátio com um túmulo que se ergue na forma de um obelisco cercado de um gradil. Não fosse a Faculdade a acolhê-lo e os estudantes a patrocinarem a construção de túmulo, ou o corpo de Júlio Frank ficaria insepulto. A Igreja católica negou-lhe sepultamento em seus templos, pois ele era protestante. Nascido na Saxônia embarcou como clandestino rumo ao Brasil. Descoberto, ficou preso por algum tempo na Fortaleza do Lage, no Rio de Janeiro. Uma vez liberdade, veio para São Paulo, especificamente para Sorocaba, onde se encontrou com alguns patrícios e trabalhou em uma Fundição. Em São Paulo, foi recomendado por um sorocabano Rafael Tobias de Aguiar, político de grande influência que o ajudou a lecionar no Curso Anexo da Faculdade de Direito. O político que veio a chefiar a Revolução de 1842, reconheceu, de pronto, as qualidades intelectuais do jovem, que conhecia história, geografia, geometria e várias línguas. Júlio logo conquistou a simpatia e a admiração dos estudantes, não só do curso anexo como da própria Faculdade de Direito. Um de seus mais próximos discípulos foram Antonio Joaquim Ribas, futuro conselheiro Ribas e um dos mais notáveis lentes da Academia. Uma curiosidade digna de nota, se refere à um sepultamento e a um nascimento. Júlio Frank está em repouso na Faculdade. Mas, outra celebridade teria ali nascido. Álvares de Azevedo, segundo a lenda, teria sido dado à luz dentro do velho Convento. Sua mãe, desprovida de amparo e de cuidados fora acolhida pelas Arcadas, lá levada por alunos caridosos. O sepultamento é fato real. Já o nascimento tem todas as características de uma lenda. Não se esqueça, no entanto, que o talento poético de Álvares de Azevedo praticamente nasceu e floresceu dentro da Faculdade de Direito. Ao que parece bucheiros e detentores da chave foram, dentre outros Américo Brasileiro, Francisco Glicério, Cesar Lacerda Vergueiro, Afonso Pena dentre outros. Ledo engano achar-se que a Bucha congregava apenas estudantes que auxiliavam e outros que eram ajudados. Não. Tornou-se um centro de estudos, discussões e disseminação de ideias libertárias, que impregnando cada um de seus membros, possibilitando a estes difundi-las em seus círculos de relacionamento, durante e após o curso. Ao lado da Bucha a Maçonaria também desempenhou o protagonismo fundamental na formação de gerações comprometidas com a liberdade e com a dignidade do homem. Ambas representavam características semelhantes: sociedades secretas, filantrópicas, defesa da liberdade, democracia, humanismo, igualdade. Dentre outras pontes comuns. Diversamente da Bucha a Maçonaria não surgiu no Brasil, na Faculdade de Direito da São Paulo. Ela é universal e antiquíssima. Não existe um extenso registro sobre a Maçonaria no Largo de São Francisco. Pouco se sabem que era maçom na Faculdade. Mas, que houve pedreiros famosos lá formados os houve. Os maçons eram chamados pedreiros, porque os primeiros seriam operários que construíram as igrejas e catedrais na Idade Média. No Brasil a Maçonaria teve uma influencia relativa. A não ser no período do Império. A primeira loja maçônica surgiu no fim do século XIX, em Pernambuco. Sua atuação marcante se deu na época da Independência e da Proclamação da Republica. Durante o 2º Império, a chamada a Questão Religiosa envolveu diretamente os maçons, a Igreja Católica e o Governo Imperial. Uma parte radical da Igreja, denominada ultramontanismo, representada no Brasil pelos bispos Dom Vidal e Dom Macedo Costa, proibiram os maçons de frequentar as cerimônias religiosas e interditaram as irmandades nas quais houvesse maçons. O governo, em face do paradoxo então existente, determinou o levantamento das interdições. Os bispos não obedeceram e acabaram sendo presos. A questão religiosa provocou efeitos importantes na historia do Brasil. Dentre elas a separação entre a Igreja e o Estado.
quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Fatos e fitas: civismo e solidariedade

A Faculdade de Direito tornou-se um campo fértil para os debates em torno de temas e de questões que estavam agitando a Nação e provocando movimentos armados em vários Estados. Assim, a consolidação da Independência; a rivalidade entre nativos e portugueses; a abdicação de D.Pedro I; a instituição da Regência; a maioridade de Pedro II, a República e a escravidão, dentre outros, suscitaram não só polêmicas e acirradas discussões, como levaram à criação de grupos cujos integrantes estavam ligados por pensamentos e objetivos comuns. A questão da maioridade de D. Pedro II, vinha sendo colocada como fundamental para que a normalidade institucional reinasse no país, conturbado por revoltas armadas. Na capital do país, em 1838, foi criada a "Sociedade Promotora da Maioridade" ou "Clube da Maioridade", cujo objetivo era criar condições jurídicas para que o filho de D. Pedro I assumisse o trono do Brasil. Os acadêmicos se dividiram, a favor e contra a antecipação da maioridade. Essa divisão provocou grandes divergências e acirrados debates. A Faculdade de Direito de São Paulo também constituiu um dos primeiros núcleos organizados para a luta contra a escravidão. No início foi um grupo que se manteve na clandestinidade, logo após, passou a defender os ideais abolicionistas de forma transparente e pública. É importante realçar que os movimentos abolicionistas foram contemporâneos aos de natureza nativista e republicano, mas com estes não se confundiam, pois alguns desses últimos não necessariamente objetivavam o fim da escravidão, mas ao contrário, desejavam a sua permanência. Os representantes das classes mais abastadas, especialmente da aristocracia rural, não queriam nenhuma alteração no status quo. Os estudantes de Direito dessa mesma origem defendiam os interesses de seus pais, e se opunham à libertação dos escravos. Interessante notar que muitos líderes das revoltas nativistas da época possuíam escravos. Tiradentes, por exemplo, sempre se fazia acompanhar por um escravo. Ademais, muitos dos escravos alforriados, tendo se tornado economicamente ativos, passaram a possuir cativos. Francisco Paulo da Silva um negro do Vale do Paraíba era proprietário, de aproximadamente, duzentos escravos, em suas Fazendas situadas no Vale do Paraíba. Como não eram poucos os acadêmicos anti-abolicionistas, o ambiente na Faculdade era marcado por desavenças que, por vezes, se transformavam em dissenções irreconciliáveis. Mesmo em período mais próximo à abolição, a resistência à libertação dos escravos recrudesceu e vinha pelas vozes de figuras proeminentes, podendo ser citado apenas um exemplo: José de Alencar defendia a escravidão e atacava os abolicionistas chamando-os de "emissários da revolução, apóstolos da anarquia". Saliente-se, que a Igreja católica apoiava a escravidão. Negros eram "povos infiéis", descendentes de Caim, filho de Noé. É possível que essa posição tenha, também, exercido influência importante em relação aos estudantes com tendências escravocratas. Não se esqueça da grande influência clerical na época do Império, onde Estado e Igreja não estavam separados. Dos abolicionistas estudantes de Direito destacou-se Antonio Bento de Souza e Castro. Diversamente de outros líderes da abolição que transmitiam as suas ideias por meio de escritos, em prosa e verso, ou por meio da palavra discursada, ele, talvez por não possuir recursos culturais que o credenciassem a ajudar a causa da libertação dos escravos por meio de atividades ligadas ao intelecto, agia de forma efetiva e pragmática. Com efeito, Antonio Bento teve uma participação extraordinária na luta abolicionista. Como promotor de Botucatu e Limeira e, após, na qualidade de juiz municipal e delegado de polícia em Atibaia, sempre que as suas funções ensejavam oportunidade, ele não se constrangia em demonstrar o seu posicionamento, por meio de medidas e decisões desfavoráveis aos proprietários de escravos. Quando veio do interior para advogar em São Paulo, o ex-aluno da São Francisco passou a atuar em prol dos escravos, e a sua ação foi literalmente de libertação, pois os ajudava a fugir dos cativeiros, e os encaminhava para o quilombo do Jabaquara, em Cubatão e para outros locais. As fugas eram promovidas por um grupo por si criado, denominado de caifazes. Estes homens, que usavam uma camélia branca na lapela, exerciam as mais variadas profissões e se reuniam especialmente na Igreja dos Remédios, no Largo de São Gonçalo, e de lá partiam para as ações concretas. Os caifazes formavam e dividiam em pequenos grupos que se espalhavam por cidades do interior, adredemente escolhidas. Invadiam as propriedades rurais e retiravam tantos escravos quantos possíveis fossem. Inúmeros escravos eram "adotados" por abolicionistas que lhes davam proteção e ocupação remunerada, para sua sobrevivência. Esses negros eram levados e encaminhados para várias localidades em Minas, Rio e Mato Grosso e para várias cidades paulistas. Foi de grande auxílio aos caifazes os ferroviários de São Paulo. Eles transportavam os negros das cidades nas quais eram libertos para São Paulo, e desta para outros destinos especialmente para Santos, onde ficavam no quilombo do Jabaquara ou de navio iam para o Rio de Janeiro, para ser acolhidos pelos quilombos domésticos. Para serem colocados nos vagões, havia uma senha: "segue bagagem" e a partir daí passavam os cativos a receber proteção e ajuda dos funcionários do trem e das estações por onde passava. Os caifazes constituíam uma sociedade secreta, no sentido da não identificação de seus integrantes, com ramificações em todas as camadas sociais e representantes em várias instituições públicas ou privadas, o que facilitava sobremodo o planejamento e a execução dos planos de fuga dos escravos. O grupo abolicionista possuía um jornal "A Redempção" editado por Antonio Bento, que se tornou um eficiente veículo de difusão da barbárie representada pela escravidão e ao mesmo tempo um poderoso veículo para provocar na sociedade um sentimento adverso contra os escravocratas. Outros jornais foram fundados por Antonio Bento tais como "O Arado" e "A Liberdade". Os caifases e os seus órgãos de imprensa, criados por inspiração e iniciativa do acadêmico do Largo, podem ser considerados um dos fatores fundamentais para libertação dos cativos brasileiros, ou pelo menos uma sólida semente que contribuiu para a geração da abolição. Nas décadas subsequentes, os estudantes de Direito criaram vários jornais acadêmicos, com o escopo de difundir os princípios abolicionistas. O "Ça Ira" e "A Onda" tiveram grande destaque, passando esse a ser os porta vozes do Centro Abolicionista Acadêmico. O Largo não legou apenas o chefe dos caifases como figura de realce na luta pelo fim do servilismo negro. Em décadas diversas, estudantes do Largo se destacaram na luta antiescravista. Além de Antonio Bento, Rui Barbosa, Joaquim Nabuco, que não concluiu o curso em São Paulo, Raul Pompéia, Pimenta Bueno, Valentim Magalhães, Paulo Eiró, dentre outros inúmeros outros, reunidos no Pateio da Faculdade, então denominado de "Gerais", traduziam por inflamados discursos e comoventes poesias os elevados ideais libertários. Além de inúmeros ardorosos abolicionistas, pode-se afirmar que, embora nela não tenha se formado, mas com ela manteve estreito relacionamento, a Academia gerou o rábula negro Luiz Gama, o grande defensor de escravos perante a Justiça, tendo segundo seu próprio relato em carta a Lúcio de Mendonça obtido a libertação de mais de quinhentos cativos. Nascido na Bahia, filho de um português e de uma negra, escrava liberta, que foi presa várias vezes por haver participado de movimentos revoltosos, Luiz Gama passou sua infância como escravo. Foi vendido como tal pelo próprio pai, quando tinha dez anos. A sua origem, no entanto, segundo ele mesmo narrou, dificultou sobremodo a sua comercialização: quando era declinado o seu Estado natal, a sua compra por parte dos senhores ficava inviabilizada. Os compradores desistiam da aquisição quando tomavam conhecimento da sua condição de "baiano". Luiz Gama se viu liberto por falta de mercado. Depois de servir ao exército, veio para São Paulo e aqui trabalhou como funcionário público. Nesse período, passou a se interessar pela causa dos escravos, fato que o levou a estudar com afinco a legislação até então existente sobre a escravidão, bem como a conviver com alguns professores e alunos do Faculdade. Francisco Maria de Souza Furtado de Mendonça, professor da Academia e José Bonifácio o Moço ajudaram-no a se tornar um autodidata em Direito. Especializou-se na legislação e com coragem, esmero técnico e eloquência conseguiu não só retirar do cativeiro cinco centenas de cativos, assim como obteve na Justiça o reconhecimento de vários direitos dos negros mesmo já alforriados, mas que ainda viviam em situação precária e sem a proteção legal. Trabalhou, em regra, sem cobrar honorários e tornou-se um dos maiores advogados que o Brasil conheceu, embora não tivesse se formado. Algum tempo depois um outro notável advogado, que igualmente começou como rábula, formado no Rio de Janeiro, Evaristo de Moraes, escreveu sobre seu irmão de cor, descrevendo a epopeia que foi a sua carreira de advogado, considerada por Gama, como um verdadeiro sacerdócio. Evaristo, por sua vez, começou sua atuação como rábula, defendendo seus colegas da estiva, quando se envolviam em brigas entre si e especialmente contra a polícia. Posteriormente, já formado, participou dos grandes julgamentos da época. Foi, por exemplo, advogado do oficial do Exército Dilermando de Assis, autor de dois homicídios: matou Euclides da Cunha e, anos depois, seu filho, que levava o seu nome e era conhecido como Quidinho. Ambos foram absolvidos Ao contrário de Evaristo que pode bacharelar-se, Luiz Gama não obteve êxito em seu intento. Não restaram esclarecidas as razões que o impediram de estudar no Largo de São Francisco. Este fato, no entanto, não o impediu de conviver com vários alunos e durante anos com antigos estudantes que frequentavam o seu escritório, pois se tornara um símbolo, uma referência da advocacia da época. Foi um percussor da defesa dos direitos humanos. Embora sem o grau de bacharel em Direito Luiz Gama pode ser considerado um legítimo representante das Arcadas, pois encarnou todos os valores secularmente defendidos gloriosa Academia.
quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Fatos e fitas: a Academia em época conturbada

Os princípios do iluminismo, que estavam empolgando a intelectualidade de países europeus, encontraram nos estudantes de São Francisco um campo fértil para germinar. Estavam eles sob o impacto de uma independência ainda não consolidada e que, ao contrário, parecia frágil e reversível. Mesmo tendo partido para Portugal, D. João VI se auto proclamou "Imperador do Brasil e Rei de Portugal e Algarves", embora tenha delegado a seu filho Pedro I o pleno exercício do governo brasileiro. Por outro lado, D. Pedro firmou um acordo com o governo português, pelo qual o Brasil se responsabilizaria pela quitação de uma dívida de Portugal com a Inglaterra e pagaria uma "compensação" ao antigo Reino, pela perda de suas propriedades no nosso país. No total, o Brasil dispendeu dois milhões de libras esterlinas para que Portugal reconhecesse a nossa independência. José Bonifácio de Andrade e Silva, quando soube do chamado "Tratado de Aliança e Paz" declarou que o país havia recebido "um coice na boca do estômago". Os estudantes não assistiam passivos aos apelos em prol da restauração do domínio português, da volta de D. Pedro ao trono brasileiro e, embora incipientes, da proclamação da República. Reagiam contra os dois primeiros movimentos, e começavam a se engajar nas correntes republicanas. A insatisfação política e a instabilidade institucional se manifestaram no país na forma de inúmeras revoltas ocorridas especialmente nos Estados do nordeste, que almejavam sua própria independência e não queriam se vincular a um governo central. Por outro lado, partiam da Capital do País e de São Paulo, especificamente do Largo de São Francisco, manifestações coletivas ou individuais, por meio de escritos e discursos, que clamavam pela união dos brasileiros em torno da consolidação da independência. Quando D. Pedro I voltou a Portugal, em 1831, várias rebeliões ocorrem na Corte e em outros Estados, apresentando natureza e objetivos diversos, mas todas demonstrando a falta de solidez da independência e a intranquilidade com o fim do primeiro reinado e insegurança com o futuro das ainda insipientes instituições. O discurso republicano, por tais razões, estava encontrando eco junto a parcelas da sociedade, especialmente na Academia de São Francisco. Seus estudantes eram os principais arautos das novas ideias, que tomavam corpo à medida que a transição para um novo governo imperial era insegura e incerta. Os jovens estudantes entusiasmados com os ideais iluministas consubstanciados nas Revoluções Americana e Francesa, em São Paulo passaram a conviver e a assimilar os ensinamentos liberais de Líbero Badaró, por eles chamado de "Botas", por usar esse calçado. Professor do Curso Anexo e fundador do jornal "O Observador Constitucional". Badaró não só divulgava os pensamentos contrários ao absolutismo monárquico como era um ferrenho adversário do governo imperial e não lhe poupava críticas, por vezes ofensivas e agressivas. Embora tivessem sido presos os autores de seu assassinato, ocorrido em 1830, na rua São José, que hoje leva o seu nome, os mandantes não foram apontados com induvidosa clareza. Houve até rumores de que o crime fora praticado por inspiração do próprio Imperador. As primeiras pregações republicanas começaram a incomodar e a preocupar o Imperador. Sabedor da existência de um núcleo republicano na Faculdade do Largo de São Francisco, D. Pedro I chamou à Corte Manuel Joaquim do Amaral Gurgel, futuro Diretor da Faculdade, em razão de suspeitas de que estaria ele tramando a proclamação da República. O antagonismo entre portugueses e brasileiros foi se acentuando à medida que o prestigio de D. Pedro I declinava. Eram constantes os atritos ocorridos em vários Estados, especialmente no Rio de Janeiro. O mais violento deles passou para a história com o nome da "Noite das Garrafadas". Na ocasião, os portugueses organizaram uma festa na rua da Quitanda, em homenagem a D. Pedro. Todas as casas foram iluminadas e foram construídas fogueiras, que eram alimentadas com álcool despejado de garrafões fornecidos por comerciantes portugueses. Aos gritos de "Viva D. Pedro, Imperador dos Portugueses," percorreram várias ruas atirando pedras e garrafas nas casas dos brasileiros. Estes, em represália, vociferando contra o governo e apagando as fogueiras, atacaram lojas e residências de portugueses, quebrando vidraças e também atirando objetospe contra os seus moradores. Houve várias brigas nas ruas, com inúmeros feridos e presos. Após o retorno da cidade à normalidade, D. Pedro compareceu à Capela Real em ação de graças pela viagem que os imperadores fizeram pouco antes a Minas Gerais. Após teria um beija mão no Palácio de São Cristóvão. Para decepção do casal imperial poucos foram os brasileiros que compareceram às duas solenidades. Verificou-se, ainda, ter sido diminuto o número de militares presentes, fato que mais apreensão trouxa ao monarca. Em face dos acontecimentos da "Noite das Garrafadas" um grupo de deputados apresentou um documento exigindo a exemplar punição dos portugueses responsáveis pelos distúrbios. Caso nenhuma medida punitiva fosse adotada, haveria uma revolução. Não foi desencadeada nenhuma revolta, diante da omissão do Imperador, mas, em resposta os brasileiros afrontaram a autoridade imperial, desprezando-a. Com efeito foi organizada pelos brasileiros um desfile militar para comemorar os sete anos da outorga da Constituição, ao qual compareceram todas as principais figuras da sociedade e das forças armadas. No entanto, o Imperador não foi convidado. D. Pedro foi, no mesmo dia, vítima de uma outra desfeita. Após o desfile, resolveu, por insistência da Imperatriz, Dna. Amélia, ir à uma missa solene celebrada na mesma comemoração, para a qual também não fora convidado. Após a solenidade religiosa, as pessoas passaram a dar vivas à independência; à soberania nacional; à república e ao menino Pedro seu filho, futuro Pedro II. A ele, no entanto, nenhuma menção, foi feita. Em 7 de abril de 1831, D. Pedro abdicou e retornou a Portugal. Logo após o retorno de nosso primeiro Imperador à sua terra natal, em São Paulo organizou-se um grupo para ir combater no Rio de Janeiro os chamados restauradores, que desejavam a volta de D. Pedro. O responsável pela organização do grupo de paulistas, foi o Padre Vicente Pires da Mota, eminente figura pública de São Paulo, formado no Largo de São Francisco, e seu futuro Diretor. Consta ter sido Pires da Mota um exemplar administrador quando ocupou cargos públicos, dentre eles o de vice e, posteriormente, presidente da Província de São Paulo. No entanto, registram os anais que era extremamente rigoroso, a ponto de cometer abusos e até gritantes arbitrariedades, quando desempenhava as funções de juiz de paz e, anos após, de diretor da Faculdade. Determinou, quando juiz, a prisão de um estudante acusado da prática, já comum à época, do furto de perus e de outras aves. A prática, diga-se, foi seguida pelas gerações futuras de estudantes famélicos, mas de refinado gosto culinário. Pois bem, uma vez que tal estudante resistiu à prisão, Pires da Mota determinou aos encarregados que o amarrassem e o transportassem como fosse possível. Assim, o jovem foi amarrado pelos pés e mãos a uma vara, na posição horizontal, para ser levado à cadeia. A Faculdade de Direito, após o retorno de D. Pedro e ainda sob o impacto da morte de Líbero Badaró, fundador do "Farol Paulistano", veículo de divulgação das ideias liberais e declaradamente contrário ao governo central, passou a constituir um núcleo de oposição à Monarquia e favorável à República, que só viria a ser proclamada quase sessenta anos após. No entanto, não eram poucos os estudantes que, nos anos posteriores, mostravam-se defensores do regime monárquico. Antes da maioridade de Pedro II, instalou-se o regime das regências, que também foi marcado por inúmeras revoltas eclodidas em vários Estados. Assim, Cabanagem, no Pará; Sabinada, na Bahia; Balaiada no Maranhão, e muitas outras, incluindo a Guerra dos Farrapos no Rio Grande do Sul e a Revolução de 1842, em Sorocaba, que contou com a participação de vários estudantes, já filiados ao Partido Liberal.
terça-feira, 18 de setembro de 2018

Celeiro de ideias, ideais, sonhos e utopias

A Academia foi palco e núcleo propulsor de ideias e ideais libertários desde a sua instalação. Aliás, os articuladores de sua criação preocuparam-se com a formação cidadã dos jovens estudantes, e também, preparando-os para serem gestores da coisa pública e homens de Estado. Desta forma, em suas raízes estão objetivos e anseios que extrapolam os limites impostos pelo magistério, a saber sejam os de ensinar matérias específicas, para habilitar os profissionais para o desempenho das respectivas funções. O Largo de São Francisco desde os seus primórdios, ultrapassou aqueles lindes e se tornou um polo de ferrenhas e frutíferas discussões em prol do aprimoramento sócio, político e cultural do país. Em especial o jardim de pedras, pátio da Faculdade e, posteriormente, ela, como um todo transformada em "Território Livre", palco de divulgação de ideias, ideais, sonhos e utopias de todos os matizes, em prol do desenvolvimento da sociedade humana e do homem brasileiro. Nos primeiros anos da Faculdade, os ideais dos iluministas, dos enciclopedistas, das Revoluções Americanas e Francesa foram disseminados entre os estudantes. Nesse momento surgiram os primeiros escritos dos estudantes divulgando tais pensamentos, que, na verdade, representaram os primeiros germes da Abolição e da República. Deve ser notado que fora da Faculdade os embates em torno das novas ideias encontravam abrigo nas repúblicas dos estudantes. Ali, tal como no pátio da Escola, os princípios defendidos pelo liberalismo e pelo iluminismo eram alvo de análise e de aprofundadas discussões, exercendo forte influência no espírito dos acadêmicos. Vê-se, pois, que as repúblicas não eram exclusivamente centros de residência e de convivência entre os estudantes, que se reuniam para planejar as suas brincadeiras, serenatas, peraltices, rapinagens e outras atividades que tais. Além das ideias importadas, os moços se ocupavam dos problemas nacionais, com especial atenção para os referentes às regiões do país, de onde provinham inúmeros estudantes. Note-se que a implantação da República e a Libertação dos Escravos já eram temas discutidos abertamente. Os estudantes estavam prontos para abrigar em seus espíritos os fundamentos de construção de um novo mundo, que assistia a ruina das Monarquias tradicionais e do absolutismo, assim como via surgir governos democráticos. Os jovens apreenderam e compreenderam que os Estados modernos deveriam ser lastreados por novos princípios oriundos do humanismo, ligados às ideias de igualdade entre raças e povos; ao voto universal; à separação entre Estado e Igreja; à livre expressão do pensamento, dentre muitos outros postulados. O Bispo de São Paulo, dom Manoel Joaquim Gonçalves, não via com bons olhos a presença das novas pregações libertárias, para ele nitidamente revolucionárias, pois colocavam em risco a solidez dos alicerces de sustentação do antigo mundo, construído em consonância com os princípios seculares da Igreja Católica. No púlpito e fora dele, com grande veemência, verberava a importação das corrosivas ideias que, segundo apregoava, punham em risco o mundo aristocrata cristão. Em 1830, um fato abalou a Academia e toda a sociedade paulista: foi assassinado o médico italiano Líbero Badaró, que empresta o seu nome à antiga Rua Nova de São José, local do crime. Nasceu em Gênova, em 1798, e seu nome em italiano era Gio Balta, João Batista, tendo acrescentado Líbero Badaró, como sobrenome para externar no próprio nome as suas ideais liberais. Formou-se em medicina na Universidade de Turim, em 1825. Anteriormente estudara botânica na Universidade de Bolonha. Foi para o Rio de Janeiro, segundo consta fugindo de adversários políticos. Revalidou o seu diploma e tornou-se amigo do jornalista Evaristo da Veiga, que fundara o jornal Aurora Fluminense. Dizem ter vindo ele para o Brasil, também atraído pela nossa rica flora, conduzido, assim, por curiosidade científica. Há registros de que na Capital do país entregava-se a longos passeios pelas matas cariocas, estudando nossas espécies botânicas. Veio para São Paulo, com a ajuda do amigo, José da Costa Carvalho, Marques de Monte Alegre, que em fevereiro de 1827 fundou o Farol Paulistano, primeiro jornal paulistano. Este jornal contou com a colaboração do dr. Nicolau Pereira de Campos Vergueiro; do Padre Manuel Joaquim do Amaral Gurgel e do Padre Vicente Pires da Mota, todos eles professores e futuros diretores da Faculdade de Direito. Posteriormente, Líbero Badaró fundou o Observador Constitucional. O primeiro número foi editado em 23 de novembro de 1829, e teve como escopo principal a divulgação dos ideais libertários ardentemente defendidos por seu criador. O jornal era impresso na tipografia do Farol Paulistano, e era lido com grande interesse pelos acadêmicos de direito. Líbero deu aula no Curso Anexo preparatório para o ingresso na Faculdade de Geometria e de Matemática. Sua pregação liberal era exaltada e atingiu decisivamente os primeiros alunos, que já estavam influenciados, como se viu, pelas mesmas ideias. Não são conhecidas com clareza as razões que motivaram o seu assassinato, no dia 20 de novembro de 1830. Suspeita-se ter sido mandante do crime o Ouvidor da Província Cândido Ladislau Japiassu, que lhe nutria não disfarçada animosidade, pois Líbero denunciava os seus desvios de conduta sistematicamente por meio do Observador Constitucional. Líbero foi morto por dois homens encapuçados na hoje rua Líbero Badaró, vítima de tiros fatais. Quem o socorreu foi Emiliano Fagundes Varela, que por lá passava no momento do ataque. Seus socorros foram em vão, pois o óbito se deu no dia seguinte. Sua crença nos ideais liberais estava tão arraigada em seu espírito, que ao morrer teria afirmado "morre um liberal, mas não morre a liberdade". Nos anos trinta e quarenta, contando com a efetiva colaboração dos estudantes do Largo de São Francisco, surgiram várias publicações regulares em São Paulo. Assim, O Paulista Oficial; O Solidário; O Escandalizado; O Escorpião; Americano; Clarim Saquarema. Este último jornal trazia estampada à frase "Viva o Imperador, Viva a Constituição.". A mobilização dos estudantes em torno do novo pensamento político que se espalhava pelo mundo, no Brasil revestiu-se de grande importância, pois a nossa independência recém-proclamada, longe de estar consolidada, estava cercada de riscos impostos pela ação eficiente e obstinada dos chamados restauradores que não só pugnavam pelo retorno de D.Pedro I ao trono, como pela volta do Brasil à condição de colônia de Portugal. Nesse sentido, representaram um papel fundamental na busca pela integral autonomia política e administrativa do país as pregações dos acadêmicos, especialmente por meio da imprensa. Em 1856 foi impresso o Guaianã inteiramente escrito e editado por estudantes. Trazia publicações de natureza científica, política e literária. Posteriormente surgiram, dentre outros, os seguintes jornais editados por estudantes de direito, durante os anos da segunda metade do século XIX. : O Acadêmico do Sul; Caleidoscópio; O Timbira; Imprensa Acadêmica; O Constitucional, porta voz do Clube Constitucional Acadêmico; houve um outro com o mesmo nome, O Constitucional, que foi publicado em maio de 1875 e representava os acadêmicos conservadores. O primeiro O Constitucional, começou a ser editado em maio de 1871; A Crença; O Tribuno; O Rebate, publicado por estudantes republicanos; A Renascença; A Academia de São Paulo Líbero Badaró, que já contava com a simpatia e com o apoio às suas ideias dos estudantes, passou a gozar de grande afeição por parte dos paulistanos. Durante uma epidemia de varíola prestou relevantes serviços à população de São Paulo. Cuidou com muita dedicação dos que estavam contaminados e adotou medidas preventivas para evitar que a doença se alastrasse. A solidariedade sempre marcou a Academia de São Paulo, e teve como figuras emblemáticas à época, dois estrangeiros, Líbero Badaró e Júlio Frank.
quarta-feira, 22 de agosto de 2018

Discórdias, agitações e sustos

Não se pense que as rapinagens fossem empreitadas afoitas, fruto do ímpeto de momento. Não, ao contrário, pois eram precedidas de planejamento minucioso, que incluía o modus faciendi, o horário, o tempo de duração, a quantidade da res furtiva, uma visita exploratória ao local escolhido, especialmente chácaras e quintais de São Paulo e outros detalhes necessários para o êxito da "gatunagem". Parece que os prazeres e atrativos provocados pela preparação e pela consumação da aventura superavam o seu próprio resultado. Mesmo que voltassem de mãos vazias, restariam as emoções vividas, pois, na verdade, eram elas que importavam. Por estarmos falando das inocentes rapinagens estudantis, é interessante notar como dentro de um mesmo século, o dezenove, as práticas delituosas mudaram de natureza, de intensidade e de gravidade. Além dos furtos que sempre existiram e os assaltos nas estradas, passaram a ocorrer os crimes praticados pelos grupos de capoeira, os assassinatos por encomenda, principalmente nas zonas rurais, onde também os primeiros sinais do cangaço surgiam, especificamente no norte e no nordeste. Em seguida, houve a intensificação da criminalidade violenta, aproximadamente da metade do século até o seu final, fornecendo uma mostra daquilo que aconteceria nos séculos seguintes. Durante os cento e oitenta anos seguintes, a sociedade assistiu ao crescimento do crime, sem procurar detectar e combater as suas causas. Limitou-se a clamar por mais e mais punição, como se essa fosse o suficiente para por fim à escalada de violência. Na verdade, ao pedir prisão e repressão, estava procurando transferir responsabilidades que também lhe são inerentes, especialmente àquelas que ligadas a um dos fatores criminógenos, que são as carências sociais, que jamais foram assumidas e combatidas. No fim do século dezenove a realidade do crime já era retratada por Machado Assis: "Cá fora espera-nos a noite, felizmente tranquila e fomos para casa, sem maus encontros, que andam agora frequentes. Há muito tiro, muita facada, muito roubo. A impunidade é o colchão dos tempos; dormem-se ai sonos deleitosos". O "Bruxo do Cosme Velho", em um escrito publicado em "A Semana", mostrou o seu alívio naquela noite sem sustos. Ao mesmo tempo retratou uma época em que a violência já atingia a sociedade carioca. Com certeza, já naquela época, as agressões com fins patrimoniais eram de forma ilusória combatidas com o encarceramento, quando descoberto os seus autores. No entanto, muito provavelmente não se procurava perquirir e analisar as causas dessa criminalidade violenta, que já se apresentavam como de natureza social. Se tivessem sido, na ocasião, atacados os fatores desencadeadores do fenômeno criminal talvez não tivéssemos os assustadores índices hoje vigentes. Como exemplo eloquente do descaso secular pelas causas do crime, nós temos a tragédia do menor abandonado. Tivessem eles sido cuidados e supridas as suas necessidades, não teríamos os trombadinhas que começaram a agir no início dos anos setenta e se transformaram em "trombadões" e hoje chefiam as organizações criminosas. Aliás, a questão do menor já vinha sendo denunciada desde o século retrasado, sem, no entanto, encontrar eco na também insensível sociedade da época. O jornalista Alcindo Guanabara afirmou, no início do século retrasado: "A infância abandonada, aumentada em número pelo aumento da população, continua a viver na miséria afrontosa, viveiro de delinquentes, sementeira de prostituição e do crime, que se avoluma e cresce progressivamente". Sempre a reação da sociedade, de um modo geral, infelizmente, não foi e não é de acolhimento e amparo, mas sim de clamor por repressão cada vez mais intensa. Passou a preocupar-se com o menor carente apenas quando ele começou a nos agredir. Até então, ele estava amargando as suas carências em baixo das pontes e dos viadutos, sem provocar qualquer emoção ou solidariedade. Mas retornemos à época das quase inocentes rapinagens. Já foi mencionado o furto de uma cruz existente na hoje rua Quintino Bocaiuva, antiga da Cruz Preta. A motivação seria de natureza sentimental, ou melhor, ligada à inveja ou ao ciúme. Segundo ficou registrado, um estudante de direito escalava a dita cruz, para ter acesso ao quarto de uma dama. Alguns de seus colegas, invejosos da proeza e enciumados, pois a dama era cobiçada, resolveram impedir os encontros removendo o instrumento de acesso ao quarto. Um aspecto que marcou a Academia logo no seu nascedouro, foram as desavenças entre o seu primeiro diretor, o Tenente General José Arouche de Toledo Rendon e o primeiro professor, José Maria de Avelar Brotero. Viviam eles às turras e as suas diferenças foram levadas ao conhecimento do Governo Imperial, por meio de ofícios em que cada um dos protagonistas fazia severas acusações contra o outro. Certa ocasião o Diretor Rendon, invocando os seus vários anos de serviços prestados ao Império e antes a D. João VI, solicitou a sua demissão do cargo de Diretor, "em prêmio pelos meus serviços", pois não mais conseguia aturar um homem "decerto um louco, capaz de atacar moinhos". Em outra oportunidade o diretor da Faculdade transmitiu ao Governo o que lhe parecia serem insultos insuportáveis, reiterando o seu desejo de deixar o cargo, fato que não ocorreu, pois Imperador o mantinha na Faculdade. Toledo Rendon referia-se a Brotero como "este estrangeiro", pois nascera ele em Portugal. Não há com clareza o registro das razões que levaram o Diretor a nutrir tão acirrada aversão ao professor Brotero, e esse a promover constantes provocações. Sabe-se que o primeiro lente da Faculdade era um orador eloquente, porém confuso em suas preleções. Ficaram também famosas as trocas de nomes e afirmações absolutamente desconexas atribuídas a si. Era useiro e vezeiro em inverter também as silabas das palavras: "limenta com pimão", "vidrada quebrada", "cidadeiro brasilão", dentre outras. As suas estranhas atitudes e manias passaram a ser chamadas de" "broteradas" e não passou muito tempo para ele ser considerado um "amalucado". O professor Brotero não provocava apenas o professor Rendon. Vários foram os seus desafetos e as suas esquisitices e implicâncias atingiam pessoas de várias categorias sociais e profissionais. Um bedel, que durante bom tempo vinha sendo alvo de suas perseguições e implicâncias, disse-lhe certo dia : "Sr. Conselheiro eu suplico a V.Exa. que não me persiga, não; porque eu também sou maluco". Brotero atingiu também os seus companheiros do pequeno corpo docente da Faculdade. O professor Baltazar Lisboa, por exemplo, teve uma efêmera passagem no Curso de Direito, pois sentindo-se perseguido por ele, pediu demissão de suas funções. Lecionou apenas durante um ano, 1829, a matéria de Direito Eclesiástico. Outros professores foram igualmente alvo de suas perseguições e rabugices, assim como estudantes e até bedéis não ficaram imunes às suas implicâncias durante o longo período em que exerceu o magistério no Largo de São Francisco, pois afastou-se apenas em 1871. Voltando às suas atrapalhadas verbais, elas não pouparam sequer o Imperador Pedro II. Quando da visita de Sua Alteza ao Estado de São Paulo, fez ele a apresentação do professor Cônego Fidelis, da cadeira de Retórica, da seguinte forma "apresento a V. Majestade, o sr. Cônego Retórica, professor de Fidelis". Há um hilário exemplo de como mudava a ordem das palavras nas frases : "o gado a saltar de galho em galho, os passarinhos a pastarem pelo campo". Não se sabe se estas confusões de expressões, de ideias, de vocabulário e de letras eram verdadeiras ou meras anedotas, vale dizer não se sabe se eram fatos ou fitas. É possível que algumas fossem fatos verdadeiros e não fitas. No entanto, sabe-se, e isso precisa ficar registrado, que a sua trajetória na Faculdade foi marcada pela inestimável e árdua obra de planejamento e execução da implantação prática do curso de Direito, abrangendo todos os seus inúmeros aspectos e nuances. Onde hoje está localizada a rua Cristovão Colombo, havia um barranco que, posteriormente, foi aterrado para a construção de uma via que desse acesso ao local mais elevado da cidade, atualmente Avenida Paulista. Esta via é a Avenida Brigadeiro Luiz Antonio. Pois bem, o local foi batizado como "Beco do Eco", onde os estudantes promoviam algazarras noturnos que muito incomodavam os moradores das redondezas. Após os gritos reproduzidos pelos ecos, inevitavelmente surgia algum estudante travestido de fantasma que passava a andar pela cidade, assustando os poucos transeuntes. Consta que Olavo Bilac ia ao beco e cumprimentava o eco : "boa noite" e o eco respondia "boa noite". As constantes atividades dos acadêmicos traziam alegria e por vezes provocavam sustos e apreensões nos moradores da então silenciosa e pacata cidade, especialmente nos arredores da Faculdade e das repúblicas. Além da sua presença sempre buliçosa e irreverente os estudantes de direito da época provocavam grande curiosidade nos paulistanos. Indagavam eles como esses rapazes estavam se preparando para o exercício da advocacia e das carreiras jurídicas, se sempre eram vistos pelas ruas, em passeios pelos arredores da cidade, em serenatas, em saraus, nos bilhares, e nos poucos bares e restaurantes. Estudar parece que não estudavam. Como, então, passavam de um ano para o outro e acabavam por se formar? Na verdade, aos estudantes pouco importava o que deles se pensava. A resposta à sociedade estava num soneto de Fagundes Varela : "Pode, bem sei, que livros não abrisse. Que não votasse amor à sabia casta, mas tinha o nome inscrito entre os alunos da escola de São Paulo é o quanto basta". Varela reproduziu um sentimento que acompanhou pelos anos vindouros todos os acadêmicos do Largo de São Paulo, e vige os nossos dias. O sentimento de realização pessoal plena, pelo simples e grande fato de ser ou de ter sido aluno das Arcadas. A presença dos acadêmicos de Direito nem sempre era marcada por momentos de alegria. Houve ocasiões nas quais a sociedade paulistana, que já saíra de sua pasmaceira com a só instalação do Curso Jurídico, passou por momentos de grande desassossego em razão dos atritos com a polícia. Estava-se assistindo a um espetáculo no Teatro da Ópera, quando alguns estudantes passaram a tossir incessantemente, impedindo a continuação do espetáculo. As tossidas barulhentas não tinham fim, fato que levou o Coronel Joaquim José de Luz e Souza, Presidente da Província a intervir aos gritos e com ofensas aos estudantes, sem respeitar as suas crises brônquicas... Um estudante reagiu e foi preso. Outros se rebelaram e também foram detidos. Em outra oportunidade os estudantes foram impedidos de ingressar na Igreja da Sé. Houve um embate corporal com os estudantes, que chegaram a entrar na Igreja e lá pegaram os castiçais que serviram de armas contra os policiais. Quando não havia atritos com a polícia, entre os professores e os alunos ou envolvendo os próprios estudantes, eles criavam situações potencialmente favoráveis a discussões e mesmo brigas físicas. Uma república que ficou inscrita na história da Academia foi a chamada "Comuna", localizada na rua da Freira, hoje Senador Feijó. A casa era de grande dimensão e permanecia aberta dia e noite, possibilitando que os estudantes que por lá passassem tomar refeições e pernoitar quando havia vagas. Uma caraterística dessa república, durante um tempo, foi a existência de um manequim, naturalmente surrupiado de alguma loja, colocado em uma das sacadas da casa, que emitia sons e palavras. Não só sons indefinidos, como por vezes saiam palavras de saudação aos que por ali passavam ou de críticas ou zombarias aos mestres da Faculdade. Havia um tubo de folha de Flandres, preso à boca do manequim e os estudantes ficavam na outra extremidade dentro de uma sala, fazendo as vezes de ventríloquos. Foram os estudantes da " Comuna" que furtaram o símbolo da farmácia "Veado de Ouro", um veado de madeira dourado. O furto fez com que o proprietário da farmácia, por meio de anúncio, oferecesse uma recompensa pela devolução do veado. Dias após, lá esteva ele emoldurando a entrada do prédio da rua de São Bento. Não foi a botica a única vítima de uma modalidade específica de rapinagem, qual seja a que tinha por objeto tabuletas de casas comerciais e seus respectivos objetos que serviam de emblemas. Estes objetos ficavam guardados em uma sala fechada, para impedir que fossem furtados pelos próprios estudantes que por ali passavam... Na realidade, o reinado da Academia e dos acadêmicos subjugava a cidade: "São Paulo era uma cidade onde dominava soberana e despoticamente o estudante e só ele", como afirmou o antigo estudante Moreira Pinto.
sexta-feira, 3 de agosto de 2018

Repúblicas, rapinagens e outras estudantadas

Abrigada a Faculdade em um Convento, seria necessário acolher os estudantes que vinham para São Paulo, do interior e de outros Estados. Após cinco anos de sua instalação, em 1832, formaram-se trinta e cinco alunos que compuseram, assim, a primeira turma de bacharéis da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Após 1828, a cada ano um número crescente de jovens era admitido na Academia. Durante os primeiros vinte e cinco anos de existência, formaram-se seiscentos e quinze estudantes. Em face da precária situação financeira da maioria dos estudantes, bem como diante do diminuto número de casas para alugar, eles passaram a se agrupar, para juntos ocuparem uma mesma casa. Daí surgiram as famosas repúblicas. Elas se situavam em determinados pontos da cidade. Liberdade; rua dos Estudantes; rua da Glória; da Assembleia; Largo da Sé; rua da Freira, atual Senador Feijó ; rua Santa Tereza; Conselheiro Furtado; São Joaquim, entre outros locais. Alguns estudantes moravam em chácaras alugadas, e outros poucos habitavam celas dos Conventos. Seis passaram a morar no Convento de São Francisco. Nos de São Bento e do Carmo estudantes pobres eram acolhidos pelos frades que lhes davam não só pousada como alimentação. Alguns deles vieram a se destacar na política e no Direito. Um estudante negro, Camilo Augusto Maria do Brito, tornou-se presidente do Estado de Goiás; Sizenando Nabuco, irmão de Joaquim Nabuco e Júlio Augusto de Castro, alcunhado de "Bocage Acadêmico", pois suas poesias continham as irreverências e ousadias do poeta português. As repúblicas possuíam um mobiliário muito simples, mal conservado e as suas instalações eram precárias e desconfortáveis. As portas estavam enferrujadas, as vidraças, as mesas e as cadeiras quebradas, rachaduras nas paredes, dentre outros defeitos estavam presentes em quase todas elas. Como exceção destacavam-se a Pensão da Viúva Reis e uma república situada no Largo da Glória, na qual morou o poeta Alvares de Azevedo. O local denominava-se Chácara dos Ingleses. Em frente havia o Cemitério dos Aflitos. Os serviços das mesas de refeições das Repúblicas, embora as instalações fossem precárias, eram refinados. Os melhores cafés e restaurantes da cidade colaboravam compulsoriamente para o aprimoramento do bom gosto e dos hábitos dos estudantes, que por meio de "expedições de rapinagem" supriam as suas carências domésticas. Ficaram famosos os piqueniques organizados pelos acadêmicos do Largo. A origem dos comestíveis e das bebidas, servidos em abundância era o Mercado Municipal que ficava às margens do Tamanduateí. Os estudantes encostavam um barco, naturalmente pertencente a terceiros, e por uma rampa que dava acesso a uma porta lateral, transformavam o Mercado em patrocinador obrigatório dos alegres encontros estudantis. Não se pense que a operação era simples. Exigia, sobretudo audácia e coragem. No entanto, a causa era nobre e justificava os riscos. Afinal estavam praticando um furto famélico. As rapinagens não se limitavam aos comestíveis. Não, os estudantes não eram seletivos. As incursões desapropriatórias eram muito bem planejadas e variavam de objeto. A botica "Veado de Ouro", situada na rua de São Bento, foi vítima dos estudantes que retiraram da porta da loja um veado de ouro, que era seu símbolo. O seu proprietário colocou um anúncio pedindo a devolução do objeto, comprometendo-se a manter sigilo sobre o autor e a recompensá-lo em dinheiro. O veado foi devolvido. Os acadêmicos em matéria de rapinagem não respeitavam sequer os locais sacros e a própria Faculdade. Com efeito, o campanário do Convento de São Francisco foi alvo da visita dos jovens que surrupiaram o badalo do sino. As razões do sacrílego furto não foram desvendadas. O furto obrigou que novo badalo fosse instalado no Convento e a adoção de providências para imprimir segurança ao local, incluindo a própria Faculdade, pois várias de suas vidraças haviam sido quebradas. De grande relevo na vida dos estudantes que moravam nas repúblicas, eram as cozinheiras e os escravos. Estes, em regra, eram alforriados, após a formatura de seus senhores. Interessante que tal como ocorria entre os estudantes, os escravos estavam divididos entre calouros e veteranos, dependendo da condição de seus senhores, sendo que aqueles deviam obediência a estes. Os estudantes da nova Academia, desde o início de sua instalação, deram um novo vigor ao pequeno burgo, que viu a sua pasmaceira dar lugar a uma agitação até então desconhecida, representada pelas serenatas, pelas manifestações de oratória, pelo trote, pelos saraus, enfim os estudantes por onde passavam deixavam a sua marca. Eles não ficavam confinados nas imediações da Faculdade ou de suas moradias. Saíam em longos passeios à pé, que poderiam atingir a Penha ou Santo Amaro. A cavalo percorriam toda a cidade, especialmente nos locais onde houvesse chácaras com pomares, cujas frutas eram por eles "colhidas". Uma dessas chácaras se localizava na Bela Vista, e para lá os estudantes se dirigiam pela manhã, após intensa atividade etílica na noite anterior, com o objetivo de participarem de um concurso denominado "Bezerril" . Sagrava-se campeão aquele estudante que bebesse a maior quantidade de leite, que com certeza fora também vencedor da competição da noite, apenas tendo havido a substituição do líquido ingerido. As andanças dos rapazes pela cidade, a par de alegrá-la, criava nos conservadores habitantes uma certa sensação de insegurança e mesmo de medo. Realmente, por vezes, assustavam os pacatos moradores da pacata São Paulo. Algumas das ruas, que abrigavam repúblicas, tornavam-se intransitáveis após certa hora da noite. Nas ruas da Palha, atual Sete de Abril, e na rua dos Bambus, hoje um trecho da Av. Rio Branco, por exemplo, os estudantes reservavam surpresas aos poucos e corajosos transeuntes, por vezes inocentes brincadeiras, mas, por vezes, não. Na rua da Palha, eles se transformavam em Quixotes ou em Cruzados da Idade Média. Montados em vassouras, investiam contra os moinhos de vento ou contra os mouros, representados por algum incauto, que por lá passasse. Observe-se que não trajavam pesadas roupas ou armaduras. Apresentavam-se apenas vestidos com um camisolão de dormir, fato que horrorizava os habitantes do local. Um estudante chamado Caetano Pinto, saia às ruas portando uma grande vara, para se equilibrar nas pontes e pinguelas então existentes, ou subia em um carro de boi e desfilava pelas vias mais movimentadas, erguendo um estandarte. Um outro acadêmico saia à noite vestido de mulher, com uma palmatória nas mãos que era utilizada nos transeuntes notívagos. O estudante se dizia representante da ordem pública, e estava à caça de desordeiros e mesmo não o sendo, o transeunte era obrigado a retornar à sua casa. Os rios Tietê e Tamanduateí eram muito frequentados pelos estudantes que praticavam natação e remo. As moças, sempre acompanhadas por alguém, também frequentavam as margens desses rios, para assistir as competições e para "tirar linha" com algum jovem acadêmico. Serenatas e cantorias noite adentro eram quase diárias. Abandonavam as mesas dos bares e dos bilhares para postar-se em baixo das janelas das eleitas e declamar ou cantar a sua paixão. O apaixonado se fazia acompanhar de colegas, incumbidos dos instrumentos e dos cantos. Por vezes, quando a escolhida surgia na janela os amigos serviam de ponto, para dar "cola" ao amigo. Tanto as canções, como as poesias, culminando com a declaração de amor, deveriam ser executadas com rapidez, pois inevitavelmente as serenatas terminavam com o pai da "Julieta" substituindo-a nas janelas para arremessar toda a água de um balde, quando não o balde junto. Em regra eram quatro os instrumentos tocados : flauta; cavaquinho violão e clarineta. Por vezes, surgia o violão e a rabeca. Os mesmos grupos de seresteiros davam audições nas Repúblicas e nas Praças Públicas, especialmente no Largo da Igreja de São Gonçalo, localizada na atual Praça João Mendes, aonde as famílias passeavam ao cair das tardes dos fins de semana. Falando de música, deve ser realçada a sua importância na vida da Academia de Direito, quer pelas atividades musicais ali desenvolvidas no curso de sua história, quer em razão de uma instituição genuinamente franciscana, a "Caravana Artística", quer porque a música retratou o espírito galhofeiro, boêmio, espirituoso dos estudantes, por meio das trovas acadêmicas . Note-se que Carlos Gomes, em 1860, esteve em São Paulo, hospedou-se- em uma república, na rua São José, hoje Líbero Badaró, e frequentou a Faculdade com assiduidade. Nesta época, o mestre campineiro, compôs o "Hino Acadêmico". Foi em São Paulo que compôs uma canção popular até hoje divulgada e cantada "Quem Sabe". Consta ter ele dedicado à uma sua amada quando se separaram. Já nos primórdios da Faculdade, os estudantes passaram a compor modinhas, na verdade as famosas trovas acadêmicas, que se perpetuaram e até os nossos dias são entoadas em qualquer lugar onde se encontrem estudantes. Em meados do século XIX, era comum que em suas andanças notívagas, os acadêmicos do Largo cantassem: "Andamos rindo às estrelas - Boêmios endiabrados - Apedrejando as janelas - dos burgueses sossegados". Esta trova, nos remete a um fato hilário que provocou persistentes gozações por parte da roda de Olavo Bilac, grande poeta e excepcional boêmio. Estava ele na redação do jornal Diário Mercantil, quando recebeu a visita de um homem que reconheceu ser o marido de uma senhora, que por ele se apaixonara e o assediava publicamente. Certo de que a visita do marido injuriado não seria amigável, Olavo preparou-se para enfrentar uma agressão ou algo mais grave. No entanto, o marido de forma educada e respeitosa, dirigiu-se ao poeta e pediu-lhe desculpas em nome da mulher, pois esta sofria das faculdades mentais, era doida e acabara de ser internada em um hospício. O alívio veio seguido da decepção, pois, verificou que não era alvo de uma paixão avassaladora. Não se deve pensar que a conduta dos acadêmicos estava exclusivamente voltada para troças e brincadeiras ou para serenatas e galanterias. Muitas eram as ocasiões em que se dedicavam aos cuidados com a alma e com o espírito, demonstrando o seu fervor e a sua devoção religiosos. Compareciam a todas as festividades da Igreja realizadas na cidade e em seus arredores. Procissões, quermesses, até missas e rezas contavam com a presença, ai constrita e bem comportada, dos futuros bacharéis. No entanto, uma observação se faz necessária: os estudantes não compareciam às festas e às cerimonias religiosas exclusivamente por razões ligadas à fé que dedicavam aos santos de sua devoção, aos padroeiros de suas cidades ou comunidades. Razões mais mundanas os moviam. As comidas, as bebidas e especialmente as sinhazinhas paulistanas, que se faziam notar e que notavam os garbosos acadêmicos nestas solenidades religiosas, representavam um importante fator de atração para os estudantes. Uma atividade que desagradava sobremodo os sisudos e conservadores paulistanos era a rapinagem praticada pelos jovens acadêmicos com grande frequência e de forma diversificada, que naqueles tempos não se restringiram ao badalo do sino da Faculdade ou à uma cruz que existia na rua da Cruz Preta, atual Quintino Bocaiuva. Além das frutas e das verduras confiscadas dos pomares das hortas, os galinheiros eram assiduamente frequentados, pois galináceos e perus eram o alvo dessas rapinagens, que na verdade ficavam longe do alcance da lei penal, pois, como já foi dito, enquadravam-se na categoria de furto famélico.
quarta-feira, 11 de julho de 2018

Fatos e fitas: Um teto para a faculdade

Depois da dissolução da Assembleia Constituinte em 1823, o Parlamento voltou a se instalar e em janeiro de 1825 a questão da instalação de cursos superiores no Brasil foi retomada, agora já com a definição de que seriam cursos de Direito. O Poder Executivo apresentou um projeto que previa o Rio de Janeiro como a cidade habilitada a acolher a primeira Faculdade de Direito do país. O autor do projeto foi o ministro do Império, Estevam Ribeiro de Rezende, Marques de Valença. A proposta não foi sequer discutida, uma vez que a Constituição recém-outorgada previa a competência do Legislativo para matérias pertinentes ao ensino. Um ano e meio após, em junho de 1826, um outro projeto foi oferecido. As discussões voltaram a girar em torno do local. Destacaram-se a favor de São Paulo os deputados Batista Pereira e Nicolau de Campos Vergueiro. Um dos argumentos contrários à instalação em São Paulo, chamou a atenção e provocou pronta reação a afirmação de que deveria ser a cidade do Rio de Janeiro a escolhida, pois este seria o desejo do governo central. Indagou-se: "Então, o governo é quem dirige o corpo legislativo"? Ponderações extensas foram por vários parlamentares expendidas, no sentido de mostrar-se a autonomia do Legislativo e a não aceitação de interferência do Executivo em questões de sua alçada. Observa-se que as intromissões de um Poder do Estado em outro é uma constante na história das instituições brasileiras. Nos dias de hoje, elas se acentuaram de tal forma que estão pondo em risco a normalidade política e constitucional, com sérios riscos de haver uma ruptura institucional. Está havendo, no entanto, uma agravante em relação a tempos pretéritos: o Poder Judiciário, único que sempre se manteve dentro dos rigorosos limites de suas funções naturais, está claramente avançando sobre competências que ultrapassam as suas, por razões as mais diversas, mas que tem no protagonismo de seus integrantes uma das mais evidentes. O inusitado ativismo político e o discurso correspondente parecem indicar que alguns membros do Poder Judiciário possuem uma vocação política, que é incompatível com a natural vocação dos juízes de distribuir justiça de forma imparcial e independente. Esta missão, por seu turno, deve ser executada com comedimento e recato. Em 1826, na verdade, não foi apresentado um novo, mas reapresentado o projeto discutido na extinta Assembleia Constituinte, com algumas alterações. O autor da iniciativa foi o deputado por Minas Gerais Lúcio Soares Teixeira de Gouveia. Depois de amplamente debatido por uma Comissão, foi apresentado um Projeto de Lei criando os cursos. Previa ele o Rio de Janeiro como cidade sede. No entanto, em plenário as discussões continuaram a se dar em torno da localização da nova Faculdade, pois não houve aceitação do Rio de Janeiro. Paralelamente, discutiu-se a grade de matérias, com exclusão de algumas constantes do projeto original e a inclusão de outras. Houve, também, dissenção sobre a remuneração dos professores da novel Faculdade. Uma corrente defendia que os professores tivessem a mesma remuneração e as honras dos desembargadores dos Tribunais da Relação das Províncias. Outra, no entanto, se opunha a essa equiparação. Prevaleceu a primeira. Foi apresentada uma emenda, para que os cursos fossem instalados em São Paulo e em Olinda. Finalmente, em 11 de agosto de 1827 o Brasil passou a ter Faculdades de Direito nas duas cidades, sendo que a de Olinda, posteriormente, foi transferida para Recife. Em São Paulo, foi escolhido o Convento de São Francisco para sediar o curso recém- criado. Foram, também, cogitados outros dois conventos existentes na cidade: de São Bento e do Carmo. O de São Francisco, segundos incumbidos da escolha, era aquele que apresentava melhores condições. As suas dependências poderiam ser adaptadas às salas de aula e aos locais para abrigar a administração. Ademais os frades poderiam lá permanecer, em dependências isoladas. Por outro lado, possuía uma biblioteca com, aproximadamente, seis mil volumes. Esta biblioteca antecedeu a instalação dos cursos de Direito, pois foi criada pelo governo provincial, em 1825, no mesmo convento de São Francisco. A construção era, como de resto todas as demais daquela época, de argila misturada e socada com areia, que possibilitava edificações resistentes denominadas de taipas. Havia um pátio ao céu aberto, cercado por colunas, que resistiu a um incêndio e às reformas do prédio e tornou-se símbolo de ativismo cívico e político, e também de agregação e de confraternização. Era e é o chamado "jardim de pedras", que veio a constituir o centro e a alma da Academia. Incumbido da escolha do local para sediar a Faculdade em São Paulo, o Tenente Coronel José Arouche de Toledo Rendon, nomeado diretor da nova instituição, juntamente com José Maria de Avelar Brandão, escolhido o seu primeiro professor, após pesquisar os três Conventos excluiu os outros dois mencionados por entender serem pequenas as suas dependências, fato que levaria à demolição e consequente expulsão dos frades. O diretor Toledo Rendon quando propôs o Convento de São Francisco afirmou que o local abrigaria "interinamente a Faculdade de Direito", pois "S. Majestade Imperial mandará depos formar este estabelecimento em lugar próprio, e que tenha não só as comodidades para um curso jurídico, como também para outras Faculdades, que se julgarem necessárias". A "interinidade" da Faculdade de Direito de São Francisco já dura, desde sua inauguração em março de l828, cento e noventa anos. No século vinte, tentou-se retira-la do velho Convento. Uma corrente humana de verdadeiros franciscanos fez um cerco protetor ao venerando prédio e enterrou a infeliz iniciativa. Com pompa e circunstância, em 1 de março de 1828, houve a instalação solene do curso de Direito, que representava o marco inicial de nossa independência cultural. O local não abrigaria apenas o saber jurídico, mas seria um espaço consagrado à ampla discussão de ideias; à fértil criação artística; ao livre discorrer dos ideais libertários; à produção jornalística e a um abrangente debate político. Sem embargo do rígido cerimonial e dos longos discursos, os organizadores ofereceram uma festa, com farta mesa, que "esteve franqueada a todo o povo". Assim, a Academia de Direito se abria, desde seu nascedouro, ao povo, como um local de irradiação do Direito, da Justiça e da Liberdade. A festa contou com um recital de poesias, música e com a execução de um hino composto para a ocasião. Houve, ainda, um Te Deum em ação de graças, na então Catedral de São Paulo. Nesta ocasião, houve a instalação do curso anexo à Faculdade, igualmente criado pela lei de 11 de agosto de 1827. Seu objetivo era preparar os jovens, a partir dos quinze anos, para o ingresso na Faculdade. O curso anexo passou a ser denominado de "curral dos bichos" e as aulas lá ministradas eram "aulas menores", ao passo que as de Direito eram as "aulas maiores". Nesse curso eram ministradas aulas de geografia, história, filosofia dentre outras matérias. Esclareça-se que a instalação da Faculdade de Olinda se deu em 15 de maio de 1828. Portanto, se ambas foram criadas por lei em 11 de agosto de 1827, o pioneirismo da instalação e do início das aulas pertence à Faculdade de São Paulo, inaugurada, como se viu em 1º de março.
quinta-feira, 21 de junho de 2018

Fatos e fitas: O início

Em 1654, os holandeses, quando aqui estiveram, planejaram criar uma Universidade. Posteriormente, Afonso VI, de Portugal, quis inaugurar cursos universitários na Bahia. No entanto, houve uma forte resistência por parte dos professores de Coimbra. Os Inconfidentes, por seu turno, tinham como meta prioritária, assim que o Brasil se tornasse independente, a criação da Universidade Brasileira. Frustradas todas essas tentativas, logo após a proclamação da Independência, já em 1823, os deputados que integravam a Assembleia Constituinte convocada pelo Imperador Pedro I passaram a discutir, por iniciativa do Visconde de São Leopoldo, José Feliciano Fernandes Pinheiro, a instalação de Cursos Superiores no Brasil. As discussões iniciais geraram em torno da conveniência de se criar um Universidade ou apenas Cursos Específicos. Optou-se pelos Cursos Jurídicos tendo em vista a natureza e os objetivos desses estudos, que no mundo de então já caracterizavam as Faculdades de Direito, especialmente as de Coimbra e de Paris. Desejava-se um ensino universal, que possibilitasse uma cultura abrangente das questões e problemas nas várias áreas do conhecimento humano. Lembre-se que os jovens brasileiros, pertencentes às famílias mais abastadas, cursavam universidades europeias: a de Coimbra para o Curso de Direito e a de Montepelier para Medicina. Um dos escopos do curso jurídico era o de também formar homens que estivessem preparados para gerir os negócios do Estado, na condição de deputados, senadores e demais gestores, que estariam "aptos para ocuparem os lugares diplomáticos e mais empregos do Estado". Esta missão pública reservada aos bacharéis foi explicitada na declaração de Carvalho de Melo, Visconde de Cachoeira, responsável pela elaboração do "Projeto de Regulamento" da criação dos Cursos Jurídicos editado em 1825. Como se vê, os bacharéis brasileiros nasceram com uma missão que extrapola os limites da atuação jurídica, qual seja a de servir a pátria na condução de seu destino, em todos os seus níveis. Cargos nos escalões inferiores, passando por Ministérios, Governos Estaduais, prefeituras, até a presidência da República, foram ocupados por bacharéis formados na Academia do Largo de São Francisco. Na velha República tivemos Prudente de Moraes, Campos Sales, Rodrigues Alves, Affonso Pena, Wenceslau Braz, Delfim Moreira, Arthur Bernardes, Washington Luiz, posteriormente José Linhares, Nereu Ramos, Jânio Quadros e Michael Temer. O bacharelismo passou a constituir uma ideologia, um sistema de pensar e de agir na condução da coisa pública. A formação do bacharel, portanto, teve como foco também a sua atuação como gestor da coisa pública. O apego ao constitucionalismo; às liberdades públicas; ao federalismo; à liberdade de opinião; aos princípios da legalidade; da ampla defesa; do contraditório; da igualdade eram valores assimilados nos bancos da Faculdade e praticados no desenvolvimento de várias funções que lhes eram atribuídas. Lamentavelmente, os bacharéis, após 1964, foram alijados dos postos de comando da Nação, e substituídos pelos tecnocratas. A instalação de cursos superiores no Brasil, especificamente os de Direito, vinha ao encontro de uma preocupação corrente à época, qual seja a de alcançarmos a emancipação cultural, até como forma de consolidação de nossa independência. Ademais, após o sete de setembro, o clima em Portugal passou a ser de franca hostilidade aos brasileiros, incluindo os nossos estudantes, que cursavam a Universidade de Coimbra. Inconformados com a Independência da até então colônia, os portugueses passaram a afrontar o Brasil e a perseguir os brasileiros, mesmo dentro da Universidade. Um brasileiro, Andrada Machado, que tinha assento nas Cortes de Lisboa, narrou que ao usar da palavra foi atacado pela multidão que ocupava as galerias, sob os gritos de "Mata, mata". Uma vez decidida a instalação de Cursos Jurídicos, restava a escolha dos locais. Imaginou-se que duas Faculdades seriam necessárias. Uma para atender o Norte e o Nordeste e a outra a ser instalada no centro ou no sul do país. Assim, argumentos a favor desse ou daquele Estado, à época Províncias, foram ardorosamente defendidos. O constituinte José Feliciano Fernandes Pinheiro, posteriormente Visconde de São Leopoldo, proponente da ideia e posteriormente, como ministro de Estado, subscritor da lei de 11 de agosto de 1827, ao propor a criação "o quanto antes" de uma Universidade sugeriu São Paulo. A cidade foi escolhida juntamente com Olinda. Os moços do Norte e do Nordeste teriam Pernambuco para desenvolver os seus estudos, e os do sul e do sudeste viriam para São Paulo sem terem que se deslocar para o nordeste. A justificativa do Visconde de São Leopoldo para São Paulo sediar a Faculdade, aos olhos do paulistano de hoje pode parecer uma pândega, uma refinada gozação: "Considerei principalmente a salubridade, a amenidade do clima. Sua feliz posição, a abundância e a barateza de todas as precisões e comodidades da vida" e para encerrar a sua fala comparou o Tietê com o Mondego de Coimbra: "O Tietê vale bem o Mondego do outro hemisfério". No entanto, a reação contra São Paulo foi intensa. Falou-se que por não ser litorânea, a cidade era de difícil acesso. Não possuía estrutura necessária para abrigar os estudantes que viriam de outros cantos do país, a começar pela ausência de moradias. Chegou-se até a afirmar que a pronúncia dos paulistas era estranha e poderia influenciar negativamente a fala dos estudantes. Esta última alegação foi contestada por jovens paulistas que, residentes no Rio de Janeiro, assistiam às sessões da Constituinte. Observaram a pronúncia de brasileiros de outros Estados e não viram diferenças substanciais. Concluíram eles não haver um dialeto tipicamente paulista e, portanto, os estudantes que fossem estudar em São Paulo não seriam contaminados no seu falar. "Anteriormente, o Visconde de Cachoeira defendera o Rio de Janeiro para sediar a Faculdade, invocando dentre outros argumentos "mais pureza na linguagem" e porque mais polidas são as maneira dos habitantes". Uma objeção a São Paulo veio a varar os anos e é ouvida até hoje. Disse o Visconde de Jequitinhonha, Acaiba de Montezuma "Não sei porque aqui sempre se anda com São Paulo para cá São Paulo para lá. Em nada aqui se fala que não venha São Paulo". Pois é, já naquele tempo, São Paulo provocava manifestações de emulação e de desapreço... Contra a terra bandeirante também se manifestou o Visconde de Cairu, Silva Lisboa, que defendeu fosse escolhido o Rio de janeiro, pois possuía prédios suficientes para abrigar os estudantes. Ademais, salientou que o porto de Santos não seria "tão frequentado como o do Rio de Janeiro para dar iguais facilidades". Por outro lado, segundo ele, "A viagem por terra para São Paulo é detrimentosa; a importação de livros e instrumentos é difícil". Vários argumentos a favor de São Paulo foram utilizados pelo parlamentar Antonio Carlos de Andrada Machado, destacando-se um deles pela sua originalidade e pelo seu conteúdo moralista. Disse ele que a cidade era adequada porque "não tinha distrações". Este argumento pode ter sensibilizado os deputados mais austeros e conservadores. No entanto, se inexistentes até então, as "distrações" foram logo nos primeiros tempos criadas pelos próprios estudantes, especialmente pelos boêmios, que agitaram a pacata cidade e provocaram a abertura de bares, restaurantes e outros locais menos ortodoxos. Mesmo a sóbria e fechada sociedade paulistana foi contagiada pelos jovens, que promoviam serenatas, saraus, passeios a cavalo e tantas outras atividades, algumas que chegavam a trazer desassossego, - especialmente aos pais de família. Antonio Carlos, ao expor aquela "qualidade" de São Paulo, impugnou a Bahia exatamente porque lá as "distrações" eram infinitas e eram vários "os caminhos da corrupção". Arrematou sentenciando "é uma cloaca de vícios". As agressivas observações provocaram veemente reação por parte do adversário de São Paulo, Montezuma, baiano que alguns anos depois seria o responsável pela criação do Instituto dos Advogados Brasileiros e seu primeiro presidente. As sessões e os debates sobre a instalação do curso de Direito foram interrompidos, pois em 12 de novembro de 1823, o Imperador Pedro I dissolveu a Assembleia Constituinte. Como se verá, as discussões voltaram a tomar conta das atenções do Parlamento Brasileiro, não mais Assembleia Constituinte, em 1825.
Formado na Faculdade Paulista de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, nutro por ela muito carinho e permanente saudade, quando relembro os anos do curso de Direito. Tive a ventura de viver inesquecíveis episódios ligados às atividades acadêmicas, marcadas por festas, trotes, reuniões memoráveis em bares e restaurantes, intensa militância política, práticas esportivas, das quais participava apenas como cartola e as famosas choupadas no então campo de futebol ou no sobrado do Centro Acadêmico 22 de Agosto. No velho convento da Monte Alegre construí amizades perenes; conheci minha mulher; tive aulas com excepcionais professores, aprendi a conviver com os contrários e forjei minha personalidade e o meu caráter, baseados na solidariedade e no respeito pelo próximo. No entanto, a Faculdade de Direito Largo de São Francisco sempre despertou a minha afeição e o meu interesse pela sua gloriosa história. Aliás, diga-se que a Academia simboliza os atributos e características de todos os bacharéis em Direito, que vocacionados para as lidas com o Direito, estão impregnados do espírito acadêmico das Arcadas, pouco importando a sua origem escolar. Esse espírito foi sendo forjado nas Arcadas no curso dos anos e relacionado ao comprometimento que seus estudantes sempre tiveram com a liberdade, com o culto do espírito, com o humanismo, com a poesia, com a solidariedade, com o amor ao próximo, com a Justiça social. Estes valores foram cultivados e cultuados desde a fundação da Faculdade e a acompanham por quase dois séculos. Pode-se afirmar que esse rol de interesses superiores do espírito humano deveria projetar-se para a sociedade brasileira como um todo. Ela seria melhor. Aliás, houve época em que tais valores preponderavam. Foi exatamente quando o Brasil era considerado o "País dos Bacharéis". O espírito acadêmico possui várias características e peculiaridades identificadoras do bacharel em Direito. No entanto, este espírito só é personificado por aqueles que são verdadeiramente vocacionados para exercer quaisquer das carreiras ligadas ao Direito e aos ideais de Justiça. Sem esse espírito e sem a vocação, formam-se em Direito e nada mais. No entanto, é justo que se diga: existem portadores do espírito acadêmico que nunca exerceram as profissões respectivas, mas nem por isso perderam os ideais do bacharel. Muitos já tentaram conceituar o espírito acadêmico, mas esta caracterização parece estar sempre incompleta. O lado galhofeiro, chamado por alguém de acriançado, travesso, buliçoso, irreverente, rebelde, cômico, aventureiro, convive com aqueles ideais de liberdade, solidariedade e outros. Todas essas marcas habitam a nossa alma. No entanto, há mais e nos resta continuar a descobrir porque somos o que somos. Além de portador do espírito franciscano, que como disse caiu no domínio de todos os bacharéis, laços hereditários ligam-me à Velha Academia. Nasci e cursei precocemente a Faculdade, pelo menos por osmose. Osmose paterna que infiltrou em meu inconsciente desde o meu nascimento o seu amor Franciscano. Quando vim à terra, meu pai cursava o terceiro ano. Estive presente à sua missa de formatura. Talvez com um ano, pouco menos ou pouco mais, passei a frequentar o centro Acadêmico Onze de Agosto, e fui protagonista de episódios marcantes, narrados inúmeras e repetidas vezes por seus participantes. Sempre que posso eu também os repito a terceiros. Os estudantes se reuniam no Centro Acadêmico 11 de Agosto todas as noites da semana, para a prática de atividades físicas, jogo de sinuca e suas variantes, vinte um, vida e mata - mata, acompanhadas de tertúlias literárias e etílicas. Ao saírem, davam sempre demonstração de seu espírito fraterno e solidário, ao externar a sua preocupação com a infância. Esta, naquelas ocasiões, era por mim representada. Meus pais moravam com meus avós paternos na rua do Riachuelo, exatamente atrás da Faculdade e em frente ao Onze. Pois bem, ao deixar o Centro eles se colocavam em baixo da janela do nosso apartamento para, alto e bom som, lembrarem o jovem casal da obrigação de alimentarem o filho recém-nascido: "Macacão, acorda para dar leite para o macaquinho". Invariavelmente meu avô, por eles chamado de "Macaco Velho" saía à janela e ameaçava os acadêmicos de morte, que, em verdade, nada mais estavam fazendo do que zelar pela minha saúde. Em outra ocasião fui levado ao Centro Acadêmico por meu pai. Depois de passar de braço em braço, eu desapareci das vistas de todos. Depois da mobilização dos aflitos estudantes eu fui encontrado sendo posto dentro da geladeira. Consta que o meu salvador foi o lendário Chico Elefante. Durante anos, dois estudantes da época disputaram a autoria do sequestro, quase cárcere privado: Anacleto Raposo Holanda e Kleber de Menezes Dória. Cada um deles assumia a autoria da façanha e mostrava grande indignação em face da mentira proferida pelo outro. Eu imagino um estudante do Largo expondo fatos os mais variados, ocorridos no curso dos anos, já séculos, quase dois. Narraria também fitas, estas como um conjunto de fatos, em parte verdadeiros, meio falsos ou inteiramente falsos, mas fruto, da criação mental, talvez da invencionice, mas como toda ficção, sempre respaldados por uma inspiração espelhada na realidade, que pode estar mais, ou estar menos, distante da mesma ficção. Portanto, o tempo transcorrido, as sucessivas versões, a imaginação dos que foram narrando e outros fatores construíram ao lado dos fatos as fitas em torno desse monumento institucional que é a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Perceberam que esse estudante é atemporal. Ele testemunhou o que irá narrar, pois deve representar as várias épocas da Faculdade, mas, ao mesmo tempo, significa simbolicamente o elo de união de todas essas épocas, pois elas, em verdade, constituíram uma unidade indivisível do Largo de São Francisco. Ela é única, do seu nascimento aos nossos dias. Tanto o narrador, como a Faculdade são, portanto, atemporais. Não há Academia deste ou daquele período da história de São Paulo e do Brasil. Há uma única, da qual emana o espírito acadêmico, que é superior ao tempo, às mudanças sociais ocorridas, e aos próprios homens que construíram esse espírito e ao próprio rigor histórico dos fatos e à dose de criatividade de suas fitas. Por todas essas razões, resolvi escrever, como disse, despretensiosas crônicas sobre a Faculdade, desprovidas de rigor histórico, cronológico e baseadas em uma pesquisa que poderia dizer perfunctória, mas escritas com o espírito e com a alma desejosos de reverenciar a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco como uma das mais importantes instituições nacionais. No entanto, há um outro escopo: homenagear aquele que incutiu esse amor em meu espírito, Waldemar Mariz de Oliveira Júnior, meu pai, da Turma de 1946, a melhor de todas, segundo ele. Quero deixar patente os meus sinceros e comovidos agradecimentos a dois ex-alunos da Faculdade, que me incentivaram e colaboraram decisivamente ao fornecer um material precioso para as crônicas: Armando Marcondes Machado Jr., o grande pesquisador e historiador da Faculdade e José Carlos Madia de Souza, lutador incansável pela eternização das tradições acadêmicas, presidente da Associação dos Antigos Alunos da São Francisco.
terça-feira, 10 de abril de 2018

Nós, animais gregários

O homem tem uma necessidade irrefreável de se expressar, de expor ideias, sentimentos, fantasias, criações da imaginação. Concretiza esse anseio por meio da palavra oral ou da palavra escrita. A intenção de quem escreve sem preocupações literárias, é expor experiências vividas, é recordar passagens e pessoas, é extrair dos fatos da vida aspectos inusitados, pitorescos, edificantes ou merecedores de repulsa. Enfim, são lembranças que não saíram da memória e estão mantidas nas várias caixinhas do cérebro e merecem vir à tona. Interessante é destacar que são experiências pessoais, cuja relevância é também pessoal, subjetiva. Mas, talvez, elas despertem, em quem vier a lê-las, lembranças e emoções em razão da identidade com suas próprias experiências. O foco, como disse, também são pessoas que marcaram a vida de cada qual. Não estou referindo-me a esportistas notórios, políticos de projeção, cantores ou artistas de renome. Na verdade, as recordações atingem seres anônimos que povoaram os nossos períodos de vida, das mais variadas emoções e provocaram sentimentos de múltipla natureza. Pessoas que nos mostraram as grandezas e as misérias da condição humana. Nesses escritos evocativos não se pretende fazer um cotejo entre épocas. "Aquele tempo" não é melhor ou pior do que o atual. São tempos diferentes. As diferenças no relacionamento interpessoal, no comportamento, nos hábitos, na educação são facilmente verificados. É difícil, no entanto, apontar as razões de tais diferenças. Na realidade, as pessoas mudaram e os tempos também, como consequência. Entendo saudável narrar outros tempos e até cotejá-los com os atuais. Pode-se, inclusive, descobrir que as diferenças não eram tão acentuadas quanto se imaginava. É importante o registro das épocas que se foram, que mudaram, que se repetem e que irão mudar ou novamente se repetir. Fatos, pessoas e locais povoam a nossa memória e o nosso imaginário. Como disse Fernando Pessoa, não se sabe se eles existiram ou se nós é que não existimos. Mas eram reais. No meu caso a maioria das pessoas e dos fatos existiram. No entanto, não posso garantir que a reprodução seja de fidelidade induvidosa. Duvido que seja. Aspecto interessante nesse fazer correr o tempo para apontar as suas mutações, é que o nosso olhar para trás infla os espaços e as coisas. As proporções, com o passar dos anos, vão adquirindo espectros menores, quer de coisas, de locais, de fatos e, por vezes, de sentimentos. Érico Veríssimo, que dizia ser "antes de mais nada um contador de histórias". Não se considerava um "escritor para escritores" Não era segundo ele "um inovador, não trouxe nenhuma contribuição original para a arte dos romances" ( in "Solo de Clarineta" , vol 2. - p. 308 - 1976). Humilde confissão de um grande escritor. Aqueles que registram as suas experiências, em regra não são escritores, são, pode-se dizer "contadores de sentimentos". No meu caso, a minha memória e o meu racional estão impregnados de algum sentimento. Nenhum fato, presenciado ou conhecido, habita a minha memória desacompanhado de alguma, maior ou menor, carga emocional. A minha presença nos eventos, mesmo estando ausente, foi e é sempre constante. Eu não consigo ficar alheio a uma ocorrência. Meu espírito nele se projeta. Tomo posição, opino, sofro, alegro-me, fico repleto de perplexidade, solidariedade, revolta, inquietação, enfim, sempre com o emocional operoso e vigilante. Aqueles que, por meio de escritos, mostram a sua atenção permanente aos eventos da vida, por meio de escritos, demonstram os possuidores, em escala superior, de uma marca comum a todos os homens: um ser essencialmente gregário. Todos o somos. Uns mais, outros menos. Há aqueles que atingiram níveis elevados da necessidade de conviver e de participar. Talvez em relação a estes haja um superdimensionamento do ego, revelado pela necessidade de ser protagonista, mesmo que à distância do acontecimento e indiretamente. O espírito está alerta e atento, sempre se manifesta, e o faz de variadas formas, como um irrefreável impulso de provocar e fazer aflorar algum tipo de sentimento.
terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Uma Confraria a serviço da democracia

Ele faleceu há uns dois meses. Em seu velório revi colegas de nossa época de estudantes, dos idos de sessenta. Formamo-nos em 1969 e 1970. Ele foi meu calouro. Procurei proteger-lhe do trote. Tratei-o bem, pois desejava aliciá-lo para o PIU - Partido Independente Universitário, por mim presidido naquele ano. Logrei êxito, pois ele alinhou-se conosco e teve uma marcante participação na política acadêmica de então. O governo militar se instalara em 1964, após a deposição do presidente Jango Goulart. O meio estudantil efervescia. O sentimento comum era o de incerteza e de absoluta insegurança. Sabia-se que a ruptura institucional poderia nos conduzir por caminhos tortuosos a uma situação de risco institucional. Na Faculdade Paulista de Direito, da PUC, como nas demais, havia os que aplaudiam o golpe, para eles a revolução; os que lhe eram contrários e aqueles que se colocavam em uma posição de expectativa. Para estes, a questão ideológica, a preservação ou não da democracia e das liberdades individuais, pouco importavam. A tomada do poder era um fato consumado. Estavam apenas aguardando os futuros acontecimentos, sem nenhum envolvimento favorável ou contrário. Os que se posicionavam contra o golpe estavam divididos. Aqueles engajados em partidos ou em organizações já existentes ou em formação, queriam ações concretas contra o regime instalado, que iam dos protestos à luta armada. Outros também se opunham claramente contra a tomada do poder pelos militares, mas não concordavam com ações agressivas e provocativas, que poderiam conduzir a um endurecimento do regime. E, tinham razão, pois pretextando combater a subversão em 1968 editaram o malfadado ato institucional nº 5. O PIU abrigava alguns colegas favoráveis ao golpe, mas era uma minoria sem voz. Os demais queriam perfilar o caminho da política para o combate à ditadura. Desde a instalação do governo militar, nós ansiávamos pela rápida redemocratização do país, esperando que as eleições presidenciais marcadas para 1965 fossem realizadas. Quando elas foram canceladas, percebemos o risco da perpetuação no poder por aqueles que o haviam assumido ilegitimamente. Optamos pela atuação política como a via a ser percorrida para a normalização institucional. Liderava o movimento dos radicais José Dirceu, por quem eu nutria simpatia, reconhecendo-lhe incontestável liderança. Era da minha turma, mas não se formou conosco, pois foi preso em Ibiúna no Congresso da UNE, em 1968. Travamos memoráveis debates nas assembleias e nas frequentes reuniões realizadas para discutir movimento estudantil, em face da anormal situação política. Durante o velório do amigo, companheiro de partido e das lutas acadêmicas, vários fatos foram lembrados. A sua coerência e a sua coragem foram enaltecidas. Sim, coragem pois esta não era um requisito apenas dos que saiam à rua para protestar e para enfrentar a polícia. A coragem também era um atributo nosso, que nos opúnhamos à ação dos radicais. A coragem era exigida exatamente porque estávamos contra os métodos de combate à ditadura então vigorantes. E, como era difícil contrariar os radicais. Éramos rotulados de direitistas, gorilas, defensores do golpe. Mentiras eram lançadas sem nenhum pudor, mas nós nos mantínhamos coerentes e inabaláveis em nossas posições. O amigo e fiel companheiro se manteve sempre na vanguarda de nossos movimentos dentro da Faculdade. Mas, nós tínhamos um outro interesse e o satisfazíamos fora da escola. Constituímos um grupo, para, sem abdicar das preocupações políticas, aliás como complementação e linha auxiliar dessas, cultivamos prazeres próprios do espírito acadêmico, quais sejam os ligados à boa mesa e à música. Assim, Fábio de Campos Lilla, este é o querido amigo agora pranteado, e eu, criamos a "Confraria Baco" . Um grupo de seletos companheiros, escolhidos por suas aptidões gastronômicas, etílicas e musicais, que se reunia aos sábados para o almoço na Serra de São Roque, onde se comia frango com polenta e se bebia vinhos da região, compatíveis com as nossas parcas economias, portanto, de sofrível qualidade. Diga-se que para nós, o frango e seus acompanhamentos eram iguarias estupendas, e o vinho era o único accessível ao nosso bolso. Deixava nossas línguas escuras e os nossos fígados com sequelas que nos acompanharam para sempre. Nós também cantávamos. Fábio, que se tornou um dos mais festejados e exitosos advogados tributaristas do país, era, sem nenhuma dúvida, o mais desafinado de todos nós. No entanto, não possuía consciência de sua inaptidão para a música, e com entusiasmo soltava a sua péssima voz. Eu tinha pena das mesas vizinhas. Quero registrar o meu pleito de saudade por aquele que desde os bancos universitários soube com coragem e coerência honrar os seus ideais democráticos e uma vez advogado, dignificar a profissão como poucos. Fábio e a nossa "Confraria Baco" simbolizam a capacidade dos estudantes daqueles sombrios tempos de, sem abrir mão de seus ideais e sem deixar de persegui-los, de cultivar a alegria de viver.
segunda-feira, 18 de março de 2013

Somos brancos?

Li em algum lugar uma afirmação de Chico Buarque sobre o racismo. Afirmação verdadeira, em forma de blague. Ele criticava a resistência nacional em admitir a miscigenação como característica de nossa gente : "no Brasil só a Xuxa é branca. Mesmo assim caso não case com o Tafarel irão desaparecer os brancos". Com efeito, quem é branco nesse país onde predominaram negros vindos da África e que aqui foram fazendo e tendo filhos, entre si e com brancos e índios ? No século XIX o percentual de negros se não era superior, quase o era. Fernando Henrique disse que ele tinha, ou quase todos nós tínhamos, um "pé na cozinha". Houve até quem quisesse o seu "impeachment". Atualmente, a população brasileira é constituída por maioria significativa de brancos, em face da imigração, do final do outro e início do século passado. No entanto, os brasileiros que não possuem descendência próxima com imigrantes, possuem mesmo que remotamente origem em algum tipo de miscigenação. E, qual é a razão de não assumirmos a nossa condição mestiça. Por que esta dificuldade de reconhecermos a nossa origem. É interessante que quanto à cor da pele gostamos do bronzeado, gostamos de nos expor ao sol para "tomar cor". É notória a nossa preferência pela cor morena do mulato (a). Talvez se trate de um claro indício, embora inconsciente, do reconhecimento da nossa origem miscigenada. Estranha queda pela cor e repulsa pela origem. Nós temos uma elite que desejou desde seus primórdios ser europeia, especificamente francesa. Posteriormente, o sonho foi se americanizando. Esta utopia segue o seu curso nos dias de hoje, com a adoção, por exemplo, de um vasto vocabulário da língua inglesa em substituição a expressões correlatas do nosso português. É interessante notar que nas nossas mais fulgurantes manifestações culturais, a música e o futebol, o negro sempre desempenhou um papel de grande destaque, propulsor e de vanguarda. Em ambos, a sua presença, no entanto, foi inicialmente rejeitada. O batuque, o choro, o maxixe e o samba eram desprezados pelas classes dominantes. Nos salões apenas valsas vienenses e polca. Uma ocasião, sob os auspícios da primeira dama, Sra. Nair de Tefé, esposa do Marechal Hermes da Fonseca, a compositora e pianista Chiquinha Gonzaga apresentou-se em um sarau no Palácio do Governo, executando apenas músicas populares, em especial um tango maxixe chamado "Corta-Jaca". Foi um escândalo na República. Rui Barbosa, que havia perdido as eleições presidenciais exatamente para o Marechal Hermes, assumiu a tribuna do Senado para com veemência deplorar o achincalhe representado pela apresentação de uma música menor, vulgar, essencialmente popular, incompatível com a dignidade nacional. Referindo-se ao maxixe o Conselheiro afirmou tratar-se da "mais baixa, a mais chula, a mais grosseira de todas as danças selvagens,a irmã gêmea do batuque, do cateretê e do samba". Como a recepção em Palácio contou com a presença do corpo diplomático, a "vergonha" teria sido maior, gerando rubor nas fases e até revolta, no dizer do inolvidável jurista. Este fato denota com clareza a verdadeira ojeriza da elite pelas nossas genuínas manifestações culturais. Na verdade, ojeriza que venceu o tempo e ainda perdura até os nossos dias, embora com menor intensidade. Posteriormente, a música popular se expandiu, derrubou barreiras, ocupou espaços, incorporou-se ao acervo cultural do povo e teve no negro o seu grande artífice. As figuras magistrais de Pixinguinha, Ismael Silva, Sinhô, Cartola, Nelson Cavaquinho, Donga, João da Baiana, juntamente com compositores brancos deitaram raízes nas décadas de vinte, trinta e quarenta, de uma música que soube retratar a história, o cotidiano e as características de um povo, como talvez não se tenha feito em nenhum outro país. O futebol, nos seus primórdios, foi apropriado pelos brancos, pelos "bem nascidos" , até que se descobriu o insuperável talento dos negros. A primeira seleção brasileira a nos dar orgulho foi a de 1938, na França, com Leônidas da Silva, o "Diamante Negro", encantando o mundo com a sua mágica atuação. A expressão negro foi colocada também na alcunha de outro grande craque do passado, Fausto a "Maravilha Negra". O primeiro jogador negro a se destacar foi Friedenreich. Ele, no entanto, não assumiu a sua negritude, pois, dizem, procurava branquear-se, alisando o cabelo, passando pó no rosto, imitando costumes dos brancos. Aliás, este fato do "branqueamento" não é incomum ainda nos dias de hoje. Falando em maquiagem para disfarçar a cor, a alcunha de "pó de arroz" que acompanha o Fluminense não provem, como se imagina, do fato de sua torcida ser de elite, mas sim de um seu jogador, de nome Carlos Alberto, empoar o rosto exatamente para clarear a sua tez. Como se vê, as nossas origens nunca foram devidamente assumidas pelo conjunto da sociedade. A verdade é que nós não incorporamos a miscigenação como um elemento intrínseco à nossa formação. Negros e mulatos, graças ao talento que lhes é inato, respondem por algumas manifestações culturais que nos distinguem perante o mundo. Caso eles fossem substituídos pelos brancos, muito provavelmente, tal reconhecimento não ocorreria. Por tal razão, e só por ela, as elites nesses setores se curvam, sem no entanto, abrir outros espaços. Os relacionamentos sociais fluiriam melhor e a sociedade seria mais harmônica e pacífica caso houvesse o claro e explícito reconhecimento de que nós brasileiros representamos uma mistura de outras raças, crenças e aptidões, única no mundo e que se aceita e assimilada nos proporcionaria uma identidade própria e uma alta estima da qual somos carentes.
segunda-feira, 4 de março de 2013

A história dos sem história

Com o passar do tempo, especialmente nos últimos anos, tem me assaltado uma sensação de tempo perdido, acompanhado de um sentimento de arrependimento. Não pense que generalizo. Não estou me referindo ao arrependimento pelo que fiz ou pelo que não fiz e de um modo ou de outro desperdicei o tempo. Na verdade esse desperdício dos tempos que já se foram é uma outra história. O foco é outro, é específico. Lamento não ter aproveitado o tempo de vida das pessoas que marcaram a minha vida, para produzir o registro de suas trajetórias, de viva voz. Desta forma eu estaria fixando a história, talvez a verdadeira, que é a história do cotidiano das pessoas. É interessante como não se tem a cultura de valorizar o cotidiano, a vida de cada um, suas emoções, alegrais, frustrações, opiniões, preferências. Por outro lado, os seus êxitos e as suas conquistas deveriam fazer parte das certidões pessoais de cada qual. Uma lei deveria obrigar todos a documentar por escrito ou oralmente a sua trajetória de vida e registrar o documento ou a gravação em um órgão público. Com isso estaria sendo armazenado para a posteridade o registro da história, individual e coletiva, não escrita a posteriori, mas sim concomitante à sua ocorrência. Por consequência, teríamos um retrato fiel da condição humana escrita não por um Balsac, mas por todos aqueles que em vida, podem retratar as multifacetadas características e os variados contornos dessa condição, com todas as suas nuances, grandezas, misérias. Entendo que a grande e verdadeira história da humanidade não é a das datas, das guerras, revoluções e golpes, dos assassinatos, das proclamações, das conferências e dos tratados. Esses eventos se formam e a humanidade se constitui por meio do dia a dia que enobrece ou desmerece o homem; na ocorrência de seus pequenos ou maiores êxitos ou fracassos; nas suas conquistas ou frustrações; nos seus amores, rancores, uniões, separações, no seu egoísmo ou no seu desprendimento, enfim a história da humanidade é a de cada ser humano. A proposta do registro público da vida de cada um é o exagero impossível para se chegar ao razoável viável. Então, resta saber como é possível escrever-se essa história, pois é impossível obrigar cada ser a registrar a sua passagem pela vida. O caminho é a persuasão, o estímulo, o incentivo para que memórias e autobiografias sejam escritas e divulgadas. Não estou me referindo apenas aos vultos notórios. Falo da divulgação dos registros daqueles tidos como os sem história, sem imagem, sem importância, falo dos anônimos. Com esta abertura se estará formando uma cultura voltada para o que é simples, trivial e cotidiano, mas que no conjunto representa a verdadeira e fiel história do homem brasileiro. Claro que a fixação dessa história deverá se dar por meio da edição de livros, boletins, opúsculos, pequenas publicações, gravações e pelos meios eletrônicos. Ademais, os escritos poderão abranger experiências coletivas. Turmas de faculdades; agremiações esportivas; entidades profissionais; famílias e outros núcleos poderão narrar a sua história que é constituída pela historia de seus integrantes. Assim, estaremos construindo a história global, baseada na de cada um. A escrita da história a partir da vida individual ou de um grupo de indivíduos poderá provocar estímulos pessoais para o reconhecimento do próprio valor, motivo de crescimento pessoal, amadurecimento e aumento da autoestima. Ao narrar a própria vida em sua inteireza, removendo o véu do esquecimento, o indivíduo terá condições de refletir sobre cada episódio, e avaliá-lo com maior clareza e serenidade em face do tempo passado. Condutas pretéritas, que lhe marcaram negativamente, poderão ser reexaminadas e vir a receber uma avaliação menos desfavorável. A narrativa da própria vida é um exercício eficaz para desmentir o filósofo Schopenhauer, para quem a vida dos homens, vista exteriormente, é insignificante e sem interesse, e é surda e obscura se sentida interiormente.
segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

São Paulo de ontem e de sempre

São Paulo está aniversariando. Quatrocentos e cinquenta e nove anos. Quatro séculos e meio, bem vividos e bem sofridos. Um tempo que não respeitou as barreiras impostas pelas preferências e pelas necessidades de seus habitantes. A vontade de cada um, de um grupo ou de grandes parcelas de paulistanos foi atropelada sem que se pedisse licença. Eu, em particular, e como eu inúmeros outros da minha geração, se fossemos perguntados sobre o que gostaríamos que voltasse, responderíamos de chofre, jogar bola nas ruas. Termos as ruas de volta. Nunca fui um craque, longe disso. Sempre fui o último a ser escalado nas peladas. E, em regra, compunha o time que ficaria com um jogador a mais, pois a minha presença nenhuma diferença fazia. No entanto, o que importava é que tínhamos a rua, éramos os seus donos. Nós tínhamos a rua como o nosso grande espaço de relacionamento, onde brincávamos, brigávamos, vivíamos e convivíamos, era na verdade o nosso inexpugnável reino. Não temos mais as ruas porque os automóveis a tomaram. Usurparam as ruas e isolaram as pessoas. Substituíram os bondes que as acolhiam e as uniam para separá-las. O automóvel, dizem, representou a industrialização e a modernização do país. Mas, eu preferia os bondes e as ruas. Desejo-os de volta. Perdemos as ruas e também os bairros e os vizinhos; os campos de várzea; os armazéns e os empórios; os sapateiros; os encanadores, os eletricistas, os amoladores de facas; os vendedores de algodão doce, de leite de cabra, verduras e frutas, biju, na porta da casas. Não se pense que eu seja um melancólico nostálgico. Tenho saudades sim, mas sei que os novos tempos da cidade que está inflada de problemas podem perfeitamente ser amenizados e melhorados, bem aproveitados para deixar saudades no futuro. Depende da cidade? Não, depende de nós. Nós somos os responsáveis pela nova época. São Paulo está ai, basta que a saibamos aproveitar. Vamos construir a nova cidade, sem destruir a antiga. É preciso dar amor à cidade ao invés de ofendê-la, decantar a sua crueldade, a sua feiúra, a sua selvageria. Características que estão muito mais em nossa visão predatória da realidade do que na própria realidade. Os que a habitaram no início do século 20 lamentavam a perda dos lampiões de gás, das serestas, da "Rapaziada do Brás", dos "Moços da Academia", do rio Tietê e de suas regatas e de tantas outras marcas daqueles tempos. Aqueles que aqui viveram nos anos trinta e quarenta remetem a sua memória à vida boêmia então possível de ser vivida na cidade. Cassinos, cabarés, taxi dancing, magníficos cinemas e outros locais existentes em uma época que possibilitava fácil acesso aos locais e seguro retorno ao lar. Os paulistanos dos anos cinquenta e sessenta choram a rua Augusta perdida; os primeiros Volks; o escurinho dos cinemas; os bailes de formatura, aonde ainda os casais dançavam juntos e, por vezes, de rosto colado, que representava a suprema intimidade !!! Tempos nos quais se pedia em namoro. E a resposta vinha, quando vinha, três dias depois. Eu sei, que os jovens que hoje vivem a cidade intensamente, dirão daqui a uns anos, ah ! no meu tempo, a São Paulo da minha época sim é que era uma boa cidade. Pois é, assim é e assim sempre será. Vamos melhorá-la agora, para que ela possa ser recordada no futuro. As décadas vindouras também terão os seus encantos, que se transformarão em saudade para quem as viver. Eu, no entanto, só temo que haja em São Paulo quem não tenha uma razão, seja lá qual for, para lembrá-la com carinho. Isto sim é de se lamentar, é muito mais triste do que todas as perdas que a cidade nos impôs.
segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

O bonde

Para quem não sabe, talvez muitos não saibam : Bonde era um meio de transporte. Agora é apenas uma lembrança daqueles que o conheceram. Na verdade existe ainda aqui e ali, como instrumento turístico, como o de Santos, que faz um curto percurso pelo centro da encantadora cidade. No Rio de Janeiro há o bonde de Santa Tereza, e mesmo em São Paulo havia, não sei se há, um que saia do Memorial dos Imigrantes, no Brás, e dava aos domingos um pequeno giro. Logo depois dos Estados Unidos, o Brasil adotou o Bonde, em 1868. D. Pedro II participou da primeira viagem. Em São Paulo o novo transporte veio em 1872. Puxado a burro, somente no início do século 20 veio para a cidade o elétrico. Não se pense que ele significou apenas um eficiente meio de transporte, que em São Paulo existiu até 1968. O seu significado sócio cultural foi extraordinário. Constituiu um importante fator de sociabilidade. O Bonde aberto, com os seus compridos bancos, proporcionava a integração dos passageiros, entre si, com a própria cidade e com cada local, rua, casa que ele ia ultrapassando. O estribo, por sua vez, possibilitava que dele se saltasse, quando chegava o cobrador, caso se estivesse perto do destino. . . Ficava-se pendurado para se aplicar um "pendura" . Aliás, consta que o próprio cobrador "pendurava", pois de cada três cobranças registrava com a cordinha sonora apenas duas . . . Assim agia, na certeza da impunidade. Provas não havia, uma vez que "no bonde salvo o cobrador e o motorneiro tudo era passageiro". Quando eu pulava com ele em movimento, normalmente caia. Era conhecida a minha falta de agilidade. Enquanto o automóvel isola, o bonde congregava. Convidava ao diálogo, possibilitava o relacionamento. Provocava um sentimento de paz, bonomia e benquerença. Dele podia-se olhar o mundo ao nosso redor. Alguém disse que o Bonde era o "mirante do cotidiano". Não só do cotidiano. Via-se e enxergava-se o outro. Esse olhar para o outro foi tema de uma publicidade estampada no seu interior: "veja ilustra passageiro, que belo tipo faceiro que o senhor tem ao seu lado". E, no entanto, acredite, quase morreu de bronquite, salvou-o o tônico creosotado. Algumas características do Bonde davam condições à conversa, à reflexão, à leitura, ao flerte, ou simplesmente ao vagar dos olhos, dentre outras. O escritor Amadeu Amaral sintetizou as razões destas possibilidades: "vagaroso não dava sono; veloz mas não provocava vertigem seguro e repousante". Do Bonde se extrai aspectos poéticos e também hilários, contados em prosa, verso e música, de Machado de Assis, a Fernando Portela, autor de um magnífico álbum "Bonde Saudoso Paulistano", passando por Carlos Drumond e por vários compositores. Machado expôs com lirismo a magia proporcionada pelo Bonde : "Admirei a marcha serena dos bondes, deslizando como os barcos dos poetas, ao sopro da brisa invisível e amiga". É isto. O Bonde serenamente percorria os seus caminhos e permitia que a brisa acariciasse os rostos e também as almas. Eram momentos de sossego, sem contratempos, engarrafamentos e, abafamento. Faço uma observação, até para ser coerente. Não era todo bonde que proporcionava bem estar. O chamado bonde "camarão", por ser fechado não se diferenciava muito do ônibus. A única diferença eram os trilhos, quando deles ele não saia. Quando vieram os bondes elétricos, Machado, em deliciosa crônica, lamentou o abandono dos burros, que ficaram desempregados. Nessa crônica, ele retratou um diálogo onde dois burros puxadores de bonde, mostraram a sua perplexidade em face da vinda do elétrico. Um deles estava exultante, pois seria aposentado com garantias de sobrevivência. No entanto, o outro contestou, lembrando que apenas mudariam de senhor, pois seriam vendidos e passariam a puxar carroças, sujeitos ao mesmo tratamento à base de chicotadas. Ainda Machado, apesar de reconhecer no Bonde elétrico um avanço para a modernidade, deplorou a falta de modos dos usuários e, por tal razão, lançou regras de comportamento para os passageiros, que foram expostas em uma crônica de 1883. Uma música de Cornélio Pires e Mariano da Silveira, cantada por Inezita Barroso, com muita graça, retratou o espanto e o sofri mento de um homem da roça que em São Paulo entrou em um bonde fechado pela primeira vez. A reclamação veio logo na primeira estrofe, onde o caipira conta que ao entrar abriu uma portinhola, levou um tranco, quebrou a viola e ainda teve que por dinheiro na "caixinha da esmola". Em seguida, ainda dentro da "gaiola", entrou uma moça rebolando, que no seu colo foi sentando, e ai ele confessou "fiquei gostando". Logo após entrou um padre bem barrigudo, que após dar um tranco graúdo, deu um "abraço num bigodudo", que era protestante "dos carrancudos". Por fim, disse que iria embora para a sua terra, pois "esta porqueira inda acaba em guerra". Drumond, por sua vez, reclamou do número de pernas que encontrava nos bondes. Disse que o bonde passa cheio de pernas, pernas brancas, pretas, amarelas. "Por que tantas pernas meu Deus, pergunta meu coração. Porém meus olhos não perguntam nada". Os saudosistas podem ter esperança, pois se anuncia a volta do bonde em certos trechos da cidade. Será ? Fala-se também de um meio de transportes que seria o sucessor dos bondes, o Veículo Leve sobre Trilhos, mas sem o estribo. Vamos aguardar.
segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

O furto do pernil

O sonho se realizou. Tratava-se de um antigo sonho, que quando alcançado foi batizado de "Até Que Enfim". Pusemos uma placa no frontispício da varanda. A casa, esse era o sonho, tinha uma larga e comprida varanda que a circundava, como aliás exige uma casa de campo. Era de madeira, pré construída e ficava nos arredores de São Paulo, em um clube de campo. O quanto nós pudemos ela foi aproveitada. Queridos amigos participaram de memoráveis churrascos e reuniões, realizadas em uma edícula construída atrás da casa. Amigos, na verdade casais e seus filhos, que se conheceram na época da Faculdade Paulista de Direito da Universidade Católica de São Paulo. Estudantes, cada um foi trilhando o seu caminho sentimental e, assim, os casais foram se constituindo, os casamentos celebrados e os filhos nascendo. Igualmente os rumos profissionais foram sendo traçados. No entanto, continuávamos juntos. Compartilhávamos dos anseios, das inseguranças, enfim dos apertos do início da vida. Nos divertíamos muito, embora com parcos recursos. Em nossas casas, nos bares e restaurantes, quando a grana permitia. Nos finais de semana, quando possível, aproveitávamos a casa de praia ou o sítio de alguém. As crianças foram crescendo unidas. E, nós íamos vivendo e bem. Um dos lugares de nossa assídua frequência era exatamente o "Até Que Enfim". Ao lado da edícula havia um pequeno campo, aonde praticávamos o embrião do futebol societ. Havia disputas acirradas. Os nossos filhos, já crescidos, eram os nossos adversários. Em regra ganhavam e quando o placar ia se avantajando contra nós, interrompíamos a partida, ou simulando alguma encrenca em campo ou simplesmente sumindo com a bola. Memoráveis encontros regrados à cerveja, música e farta mesa celebravam a amizade, para nós imorredoura. No entanto, a vida com a suas artimanhas, por esta ou por aquela razão, foi nos afastando. Restaram, no entanto, as gratas recordações e um carinho imorredouro. Retornando ao "Até Que Enfim" foram inúmeros os episódios marcantes, todos pitorescos. Cito um ocorrido em um 31 de dezembro. Estavam conosco os queridos amigos e compadres Wilma e Wladmir Cassani, com os seus filhos. Durante o dia, já na hora do almoço, tiveram início as comemorações, marcadas pela algazarra das crianças, seis ao todo, e por fartos comes e bebes. O auge do 31 seria atingido à noite com a ceia, preparada com esmero e carinho pelas mulheres. O prato de resistência deveria ser um pernil. Mergulhado em suculento molho passou o dia aguardando a ida ao forno. Depois de assado adquiriu um aspecto irresistível. Não faria feio ao famoso pernil do bar "Estadão". Tostado, úmido, cor com brilho, um pouco pururuca, sua visão despertou o nosso apetite e aguçou a nossa gula. Mas, ele só seria servido por volta da meia noite. Foi colocado em cima de um banco, na cozinha junto à porta que dava para fora. Ficou lá à nossa espera. Chegada a hora alguém foi buscá-lo. A expectativa só não era maior do que a fome. No entanto, quem foi à cozinha voltou de mãos vazias, ou melhor, chegou com a assadeira vazia. Sumira o pernil. Fora-se a nossa ceia. Do espanto, passamos para a revolta e para a indignação, ao verificarmos que o nosso cobiçado manjar havia sido furtado por um torpe e vil cachorro, que sorrateiramente invadira a cozinha e abocanhara a indefesa perna de um mutilado porco. Um dos sinais de superioridade do cachorro, e há outros, sobre o homem, é o olfato aguçado. E, com este apurado sentido o cão ladrão conseguiu nos lesar. E, como que por deboche e por escárnio, deixou rastros e pistas de sua criminosa conduta espalhados por longo trajeto. Fragmentos de ossos e nacos de carne eram os indícios suficientes da autoria delitiva: um cão da vizinhança, que permaneceu impune, pois nunca foi encontrado. É, como dizem os sedentos, no caso os famintos por castigo e por vingança, no Brasil grassa a impunidade.
segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Sinceridade no júri

O caso era de dois homicídios, um consumado e um tentado, que teriam sido praticados por um marido traído. A morte do parceiro e a tentativa contra a parceira levaram ao banco dos réus um pacato operário de cinquenta anos de idade. Fruto da cultura, à época ainda arraigada, de que a conduta reprovável de um cônjuge atinge a honra do outro, bem como que a honra manchada só é lavada à bala, o homem resolveu obedecer aos padrões imperantes. A sua decisão não foi repentina. Não, ela foi refletida, sedimentada, criou raízes e gerou a sua inabalável opção. Desde o dia de sua primeira desconfiança, fruto de uma comprometedora e induvidosa marca no pescoço e do tardio horário de chegada em casa, as suas dúvidas foram sendo dissipadas e a certeza foi se cristalizando em seu espírito. Homem de extraordinária simplicidade, casado há vinte e cinco anos, não suportou conviver com a conduta da mulher, para ele denotadora de imperdoável infidelidade, que atingiu os oito filhos do casal. Enquanto ele se esfalfava para sustentar a enorme prole, imaginando que a companheira estivesse em casa cumprindo o papel reservado à mulher, que no seu entender seria o relacionado às atividades domésticas, estava ela se dando ao desfrute com outro, ou com outros homens. O primeiro golpe que recebeu da mulher ocorreu em Osasco. Estava ele no interior de um ônibus e viu-a abraçada com alguém. Desceu do coletivo, mas não pode ver quem era o seu rival. O atrevido parceiro de sua mulher fugiu. Disse haver perdoado a companheira, em nome dos oito filhos, para manter a unidade familiar. Algum tempo depois, consentiu que ela trabalhasse fora, segundo ela para reforçar o orçamento doméstico. As constantes "horas extras" utilizadas para justificar os não raros atrasos na chegada em casa, somados ao episódio de Osasco provocaram-lhe ciúmes e desconfianças. Em determinado dia, observou que a esposa portava outro sinal significativo no pescoço. Agora a marca era de um rubro marcante. Com certeza não era a anterior, pelo decurso do tempo. Portanto, havia prova de recente infidelidade. Não tendo sido por ele provocada, porque o casal não se aproximava havia muito tempo, sua honra fora tingida de vermelho, desta feita por um novo vampiro. Na manhã seguinte à descoberta, ele seguiu a adúltera. Entrou no mesmo ônibus e desceu pontos depois, perto da av. Brigadeiro Luiz Antonio, local distante do trabalho da mulher. Esse fato causou-lhe inquietação e aumentou a sua desconfiança. Assim que saltou do ônibus viu-a entrar em uma perua Kombi que estava parada perto do ponto. Houve uma pequena demora até que, ao ver ambos se beijando, pensou ser aquele o momento propício para recuperar a sua dignidade e a sua honra, o que só poderia se dar à bala. Claro que o ciúme se fez presente em sua decisão. Aproximou-se da Kombi aos gritos. Assustado de início, o motorista cúmplice da infidelidade se recompôs e procurou tirar do porta-luvas uma arma. Antes, no entanto, que o fizesse, foi atingido duas ou três vezes pelos disparos desferidos pela janela do carro. A mulher teve como aliada a arma do marido, que negou fogo quando acionada contra ela. Aceitei defender o marido traído, pois ele me inspirou pena. Pena do homem amargurado pela infidelidade da esposa, mãe de seus filhos, a quem soubera perdoar uma primeira vez, sem ter, entretanto, resistido ao segundo deslize. Durante o curso da instrução, procurei convencê-lo de que seu ato fora impensado, fruto do choque provocado pela visão da mulher aos beijos com outro dentro de um carro. Para mostrar que agira em legítima defesa, quer física, quer da honra ou na pior das hipóteses, sob os efeitos de violenta emoção, eu procurava mostrar que ele não agira premeditadamente, afastando de seu espírito qualquer ideia nesse sentido. Pois bem, para que vingasse tal tese, necessário seria que ele afirmasse um fato relevante: por morar em lugar ermo e ir cedo para o trabalho, todos os dias saia armado de casa, sendo que possuía porte. Não houve nenhuma discordância de sua parte. Pareceu-me ter ele apreendido a versão, que, aliás, não fugia da realidade. Treinei-o dias seguidos. Quando lhe perguntava, como se fosse juiz, se ele andava armado, respondia-me, de pronto, que sim, pois possuía licença e residia longe e saia cedo de casa para trabalhar. No dia do júri achei-o tranquilo e pronto para enfrentar o julgamento. Com certeza não falharia. A versão seria bem exposta. Pois bem, vencidas as fases iniciais da sessão, teve início o seu interrogatório. Primeira pergunta do presidente do primeiro Tribunal do Júri: O sr. sempre andou armado? Resposta veemente: Não Excelência, eu juro por Deus que jamais coloquei um revólver na cinta. Somente naquele dia. Ah! exclamou o magistrado olhando-me com ar de censura, como se eu não tivesse orientado corretamente o cliente. A sorte é que os jurados foram sensíveis ao seu drama e reconheceram a legítima defesa, com excesso culposo. Graças, talvez, à sua sinceridade o Otelo estava salvo...
segunda-feira, 23 de julho de 2012

O príncipe dos advogados criminais

Um exame da carreira dos grandes advogados criminais nos mostra o despontar da vocação para a advocacia penal logo nos primórdios da carreira, mesmo já durante a Faculdade ou até antes de nela ingressar. Nenhuma outra motivação, nenhum outro fator, nenhuma circunstância externa impeliu esse bacharéis a abraçar o Direito Penal e a optar pelo árduo caminho da defesa, íngreme, por vezes tortuoso, mas sempre iluminado pela busca da liberdade e da dignidade pessoal. Razões, as mais diversas, conduzem os recém-formados a optar por alguns dos ramos da advocacia. Influência de algum advogado mais antigo, oportunidade para trabalhar em um escritório especializado em algum setor, trabalho interno em pessoa jurídica. Enfim, todas razões externas, na maioria dos casos, alheias à vontade do bacharel, que nem sequer fizera a sua escolha. Já na área penal, prepondera a vocação, a chamada interior para o exercício da defesa daqueles levados às barras dos tribunais criminais. No caso de Dante Delmanto foi exatamente esse insuperável chamamento que o levou a trabalhar com um grande expoente da advocacia criminal da época, primoroso orador, que foi Adriano Marrey. Na verdade, sua inata inclinação pela defesa, aflorou quando assistiu a um júri em Botucatu, sua cidade natal, no qual trabalharam Antonio Augusto Covelo e Alfredo Pujol, dois expoentes do Tribunal Popular da época. Nem sequer era estudante de Direito. Sua vocação levou-o à recusar a carreira diplomática. Uma bolsa patrocinada pela Fundação Carnegie, para estudar na Holanda, especificamente em Haia, depois de concluída, outorgou-lhe o direito de ingressar no Itamaraty como 3º secretário. Preferiu advogar. Trabalhou durante nove anos no escritório do notável criminalista Adriano Marrey, um dos grandes da época, onde adquiriu valiosa experiência que aliada ao seu estilo próprio, com marcas e aspectos peculiares, que foram se aprimorando e sedimentando com o correr dos anos, tornou-se um dos maiores advogados criminais de todos os tempos. O fato marcante da conduta profissional de Dante Delmanto foi o cuidado, o esmero, a dedicação religiosa a cada caso. Sua entrega ao minucioso estudo dos processos era absoluta e tornou-se notória e lendária. Tal como um refinado artesão, a matéria prima de seu trabalho, o processo, era examinado, esmiuçado, prospectado até estar sob o seu domínio absoluto, para em seguida e a partir daí serem construídas as teses de defesa, elaboradas as primorosas razões, todas elas emolduradas por pertinentes citações doutrinárias que davam supedâneo a alegações e argumentos irrespondíveis, calcados nos elementos probatórios constantes dos autos. Conhecedor de cada folha, certidão ou carimbo do processo, Dante jamais cometeu um engano, uma falha, uma omissão no exame das provas, pois expunha com precisão todas e delas extraía argumentos valiosos para a defesa. Aliás, também foi e ainda é considerado o mais temível e eficiente argumentador dos que pontificaram na advocacia criminal. Não se pense que Delmanto tivesse os seus interesses, a sua cultura e a sua inteligência exclusivamente voltados para a advocacia. Não, era um homem do mundo e talvez a sua permanente sintonia com os fatos da vida tenha constituído um dos fatores de sua proeminência na advocacia criminal. Dotado de extraordinária sensibilidade para entender o homem e os fatores humanos, não tinha uma visão maniqueísta da vida, pois como todo advogado vocacionado, possuía plena consciência das inevitáveis contradições que nos marcam e sabia aceitá-las com olhar compreensível, complacente e solidário. Em sua trajetória de vida, da advocacia à política, passando pelo futebol, Dante Delmanto deixou marcas indeléveis, de caráter, competência e dedicação plena. Lutou em 1932, na Epopeia Paulista, já formado em Direito. Aficcionado pelo Palmeiras, com vinte e cinco anos, foi eleito seu presidente. Nesse período, o então Palestra Itália, obteve notáveis feitos. Na política, cerrou fileiras em torno do partido Constitucionalista, tendo sido eleito, em 1935, deputado estadual constituinte, como o candidato mais votado. No curso de sua vida profissional, Delmanto demonstrou de forma permanente e significativa o seu respeito e acatamento pela dignidade e pelos direitos alheios, fossem adversários da tribuna, réus ou vítimas. Certa feita recusou-se a utilizar documentos que comprometiam um ex-prefeito, pai de uma moça morta por um seu cliente. A justificativa para não valer-se dos documentos, foi plena do sentido ético que sempre norteou sua vida profissional e pessoal: não seria moral e ético infligir mais dores a quem já as tinha de sobejo pela perda da filha. Assim se conduzia Dante Delmanto, o "Príncipe dos Advogados Criminais", exemplo para todos nós, velhos e jovens advogados criminais.
segunda-feira, 18 de junho de 2012

Advocacia injustiçada

Não faz muito tempo uma jornalista perguntou-me: "Doutor se o seu cliente já confessou o crime; sua arma está apreendida; ele se encontra preso, porque defesa"? A indagação não difere de uma outra feita com frequência: "Como o senhor tem coragem de defender este acusado"? Ambas retratam um desconhecimento e por tal razão uma profunda incompreensão do papel desempenhado pelo advogado no âmbito da administração da Justiça. A incompreensão não é recente, diria ser histórica. No entanto, acentuou-se nos dias de hoje em face da cultura repressiva que se instalou no país de uns anos a essa data. A advocacia e o próprio direito de defesa tem tido sua importância minimizada e mais do que isso a atuação dos defensores é contestada, por vezes menosprezada e até achincalhada. A verdade é que a incompreensão acompanha a advocacia desde os seus primórdios. O conceito público da profissão oscila de acordo com o momento histórico vivido. Nos regimes totalitários a voz dos advogados sempre incomodou os detentores do poder. Napoleão Bonaparte afirmou a seu ministro da Justiça que gostaria que a língua dos advogados fosse cortada, demonstrando toda a sua aversão pela profissão. Anteriormente, durante a Revolução Francesa, para a defesa dos acusados apresentados à Convenção, que se transformara em Tribunal de Exceção, exigia-se dos advogados extraordinária coragem física e moral. Vários advogados tiveram o mesmo destino de seus clientes: a guilhotina. Malesherbes que defendeu Luiz XVI foi um deles. O exercício da advocacia naquela época estava causando embaraços às intenções de Robespierre e do acusador Touquier Tinville voltadas à eficiência e à rapidez dos julgamentos. Por essa razão foi promulgada uma lei que proibiu a atividade dos advogados. Desta forma, aqueles objetivos foram atingidos: em poucas semanas houve centenas de condenações Dentre inúmeros exemplos de incompreensão do papel do advogado, e ao mesmo tempo de destemor e desprendimento no exercício da profissão, destaca-se o do advogado judeu Yoram Sheftel. Havia ele perdido vários parentes vítimas do Holocausto e não obstante defendeu Ivan Demspanuyuk, acusado de ser Ivan, o Terrível, responsável pelo campo de concentração de Treblinka. Ao aceitar a defesa, Yoram provocou feroz reação da comunidade judaica. Chegou a ser agredido, fato que lhe ocasionou a perda de uma vista. Apesar do infortúnio ele permaneceu na defesa e obteve a absolvição de seu defendido, pois a Suprema Corte de Israel entendeu não haver prova da identidade do acusado. A história nos conta que nos momentos de ruptura institucional, os advogados sempre foram desrespeitados e agredidos. Nos dias de hoje não há ruptura institucional. No entanto, o período é de verdadeiro obscurantismo social, representado por uma cultura repressiva que se reflete na intolerância raivosa, na insensatez, na ânsia por castigo e por vingança. Em razão dessa cultura que é capitaneada pela mídia sensacionalista e inconveniente, o direito de defesa vem sendo considerado inconveniente, inoportuno, motivo de atraso das punições e, portanto, fator de impunidade. A sociedade passou a ver o advogado como defensor do crime e não como porta voz dos direitos e das garantias constitucionais de seu cliente. É comum que nos considerem cúmplices do acusado e coautores do crime que é imputado àquele. A sociedade deveria ser alertada para a importância da nossa missão : porta vozes dos direitos e das garantias constitucionais e individuais. A violação desses direitos e dessas garantias, em algum caso concreto, põe em risco todo e qualquer cidadão, inocente ou culpado, que venha a ser processado. A incompreensão, atualmente, transformou-se em desrespeito, desprestigio e desvalorização. Verifica-se que a advocacia no Brasil está sendo verdadeiramente hostilizada. Há algumas críticas dirigidas à advocacia sobre aspectos que são comuns a outras profissões. Estas, no entanto, ficam imunes. Fala-se que o pobre está carente de assistência jurídica, por não poder contratar bons advogados. Um lado desconhecido da advocacia é exatamente aquele dedicado à defesa dos carentes de recurso. A mídia sempre nos coloca como defensores de pessoas abastadas, que via de regra são acusadas da prática dos chamados crimes do colarinho branco ou da prática de homicídio os quais, por alguma razão ganharam grande repercussão. Jamais a imprensa dá espaço para os casos de acentuado conteúdo humano que mereceriam realce voltado para as suas circunstâncias e motivos. Raramente mostram os aspectos favoráveis ao acusado, bem como omitem os seus direitos, os princípios que devem ser obedecidos em seu benefício e, por consequência, omitem o nosso papel que é exatamente o de arautos desses mesmos direitos e princípios. Os críticos da advocacia se esquecem dos advogados, e não são poucos, dedicados à advocacia pro-bono. Há, ainda, os colegas conveniados com o Estado, que atendem aos carentes. Não se esqueça dos dedicados e competentes defensores públicos, que exercem uma relevante função social. A falta de assistência jurídica aos hipossuficientes não é maior nem é menor do que a carência nas áreas da saúde, da educação e da habitação. É óbvio que a responsabilidade não é dos advogados, dos médicos ou dos engenheiros, mas sim da trágica desigualdade social reinante. Outra veemente crítica: os advogados cobram honorários elevados. Assertiva, que se verdadeira, não pode ser generalizada. A maioria absoluta dos advogados enfrenta grandes dificuldades no mercado de trabalho. Poucos são os que recebem remuneração condigna. A contratação de honorários é ato bilateral. Há quem cobre e há quem aceite e pague. Trata-se, na verdade, de uma crítica infundada, para não dizer ridícula e hipócrita, partida de uma sociedade que valoriza o ganhar e o ter, em detrimento do ser. São reverenciados e desfrutam de grande prestígio social os jogadores de futebol, os artistas, os apresentadores de televisão, os empresários, os médicos de renome, e tantos outros profissionais que ganham fortunas. Quanto aos advogados, bem, com relação a nós o ganho passa a ser pecaminoso, criminoso, imoral. A verdade verdadeira é que a advocacia nos coloca entre o calvário e o paraíso. Adorados pelos defendidos, somos, não raras vezes, alvo de execração pública, fruto do crônico desconhecimento da nossa missão. Só somos valorizados por aqueles que de nós necessitam. Mesmo assim, em muitos casos, a ingratidão nos acompanha, pois terminado o processo somos esquecidos. Verberar a injustiça, pugnar pelo direito, ser inconformado, rebelde, incômodo, esta é a nossa vocação. E dela muito nos orgulhamos Santos ou demônios, probos ou chicaneiros, idealistas ou oportunistas, o rótulo varia e a indefinição permanece. Nós sabemos o que somos e conhecemos o nosso valor. Para nós, isto é o que basta.
segunda-feira, 4 de junho de 2012

Um advogado invejável

A trajetória profissional de Evandro Lins e Silva provoca inveja. A inveja sã, não a destrutiva. A inveja que transforma o invejado em modelo a ser seguido e imitado. Qual o advogado criminal brasileiro que não gostaria de ter vivido a vida profissional e pública por ele vivida? Evandro cumpriu o duplo papel que desde a fundação dos cursos jurídicos foi destinado aos advogados: exercer as funções inerentes às carreiras ligadas ao bacharelado em direito e exercer funções públicas na administração ou na política. O Visconde de Cachoeira em 1825, quando elaborou o projeto de regulamentação dos cursos jurídicos, disse que eles não formariam apenas magistrados e peritos advogados, mas deputados e senadores para ocuparem "os lugares diplomáticos e demais empregos do Estado". Evandro cumpriu esse destino. Advogou com intensidade durante sua longa vida. Abriu hiatos apenas para dedicar-se à causa pública, como procurador Geral da República, chefe da Casa Civil, ministro das Relações Exteriores e ministro do Supremo Tribunal Federal, sendo dele retirado por ato de força do governo militar. Mesmo quando exclusivo militante da advocacia, ele não deixou de atuar em prol da sociedade e da cidadania, aliás cumprindo um fadário da advocacia que é o de ser a porta voz dos anseios e das aspirações da sociedade. Basta que se dê um exemplo para ilustrar a síntese, que em Evandro foi perfeita, entre o advogado e o cidadão: atuou como representante dos brasileiros no processo de impeachment de um presidente da República. A verdade é que Evandro marcou a sua trajetória de vida pelo desprendimento e pelo servir. Extrapolou os limites da postulação privada, para atingir as de interesse coletivo. A prova provada de seu desprendimento nós encontramos nas defesas que fez no famigerado Tribunal de Segurança Nacional, criado por Vargas em 1935. Foi o advogado que mais defendeu presos políticos sem jamais haver cobrado honorários. Exemplo de generosidade e de um idealismo do advogado que coloca o seu sagrado mister de defender acima de interesses outros. Trata-se de um exemplo para aqueles que nos dias de hoje pretendem transformar as bancas de advocacia em balcões de mercancia. Também nesse Tribunal a missão do advogado foi cumprida acima dos seus posicionamentos políticos e empatias pessoais. Defendeu acusados da intentona comunista de 1935 e os integralistas de 1938. Evandro fez com que o direito de defesa pairasse acima das ideologias de direita e de esquerda. Como ser político tinha claros posicionamentos em face da realidade nacional, que no entanto não interferiram no exercício da defesa. Foi um dos fundadores do Partido Socialista Brasileiro, juntamente com Domingos Velasco, Hermes Lima, Joel Silveira, João Mangabeira e outros. O júri, eu creio , foi na advocacia a sua maior afeição. Da defesa de um passional, aliás chamado Otelo, em 1932, seu primeiro caso, feito ao lado do grande rábula João da Costa Pinto, até a sua defesa notável de Doca Strett, passando por Castorina a doméstica acusada de infanticídio, júri no qual teve ao seu lado Carlos Lacerda, em 1934, Evandro Lins e Silva, durante setenta anos, fez da tribuna do Júri um altar para cultuar a liberdade e imolar a injustiça e o arbítrio. Como já dito, Evandro serviu ao interesse público cumprindo, assim, o destino traçado para os grandes advogados pelo Visconde de São Leopoldo. Foi ministro das Relações Exteriores e como tal no episódio da instalação dos mísseis em Cuba, pela União Soviética, agiu como mediador, tendo contribuído decisivamente para que a Guerra Fria não se transformasse em guerra real. Nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal, lá permaneceu durante cinco anos e quatro meses. Nesse período relatou cinco mil processos e participou do julgamento de, aproximadamente, trinta mil. Levou para a Magistratura características inerentes à advocacia. Como juiz continuou sua incansável perseguição à verdade, que na condição de advogado empenhava-se em levar para os autos. Demonstrou possuir um alto grau de compreensão do homem, com suas grandezas e suas misérias, desprovido de uma visão maniqueísta ou sectária do homem e da vida. Como juiz não foi um aplicador mecânico da lei. Adaptar as suas decisões às condições sociais, culturais e econômicas do momento reinante e às características de cada caso, sempre foi sua preponderante preocupação. Por outro lado, chamais olvidou ser a lei insuficiente para alcançar todas as situações de conflito em uma sociedade multifacetada e em contínua transformação. Evandro Lins e Silva, homem público admirável e magistrado exemplar, na verdade, foi uma das mais extraordinárias vocações de advogado que o Brasil conheceu. Depois de sete anos afastado da advocacia, quando serviu o país em cargos públicos, retornou à profissão. Voltou como se fosse um recém-formado. Voltou como um imberbe bacharel, portando orgulhoso o seu diploma, ostentando com garbo o seu anel de grau e trajando vaidoso a sua beca. Uma vez no fórum, novamente participou dos embates judiciários, sem qualquer laivo de prepotência ou de arrogância, que invadem o espírito de outros que exerceram os mesmos cargos por ele ocupados. Dominava-oo orgulho de ser advogado e não o decorrente das funções exercidas. Passou a exibir esse orgulho nos balcões dos cartórios, nas salas de espera dos juízes, esperando para despachar ou mesmo examinando inquéritos nas delegacias. Estava ele advogado pleno outra vez. E, essa condição o acompanhou até o fim de seus dias. Almoçávamos no restaurante Mário, no Leme, minha mulher Ângela, Clemente Hungria, Evandro e eu, quando num arroubo de confissão, desabafo e suplica, afirmou "Mariz, quero clientes, preciso continuar a advogar". Beirava os noventa anos. Foi um canto de louvor à profissão.
segunda-feira, 21 de maio de 2012

Advocacia e mídia: um precursor

O meu contato com Leonardo Frankenthal não foi constante e nem intenso. Diria até que fomos conhecidos, mas não amigos, por meras razões do acaso, que não nos proporcionou um contato amiudado. Quando comecei a trabalhar no escritório de meu pai em 1961 ou 1962, Frankenthal estava despontando como estrela fulgurante da advocacia criminal. Como o escritório de meu pai era exclusivamente dedicado à área cível, naquela ocasião eu nem sequer conhecia Leonardo de vista. Eu era um office boy do fórum cível, já à época instalado na Praça João Mendes, contando com não mais do que seis andares utilizados. Com o correr dos anos comecei a ouvir falar dele e de outros grandes advogados criminais: Dante Delmanto; Marco Antonio; Waldir Troncoso Peres; Raimundo Paschoal Barbosa; José Aranha; Henrique Vainer; Viana de Moraes e tantos outros. Passei a frequentar o fórum criminal ainda quando solicitador acadêmico, entre 1968 e 1969. Foi José Carlos Dias quem possibilitou o meu primeiro contato com uma vara criminal, indicando-me para trabalhar com ele em um caso de homicídio. Desse caso para outros, foi um passo. Os presidentes dos 1º e 2º Tribunais do júri nomeavam-me para inúmeros processos de réus carentes. Desta forma comecei a frequentar diariamente o nosso venerando e magnífico Palácio da Justiça, onde estava instalado o fórum criminal. A partir dessa ocasião Frankenthal tornou-se familiar para mim, embora o nosso relacionamento fosse superficial. Digo ter me familiarizado com ele em face de comentários, notícias de jornais e dos seus feitos como advogado do júri. Advogado competente, aguerrido, foi alvo de críticas, não raras, por sua impetuosidade e arrojo na defesa dos clientes, especialmente daqueles levados a júri, onde essas características mais se acentuavam. Leonardo Frankenthal talvez tenha sido o advogado criminal que com mais desenvoltura, desembaraço e competência soube relacionar-se com a imprensa, naquela época. Nos anos sessenta, havia uma ainda limitada interferência da imprensa na pauta da Justiça Penal. Era mantida uma respeitosa distância entre o jornal e o fórum. O magistrado era acatado e o advogado reverenciado. Distância, acatamento e reverência desaparecidos nos dias de hoje. Difícil, na atualidade, ler-se uma matéria que enalteça aspectos positivos da Justiça e da atuação dos advogados. À época, em primeiro lugar, os papéis dos personagens da cena judiciária eram expostos com fidelidade pela imprensa, o que facilitava a compreensão da missão de cada qual pela sociedade. Havia uma preocupação pedagógica, de bem informar, por parte da imprensa. O direito dever de punir do Estado vinha acompanhado nas matérias jornalísticas do direito à liberdade e à dignidade dos acusados. A sociedade não estava impregnada da cultura punitiva e repressiva hoje vigente. Havia um sentido do justo mais arraigado na consciência e na alma da coletividade. Foi nesse ambiente que Frankenthal soube introduzir na mídia, rádio e principalmente jornal, a advocacia criminal, com as suas glórias e as suas agruras. Deu ao sagrado mister de defender uma dimensão que extrapolou os quadrantes do poder judiciário para penetrar nos domínios da sociedade. Pode-se afirmar sem medo de erro ter sido Leonardo Frankenthal um notável "marqueteiro", não daqueles que criam situações ficcionais, mas o marqueteiro que com a própria realidade, sem maquiagens e simulações, enaltece e dignifica uma atividade humana, no caso uma das mais nobres e sagradas atividades do homem que é o exercício do direito de defesa.
segunda-feira, 7 de maio de 2012

Um advogado notável e um ser humano invulgar

Seu apelido era "Negro", embora não fosse da raça negra. Naquele tempo não havia o patrulhamento hipócrita e ele sim discriminatório, em relação às referências feitas aos homens e às mulheres da raça negra. Utilizava-se expressões como "negro", "negrão", "crioulo", "colored" e tantas outras como forma carinhosa de referir-se aos amigos negros. Nilton Silva Júnior, era, parafraseando o que Vinicius de Moraes falou de Ciro Monteiro, um só abraço em toda a humanidade. O seu irretocável caráter, a sua personalidade invulgar, o seu extraordinário carisma, a sua marcante simpatia e amabilidade fizeram-no verdadeiramente amado por todos os que o conheceram. Transformava-se em amigo do mero conhecido e amigo também seria dos seus inimigos, caso os tivesse tido. Orador primoroso, em qualquer oportunidade em que discursasse sua fala transbordava sentimento. Havia ocasiões que não possibilitavam tais transbordamentos, em face do caráter técnico e objetivo do discurso. No entanto, nestas ocasiões, ele rapidamente assimilava as circunstâncias e as reproduzia em um quadro onde preponderava a emoção ao lado do belo e do edificante. Paradoxalmente, esse advogado primoroso, esse ser humano único, bondoso, solidário, generoso, na verdade magnânimo, parece que carregava dentro de si o germe da autodestruição. Fez mal a si e só a si. Maltratou-se profissional e pessoalmente. Era um devoto do direito de defesa, e o exercia com grande competência e eficiência. No entanto, não cuidou da sua advocacia como deveria. Descuidou também da sua saúde. Desprezou-a, não lhe deu importância. Continuou, embora já enfermo, com os seus excessos boêmios, que alimentavam o seu diabetes fatal. Foi cercado pelos esmerados cuidados de sua mulher, aliás heroína mulher, Maria Aparecida e de amigos de rara fidelidade, dentre os quais destaco a figura excepcional, ímpar do advogado João Chaquian. A trajetória de Nilton Silva Júnior nos leva à crença de que não lutou para evitar a partida, deixou-se levar sem resistir, aliás, parece ter contribuído para a prematura ida . . . Sua vocação de advogado tinha como sustentação marcas de sua própria personalidade: a bondade, a compreensão e o apreço pelo ser humano. Desprovido de uma visão maniqueísta do mundo e dos homens, como todo advogado verdadeiramente vocacionado, não julgava a conduta humana, procurava entende-la e defendia quem dele necessitasse. Participou com o extraordinário Waldir Troncoso Peres da defesa de um homem acusado de haver matado a esposa com inúmeras facadas. Consta que ambos, dias antes do júri, se isolaram no litoral para o preparo da defesa. Muitos volumes, que retratavam um dos casos mais rumorosos dos últimos tempos. Dividiram o trabalho. Cada um lia parte da prova e engendrava os respectivos argumentos defensivos. Eu tenho certeza que esse exame probatório foi rápido e não exigiu grande empenho. Não que a prova não tenha sido examinada por completo. Não. Eles a analisaram e em sua totalidade. Mas, o fizeram sem esforço, pelo menos sem o esforço que seria despendido por qualquer um de nós, advogados criminais normais, meros mortais. O estudo que fizeram deve ter sido rápido, embora não superficial. Mas, por que rápido e sem esforço? Porque ambos eram geniais e como gênios captavam e processavam as informações com estupenda facilidade. Obtiveram êxito. Caso repleto de conteúdo humano, eles conseguiram desvendar os mistérios da alma dos seus protagonistas. Deram à prova oral, colhida perante os juízes de fato, uma interpretação que transcendeu os limites estreitos do fato criminoso e penetraram na estrutura psicológica do acusado, no seu atormentado espírito. Lograram transmitir aos jurados as íntimas e recônditas razões do acusado, surgidas em face de circunstâncias impostas pela vida em comum. Nilton e Waldir possuíam inúmeras semelhanças profissionais. A oratória, a facilidade em interpretar e expor a prova, a idolatria pela liberdade e pelo direito de defesa, a coragem de arrostar a incompreensão pública nos casos de grande repercussão, o desprendimento material. Ambos esmiuçavam os aspectos psicológicos, intimistas e emocionais da conduta delitiva, aprofundando-se nos do motivo do crime. Esse aspecto, no entanto, apresentava uma diferença entre os dois. Enquanto Waldir possuía um sólido embasamento doutrinário, voltado para o conhecimento da mente e da alma humana, Nilton desvendava o íntimo dos protagonistas da cena delituosa com base na sua extraordinária intuição. Embora fosse portador de vasta cultura humanística, seu conhecimento do homem era intuitivo, haurido de uma vida vivida com intensidade, livre de preconceitos e de limitações. Nilton Silva Júnior, uma vocação extraordinária de advogado, possuidor de raro encanto pessoal, acima de tudo um ser primoroso no relacionamento pessoal, talvez tenha sido o mais gentil, generoso, solidário e simpático dentre todos os advogados que brilharam no Fórum Criminal naqueles tempos.
segunda-feira, 23 de abril de 2012

Um fidalgo da advocacia

Talvez Henrique Vainer tenha sido o único advogado criminal de sua geração que jamais assumiu a Tribuna do Júri. Nessa época, a instituição era a vitrine para todos os que defendiam a liberdade, e ele jamais a visitou. E não o fez, não porque não acreditasse no Tribunal Popular. Lá não advogou por excessiva humildade, exagerado senso de responsabilidade e autocrítica exacerbada. Entendia não reunir os predicados necessários para enfrentar as agruras do Júri. Não se considerava, inclusive, um bom orador. Pois bem, mesmo sem advogar no Júri, Vainer figura na seleta galeria dos grandes advogados criminais do país. Quando veio do Rio de Janeiro, onde se formou em 1941, para São Paulo, passou a advogar na área cível. Mas, por pouco tempo, pois logo se dedicou à advocacia criminal, sua genuína vocação. No início da década de cinquenta, a defesa dos italianos Comeli e Malavesi, acusados de sequestrarem o filho do Conde Matarazzo, já revelava o advogado destemido, combativo e extremamente competente. Seu trabalho em prol da permanência de Malavesi em nosso país, por ter um filho brasileiro, tornou-se referência para a jurisprudência e posteriormente inspirou lei sobre a matéria. Sua atuação era marcada por extremados cuidados e preciosismos raramente vistos em outros colegas. Em relação ao cliente, não se limitava ao cumprimento do dever, orientava, encaminhava e o acompanhava, mesmo que já defendido. Sentia-se como que responsável pelo seu destino. Sua atuação extrapolava os limites do exercício profissional. Exercia a advocacia e ao mesmo tempo exercitava o humanismo. Lhano no trato, a sua cortesia não era apenas fruto de sua fina educação. Representava um profundo respeito pelo semelhante, que não raras vezes transformava-se em eloquente demonstração de amor ao próximo. Fui seu companheiro no conselho Penitenciário do Estado de São Paulo e lá testemunhei a grandeza de seu espírito e toda a bondade do seu coração, por meio de votos repassados de compreensão humana e inabalável fé na recuperação do sentenciado. Ao lado do meticuloso cuidado com que elaborava as suas peças processuais, Vainer se esmerava na manutenção da pureza ética no exercício da profissão. Contou-me o seu grande e inseparável amigo e companheiro de escritório, Silvestre Garreta Prates, que em certa ocasião, após concluir pela inviabilidade da revisão criminal de certo processo, não cedeu aos insistentes aspectos dos pais do condenado, que usaram como último argumento uma mala repleta de dinheiro, colocada e aberta à sua frente. Em outra oportunidade indignou-se com um rico industrial que lhe ofereceu polpuda quantia para assumir a sua defesa, em processo que tramitava por uma determinada Vara, cujo titular era seu fraterno amigo. E a razão da contratação, segundo soube, era exatamente tal circunstância. Henrique Vainer pertenceu a uma notável geração de advogados paulistas, pertencentes a várias áreas de atuação: Rogê de Carvalho Mange; Theotonio Negrão; Geraldo Conceição Ferrari; Raimundo Paschoal Barbosa; Waldir Troncoso Peres; Cássio da Costa Carvalho; Elcio Silva; Rio Branco Paranhos; João Baptista Prado Rossi; Rui Homem de Mello Lacerda;Waldemar Mariz de Oliveira Júnior; Alexandre Thiollier; Sebastião Carneiro Giraldes e tantos outros, que além de extraordinários advogados, tornaram-se porta-vozes dos interesses da advocacia e com notável abnegação e espírito de sacrifício, raros nos dias de hoje, deram vida, alma e perenidade aos órgãos de classe, aos quais pertenceram. Henrique Vainer possuia tão refinada educação, que após assistir ao julgamento de um caso do seu interesse, esperava mais um ou dois outros antes de retirar-se da sala de sessão. Entendia indevida e indelicada a sua imediata saída. Possuía hábitos que infelizmente não mais se coadunam com os pouco gentis e açodados tempos modernos. O meu preito de saudade a um advogado especial, diferenciado, diria um homem da renascença, pela sua fidalguia, sensibilidade e refinamento. Uma ave rara.