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Meio de campo

Textos sobre Direito Esportivo e mercado.

Rodrigo R. Monteiro de Castro
Desde 2016, quando surgiu o tema da SAF (em livro denominado Futebol, Mercado e Estado1), que logo se converteu em projeto de lei, de autoria do Deputado Federal Otavio Leite2, e, posteriormente, com todas as evoluções e ajustes decorrentes de anos de debates com centenas de agentes e instituições de diversas naturezas (jornalistas, atletas, dirigentes, reguladores, magistrados, congressistas, membros do executivo etc.), pouca gente acreditava que a SAF seria efetivamente incorporada ao sistema jurídico brasileiro. Apesar da resistência (ou, em muitos casos, da inércia) do poder cartolarial, e de várias circunstâncias, coincidências e movimentos de sorte, há meses vigora a Lei 14.193/21 ("Lei da SAF"), fruto do Projeto de Lei 5.516/2019, de autoria do Presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco (PSD/MG) - daí a lei ser justamente denominada, além de Lei da SAF, Lei Rodrigo Pacheco. Guardadas as devidas proporções, a incredulidade em relação à proposta originária deu lugar, após o advento da Lei da SAF, a um certo ceticismo, que, por conta do anúncio de algumas recentes operações (Cruzeiro, Botafogo e Vasco) ou intenções (Atlético Mineiro), parece ter dado lugar a um otimismo com o porvir.   Esse estado de coisas aguçou, com razão, a curiosidade da sociedade - e de pessoas que gravitam ao redor do futebol. Daí o surgimento de uma série de dúvidas, que merecem, neste espaço, rápidas e objetivas respostas, as quais são apresentadas a seguir: Todo clube deverá constituir uma SAF?  R: Não, a Lei da SAF não obriga a transformação ou a constituição da SAF. A decisão, em relação a qualquer um dos caminhos, ou a nenhum deles - caso em que o clube permanecerá uma associação sem fins lucrativos - somente poderá ser tomada pelo próprio clube. Quem deverá decidir se um clube caminhará para constituição da SAF?  R: A competência para tomar a decisão final é da assembleia geral de associados do clube, que deverá se manifestar quando convocada. Todo clube deverá convocar uma assembleia para deliberar sobre tema relacionado à SAF?  R: Não. A decisão sobre a convocação seguirá o rito previsto no estatuto de cada clube. Geralmente, a competência convocatória, para matéria de importância como esta, é atribuída ao Conselho Deliberativo ou a determinado número de associados - mas pode ser diferente. Caso um clube decida constituir uma SAF, quem será o proprietário das ações de emissão da SAF?  R: Na largada, o próprio clube. Ele deverá transferir à SAF ativos relacionados ao futebol (mediante integralização de aumento de capital, por exemplo) e, em contrapartida, receberá todas as ações de emissão da SAF. O clube pode ser acionista único da SAF?  R: Sim, pode. Como um investidor se torna acionista da SAF? R: Basicamente, de três maneiras: (i) comprando ações de emissão da SAF que pertencem ao clube - caso em que o preço ingressa na conta do próprio clube; (ii) subscrevendo novas ações de emissão da SAF, que se somarão às ações detidas pelo clube - hipótese em que o pagamento das ações subscritas (a título de integralização de capital) será destinado exclusivamente aos cofres da SAF; e (iii) adotando-se um modelo híbrido, resultante das duas situações anteriores. A Lei da SAF fixa uma forma de cálculo do valor do clube ou da SAF? R: Não. A "valorização" será livremente negociada entre partes que resolverem negociar uma operação. Vários critérios podem ser adotados para avaliar uma empresa (logo, também uma da SAF), como: fluxo de caixa descontado, múltiplo de EBITDA (sigla de Earnings Before Interest, Taxes, Depreciation and Amortization), múltiplo de receita, dentre outros. Qualquer um poderá ser utilizado. É importante que o clube esteja bem assessorado para defender e negociar o maior valor possível e, consequentemente, obter o preço adequado numa negociação. Em qualquer caso, dois fatores deverão (ou poderão) ser considerados, sendo um negativo e outro positivo: o endividamento reduz o preço fixado para uma companhia - logo, à SAF, também; por outro lado, times de futebol são "ativos" únicos, e, assim, podem ser negociados acrescidos de valores "intangíveis" que não seriam obtidos em outras atividades. Afinal, existe apenas um Galo, um Furacão ou um Tricolor Paulista, por exemplo. O estádio, se pertencente ao clube, deverá, obrigatoriamente, ser transferido para SAF? R: Não. O conjunto patrimonial (ativos e passivos) transferido do clube para SAF poderá, observados os requisitos da Lei da SAF, ser definido em função de cada caso concreto. Se o estádio permanecer com o clube, então, a SAF e o clube deverão celebrar contrato de locação, de arrendamento ou de outra natureza, para disciplinar o uso do imóvel pela SAF, em troca, a princípio, da respectiva contrapartida financeira - que poderá ser utilizada para manutenção da estrutura e atividades clubísticas. E a marca, passará à propriedade da SAF?  R: Dependerá da negociação realizada e das características de cada clube. De todo modo, não há obrigatoriedade de transferência, a título de "propriedade", da marca. Ela poderá ser, por exemplo, objeto de licença de uso exclusivo à SAF, no âmbito do futebol, por prazo de longa duração, 50 ou 75 anos, por exemplo, em troca do pagamento de remuneração financeira (royalties). O investidor de uma SAF poderá vender suas ações?  R: As ações de emissão de uma companhia - logo, de uma SAF - integram o patrimônio de seu proprietário, e poderão ser vendidas, portanto. Na negociação de ingresso do investidor, o clube poderá, no entanto, condicionar a realização do negócio à sua permanência mínima por determinado prazo (5 ou 7 anos, por exemplo), caso em que a venda, nesse prazo, estará proibida (isso se chama, no jargão do mercado, "lock-up"). O clube também poderá exigir a realização de oferta prévia da venda a ele, caso em que terá preferência para aquisição das ações. E poderá tentar impor a restrição de venda a terceiros que ostentem (ou não) determinadas características, como reputação ilibada, patrimônio mínimo, experiência em abertura de capital etc. Toda SAF será bem-sucedida?  R: Assim como nem toda empresa é sustentável - e eventualmente quebra -, nem todo casamento resiste ao tempo ou nem todo filme produzido em Hollywood é lucrativo, nada (ou ninguém) pode garantir que toda SAF será exitosa. Mas, pela primeira vez desde a Constituição de 1988, há uma lei que não impõe um comando formal, apenas, autorizador da constituição de uma empresa ou mesmo obrigando o clube a constituí-la. A Lei da SAF, de forma pioneira, cria a SAF como elemento nuclear de um sistema dotado de uma série de instrumentos aptos a viabilizar a passagem ao modelo empresarial e a acomodar interesses, direitos e obrigações de clubes e investidores. A SAF não é um fim em si, mas a via jurídica de legitimação e de segurança para os agentes que fazem ou farão parte do sistema do futebol (clubes, investidores, jogadores etc.). A SAF que tiver um clube como acionista minoritário e um investidor na posição de acionista controlador ficará sujeita à vontade exclusiva do acionista controlador?  R: A resposta deve ser fragmentada. A Lei da SAF confere ao clube fundador da SAF uma série de direitos que não podem ser afastados ou ignorados. Assim, enquanto o clube detiver ao menos 10% das Ações Classe A representativas do capital social votante ou do capital social total, a aprovação das seguintes matérias dependerá, necessariamente, de seu voto afirmativo: (i) alienação, oneração, cessão, conferência, doação ou disposição de qualquer bem imobiliário ou de direito de propriedade intelectual conferido pelo clube ou pessoa jurídica original para formação do capital social; (ii) qualquer ato de reorganização societária ou empresarial, como fusão, cisão, incorporação de ações, incorporação de outra sociedade ou trespasse; (iii) dissolução, liquidação e extinção; da SAF; e (iv) participação em competição desportiva sobre a qual dispõe o art. 20 da Lei nº 9.615, de 24 de março de 1998. Caso o clube passe a deter menos de 10% das ações Classe A, mesmo que seja apenas uma ação, ainda assim as seguintes matérias continuarão a depender de seu voto afirmativo: (i) alteração da denominação; (ii) modificação dos signos identificativos da equipe de futebol profissional, incluídos símbolo, brasão, marca, alcunha, hino e cores; e (iii) mudança da sede para outro município. Além das imposições derivadas da Lei da SAF, o clube poderá, no âmbito da negociação com um investidor, negociar e fazer (ou tentar fazer) constar do acordo, outros direitos que lhe possam parecer relevantes para condução da associação.  Muitas outras dúvidas, algumas singelas, outras mais complexas, merecem explicações, e serão apresentadas - e respondidas - nas colunas seguintes. __________ 1 CASTRO, Rodrigo R. Monteiro de; MANSSUR, José Francisco C. Futebol, Mercado e Estado. São Paulo: Quartier Latin, 2016. 2 Autor do Projeto de Lei 5.082, de 2016.
quarta-feira, 2 de março de 2022

A SAF: o dono e o povo

No último domingo, dia 25 de fevereiro, o Jornal O Globo trouxe editorial com o título "Clube-empresa já traz renovação ao futebol brasileiro - Cruzeiro, Botafogo e Vasco começam a implantar o novo modelo de Sociedade Anônima do Futebol (SAF)". A edição da lei 14.193, de 6 de agosto de 2021 ainda é bastante recente e seus efeitos expressivamente notáveis tendo em vista seu pouco tempo de vigência, seja pela adesão de diversos times - para além dos três citados no editorial - e, principalmente, pela discussão que tomou conta do futebol brasileiro sobre o modelo de organização dos nossos times. Como o futebol brasileiro está entrando numa nova era - e todos queremos seja uma era de prosperidade - toda discussão sobre como aprimorar o modelo introduzido pela Lei da SAF, evitando problemas já verificados em outros países, sem dogmas, sem mitos, sem imposição de supostas "verdades" é válido, é salutar e fará bem ao processo evolutivo. Um ponto importante levantado por alguns dirigentes merece reflexão. Alegam, alguns, que "seus" clubes não deveriam adotar o modelo da SAF, porque são do "povo" e não podem ter "donos". Vale a pena o debate sobre tal afirmação. A rigor, o primeiro ponto a ser apontado é que no exato momento em que o clube constitui a SAF - tratando de modo geral as formas previstas nos artigos 2º e 3º da lei 14.193/2021 - o clube se coloca como proprietário da totalidade (100%) das ações da SAF. Portanto, ao nascer, a SAF tem um único e exclusivo dono: o clube que a criou. A decisão de transferir, mesmo que seja uma única ação, 25% das ações, 51% das ações, 90% ou 100% das ações pertence tão-somente ao clube. E, para tomar tal decisão, a Lei da SAF combinada com a Lei Pelé são bastante claras: o clube só pode vender as ações se tal venda for aprovada pela Assembleia Geral de Associados. Portanto, não é correto dizer que, necessariamente, ao constituir uma SAF o time de futebol do clube passará a ter um "dono". Cruzeiro, Botafogo e Vasco realmente transferiram montante do percentual das ações suficiente para atribuir poder de controle ao investidor. E o fizeram porque tais clubes, levando em consideração o contexto de suas situações atuais, decidiram, soberanamente, que a atratividade ao investimento externo dependia de tal providência. O futuro mostrará se tomaram o caminho certo. Por agora, o que se vê depois de alguns anos muito difíceis, é que a esperança de dias melhores se mostra clara e potente para Vascaínos, Cruzeirenses e Botafoguenses. E isso, diante do cenário que se apresentava anteriormente, já é muita coisa.  Já o Athletico Paranense vem manifestando interesse em constituir a SAF, entretanto, disposto a vender não mais do 40% das ações, ou seja, o clube quer, e pode perfeitamente, exercer a opção de permanecer no controle da gestão do time de futebol, no caso, com o investidor aportando recursos para aumentar a capacidade de investimento do time e confiando na gestão atual do clube como capaz de produzir o retorno esperado. Trocando em miúdos: o clube que constitui a SAF nasce como único dono da SAF e só vai transferir propriedade a quem quer que seja se assim o quiser e decidir. Aliás, mesmo que o clube transfira mais da metade das ações ao investidor, a forma do exercício desse controle, a participação do clube nas decisões e tudo mais, pode também ser objeto de um acordo entre clube e investidor - o acordo de acionistas - que atribua maior ou menor ingerência do clube nas decisões. A SAF está longe de ser um modelo "engessado" porque, desde o início, levou em consideração o fato de que há mais de 800 clubes de futebol no Brasil e cada um tem suas condições próprias, seu tamanho, seu contexto e impor condições únicas para um ecossistema tão diverso seria tratar igualmente os desiguais, portanto, pavimentar o caminho para o insucesso de uma ideia que foi objeto de estudos por tantos anos até se tornar lei. A partir disso, é preciso também enfrentar o tema da suposta "democracia" como sistema político dos clubes-associação atuais versus a efetiva participação das partes interessadas - stakeholders - num modelo como o da SAF. Recentemente, o Advogado e Professor Ricardo Oliveira entregou ao Brasil mais uma preciosidade que só poderia vir da querida Bahia - "ah, mas que saudade eu tenho da Bahia", dizia Caymme com tanta razão - na forma do artigo "Clubes de futebol - Existe democracia na SAF?"1, em que conclui: "A mudança para um tipo societário com regras mais bem definidas tende a aumentar os padrões de transparência, controle externo e compliance, a fim de o clube se tornar realmente atrativo a investidores, chegando ao ponto, inclusive, de possibilitar, a depender do modelo adotado, que o torcedor possa se tornar um acionista da SAF, aportando recursos e tendo direitos típicos de sócios empresariais. Dentre tais direitos estão o de voz e voto nas assembleias e reuniões, direito de participar nos lucros, direito de pedir a prestação de contas, de eleger conselheiros de administração e fiscal, dentre outras maneiras de participarem mais ativamente do processo de tomadas de decisões estratégica e gerenciais, dentro da governança corporativa proposta pela Lei. Portanto, SIM! A Democracia nos clubes-empresas é possível de ser implementada!" Portanto, é falsa a existência de suposta dicotomia, ou mesmo impossibilidade, entre o modelo da SAF e a adoção de instrumentos de participação efetiva, e democrática, dos interessados nos fóruns decisórios dos times de futebol. Nos causa estranhamento, inclusive, ler e ouvir que tal ou qual clube não poderia constituir SAF, porque pertence ao "Povo", quando, na verdade, o que se verifica é que clubes com 10, 20 ou 30 MILHÕES de torcedores restringem a participação em suas assembleias, seja para eleição dos mandatários, seja para deliberação de quaisquer outros temas, a 800, 900 ou 1000 associados. Que democracia é essa na qual CENTENAS de dirigentes, conselheiros e associados, decidem os destinos de times sustentados pelo amor - do qual advém a maior parte das receitas - de DEZENAS DE MILHÕES DE TORCEDORES? Salvo melhor juízo, clube-associação, no qual o poder de deliberação está concentrado nas mãos de uns poucos dirigentes e suas oligarquias, muitas vezes mantidas no poder por si, familiares e aliados por mais de décadas, suportados pelo voto de outros poucos conselheiros e associados, no qual o torcedor em praticamente nada participa do processo de gestão para além de ser o "pagador das contas", está muito longe de ser uma democracia, muito menos pode afirmar com honesta convicção que pertence ao "Povo". Só pertence ao Povo o País, Estado ou Cidade, ou mesmo, uma Instituição que confere efetivamente ao Povo o poder de deliberar sobre seus destinos. __________ 1 Disponível aqui.
quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

SAF - realidade, ilusão e perspectivas

Desde o advento da lei 14.193/21 ("Lei da SAF"), de autoria do Presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco (PSD/MG), produziram-se diversos textos e ensaios (e muitos palpites) sobre a pertinência ou a impertinência da proposição legislativa e do conteúdo final da lei (relatada pelo Senador da República Carlos Portinho - PL/RJ). A verdade é que, compostos de argumentos positivos ou negativos, todos eles reafirmaram, consciente ou inconscientemente, um fenômeno incontornável: a potencialidade do novo mercado do futebol. Temia-se (ou se criava um falso dogma de) que o ingresso de investidor, qualquer que fosse a sua procedência ou característica - mas em especial o estrangeiro -, ignorasse a relação sentimental estabelecida entre torcedores e times, e reduzisse a prática esportiva a uma atividade capitalista, norteada apenas pelo lucro. Um dos mais recorrentes exemplos da suposta incompatibilidade entre capital e futebol consistia na falaciosa ideia de que, às vésperas de uma final de campeonato (ou de uma etapa relevante de um torneio), o investidor não hesitaria em orientar (ou obrigar) a empresa a negociar o craque do time para fazer dinheiro - em detrimento do resultado esportivo. Essa ilustração se repete, aliás, ainda hoje, em programas de rádio e de televisão - assim como nas arquibancadas e em conversas de bar. A falsidade da proposição, alimentada pelos "donos do futebol" (cartolas que se aproveitavam dos frágeis modelos de governação de clubes para imposição de estruturas de poder e dominação), é evidente: aquela situação se verifica, e com alguma frequência, em clubes insolventes ou em crise - geralmente sediados em países que renunciaram à abertura do modelo associativo, tornando-se dependentes da exportação de pé-de-obra. Foi nisso, num exportador de riqueza em estado bruto, que o País se tornou. E foi para reformular esse secular estado de coisas que se concebeu, no Congresso Nacional, a Lei da SAF. Ela, porém, não deve ser vista como uma solução mágica para problemas, rasos ou profundos, dos times locais; trata-se, em essência, de um instrumento transformacional, que servirá aos propósitos organizativos e reorganizacionais de agentes que, até então, não se enxergavam (ou se relacionavam): clubes e investidores (e outros agentes, como financiadores de operações estruturadas). Apesar dessas características, a miopia, como se indicou acima, ressurgiu, após o surgimento da Lei da SAF, inicialmente sob a forma de ceticismo e de criticismo, expressivo do desejo (implícito ou explícito) do insucesso. Talvez a tendência tenha começado a se inverter com a notícia de que o investimento no Cruzeiro não seria liderado por um capitalista sem rosto, mas por Ronaldo, um ídolo mundial (e que carrega em seu currículo a propriedade de um time espanhol, o Real Valladolid); além de ex-atleta formado no próprio Cruzeiro. Ali se percebeu, ao que tudo indica, que, ao contrário da fracassada modelagem do clube-empresa, instituída pela Lei Zico, em 1993 (e reformulada pela Lei Pelé, em 1998), a proposição do Senador Rodrigo Pacheco poderia seguir o rumo da aderência sistêmica. Sim, pois ao contrário das tentativas pretéritas, a Lei da SAF não se fundava em um mero comando formal de transformação de uma associação em empresa, mas na concepção de um sistema apto a receber e a acomodar necessidades e interesses de quem investe e, na mesma escala, de quem viabiliza o investimento (o clube) e de quem é investido (a SAF, constituída pelo clube). Aquela percepção se aguçou com mais uma novidade: o surgimento de outro investidor com rosto, John Textor - igualmente envolvido em negócios esportivos, como o Crystal Palace, na Inglaterra -, no projeto de reorganização do Botafogo. Além desses dois casos midiáticos, e de uma dezena de outros em gestação, espalhados pelo País, nesta última semana de fevereiro o Vasco da Gama também anunciou o encaminhamento de uma negociação que envolve cifra bilionária, para ingresso de um fundo investidor de origem norte-americana; este, porém, sem rosto, mas que também ostenta envolvimento com times europeus. Esses eventos indicam que as premissas edificadoras da Lei da SAF estavam corretas: (i) o associativismo se mantinha por conta da ausência de um arcabouço jurídico qualificado à atração de capitais para desenvolvimento da empresa do futebol; (ii) o Brasil atrairia interesse local e internacional e se tornaria um efetivo mercado emergente (e pujante); (iii) o excesso de liquidez anteciparia alocações de recursos no futebol, mediante aplicação em SAF concebida no âmbito de projeto sustentável; e (iv) bastaria o projeto de um clube relevante e substancial para influenciar os demais - que, se ficarem para trás, correrão o risco de se apequenarem ou se tornarem irrelevantes, do ponto de vista de resultados. Ficar para trás não significa que clubes devam constituir a SAF, sem um projeto que lhe sustente. A constituição se justifica, a princípio, se, e apenas se, envolvida em uma proposta maior, de que participe ou não um investidor, mas, em qualquer caso, que tenha um objetivo material (e não puramente formal). Aí surgem oportunidades que não deveriam ser ignoradas pelos clubes locais, que passaram a conceber, aparentemente, um novo (e equivocado) dogma: a necessidade de o investidor ter raízes no exterior e participar de times europeus. Não há - e não haverá -, no ambiente do novo mercado do futebol, verdades absolutas; cada caso deve ser construído levando em conta as características do próprio clube e do seu time, bem como do que eles precisam e do que pretendem (ou podem) exigir e realizar. Daí, para que se evite a ilusão (ou armadilha) de que apenas estrangeiros funcionam, e ainda de que não haverá solução viável fora de estruturas integrantes do futebol - e, assim, criar-se uma nova dependência, não do cartolismo, mas do "futebolismo" -, a Lei da SAF se apresenta como uma espécie de "lego", que viabiliza estruturações jurídicas de modo a acomodar os interesses das partes envolvidas, mesmo que não sejam, no caso de investidores, originários do esporte. O tempo será útil para que a Lei da SAF (ou Lei Rodrigo Pacheco) seja testada em toda sua extensão. Enquanto isso, os clubes que perceberem, agora, a sua utilidade, deverão, além de acertar o rumo de seus caminhos, protagonizar, ao que tudo indica, o futebol nos próximos anos.
O DREI - Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração é competente para, dentre outras matérias, estabelecer e consolidar normas e diretrizes gerais do registro público de empresas mercantis e atividades afins. No âmbito de sua competência, dispôs, por intermédio da "IN 112" - Instrução Normativa 112/22, sobre o registro da sociedade anônima do futebol - SAF. Logo no preâmbulo da IN 112 se afirma que se aplicam à SAF, de modo subsidiário, todas as regras aplicáveis à sociedade anônima constantes do Manual de Registro de Sociedade Anônima, Anexo V à Instrução Normativa 81 ("Manual"). A lógica é a seguinte: em relação ao tratamento específico de matérias exclusivas da SAF, previstas na lei 14.193/21 ("Lei da SAF"), apresenta-se uma normatização própria, contida na própria IN 112; no mais, a SAF se submete às regras das companhias "ordinárias" - desde que, por óbvio, não sejam incompatíveis com a mencionada Lei da SAF. Portanto, as regras das companhias não substituem, mas complementam, no que for compatível, as normas da SAF. O primeiro parágrafo do item 1, inserido na Seção XIII, reafirma a possibilidade de constituição da SAF por acionista único. Não se trata, como se extrai da Lei da SAF, de obrigatoriedade, mas de possibilidade. Assim, um clube, por exemplo, poderá deliberar a constituição de uma SAF e subscrever a totalidade das ações de sua emissão, sem necessidade de adicionar ao processo constitutivo uma pessoa que se tornava sócia apenas para constituir a pluralidade societária (um homme de paille, conforme se designa em França, ou um laranja, como se prefere no Brasil). A unipessoalidade é admitida em qualquer modalidade de constituição da SAF; ademais, caso ela seja constituída, por hipótese, com mais de um acionista, não há vedação a que, em momento posterior, todas as ações se concentrem em apenas um acionista, por qualquer meio aquisitivo, como a compra e venda de ações (hipótese, portanto, de unipessoalidade superveniente). Aliás, o último parágrafo do item 1 joga cal sobre infrutífero debate que ameaçava se iniciar, consistente na equivocada interpretação de que o clube não poderia constituir a SAF por via de drop down (mediante subscrição da totalidade das ações emitidas pela SAF e transferência de ativos à SAF em integralização de ações subscritas). O texto contido na IN 112, que expressa o conteúdo da Lei da SAF, é inequívoco nesse sentido: "por sua vez, conforme prevê o art. 3º da mesma lei, uma SAF pode ser constituída, ainda, mediante o recebimento da transferência do clube ou da pessoa jurídica original de seus ativos (...)". O item 2 estabelece que o estatuto da SAF deverá conter os requisitos previstos no item 15 da Seção I do Capítulo II do Manual, podendo (i) estabelecer outros requisitos necessários à eleição para o conselho de administração, (ii) prever outros direitos para o titular das ações ordinárias classe A, quando constituída por clube ou pessoa jurídica original, (iii) estabelecer critérios para a dedicação exclusiva dos diretores à administração da sociedade e (iv) estabelecer outras matérias que estejam sujeitas à concordância do titular das ações ordinárias classe A. Essas 4 hipóteses estão previstas na Lei da SAF, de modo que não se trata - e nem poderia - de uma inovação da IN 112, e devem ser implementadas, quando o caso, nos limites estabelecidos pela própria lei. O item 5, que versa sobre a formação do capital social, reforça a existência da modalidade constitutiva por via do drop down e esclarece que o clube "poderá integralizar a sua parcela ao capital social por meio da transferência à companhia de seus ativos, tais como, não exclusivamente, nome, marca, dísticos, símbolos, propriedades, patrimônio, ativos imobilizados e mobilizados, inclusive registros, licenças, direitos desportivos sobre atletas e sua repercussão econômica". Anote-se que, nos termos do art. 8º da Lei 6.404/76, a contribuição de bens, de qualquer natureza, ao capital dependerá de avaliação a se realizar por empresa especializada ou por três peritos. O item 4 reforça, em nota destacada dos demais temas regulados, que os diretores da SAF deverão ter dedicação exclusiva, observados eventuais critérios estabelecidos no estatuto. O item 8, por fim, orienta sobre as publicações obrigatórias ordenadas em lei, que poderão se realizar por via eletrônica, exclusivamente, pela SAF que tiver receita bruta anual de até R$ 78 milhões, caso que em que a publicação deverá ser mantida no sítio eletrônico pelo prazo de 10 anos. A SAF que apurar receita brutal anual superior ao mencionado patamar deverá, no tocante à publicidade, observar o conteúdo do art. 289 da lei 6.404/76, segundo o qual as publicações serão efetuadas em jornal de grande circulação editado na localidade em que esteja situada a sede da SAF, de forma resumida e com divulgação simultânea da íntegra dos documentos na página do mesmo jornal na internet. Anota-se, por fim, que a publicação da IN 112 deverá contribuir para unificação de procedimentos e entendimentos no âmbito das juntas comerciais, e, com isso, oferecer aos clubes, investidores e demais agentes envolvidos em processos constitutivos de SAF, a necessária segurança em relação aos aspectos registrais.
quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

A SAF e os recentes atos infralegais e regulatórios

Em participação no programa Roda Viva da TV Cultura, no ano de 1992, Telê Santana fez uma defesa contundente da passagem do modelo associativo ao empresarial, no âmbito e na gestão do futebol brasileiro. Mesmo quando confrontado, em perguntas formuladas pelos entrevistadores, com dogmas que impediram, por décadas, a evolução gerencial e o acesso aos mercados de capitais pelos clubes (constituídos sob a forma de associações sem fins lucrativos), Telê Santana não hesitou: a perspectiva do lucro e a sua distribuição entre os acionistas - dentre os quais pode ou deve estar incluído o próprio clube criador da empresa -, não seria jamais um problema; mas sim a solução. Curioso que ele utilizou como exemplo de patologia, impregnada no sistema associativo - e que deixaria de ocorrer em empresas futebolísticas -, a mais corriqueira, inexplicável e suspeita das práticas, consistente na aquisição irresponsável de direitos de jogadores. Dizia ele que os negócios dessa natureza ocorriam - como ainda ocorrem, com raras exceções - sem critério, sem embasamento técnico ou econômico, e geravam, na maioria das vezes, prejuízos, contributivos dos sucessivos déficits anuais. Ele apostava, pois, que isso deixaria de ocorrer com a mudança de modelo.  A entrevista foi concedida em período que antecedeu a Lei Zico, marco da tentativa de criação do clube-empresa no Brasil. Depois desta lei, datada de 1993, a Lei Pelé, de 1998, também pretendeu promover avanços importantes, mas sofreu mutilações justamente na parte relacionada ao tratamento da empresa do futebol, as quais foram patrocinadas pelos lobbys cartolariais. De lá para cá, o Brasil assistiu ao filme das transformações promovidas pelos países que se tornaram hegemônicos, fingindo não ter nada a ver com ele. A conta veio, como todos sabem, e se tentou, com a Lei do Profut, remediar o irremediável buraco financeiro. Não deu certo: o atual estoque de dívidas supera a dezena de bilhões de reais. Aliás, naquela lei também se tentou criar mais um mecanismo de obrigatoriedade de transformação de clube em empresa, em troca de um regime tributário setorial, o que acabou vetado pela Presidente Dilma Rousseff, aparentemente por recomendação do então Ministro da Fazenda, Joaquim Levy. A sofrida história do processo de libertação do futebol do associativismo, que teve como protagonistas alguns dos nomes mais importantes da história do esporte, dentro e fora de campo, como os mencionados ídolos Zico e Pelé, e o jornalista Juca Kfouri, poderá ter chegado ao fim com o advento da lei 14.193/21 ("Lei da SAF"), de autoria do Presidente do Senado Federal - e do Congresso Nacional -, Rodrigo Pacheco (PSD/MG). Desde que a Lei da SAF passou a compor o sistema jurídico, percebem-se movimentos de diversas ordens, que tendem a contribuir e a fazer com que o conteúdo legislativo se acomode e o novo mercado do futebol se organize. Casos como os de Cruzeiro, protagonizado pelo pentacampeão mundial Ronaldo Nazário, e Botafogo, encabeçado pelo norte-americano John Textor, sugerem ao Brasil - e ao mundo - que algo muito relevante pode estar a acontecer por estas bandas - e de fato está, com mais de 10 projetos em estudo. Mas não é apenas no plano clubístico que a movimentação se percebe. As instituições, aparentemente, começam a responder no tocante às suas competências, de modo a enriquecer o arcabouço normativo e, assim, a principiar a construção de ambiente seguro e mais previsível. O DREI - Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração, ao qual compete, dentre outras funções, "supervisionar e coordenar, no plano técnico, os órgãos incumbidos da execução dos serviços de Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins; estabelecer e consolidar, com exclusividade, as normas e diretrizes gerais do Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins; solucionar dúvidas ocorrentes na interpretação das leis, regulamentos e demais normas relacionadas com o registro de empresas mercantis, baixando instruções para esse fim; e prestar orientação às Juntas Comerciais, com vistas à solução de consultas e à observância das normas legais e regulamentares do Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins", dispôs, por meio da Instrução Normativa 112, de 20 de janeiro de 2022, sobre o registro da SAF, de modo que se espera uma padronização de entendimento e de procedimento perante as Juntas Comerciais, constituídas em "órgãos locais, com funções executora e administradora dos serviços de registro" do empresário. O Tribunal de Justiça de São Paulo, na esteira de caso envolvendo a Portuguesa de Desportos, baixou a Resolução 861/2022, modificando determinadas resoluções, para definir que (i) as Varas de Falências e Recuperações Judicias da Comarca de São Paulo serão competentes para processar, julgar e executar os feitos relativos às ações principais, acessórias e conexas relativas ao Regime Centralizado de Execuções ("RCE"), previsto na Lei da SAF, (ii) as Varas Empresariais e de Conflitos relacionados à Arbitragem da 1ª Região Administrativa Judiciária terão competência para todo o Estado de São Paulo, excluída a Comarca da Capital, para as ações principais, acessórias, e conexas relativas ao RCE, (iii) o RCE dar-se-á por intermédio de instauração de concurso de credores, sendo que os processos de execução em curso não serão redistribuídos ao juízo centralizador, e (iv) as Câmaras Reservadas de Direito Empresarial terão competência para julgar ações principais, acessórias e conexas relativas ao RCE. No plano da administração do esporte, a CBF, cujo estatuto prevê, no art. 5º, I, que constitui fim básico, dentre outros, "administrar, dirigir, controlar, fomentar, difundir, incentivar, melhorar, regulamentar e fiscalizar, constantemente e de forma única e exclusiva, a prática de futebol não profissional e profissional, em todo o território nacional", emitiu o Ofício 246/2022, de 18 de janeiro de 2022, mediante o qual pretende orientar os clubes que desejarem iniciar ou estiverem em processo de constituição da SAF, a respeito, dentre outros temas, de (i) cadastro no sistema Gestão Web, (ii) taxas aplicáveis, (iii) registro de atletas e treinadores, (iv) manutenção de vaga em competições e (v) efeitos da constituição da SAF. Começa-se, assim, a formar (mesmo que com algumas lacunas e inconsistências) o ambiente jurídico infralegal e regulatório necessário à implementação e à acomodação da Lei Federal - a Lei da SAF - que poderá, enfim, transformar o ambiente do futebol no Brasil (como, aliás, defendia o visionário Telê Santana).  
quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

O fim do fim da história do São Paulo

Escrevi, neste mesmo espaço, em 20/2/19, artigo cujo título era "o fim da história do São Paulo Futebol Clube". O texto não foi bem recebido. Dirigentes do clube - alguns que considerava e ainda considero amigos - o tomaram como uma crítica dirigida. Não era esse o propósito. Pretendia-se, isso sim, provocar o necessário debate sobre a corrosão do sistema associativo, sustentado pela mais sórdida politicalha, que se refletia - e se reflete - sobre toda estrutura do futebol. Resgato, novamente, o tema. O ponto de partida, após quase três anos, é o mesmo; mas, infelizmente, o de chegada mudou, e para pior - como se antevia, aliás, naquela oportunidade. O São Paulo não vai acabar ou desaparecer. Ele continuará a existir, de algum modo, assim como o Botafogo, o Cruzeiro, a Portuguesa ou o Juventus (da Rua Javari) também permanecem existindo. Não apenas eles: como o Paulistano, primeiro tetracampeão paulista de futebol da história, que mantém sua atuação associativa. Portanto, em 20 ou 30 anos, o São Paulo ainda integrará o plano material. O fim que se afirmava, em 2019, tinha a ver com o encerramento de um ciclo, que chegara ao fim. E realmente chegou - apesar do esforço retórico e político dos dirigentes são paulinos de defenderem a sua continuidade e viabilidade.   O São Paulo foi o melhor do Brasil (e um dos melhores do planeta) enquanto a administração e o ambiente do futebol resistiram às transformações sociais e econômicas, criadoras de uma sociedade conectada, tecnológica, globalmente competitiva e dependente de novos recursos para financiamento da empresa futebolística. Mas deixou de ostentar a posição de vanguarda, que anteriormente lhe coube, a partir do momento em que se ensimesmou e passou a acreditar que, por ser (supostamente) diferente, poderia ignorar a realidade - e criar seu mundo próprio, alimentado por fantasiosas narrativas midiáticas. Lembre-se, a propósito, que, em outros setores, a arrogância (ou a negligência diante dos movimentos disruptivos) destruiu corporações ou instituições outrora reputadas inabaláveis (Blockbuster, Kodak, Atari, Pan Am etc.). Assim, aquele artigo - antecedido por outros com semelhante teor, aliás -, pretendia chamar atenção para o fato de que, se o vanguardismo havia chegado ao fim, dever-se-ia trilhar, necessariamente, um de dois caminhos: (i) o da decadência ou (ii) o da reafirmação de sua história gloriosa, pela reconstrução de suas bases, materializada pela implementação do processo de separação do futebol. Os resultados que (não) se colhem, dentro e fora de campo, há pelo menos 12 anos, comprovam, sem necessidade de qualquer esforço argumentativo, a opção que se fez. E o pior ainda está por vir. Trata-se do desfecho de um projeto de dominação de natureza absolutista, iniciado após as eleições presidenciais de 2020. Inicialmente, foi necessário eliminar os elementos que remetiam ao trabalho do presidente anterior, mesmo que fossem positivos. Daí o boicote, consciente ou inconsciente, ao êxito no campeonato brasileiro. Na sequência, promoveu-se um covarde processo de linchamento público de Daniel Alves, até a sua saída (ou expulsão), pelas portas do fundo. Simultaneamente, apostou-se num evento redentor, um campeonato sem expressão esportiva nos tempos atuais: o São Paulo fez do paulista a sua copa do mundo; e a venceu.   Com o título, formou-se o ambiente para imposição da narrativa da reconstrução e da limpeza das mazelas acumuladas pelas gestões anteriores - das quais, aliás, muitos dos atuais dirigentes fizeram parte, de maneira ativa e essencial. Ou seja: surgia uma administração vencedora que saberia levar o time ao topo, novamente. Apostava-se, porém, para encaminhamento do projeto, numa campanha ao menos razoável no campeonato brasileiro de 2021, sem vexame, para justificar o mais audacioso dos movimentos: a reforma estatutária do clube. Com ela, a direção defenderia que seria possível, enfim, realizar as ações necessárias para afastar a herança do passado e reconstruir as bases do futuro. Para azar de todos os são paulinos - e dos arquitetos da planificação -, os planos, nessa fase, fracassaram. O time realizou a pior campanha de sua história. Mas a politicalha cobra, mesmo assim, o seu preço. O conselho deliberativo estará amanhã, dia 16, diante de uma proposta que representa, na verdade, um explícito plano de dominação, que viabilizará, em resumo, o estrangulamento de qualquer movimento oposicionista, o emprego de técnicas estatutárias de coação de dissidentes, o aparelhamento político dos órgãos administrativos e do futebol e a reeleição, dentre outras medidas que fariam Hugo Chávez vibrar. Se se tratasse de uma questão puramente clubística, sem impactos no futebol, talvez ninguém, ou quase ninguém, se importasse. Mas não é o caso. Como não tem sido há anos. Todos esses fatos, que são apenas alguns no mar de barbaridades que inundam e afogam o futebol, confirmam que, com efeito, aqueles tempos de glória, sob o clubismo, chegaram ao fim. A política - ou a politicalha - se sobrepôs ao que realmente importa. O São Paulo está na mesma encruzilhada de 2019: renovar o pacto com a decadência ou se transformar - o que pressupõe o isolamento dessa realidade nefasta, que não combina com uma empresa futebolística da magnitude do São Paulo -, mediante a separação do futebol do clube.   Parece não haver, com exceção de um ou outro porta-voz envergonhado, uma manifestação pública de apoio à proposta que se votará amanhã. Mesmo assim, tudo indica que os veneráveis conselheiros são-paulinos lavarão suas mãos. Desafia-se, pois, o evidente fim de um ciclo. Pior: casa-se com ele, e se decreta, agora sim, o fim do fim do processo decadencial para mergulhar e incorporar, ao cotidiano são-paulino, a decadência como característica existencial. Enquanto isso, duas dezenas de cartolas festejam suas vitórias pessoais, à conta de quase 20 milhões de são paulinos.
quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Temporada da retomada

Com o retorno do público aos Estádios do Brasil no segundo semestre desse ano, inicialmente com as limitações percentuais e posteriormente com capacidade plena e observância somente dos protocolos definidos (máscara, vacina), o futebol brasileiro consolidou sua retomada em uma temporada que foi ainda confusa por conta do avanço do calendário anterior, conseguindo entregar no mês de dezembro todas as competições regularmente encerradas. O abalo verdadeiro do período pandêmico ainda não é possível ser aferido com exatidão, uma vez que a exemplo do público que ficou metade do exercício de fora, alguns outros fundamentos econômicos dos clubes ainda dependem de recuperação (programas de sócio torcedor, p.ex.), para então sabermos qual é a posição efetiva das associações esportivas no atual momento. Não pode deixar de se considerar, independentemente das contingências e prejuízos vividos por conta da crise sanitária, que o futebol brasileiro e a quase totalidade dos seus maiores clubes já experimentavam situação quase falimentar ao final de 2019, transcorrido dentro de absoluta normalidade, o que se evidenciava pelos números consolidados daquele exercício que por si revelavam o estrangulamento dos caixas em virtude do aumento dos custos dos departamentos de futebol (de 3,8 BI em 2018 para 4,7 BI em 2019) e a elevação das dívidas e obrigações que importavam em somatório devedor na casa de 8 BI, devidos pela elite do futebol doméstico. A temporada da retomada indica ainda a recorrência cada vez maior das equipes ditas grandes em flertar com o descenso e, ainda mais preocupante, a permanência de clubes tradicionais fora da elite e a enorme dificuldade em superar o susto e retornar ao topo logo no ano seguinte ao da queda, fatos que não deixam de ser, lamentavelmente, uma tendência contemporânea. Por outro lado, também vai se configurando a elevação do abismo entre as associações que tem primado pela organização e estruturação, assim despertando interesse de investimentos (cada uma dentro de modo operacional próprio), daquelas que vão se condenando às diminuições de receita, público e torcida, com a corrosão de fundamentos econômicos e, via de consequência, de competitividade e incremento ou fidelização de sua massa torcedora. Com efeito, somando-se ao Flamengo e ao Palmeiras que têm protagonizado grandes conquistas no último triênio, o Atlético Mineiro, a partir de um modelo de "clube de dono", tem trilhado o caminho da consolidação esportiva e financeira, confirmado pela conquista do Brasileiro e da participação na final da Copa do Brasil e, especialmente, pela busca de futuras receitas com a construção de seu próprio equipamento (estádio) esportivo. São várias as novas potencialidades de receitas, disponíveis e acessíveis para todos, a começar pelos próprios patrocínios que hoje vão além da publicidade na camisa e sua exposição em jogos e programas esportivos, mas igualmente na exploração da capilaridade das carteiras dos clubes que são patrocinados, através do interface com o público torcedor objetivando a maximização de lucros e negócios (Palmeiras / FAM - Crefisa é exemplo paradigmático, com o patrocinador usando dados de carteira para maximizar a operação de suas instituições de ensino e financeira).  Existem ainda dentro de um espectro de miríade e oportunidades, diversas outras possibilidades como a nova formatação das transmissões com base na Lei do Mandante, a desejada fundação da Liga, a exploração direta do mercado de apostas, e especialmente das novas relações que são advindas da denominada Lei da Sociedade Anônima do Futebol (Lei Federal 14.193/21). Mesmo não se tratando de panaceia, a legislação que cuida da adoção do modelo empresarial traduz provavelmente o maior êxito da temporada da retomada, aquele "gol" inspirador de uma reação, um permissivo legal que pode galgar as problemáticas associações esportivas, no que tange à sua administração e custeio, a um desejável patamar de sustentabilidade. Ao lado da sua abrangência para o desenvolvimento social e dos meios para seu alcance, referida legislação cuida principalmente da reorganização dos passivos dos endividados clubes e novas formas para seus financiamentos, o que pode render no final do dia, caso a transformação seja bem executada, a obtenção de dividendos e melhora da própria capacidade de manutenção e investimentos na busca de futuras glórias e conquistas, sentido existencial dos times de futebol.   Neste cenário, arrisca-se cravar que poucos clubes poderão não adota-la, outros podem pensar e concluir sem pressa pelo caminho que seja de sua melhor conveniência, enquanto a imensa maioria necessita a adoção imediata, sob pena do sucumbimento de sua própria existência, ao menos daquela existência com a qual figura nas enciclopédias e na história; certamente o novo modelo reverter-se-á não só no ajuste do clube optante, como também no aprimoramento do mercado futebolístico como um todo, mormente consideradas as necessidades de governança, transparência e defesa dos interesses envolvidos, sejam do clube como do seu investidor. A propósito do "novo mercado futebolístico", é evidente que reclama sua redefinição completa e urgente, através de ações como a revisão do produto, do modelo de transmissão, planos de monetização e cooptação de novos torcedores, inserção no E-Sports, estabelecimento de planejamento estratégico de curto, médio e longo prazos, adoção de ferramentas que venham assegurar a transição geracional, aderência a novos mercados como de apostas já citado; vê-se de forma cristalina neste último, a miopia da classe dirigente, que reputa como boa a situação atual onde empresas estrangeiras com sede em ilhas e oceanos exploram sua potencialidade faturando os seus bilhões, enquanto deixam as associações esportivas satisfeitas com migalhas, por exemplo o patrocínio das suas camisas: ora, tal visão não pode ser mais distorcida, clubes devem capitanear esse mercado e não se satisfazerem com ínfima parte de seu sucesso...       A classe dirigente, diante desse quadro, tem a responsabilidade de se organizar internamente e se cotizar conjuntamente, seja no primeiro caso para buscar reerguer os clubes dos quais são mandatários e, no segundo, para se preparar às mesas de negociações onde se pretende seja reinaugurado todo o estado geral do jogo - e das coisas, tarefa hercúlea que envolve tenacidade, desprendimento e coesão, além da convicção que a hora é de construir, empreender, edificar. Mais do que tudo, ou melhor, antes de tudo, é hora de mudança, de aproveitar o momento mais disruptivo da história do futebol brasileiro para torná-lo um grande e próspero negócio, para tanto, a cartolagem deve entender e assumir o seu papel, que é diverso das práticas tacanhas com as quais se guiaram através destes anos todos: como foi vaticinado (*) por Simon Kuper e Stefan Szymanski, "por muito tempo o futebol driblou o iluminismo, os clubes ainda são em sua maioria comandados por pessoas que fazem o que fazem porque sempre procederam da mesma forma": não há mais espaço para tergiversar o assunto, a hora é agora! Mãos à obra, pois! (*) Autores citados na obra - SOCCERNOMICS, Editora Tinta Negra, 2010)
Nos debates que antecederam à entrada em vigor da lei 14.193/2021 ("Lei da SAF") e mesmo após sua edição, discutiu-se a questão da efetiva possibilidade de constituição de clubes-empresa no Brasil, mesmo com a legislação vigente anteriormente. Não é totalmente falso o argumento de que nossos clubes-associação já poderiam se constituir em clubes-empresa mesmo antes da Lei da SAF. Porém, tal constatação não observa e contextualiza a questão como um todo. É, portanto, uma meia verdade. O ordenamento vigente antes da entrada em vigor da Lei da SAF trazia amarras e obstáculos de dificílima superação à constituição do clube-empresa pelos clubes de futebol do Brasil. Clubes como Botafogo de Ribeirão Preto, Red Bull Bragantino e os outros, pouquíssimos que fizeram tal movimento, são, na verdade, exceções que confirmam a regra. A Lei da SAF, visando atender a vontade do legislador enquanto representante da sociedade civil, procurou remover boa parte de tais entraves, como no caso dos aspectos tributários da transmutação. Dentre tais obstáculos, fundamental destacar a disposição vigente do artigo 27, parágrafo 2º da lei 9.615/98 ("Lei Pelé") como estava redigido antes da salutar alteração que lhe foi inserida pelo artigo 34 da Lei da SAF. Para melhor entendimento da questão, deve-se fazer breve digressão histórica. O texto original da Lei Pelé, de março de 1998, "caiu como uma bomba" na forma de organização do futebol brasileiro de então. A Lei Pelé extinguiu o "passe", mudando completamente o parâmetro de relacionamento entre atletas e clubes, entre tantas outras alterações profundas no modelo vigente àquela época. Uma das mudanças de maior relevância, aquela contida no artigo 27 da Lei Pelé original, causou enorme impacto ao estabelecer a obrigatoriedade de os clubes de futebol participantes de competições profissionais de adotarem uma das formas empresariais estabelecidas no Código Civil, abandonando o modelo associativo, conferindo, para tanto, prazo de dois anos contados da entrada em vigor da norma. O status quo do futebol brasileiro resistiu como pôde diante das mudanças propostas pela Lei Pelé. No caso da obrigatoriedade de criação do clube-empresa, o enfrentamento à norma posta se deu sob o razoável argumento da inconstitucionalidade em face da disposição contida no artigo 217, I, da Constituição Federal, que confere autonomia de organização e funcionamento às entendidas esportivas. No ano 2000, pouco mais de dois anos após a entrada em vigor da Lei Pelé, diversos dos seus dispositivos originais foram modificados pela lei 9.981/2000. No caso específico do artigo 27, a lei 9.981/2000 revogou a obrigatoriedade de constituição do clube-empresa, mitigando-a em faculdade. Todavia, a mesma norma introduziu o parágrafo 2º do artigo, que trouxe uma amarra de difícil solução para os clubes que optassem em se constituir como empresas, ao menos para aqueles mais tradicionais, que contam com milhares de associados em seus quadros associativos. O referido parágrafo 2º ao artigo 27 previa que: "a entidade a que se refere este artigo não poderá utilizar seus bens patrimoniais, desportivos ou sociais para integralizar sua parcela de capital ou oferecê-los como garantia, salvo com a concordância da maioria absoluta da assembleia geral dos associados ou sócios e na conformidade do respectivo estatuto ou contrato social." (n.g.)  A prática mostra que em alguns dos grandes clubes do futebol brasileiro, a reunião da maioria absoluta dos associados para a tomada de qualquer deliberação em assembleia geral é tarefa praticamente impossível. Para ilustrar tal quadro, no recém-lançado livro "Comentários à Lei da Sociedade Anônima do Futebol - lei 14.193/2021"1, ao discorrer sobre o artigo 34 da Lei da SAF, trouxemos dados sobre o comparecimento de associados em Assembleias Gerais de eleição de dois dos clubes de maior torcida do Brasil, o Clube de Regatas do Flamengo e o Sport Club Corinthians Paulista. Na última eleição para Presidente do Flamengo, havia mais de 7 mil associados aptos a votar. Porém, compareceram e votaram, efetivamente, à Assembleia Geral, apenas 3.048 eleitores: menos da metade, portanto. Já no Corinthians, em sua última eleição direta para Presidente, 10.550 associados compunham o colégio eleitoral, mas apenas 2.873 participaram da eleição. Ou seja, uma proporção ainda menor. A par da patente crise de legitimidade, constatada a partir do fato de que clubes com 30 ou 40 milhões de torcedores têm suas deliberações fundamentais, inclusive eleições de dirigentes, tomada por alguns milhares de associados, o fato objetivo indica que o associado que, mesmo tendo o direito, não tem interesse em participar da eleição do presidente do clube, dificilmente iria se mobilizar em número significativamente maior para deliberar em assembleia geral convocada para o fim de decidir sobre o árido e, muitas vezes complexo, tema relacionado à eventual destinação de ativos da associação para integralizar capital de companhia voltada à gestão do futebol profissional. Eleições e Assembleias Gerais em outras entidades tradicionais, com milhares de associados, como Clube de Regatas Vasco da Gama, São Paulo Futebol Clube, entre outros, demonstraram os mesmos percentuais de comparecimento de associados. Confirmam, pois, tal constatação. A exigência do quórum de maioria absoluta de todo o corpo associativo servia para sujeitar o interesse daqueles associados favoráveis à constituição da estrutura empresarial ao desinteresse refletido na ausência daqueles para os quais o assunto é irrelevante, inclusive daqueles que, como associados do clube, não são necessariamente torcedores do time de futebol da associação. Além de facilitar eventuais manobras de obstrução, no interesse daqueles que pretendem - e sempre haverá - resistir a toda mudança que implique renúncia de algum poder. Por isso, a mudança no texto do artigo 27, parágrafo 2º, da Lei Pelé, promovida pela Lei da SAF tem importância fundamental para possibilitar a efetividade prática da norma. O dispositivo passou a exigir voto afirmativo "de mais da metade dos associados presentes à assembleia geral, especialmente convocada para deliberar o tema." Sem jamais deixar de levar em consideração a relevância fundamental da consulta aos associados do clube acerca de eventual utilização dos bens da associação para integralização de capital de companhia que venha a gerir o futebol profissional, a correção da norma anterior, com a adoção de um quórum factível para aprovação acaba por ter importância fundamental, vai ao encontro da intenção do legislador de, por meio da Lei da SAF, criar um sistema através do qual o futebol brasileiro possa efetivamente evoluir em todos os aspectos. __________ 1 Vários Autores - Coordenação Rodrigo Monteiro de Castro - Editora Quartier Latin.
O Atlético Mineiro é um dos grandes clubes do Brasil. Sua fanática torcida, composta por aproximadamente 7 milhões de pessoas, não o abandona jamais. Títulos, que não são detalhes, acabam se tornando, paradoxalmente, para ela, detalhes: porque a paixão é incondicional.   Desde 1971, ano em que se sagrou campeão - e o primeiro campeão - brasileiro, amarga uma seca (quase) inexplicável. Levantou, é verdade, muitas outras taças, inclusive a mais importante de todas, a Libertadores da América. Mesmo assim, faltava, em sua história, um reencontro com o êxito no plano nacional. Parece que chegou o momento, enfim. A compreensão da anatomia do título fará bem, não apenas para o futuro do time, como para o futuro do futebol no Brasil. Isso porque o resultado esportivo que se atingirá, mesmo diante de uma crise financeira aguda, não decorre do acaso - e muito menos expressa uma vitória do associativismo. Não me aventurarei a tratar da história política do clube. Tampouco dos movimentos recentes, com o surgimento de importantes mecenas. Longe disso. O foco será o conjunto de fatores, aos olhos de um expectador externo, que viabilizou a ascensão no plano futebolístico. Aliás, os números do Atlético, no início do ano, com base nas demonstrações financeiras de 2020, afetados pela pandemia, eram assustadores: bilionário endividamento em crescimento; e faturamento em queda (além de incompatível com o tamanho do time e de sua torcida, bem como com o tamanho da dívida). Pela lógica associativa, que se revela em praticamente todos os demais clubes, o caos se anunciava - e, com ele, mais um ano de espera. Por mais qualificados que sejam os seus atuais dirigentes - pelo que se ouve, são mesmo -, o problema não se resolveria, como não se resolveu, sem o surgimento de fatores exógenos, os quais, aliás, começaram a se introduzir já há algum tempo. Sabe-se que, no futebol, certas máximas de mercado podem, eventualmente, não funcionar da forma como funcionam empresarialmente. Times milionários e compostos por grandes estrelas também fracassam; por outro lado, organizações mais modestas "encaixam" formações que se revelam e surpreendem a todos. É verdade, mas não costumam se sustentar. Essas experiências devem ser contextualizadas e, quase sempre, tratadas como acidentes. Veja-se, por exemplo, o improvável título da Premier League obtido pelo Leicester na temporada 2015/2016. A realidade é que o futebol se afirmou, nos últimos 30 anos, como um negócio de projeção global. Um negócio diferente, é verdade, porque envolve paixão. Mais do que isso: porque, sendo negócio e esporte, ao mesmo tempo, lida com o elemento transcendental. Não há poeta, eu acho, que tenha até hoje conseguido transformar em palavras o sentimento de um gol. Ou de um título. Pois bem. A conjunção desses fatores indica a complexidade do ambiente da empresa futebolística, que vinha sendo, até o advento da Lei Rodrigo Pacheco (ou Lei da SAF), evitada e combatida, no Brasil, com quase todas as forças. O combate, na maioria das vezes em nome da preservação de um estado de coisas de natureza política e interesseira, dissociada do interesse coletivo, explica, assim, a decadência e o enfraquecimento dos clubes brasileiros. Lembre-se: enquanto, por aqui, se lutava pelo monopólio do associativismo, outros países encontraram soluções para problemas sistêmicos - e, os seus times, isoladamente, para superar suas próprias mazelas. A mudança cultural, que a Lei da SAF deverá estimular, começa a se sentir e ouvir. Certos clubes, como Cruzeiro e Botafogo, anunciaram a contratação de instituições financeiras para apoiar as suas reestruturações. O Athletico Paranaense indica que quer fazer a primeira abertura de capital da história. Surgiu, enfim, o instrumental jurídico para que se forme um pujante ambiente no Brasil. O Galo não passou, pelo menos por enquanto, pelo necessário processo transformacional, viabilizado pela Lei da SAF; mas indicou, a quem quiser ver (ou mesmo a quem quiser negar a realidade), que há somente um caminho para manutenção de um time no topo: planejamento, gestão e, sobretudo, acesso a capital. Por ora, e apesar dos esforços que se praticam sob o ambiente clubístico, o elemento fundamental, para o título, foi um: o capital. Com efeito, sem o fluxo financeiro viabilizador (independentemente da forma adotada) da contratação de alguns dos melhores jogadores sul-americanos, o título, mais uma vez, não teria chegado. Tais jogadores fizeram a diferença. Porém, o modelo adotado não é sustentável. E muito menos replicável. Há apenas uma família Menin no Brasil e ela é devota do Atlético, apenas. A própria família e outros investidores importantes que participaram do êxito do time, assim como também os atleticanos, sabem que, para que o projeto se perenize, os demais elementos do tripé devem se formar; e isso somente ocorrerá sob a estrutura da SAF - que eventualmente viabilizará a possibilidade de todo e qualquer torcedor tornar-se, de fato e de direito, acionista, ou dono, do seu time de coração.  O sucesso do mecenato poderá, assim, levar a um movimento maior, condutor de uma necessária e benfazeja transformação estrutural.   Paralelamente, os demais times brasileiros, que enfrentaram, ao longo do ano, um esquadrão que fará história, também devem ter percebido que, seja sob a intensificação do mecenato, seja sob o modelo de uma futura SAF, terão muita, realmente muita dificuldade de enfrentar o Galo, se não encontrarem meio de financiamento de suas próprias atividades e de construção de grandes elencos. Talvez, por esses motivos, o título do Atlético possa fazer com que se transformem não apenas a forma jurídica das entidades de prática do futebol e o acesso a capitais, mas, em especial, a mentalidade e o sentido de urgência da reformulação estrutural da atividade futebolística no Brasil.
A Lei 14.193/21 instituiu a sociedade anônima do futebol (SAF) e criou instrumentos e incentivos para formação de um microssistema em que ela, a SAF, e apenas ela, terá função nuclear. Trata-se da Lei da SAF, portanto. A Lei da SAF não se confunde, em seu propósito sistematizador, com as leis que tratam do associativismo ou do clube-empresa; os objetos de tutela são distintos - e, de certo modo, incompatíveis. Por isso, o tratamento que lhe vem sendo eventualmente dado, com a alcunha de lei do clube-empresa, está equivocado e não modifica sua natureza e sua estrutura. A SAF e o clube-empresa são institutos distintos. Com efeito, o clube-empresa foi concebido pela Lei Zico, reformado pela Lei Pelé e modificado por leis posteriores, incluindo a Lei do Profut, e não foi substituído pela SAF. Ambos os institutos - o clube-empresa e a SAF - convivem, sem se confundir, mas se sujeitam a regimes jurídicos diferentes.   Ademais, o clube (que também não se confunde com o clube-empresa), por definição, é uma associação civil. Ao se dedicar ao futebol profissional, atrai as normas da Lei Pelé. A mesma que, aliás, regula o clube-empresa. É dentro de seus microssistemas que o clube, em especial, e o clube-empresa, se existente, deverão encontrar os caminhos organizacionais, de manejo e de solucionamento de seus problemas jurídicos, econômicos ou financeiros.   Sendo assim, o sistema jurídico pátrio oferece três formas de organização da atividade futebolística: o clube, o clube-empresa ou a SAF, que são dirigidas por leis próprias. Há na Lei da SAF, é verdade, pontos de contato entre o clube (e o clube-empresa) e a SAF, que servem, sobretudo, para instrumentalizar a criação desta. Não poderia ser de outra maneira, aliás, pois a SAF deverá nascer, com maior frequência, da vontade de um clube (ou mesmo de um clube-empresa), que se transformará em SAF ou a constituirá, por via da cisão (art. 2º da Lei da SAF) ou do drop down (art. 3º da Lei da SAF). A Lei da SAF não criou - e não poderia criar - um muro, como o de Berlim, entre as entidades; inclusive porque, além de, em muitos casos, o clube permanecer acionista da SAF, a Lei se preocupou em oferecer instrumentos que tutelassem interesses e direitos de stakeholders, formados anteriormente ao surgimento da SAF, para protegê-los em decorrência justamente da sua criação. Esses instrumentos, no entanto, não foram oferecidos para que o clube ou o clube-empresa reformulassem as bases dos negócios que praticaram ou para abalar qualquer ato jurídico perfeito. Tampouco para organização ou reorganização isolada de clube. Servem, apenas, no âmbito da criação da SAF. Veja-se, a propósito, que o Capítulo I, intitulado "Da Sociedade Anônima do Futebol", é dividido em seções que tratam (i) de disposições introdutórias, (ii) da constituição da SAF, (iii) da governança da SAF, (iv) das obrigações da SAF e, por fim, (v) do modo de quitação das obrigações. Apesar de a Seção V não mencionar expressamente a SAF, ela não tem como ser isolada do restante da Lei, muito menos aplicada fora do microssistema que se criou. Não se revela, pois, um apêndice da Lei Pelé, a permitir sua utilização pelo clube ou pelo clube-empresa que não passou ao modelo da SAF. Apesar disso, o solucionamento das obrigações existentes dos clubes, pelos próprios clubes, é uma premissa fundamental da Lei. Mesmo assim, não se pretendia - e não se pretende - que a SAF sirva apenas como obstáculo para satisfação de credores anteriores. Ao contrário: ela pode contribuir para resolver um problema estrutural e endêmico, que afeta times e a sociedade em geral. Daí se ter previsto, em uma situação específica, um fluxo obrigatório de recursos da SAF para o clube e um mecanismo de responsabilização subsidiária da SAF. Tal situação envolve o regime de afetação de receitas, previsto no art. 10, segundo o qual "o clube ou pessoa jurídica original é responsável pelo pagamento das obrigações anteriores à constituição da Sociedade Anônima do Futebol, por meio de receitas próprias e das seguintes receitas que lhe serão transferidas pela Sociedade Anônima do Futebol, quando constituída exclusivamente: I - por destinação de 20% (vinte por cento) das receitas correntes mensais auferidas pela Sociedade Anônima do Futebol, conforme plano aprovado pelos credores, nos termos do inciso I do caput do art. 13 desta Lei; II - por destinação de 50% (cinquenta por cento) dos dividendos, dos juros sobre o capital próprio ou de outra remuneração recebida desta, na condição de acionista". Ou seja, a condição necessária da concessão do regime centralizado de execuções (RCE), previsto no mencionado inciso I do art. 13, é o processo constitutivo da SAF. Note-se, a propósito, que a obrigação de pagar deverá ser satisfeita com duas espécies de receitas, necessariamente: receitas próprias, do clube, advindas, por exemplo, de contribuições associativas, e de receitas transferidas pela SAF. A letra "e" serve, pois, como conjunção aditiva. Já o advérbio quando, por sua vez, não se dissocia da Lei e foi empregado para servir como conjunção integrante e proporcional, e não adversativa; de modo que a transferência de suas receitas, no âmbito do RCE - que se somam às receitas próprias -, deverá ocorrer a partir do momento em que o processo de criação da SAF estiver concluído. Em linguagem cotidiana: quando estiver, e não se estiver constituída. Essa construção se integra às normas dos artigos 15 e 24. O art. 15, aplicável apenas à hipótese de adesão ao RCE, concede prazo inicial de 6 anos, ampliável para 10, observadas certas condições, para pagamento de credores do clube, pela perspectiva de ampliação de suas receitas - que advirão da SAF -, e não com o propósito de oferecer moratória aos clubes endividados. Caso os prazos do RCE não sejam observados, os credores ainda contarão com mais um meio de satisfação de seus créditos, que também envolve a SAF: a responsabilização subsidiária, na forma do art. 24: "superado o prazo estabelecido no art. 15 desta Lei, a Sociedade Anônima do Futebol responderá, nos limites estabelecidos no art. 9º desta Lei, subsidiariamente, pelo pagamento das obrigações civis e trabalhistas anteriores à sua constituição, salvo o disposto no art. 19 desta Lei". Assim, não há mistério: previu-se um sistema de satisfação de obrigações anteriores do clube, pelo próprio clube, com condições específicas e especiais, por intermédio do RCE, por conta da perspectiva de melhoria e do aumento do fluxo de recursos que advirão da SAF. Ou seja: o modelo pressupõe a SAF. Portanto, a aplicação isolada da Lei, pelos clubes, para impor unilateralmente novas condições a credores existentes ou para justificar a adesão ao RCE, sob o manto do associativismo, conforme vem sendo admitida por alguns Tribunais, fruto de enorme malabarismo retórico, não encontra guarida na Lei da SAF - tampouco em qualquer outra lei. Há, por fim, uma, e apenas uma exceção, de natureza estrutural, na Lei da SAF, que se dirige ao clube: a novidade da admissão do uso da recuperação judicial, nos termos do art. 25, tema que será abordado oportunamente.
A lei 14.193/21, que criou a recente Sociedade Anônima do Futebol (SAF), dá sinais claríssimos de que trará mudanças estruturais para o futebol brasileiro. No entanto, enquanto alguns clubes e investidores já se preparam para as primeiras criações das novas sociedades, uma parte dos clubes associativos, aproveitando-se de uma interpretação claramente equivocada dos Tribunais, pretende institucionalizar situação que cria injustificados empecilhos para o pagamento de suas dívidas. Afinal, muitos clubes associativos, ou seja, que ainda não se transformaram ou constituíram SAF, estão requerendo e obtendo acolhimento, pelo Poder Judiciário, de pedidos de adesão ao Regime Centralizado de Execução ("RCE"). A Lei 14.193/21 quis garantir que a SAF nascesse "limpa" em relação às dívidas anteriores do clube que a constituiu, cabendo assim ao clube original a responsabilidade pelo pagamento dos débitos passados. Ou seja, foi exatamente para evitar que a constituição da SAF resultasse em um "calotaço" - assim entendido o não pagamento dos credores dos clubes - que o legislador criou o RCE, concedendo novos prazos e procedimentos para o pagamento das dívidas, justamente daqueles clubes que decidissem se transformar em sociedade anônima e, assim, fossem capazes de captar novos recursos e gerar receitas para ajudar no pagamento das antigas dívidas, prevendo obrigação de repasse de 20% das receitas da SAF e 50% dos lucros. Há, portanto, uma lógica na extensão do prazo para o pagamento dos credores - de 6 a 10 anos - pois, em troca, passam a ter uma perspectiva mais segura de recebimento dos créditos. A construção fazia sentido e foi acolhida pelo legislador. Porém, a forma como alguns clubes estão pleiteando, e o Poder Judiciário vem acatando, seguidos pedidos de adesão ao RCE, está beneficiando indevidamente clubes associativos que ainda nada alteraram na sua gestão e não constituíram a SAF, tampouco apresentaram um plano de pagamento dos credores, como previsto no artigo 16 da Lei da SAF, tudo em grave deturpação à finalidade da norma. O equívoco se explica, aparentemente, por uma interpretação literal e isolada do artigo 14 da Lei 14.193/21, quando afirma que clubes e pessoas jurídicas originais poderão aderir ao RCE. Como o artigo 1º da mesma Lei define que "clube" deve ser entendido como associação desportiva, uma primeira leitura do dispositivo passa a impressão de que qualquer clube associativo poderia requerer o RCE sem precisar se transformar em SAF. Um dos autores deste texto, José Francisco C. Manssur, chegou a defender neste mesmo espaço1, que a interpretação isolada do artigo 14 permitiria aos clubes a adesão ao RCE mesmo antes da constituição da SAF. Porém, em livro recém lançado, o autor já manifesta posição contrária2, tendo se rendido à interpretação sistemática da norma e ao próprio conceito de clube, trazido pelo artigo 1º. Além disso, a interpretação teleológica, que afere a real intenção do legislador, motivou a correção do entendimento. "Não me envergonho de mudar de opinião, porque não me envergonho de pensar", disse uma vez Pascal. E não há dúvidas que a melhor interpretação da norma é aquela que permite a adoção do RCE apenas para os clubes ou pessoas jurídicas originárias que se transformarem ou constituírem SAF. Intérprete originário da norma, o Relator do PL 5.516/2019, o Senador Carlos Portinho, já teve a oportunidade de manifestar-se publicamente3 no sentido da possibilidade de concessão do RCE apenas aos clubes que viessem a atribuir à SAF a gestão do futebol. Essa interpretação teleológica, que busca a finalidade objetiva pelo legislador, elegendo-a como fonte do processo interpretativo serve, pois, como melhor maneira de entender o alcance da norma. Mas há outras formas de interpretação que apenas reforçam o entendimento, a começar pela literal, apontada, inicialmente, como principal fundamento para os deferimentos do regime especial a qualquer clube. Afinal, os artigos 13 e 14 da Lei 14.193/21 permitem que o "clube", indicado como sendo uma entidade desportiva constituída sob a forma de associação, poderia requerer o RCE, sem que ali esteja prevista a obrigatoriedade de criação da SAF. No entanto, não é esse o sentido da expressão "clube", referido e explicado na própria Lei da SAF. Quando se refere a "clube" o artigo 1º da Lei 14.193/21 claramente indica as entidades desportivas que se transformarem em SAF, mas que antes eram entidades associativas, contrapondo-se às "pessoas jurídicas originais", que seriam aos clubes transformados em SAF, mas que antes já eram sociedades empresárias. Ou seja, em nenhum momento a Lei da SAF se refere a clube como uma simples entidade de prática desportiva, regida sob a forma de associação, mas sim indicando que a antiga entidade desportiva de deu origem a SAF era uma associação cível ("clube") diferenciando da outra hipótese, que seria a criação de uma SAF a partir de um clube empresa, identificado como "pessoa jurídica original". O conceito serve para indicar como era a entidade de prática desportiva antes da transformação em SAF. Por isso, não existe a possibilidade de um clube associativo se beneficiar do RCE sem antes constituir uma SAF, pois, para fins da Lei da SAF, um "clube" de futebol é apenas uma entidade que se transformou em SAF e, anteriormente, era uma associação cível. Qualquer outra interpretação da norma será desvirtuar o sentido e objetivo da norma, pelo que nem mesmo a alegada interpretação literal permitiria a extensão do RCE aos tradicionais clubes associativos. Também não se pode falar que a limitação do RCE aos clubes que constituírem SAF poderia ferir a isonomia entre as entidades, pois o regime constitui claro incentivo à adoção da sociedade empresária, disponível a todos os clubes. Como o incentivo está ao alcance de todos, não se pode falar em discriminação, ainda mais quando o modelo visa "aprimorar o ecossistema do futebol brasileiro." Ainda sob a égide da interpretação sistemática, há vários dispositivos da própria Lei da SAF que apontam para a correta conclusão de que o clube a ser beneficiado pelo RCE somente pode ser aquele que constituiu a SAF, como ocorre com o art. 2º, ao prever que uma SAF poderá ser constituída, sempre a partir de um "clube" ou "pessoa jurídica original", por meio de transformação, cisão ou transferência de patrimônio. Ou seja, a Lei deixa claro que, um "clube" sempre deve ser visto como uma entidade de prática que deu origem à SAF, exatamente como ocorre quando prescreve que "a Sociedade Anônima do Futebol emitirá obrigatoriamente ações ordinárias da classe A para subscrição exclusivamente pelo Clube ou Pessoa Jurídica Original que a constituiu. O mesmo ocorre com os artigos 14 e 18 da Lei 14.193/21 que destinam as receitas da SAF para garantir o pagamento do RCE, como previsto no art. 10, pressupondo a existência de uma SAF. Se um clube constituído como associação pudesse se beneficiar do RCE, não haveria como auferir as receitas previstas no art. 10 da Lei da 14.193/2021. Sob a ótica dos credores, é fundamental destacar o direito ao recebimento do que lhe é devido, o que não apresenta nenhuma perspectiva de acontecer apenas a partir do aumento dos prazos, sem o acréscimo de novas receitas e novos modelos de gestão e governança que somente advirão com a constituição da SAF. As decisões que deferem "antecipação de tutela" para concessão do RCE antes mesmo da apresentação do plano de pagamentos e dos documentos exigidos pelo artigo 16 da Lei nos parecem, em princípio, carentes do requisito essencial do fundamento do bom direito. Afinal, o deferimento do pedido de RCE está condicionado ao exame da razoabilidade do plano de pagamentos apresentado pelo devedor, acrescido da análise dos documentos exigidos, demonstrando, minimamente, as condições financeiras do clube e sua possibilidade de pagamento das dívidas apontadas. Deferir RCE antes de examinar a razoabilidade do plano de pagamentos e os dados trazidos pelos documentos obrigatórios, acaba por diminuir a efetividade da norma, trazendo insegurança quanto ao efetivo recebimento dos valores.  Porém, ainda mais graves são os casos em que se determinou suspensão de penhoras e constrições ainda antes da apresentação do plano de pagamentos e, como tal, antes mesmo que seja dado início ao cumprimento do plano com a realização dos pagamentos. O artigo 23 da Lei da SAF é bastante claro ao determinar que a não realização de constrição se dará "enquanto o clube ou pessoa jurídica original cumprir os pagamentos previstos"4 na seção que trata do RCE. Ora, como é possível, então, impedir penhoras antes de o devedor ao menos iniciar a realização dos pagamentos, para que se possa aferir sua regularidade? Trata-se de ofensa frontal ao texto legal, verdadeiro açodamento que se opera desequilibrando a relação entre devedor e credor, no caso, deixando de conceder benefício ao bom pagador, mas, ao contrário, privilegiando aquele sobre o qual não há qualquer garantia sobre a capacidade ou mesmo intenção de sanar a dívida. Por tudo quanto acima exposto, para que a Lei 14.193/21 atinja seus objetivos e finalidades, é fundamental que o bom modelo do RCE seja conferido apenas aos clubes que constituírem SAF e, outrossim, que qualquer possibilidade de suspensão de penhoras seja admitida apenas àqueles que, além da constituição da SAF, apresentem plano de pagamento justificável e razoável, além de já estarem cumprindo regularmente tal plano. Sem isso, o instrumento criado para ajudar na transformação dos clubes brasileiros, servirá apenas para postergar suas dívidas e institucionalizar o calote. _____________ 1 Disponível em:  https://www.migalhas.com.br/coluna/meio-de-campo/350972/o-modo-de-quitacao-de-dividas-previsto-na-lei-14-193-21?. Acesso em 02 de setembro de 2021 2 Comentários à Lei da Sociedade Anônima do Futebol; Lei nº 14.193/2021 - Editora Quartier Latin  - Coordenação; Rodrigo R. Monteiro de Castro; Autores; Carlos E. Ambiel; José Francisco C. Manssur; Juliana Bumachar; Marcelo Sacramone; Tácio Lacerda Gama; Rodrigo R. Monteiro de Castro (Autor) 3 https://twitter.com/carlosfportinho?ref_src=twsrc%5Egoogle%7Ctwcamp%5Eserp%7Ctwgr%5Eauthor Carlos Portinho @carlosfportinho 8 de nov Nao amigo @rodrigocapelo . A lei ê para SAF. Evidente no texto. O problema q não aborda é o Judiciário mais uma vez legislar onde não há lacuna. Não precisaram antes da lei da SAF, posterior, para isso. O erro está no judiciário se valer dela p/clubes Asso. qdo a norma é para SAF  4 "Art. 23.  Enquanto o clube ou pessoa jurídica original cumprir os pagamentos previstos nesta Seção, é vedada qualquer forma de constrição ao patrimônio ou às receitas, por penhora ou ordem de bloqueio de valores de qualquer natureza ou espécie sobre as suas receitas"
quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Sobre os vetos à lei 14.193/21 (Lei da SAF)

A lei 14.193/21, de autoria do Senador da República Rodrigo Pacheco, foi aprovada por unanimidade no Senado Federal e, na Câmara dos Deputados, com 427 votos favoráveis e apenas 7 contrários. Ao ser encaminhada para sanção presidencial sofreu - apesar da vontade popular manifestada por intermédio dos congressistas -, vetos relevantes, que foram, posteriormente, derrubados pelo Congresso Nacional. Alguns, contudo, persistiram, a despeito dos esforços para demover a Presidência da República de suas convicções equivocadas. Um deles envolvia o parágrafo único do art. 6º, que tinha a seguinte redação: "O disposto no caput deste artigo aplica-se também ao fundo de investimento, que, por meio de sua instituição administradora, deve informar à Sociedade Anônima do Futebol o nome dos cotistas que sejam titulares de cotas correspondentes a 10% (dez por cento) ou mais do patrimônio, se houver." O caput prevê que "A pessoa jurídica que detiver participação igual ou superior a 5% (cinco por cento) do capital social da Sociedade Anônima do Futebol deverá informar a esta, assim como à entidade nacional de administração do desporto, o nome, a qualificação, o endereço e os dados de contato da pessoa natural que, direta ou indiretamente, exerça o seu controle ou que seja a beneficiária final, sob pena de suspensão dos direitos políticos e retenção dos dividendos, dos juros sobre o capital próprio ou de outra forma de remuneração declarados, até o cumprimento desse dever." Justificou-se o veto com base no temor de que a norma afugentaria fundos interessados na aplicação de recursos no futebol. Não se apresentou evidência de que isso aconteceria e de que, se o caso, o impacto seria relevante. Sobretudo porque o mercado do futebol não carecerá de falta de liquidez. Há recursos disponíveis e abundantes no Brasil e no exterior para projetos bem estruturados. O que faltava, e foi suprido com a Lei da SAF, era um marco legal que trouxesse segurança jurídica e previsibilidade. Ademais, os responsáveis pelo veto não olharam, por outro lado, para o propósito da norma: a sinalização de que o mercado que se pretende formar deve ser construído sobre transparência absoluta. O sinal se justificava pela natureza da atividade futebolística e pela obscuridade das iniciativas realizadas sob a égide de leis que antecederam a Lei da SAF. O parágrafo único do art. 6º, aliás, não impediria a participação de fundos de investimento, como se pretendeu afirmar. Deles se exigiria, caso realmente quisessem entrar e se beneficiar de oportunidades nascentes, que fornecessem informações específicas sobre cotistas que ostentassem determinadas posições. Apenas isso. Outro veto que resistiu ao esforço para derrubá-lo consiste no inciso I do art. 8º, que determinava que certas informações sobre a composição acionária da SAF, como indicação do nome, da quantidade de ações e do percentual no capital detidos por cada acionista deveriam ser publicadas no  sítio eletrônico da companhia. O texto era o seguinte: "Art. 8º A Sociedade Anônima do Futebol manterá em seu sítio eletrônico: I - informações sobre sua composição acionária, com indicação do nome, da quantidade de ações e do percentual detido por cada acionista, inclusive, no caso de pessoas jurídicas, dos seus beneficiários finais, nos termos do art. 6º desta Lei; (...)". A motivação do veto foi externada na Mensagem 388, com o seguinte conteúdo: "Todavia, em que pese se reconheça o mérito da proposta, a medida contraria o interesse público, pois implicaria em um desnecessário sistema administrativo de controle e reporte de participações pouco relevantes para a governança da Sociedade Anônima do Futebol, além de desestimular o ingresso de tais sociedades no mercado de capitais, quando a amplitude e a rotatividade de suas bases acionárias tenderiam a atingir níveis elevados. Ademais, o dispositivo poderia ensejar no desestímulo ao investimento minoritário nas Sociedades Anônimas do Futebol, visto que promoveria uma excessiva exposição de posições financeiras de investidores. Por fim, verifica-se, também, que o texto está em descompasso com o § 1º do art. 100, da Lei 6.404, de 15 de dezembro de 1976, o qual estabelece a divulgação de participação acionária, mediante certidão, 'a qualquer pessoa, desde que se destinem a defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal ou dos acionistas ou do mercado de valores mobiliários'. Assim, a divulgação indiscriminada de sua composição acionária pela Sociedade Anônima do Futebol, com a indicação do nome, da quantidade de ações e do percentual detido por cada acionista, acabaria por contrariar a própria sistemática da referida propositura."   Os argumentos colidem com os princípios formadores da proposta de criação do novo mercado do futebol, quais sejam, transparência, publicidade, controle, segurança jurídica e sustentabilidade, que se justificam pela característica única da atividade futebolística. Eventual exposição que a norma pudesse acarretar deveria ser vista como contrapartida necessária ao ingresso no novo mercado, que não pode estimular ou compactuar com a ocultação da origem do investidor. Nesse sentido, aliás, não cabe a uma lei societária específica afirmar que tal pessoa pode ou não investir na SAF; mas ela pode - e deve - zelar para que o torcedor e a sociedade em geral saibam quem essa pessoa é. Daí, se o clube, que será na origem o controlador da SAF, quererá ou não entabular algum tipo de negócio com tal pessoa, passará a ser uma decisão interna de seus associados - e, eventualmente, de seus torcedores. Por fim, o argumento de que o inciso não se coadunaria com a sistemática da lei 6.404/76 também é equivocado. A SAF se sujeita a certas regras exclusivas -poucas é verdade - porém arquitetadas para formação de um microssistema próprio. Em relação ao seu conteúdo restrito, que se aplica apenas a ela, cria-se um modelo de sobreposição à lei do anonimato. Inexistiria, pois, antinomia; apenas uma opção legislativa por um nível maior de informação e transparência para companhias do futebol, sujeitas à lei 14.193/21. Resta, porém, uma boa notícia: apesar dos vetos, que trariam mais transparência e informação ao sistema, a estrutura fundamental do projeto de criação da SAF foi preservada, e a nova Lei surge como um fio de esperança para o resgate e o desenvolvimento esportivo, econômico e social da atividade no Brasil.
quarta-feira, 27 de outubro de 2021

O São Paulo Futebol Clube e os seus técnicos

Tenho um querido amigo que se diz um pouco frustrado por não ter casado. Acha que não teve sorte em seus relacionamentos - que não foram poucos. Sem qualquer juízo de valor ou proposição sexista (ou machista) - ao contrário -, acho que já o vi, sem exagero, com umas cinquenta namoradas (sem contar as dezenas de relações fugazes), com as características das mais distintas: famosas ou não, atrizes ou profissionais liberais, intelectuais ou alienadas, progressistas ou conservadoras, esportistas ou sedentárias, altas ou baixas, nacionais ou estrangeiras; enfim, já nem consigo mais agrupá-las, tamanha a diversidade. Aliás, as pessoas que vivem ao seu redor não querem mais se afeiçoar porque, ao final de cada história, curta ou relativamente longa para os padrões dele, que invariavelmente se inicia com o ímpeto da novidade - mesmo quando se trata de uma tentativa de resgate relacional -, termina com as justificativas mais variadas, algumas reincidentes, que poderiam até ser agrupadas de modo a se identificar padrões de condutas em função das características da ex. Em comum, a exteriorização (ou projeção) das mazelas. Afinal, como diria Jean-Paul Sartre, o inferno são os outros. Talvez. Mas, também talvez, o diabo sejamos nós. Essa narrativa me faz lembrar o São Paulo e a sua relação mais recente com os seus técnicos, inaugurada a partir dos primeiros sinais de decadência política, moral e esportiva - cuja revelação coincide com o fim de sua hegemonia, marcada pelo tricampeonato brasileiro consecutivo. De lá para cá, após a saída do tricampeão Muricy Ramalho, a lista é extensa: Ricardo Gomes (mais de uma vez), Paulo César Carpegiani, Adílson Batista, Émerson Leão, Ney Franco, Paulo Autuori, Muricy (novamente), Juan Carlos Osorio, Doriva, Edgardo Bauza, Rogério Ceni, Dorival Júnior, Diego Aguirre, André Jardine, Cuca, Fernando Diniz, Hernán Crespo e, novamente, Rogério Ceni. Sem contar as soluções caseiras ou improvisadas, envolvendo Milton Cruz, Sérgio Baresi, Pintado, Vagner Mancini e Vizolli. Aí estão técnicos de pelo menos 4 países (incluindo o Brasil), dotados das mais distintas características, qualidades e defeitos, e que foram, com raríssimas exceções, triturados pela máquina de moer tricolor. Alguns foram realmente mal; outros bem. Pouco importa, de todo modo, para a reflexão que aqui se faz. Importa a investigação da origem do problema (apesar da relevância do efeito). E aí seria desonesto afirmar que - assim como na situação do meu amigo e suas namoradas - todos os técnicos não entenderam o São Paulo. Ou não absorveram a sua linha de atuação. Ou erraram no padrão de jogo que se pretendia impor. Ou não perceberam que o São Paulo é diferente. Ou... Até porque, alguns deles se projetaram por lá, no Morumbi, e fazem parte de sua história. Conhecem suas entranhas. Outros saíram e voltaram (casos de Carpegiani, Cuca e Ricardo Gomes), de modo que, se houvesse alguma incompatibilidade, não teriam sido recontratados. E heróis de grandes vitórias, como Paulo Autuori, foram resgatados para, na sequência, caírem sem as glórias pelas quais devem ser lembrados e celebrados. Partindo-se, pois, da premissa de que, excluindo-se alguns poucos treinadores que, realmente, não fizeram nenhum sentido, a maioria é qualificada e vitoriosa, e, mesmo que tivesse - como as 50 namoradas do meu amigo -, alguma parcela de culpa, a culpa maior esteve e está no empregador: isto é, no São Paulo. Diz-se, com frequência, que treinadores, mesmo após inícios vigorosos, perdem o controle do vestiário. Foi o que se afirmou sobre Crespo (olhando de fora, a mais acertada aposta desde 2009). Ora, se de fato um treinador com a história e as qualidades do argentino não conseguiu controlar um grupo de jogadores que não se notabiliza, com raras exceções, pelas suas conquistas, é porque não teve apoio de quem estava acima dele. Inclusive para peitar e afastar problemas que, talvez, cada um a seu tempo, tenham inviabilizado outros bons treinadores. Assim se justifica a volta de Rogério Ceni: um movimento (perigosamente) populista, encobridor das corrosões estruturais que ele, Rogério, também não resolverá. Ao contrário: as intensificará, paradoxalmente, sobretudo se for bem-sucedido em sua missão de salvar o time do rebaixamento e o levar à Libertadores. Pois ele é a aposta (e o sonho) do continuísmo (que elegeu, é importante que o torcedor jamais se esqueça, o campeonato paulista como a nova copa do mundo são-paulina). Rogério sabe disso, como sabia em sua primeira passagem que fora contratado como escudo de proteção da diretoria. Tanto que impôs, como condição de assinatura de contrato, uma multa pornográfica para um novato que, a rigor, naquele momento, poderia ter trabalhado graciosamente para aprender a nova profissão. Como de fato aprendeu. Tão bem que, além de colecionador de títulos como técnico, deverá receber nova multa se for malsucedido em sua missão messiânica ou se os jogadores passarem, como ocorreu com Crespo, a não entender a sua proposta de trabalho - e pedirem a sua cabeça. E assim a linhagem cartolarial que vem há anos reduzindo o tricampeão da libertadores e do mundial a campeão paulista dirá - como aquele meu amigo, em relação às suas namoradas - que Ceni não era para o São Paulo. Pois o São Paulo é diferente. É soberano.
quarta-feira, 20 de outubro de 2021

A debênture-fut (criada pela Lei Rodrigo Pacheco)

Debênture é uma espécie de valor mobiliário que confere aos seus titulares direito de crédito contra a companhia emissora, nas condições da escritura de emissão. As companhias, em geral, podem emiti-las, na forma da Lei das Sociedades Anônimas (lei 6.404/76). A Lei Rodrigo Pacheco (lei 14.193/21) criou nova espécie de debênture, específica para SAF. Assim, a SAF, e somente ela, poderá emitir a debênture-fut, concebida para financiamento das atividades futebolísticas e conexas.  Algumas condições deverão ser observadas, necessariamente, pela SAF, em relação à emissão que fizer, tais como: fixação de remuneração por taxa de juros pré-fixada, que não poderá ser inferior ao rendimento anualizado da caderneta de poupança (autorizando-se, no entanto, a estipulação, cumulativa, de remuneração variável vinculada às atividades ou aos ativos da SAF); prazo igual ou superior a 2 anos; vedação à recompra da debênture-fut pela SAF ou por parte a ela relacionada, bem como à liquidação antecipada por meio de resgate ou pré-pagamento, salvo na forma a ser regulamentada pela CVM; pagamento periódico de rendimentos; e registro da debênture-fut em sistema devidamente autorizado pelo Bacen ou pela CVM, nas suas respectivas áreas de competência.  Anote-se que, ao fixar taxa remuneratória mínima, a Lei Rodrigo Pacheco atendeu à legítima preocupação que sempre norteou os debates relacionados ao acesso ao mercado de capitais pelos clubes, decorrente de possível (ou provável) malversação de seus propósitos, à conta da poupança do torcedor. Além da taxa mínima, a debênture-fut pode ser oferecida com o incremento de parcela variável, de modo a lhe conferir maior atratividade. Imagine-se, nesse sentido, que determinada debênture-fut ofereça o pagamento de taxa fixa de 8% ao ano, além de um percentual, por exemplo, de 4% da renda líquida obtida em jogos sob mando do time. Essa combinação não apenas indicaria retorno ao investidor superior ao que se obteria em aplicações conservadoras (poupança ou determinados fundos de menor risco), como abriria a possibilidade de obtenção de ganho complementar, associado à performance do time e à capacidade de mobilização da torcida. No plano procedimental, a emissão da debênture-fut deverá observar o conteúdo do Capítulo V da lei 6.404/76 - exceto, óbvio, em relação aos aspectos expressamente regulados pela Lei da SAF. A SAF poderá emitir debêntures conversíveis em ações, observadas as condições constantes da escritura de emissão, que deverá especificar: "I - as bases da conversão, seja em número de ações em que poderá ser convertida cada debênture, seja como relação entre o valor nominal da debênture e o preço de emissão das ações; II - a espécie e a classe das ações em que poderá ser convertida; III - o prazo ou época para o exercício do direito à conversão; IV - as demais condições a que a conversão acaso fique sujeita". A conversão deverá resultar na diluição dos acionistas existentes. Por isso, o parágrafo 1º do art. 57 da lei 6.404/76 outorga para aqueles o direito de preferência para subscrever a emissão, nas proporções de suas participações no capital da SAF. O direito se aplica apenas à subscrição, portanto, e não à conversão em novas ações. Logo, se determinado acionista não exercer o direito e, assim, subscrever debêntures, não poderá, posteriormente, resistir à conversibilidade. Além da debênture-fut, a SAF poderá emitir qualquer outro valor mobiliário disponível às companhias em geral, exceto aqueles que, pela natureza ou pelas características, inclusive do emissor, não lhe sejam admitidos. Assim, por exemplo, eventual valor mobiliário disponível apenas às instituições financeiras não se estenderá à SAF. Vale, por fim, uma nota de lamento. A presidência da república vetou o modelo específico de tributação, proposto nos moldes das debêntures de infraestrutura. Haviam sido previstas as seguintes alíquotas incidentes sobre os rendimentos oriundos da debênture-fut: zero para pessoas físicas residentes no Brasil e 15% para pessoas jurídicas domiciliadas no País ou para investidor com domicílio no exterior.  Incentivos dessa natureza têm um ótimo histórico no nosso país e números que permitem demonstrar que as receitas tributárias que geram compensam em muito qualquer eventual renúncia fiscal que se fizesse. Basta analisar a fonte próxima de inspiração da debênture-fut: a de infraestrutura. Essa se converteu em poderoso instrumento de fomento à atividade de construção civil. O tratamento fiscal favorável para a debênture-fut tornaria os investimentos mais vantajosos e profissionais. Por outro lado, ofereceria fonte expressiva de recursos para que os times de futebol pudessem promover investimentos relevantes em sintonia com o seu estatuto e a lei.  De todo modo, a debênture-fut, como instrumento (e simbologia) de uma política pública voltada à atração de recursos e investimentos para a atividade futebolística, foi preservada; e ainda com características interessantes. Poderá, portanto, sob a lógica geral de tributação, ser adotada em projetos de recuperação e reorganização empresarial e societária, pela SAF.
A frase não é minha; e lamento por isso. Porque é muito feliz. Ou triste, dependendo do ponto de vista. Mas é irretocável. O autor, Gil Rossetti, querido amigo, advogado e palmeirense roxo, ou melhor, verde e branco, foi forjado na dificuldade, na agonia, na dor do jejum de títulos. Construiu-a, pois, com propriedade.   Viu seu time ser chacoteado, assim como ele também o foi, anos seguidos, pela incapacidade (e incompetência) de agrupamentos cartolariais, que colocavam seus interesses no lugar dos interesses do time - e da torcida. Ele, e os demais torcedores, assistiram, durante anos, ou décadas, a corneta tocar, o amendoim voar, as intrigas corroerem a história de um time glorioso. O clube vivia em função da política, que afetava o futebol, colocado, então, como coadjuvante de pretensões pessoais. Mas aquele, ou aqueles (pela longevidade), foram outros tempos. O sistema clubístico, dominado pela política rasa, não cobrava a fatura como cobra nos dias atuais. O futebol, como um todo, não movimentava as cifras que, eventualmente, apenas um jogador isolado movimenta hoje. As receitas eram limitadas. O mercado futebolístico ainda ensaiava a globalização. Times europeus estavam sujeitos a limites de contratação. Não havia internet e meios alternativos de exposição de marca. Atletas passavam mais tempo no Brasil do que no exterior; sonhavam em brilhar com as camisas dos times brasileiros, e não em usá-las como trampolins para equipes estrangeiras. O sistema ainda era relativamente fechado e regionalizado, e a ausência de títulos não era condição suficiente para construção de fossos intransponíveis entre campeões e perdedores. Bastava um êxito, mesmo que regional, para diminuir o distanciamento e impor uma rápida reaproximação em relação ao time ou ao grupo predominante. Foi nesse ambiente que o São Paulo se sobressaiu. Nele, foi o melhor. Durante anos (ou décadas), organizou-se como nenhum outro. Tinha problemas ou desavenças políticas. Mas se resolviam internamente. Seus cardeais, ou conselheiros com espírito tricolor evoluído, continham as mazelas e impediam a proliferação da bagunça. Externamente, era uma unidade. Os jogadores eram preservados. A instituição era preservada. O São Paulo era preservado. Soube-se, ademais, ousar; tomar decisões arriscadas, as quais colocaram o clube na vanguarda: a construção de um estádio em bairro afastado, bem como os investimentos em centro de treinamento, em estrutura para formação de jovens jogadores e num departamento médico sofisticadíssimo. Jogar no Morumbi era um peso para qualquer time. Certa vez, aliás, o Presidente do Athletico Paranaense, Mario Celso Petraglia, em uma conversa pública com o autor deste texto, reconheceu essa situação (ou sensação); o que não era à toa. Não mesmo. O São Paulo atingiu resultados impressionantes: três finais seguidas de libertadores, seguidas por mais duas anos depois, totalizando cinco, em pouco mais de dez anos, consagrando-se campeão em três delas; três finais e três títulos mundiais, no mesmo período, derrubando os gigantescos Barcelona, Milan e Liverpool; outros títulos internacionais e sul-americanos; e o inédito tricampeonato brasileiro consecutivo. Ganhou paulistas também. Alguns muito importantes, como: o de 1992, com três gols de Raí sobre o Corinthians; o de 1993, sobre o Palmeiras, com mais três gols de Raí; e ainda o de 1998, contra o Corinthians, com nova exibição de gala do maior jogador da história do clube, que desembarcou, na semana do jogo, para marcar seu gol de cabeça e levantar a taça. Os campeonatos paulistas eram importantes, mas nem tanto. Talvez fossem, naquela época, para Corinthians, que saiu da fila em um jogo envolto em polêmicas, contra a Ponte Preta, em 1977; ou para o próprio Palmeiras, que precisou de vultosos recursos de um patrocinador internacional e da formação de um time-seleção, para, momentaneamente, bater o São Paulo, em 1993. O São Paulo flutuava em outra dimensão. Lembre-se, aliás: havia resgatado a Libertadores, desprezada pela Globo, que também desprezara Galvão Bueno. Foi pela CNT/Gazeta que o Brasil, sob a voz emocionada do narrador (ciente de que, ali, ressurgiria das cinzas, como fênix), testemunhou, em 1992, o sentimento e a ligação que, desde 1974, sua torcida mantinha com aquele torneio. Mais do que isso: com o planejamento, com o vanguardismo, com a vitória, com o protagonismo e com o seu papel central na história do futebol brasileiro.   Foi assim que se forjou um time quase invencível no Morumbi - e que, até 2006, jamais havia sido batido por um brasileiro, em libertadores, tendo assim sido construído um ambiente respeitado e admirado (e invejado). Um lugar para onde jogadores se dirigiam, com vistas à recuperação física ou psicológica, mesmo que, após o tratamento, não vestissem a camisa tricolor (por uma decisão do clube, quase sempre). Adriano, o Imperador, talvez tenha tido, com a camisa do São Paulo, seu último grande momento em carreira que poderia ter sido grandiosa. Pois bem. Situações que, antes, pareciam improváveis, começaram a se verificar (não necessariamente de maneira simultânea). A cartolagem são-paulina bebeu na fonte da soberba. Acreditou que era diferente, que o São Paulo era diferente, que as coisas ali eram diferentes. Em outras palavras, que era melhor, mais inteligente, com origem diferenciada. Pessoas passaram a acreditar que eram essenciais, sobrepondo-se à instituição. Daí se reformou o estatuto social, para preservação da posição de um presidente (inegavelmente competente). Mesmo assim, injustificável. Era o sinal de que as regras e as instituições poderiam ser manipuladas, achincalhadas. A politicalha se exacerbou. Deu-se início à formação de uma espécie de centrão, dirigido por interesses grupais. Os conflitos internos pularam os muros do Morumbi. Rixas pessoais se tornaram públicas. Fofoqueiros de plantão disseminaram verdades (que não interessavam ao futebol, apenas a fins políticos) e inverdades. A reforma do estádio foi barrada pelo conselho deliberativo. Certo presidente se envolveu em luta física e se afastou. O novo estatuto, aprovado por confortável maioria, foi interpretado e utilizado para manutenção do cartolismo - e dos interesses de grupos políticos. O estudo de separação do futebol, exigência do novo estatuto, que sugeria a criação de uma companhia, nos moldes dos mais exitosos times europeus da atualidade, foi engavetado pelo conselho de administração. Os demais órgãos, deliberativo e consultivo, compactuaram com o engavetamento. Não interessava aos fins políticos (e pessoais) que se apoderaram do (e apodrecem o) São Paulo. Apesar de tudo, após anos de fila, o time parecia maduro para, enfim, ganhar um campeonato nacional. Mas a sucessão presidencial foi desastrosa. Da liderança isolada, e com folga, a poucos jogos do encerramento do campeonato, o time quase não se classificou para Libertadores. Atribui-se a culpa ao treinador - o mesmo que levara aquele time à ponta da tabela. E a um jogador, o maior ganhador de títulos da história, que (a justiça ainda lhe será feita) não era o problema, mas a solução. Depois, a atual diretoria passou a desprezar, publicamente, o símbolo máximo do desejo da torcida, a Libertadores, e transformou um campeonato irrelevante, o paulista, em copa do mundo. Pior ainda: comprometeu a temporada, seus jogadores, suas finanças, em nome de uma narrativa insustentável, que se preserva apenas no ambiente das redes sociais. Justificaram-se os problemas e os fracassos apontando os dedos às administrações anteriores, ao endividamento, às contratações equivocadas - como se as atuais produzissem efeitos diversos; enfim, a tudo aquilo que todos já sabiam e ainda sabem, e que não justificam os erros próprios. Sem falar que o clube se tornou uma máquina de moer reputações, ídolos, jogadores e sonhos. Enquanto isso, o Palmeiras tomou a decisão mais importante de sua história: a troca de um estádio obsoleto por uma moderníssima e imponente arena. Reencontrou, a partir da construção, a identificação com a torcida (não aquela que, na vitória ou na derrota, sempre esteve presente). Reinventou-se. Novos produtos, novos serviços, novas narrativas. Teve a sorte de eleger um presidente-mecenas, que comandou o trabalho de equalização das contas e da reorganização administrativa. A transição presidencial foi realizada sem rupturas (apesar dos amargores pessoais). As rixas internas, não obstante a permanente tentação da expiação pública, passaram a ser resolvidas com surpreendente rapidez - e internamente. Surgiu novo (ou nova) mecenas; que não é mecenas propriamente, na verdade. E que sabe, como poucos ou poucas, a mina que tem nas mãos. O time chegou a duas finais consecutivas de libertadores. E a futura presidente, se fizer o que sabe que deve fazer, constituirá uma SAF, irá a mercado e criará um canal, talvez perene, de acesso a capitais. E assim projetará seu time para o planeta. Quando a soberana, ou soberba, administração tricolor acordar, será tarde: o tempo perdido, ao contrário do que ocorria nas décadas de 1970, 1980 ou 1990, não se recupera mais. A cada ano, o distanciamento significa 200, 300, 400 milhões de entradas, e cifras similares de endividamento. Qualquer criança, ainda com rudimentares noções de matemática, entenderá que o hiato não se aproximará. A velocidade do mundo contemporâneo é implacável com a desídia. A palmeirização do São Paulo, levando-se em conta o que este clube foi no passado, talvez seja irreversível, se não for contida imediatamente. O único caminho é a libertação do sistema clubístico, que ignora, usa e abusa de quase 20 milhões de torcedores.
O art. 20 da lei 14.193/21 ("Lei da SAF" ou "Lei Rodrigo Pacheco") prevê que "ao credor, titular do crédito, é facultada a conversão, no todo ou em parte, da dívida do clube ou pessoa jurídica original em ações da Sociedade Anônima do Futebol ou em títulos por ela emitidos, desde que previsto em seu estatuto". Essa solução apresenta alguma semelhança com o conteúdo da Lei de Recuperação de Empresas; mas há uma diferença fundamental: enquanto esta regula a conversão de crédito detido contra o próprio devedor, a Lei Rodrigo Pacheco versa sobre a conversão de crédito em capital de terceira pessoa, a SAF, que não é devedora e que não se confunde com o clube (que é o devedor do titular do crédito). Do pondo de vista do credor, a conversão é uma faculdade, e não um dever. Caso pretenda promover a conversão, deverá, contudo, negociar e obter a aprovação dos acionistas da SAF, reunidos em assembleia geral, que não estão obrigados a aceitar o ingresso do credor, na posição de novo acionista - e, sobretudo, a concordar com a consequente diluição de suas posições. A consumação da conversão dependerá, portanto, da convergência de vontades do credor e dos acionistas da SAF. Ademais, a possibilidade de conversão deverá estar expressamente prevista no estatuto da SAF. A previsão poderá constar desde a sua constituição ou decorrer de reforma estatutária posterior, deliberada pela assembleia geral na forma da Lei 6.404/76. Não se trata, portanto, de uma exigência de origem, mas que poderá ser introduzida, a qualquer momento, pelos acionistas, desde que observem os procedimentos legais. De todo modo, reforça-se que a previsão estatutária não significa que a conversão se operará automaticamente; ela serve apenas como indicativo de que terceiro poderá, eventualmente, capitalizar na SAF crédito detido contra o clube. A conversão poderá resultar na alteração do controle da SAF, que se caracteriza pela conjunção da (i) titularidade de direitos de sócio que assegurem ao acionista, de modo permanente, a maioria dos votos nas deliberações assembleares e o poder de eleger a maioria dos administradores da SAF; e do (ii) uso efetivo do poder para dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos órgãos da companhia. O clube, nesse caso, permanecerá acionista, mas deixará de orientar os negócios da SAF. Nem toda conversão resultará na mudança de controle. Outros cenários poderão ocorrer, como a manutenção do controle, pelo clube, mas sujeito à oposição de uma minoria ativa e organizada. Ainda, poderá dar origem a uma estrutura em que não se identifique um controlador majoritário, caso em que as deliberações sociais serão tomadas pelo acionista ou pelo grupo de acionistas que, circunstancialmente, organizar-se para superar os demais. Ou poderá alçar o clube à posição de acionista minoritário, caso em que, em princípio, se submeterá à vontade da maioria. Em qualquer situação, a conversão não afastará o direito do clube de bloquear a realização de determinados negócios pela SAF, conforme previsão do art. 2º, parágrafos 3º e 4º da Lei da Lei Rodrigo Pacheco. Ou seja: enquanto o clube for proprietário de ações classe A, representativas de, pelo menos, 10% do capital social, as matérias previstas no parágrafo 3º somente poderão ser aprovadas com o seu voto afirmativo; caso a participação do clube caia desse patamar, ainda assim os temas previstos do parágrafo 4º não se realizarão sem a sua aprovação, mesmo que o clube ostente apenas uma ação. O credor do clube, que passar à condição de acionista da SAF, não poderá subscrever ações classe A, que carregam direitos inerentes à pessoa do constituinte. Assim, a conversão de crédito detido por terceiro, em capital da SAF, somente se produzirá mediante a emissão de ações ordinárias ou preferenciais, nos termos da lei 6.404/76.  Ao subscrever capital da SAF, o credor deverá integralizá-lo, no prazo e na forma que a assembleia geral deliberar. A integralização, que tem natureza de pagamento, se dá mediante dação, conforme conteúdo do art. 356 do Código Civil. Em outras palavras, o subscritor não entregará dinheiro para SAF, como forma de pagamento do capital subscrito; ele cederá sua posição perante o devedor, tornando-se a SAF, a partir do ato, credora do clube. Por fim, a conversibilidade, que, como indicado acima, envolve três partes - o clube devedor; o credor do clube; e a SAF constituída pelo clube, mas que não tem responsabilidade pelas obrigações do clube - não se estende a uma solução bilateral, negociada e resolvida entre credor e clube. Em outras palavras, ela não se prestará, por exemplo, à troca do crédito por quotas patrimoniais do próprio clube.
quarta-feira, 29 de setembro de 2021

O futuro do Palmeiras: S/A, Eireli, S/C ou NDA?

Na última sexta-feira encerrou-se o prazo para registro das chapas visando as eleições para a presidência da Diretoria Executiva do clube com a inscrição isolada da candidata Leila Pereira, cuja campanha teve início no dia em que pisou nas alamedas da antiga rua Turiaçu, não tendo as forças oposicionistas resistido à ignominiosa parelha entre o vetusto "Il Capo" e sua arcaica política das quatro últimas décadas e a vaidade exacerbada do antecessor do atual mandatário que se arvora em divindade e conta com um diminuto grupo messiânico de seguidores, o "ex" cujo maior e inadmissível erro é crer-se pessoalmente, e desde a mais tenra idade, maior e mais relevante do que a centenária e vitoriosa associação esportiva. Com essa definição, a par de uma improvável hipótese estatutária relativa ao alcance de quórum necessário, o certame eleitoral de novembro irá sufragar a primeira Presidenta eleita da SEP, que assim acrescerá mais um chapéu na sua complexa participação institucional, passando além de conselheira, patrocinadora, credora e financiadora da torcida organizada, a ser a mandatária. Não obstante atender o associado e suas demandas e independente de todas as cautelas que se recomendam observar com o fito de mitigar possíveis conflitos de interesse, seu desafio pessoal neste que se afigura o maior projeto de sua vida será o de conduzir e perenizar a retomada vitoriosa da SEP, mormente (i) galgando-a na consolidação da sua sustentabilidade financeira e (ii) compondo a liderança dos clubes e atuando com protagonismo na construção de um novo mercado futebolístico que os idealizadores da Liga intencionam implantar. Não será tarefa fácil! Mas afinal, onde nossa futura presidenta está chegando, e como seguir a partir de então? Ora, inegavelmente, a SEP experimenta nos últimos anos um processo quase que de refundação, com o fortalecimento e desenvolvimento de novos e consistentes fundamentos econômicos, em especial a partir do que tem se convencionado denominar de Era Allianz Parque, muito embora ainda conjugue o grande mal vivenciado pelos clubes derivados do "estrangulamento de caixa", a nociva equação entre o crescimento espiral de receitas e de despesas dos departamentos de futebol que se traduzem na prática em adiamento ou falta no cumprimento de obrigações e compromissos, bem como na perda da capacidade de investimentos (contratações, p.ex). A SAF que é catalogada na lei recentemente aprovada seria então a panaceia para ajustamento do futuro da SEP? No seu caso específico, não necessariamente...   O espírito da novel legislação, ao lado do seu viés social, foi o de conferir chance e possibilidade para restruturação de passivos dos clubes, gozar de tratamento tributário especial e permitir o desenho de mecanismos de financiamento através das hipóteses elencadas no texto normativo. Temos que a SEP, que aliás sequer aderiu às benesses do PROFUT, possui condição fiscal de regularidade e conhece a principal rubrica do seu passivo justamente com a dívida que é titulada pela futura Presidenta, podendo incrementar suas receitas e saúde financeira sem necessidade de se abrir à mercado alienando participação, bastando em um primeiro momento perseguir e curar pela recuperação e/ou diversificação dos seus fundamentos econômicos, alguns dos quais consolidados anteriormente e outros a instituir e performar diante de tantas oportunidades. Com efeito, revigorar seu programa de sócio torcedor, desenvolver estratégias de afluência de público, mercantilizar cientificamente as operações de direitos econômicos de atletas e ainda aprimorar a grande rubrica das receitas de transmissão, são os aspectos já aptos e disponíveis. Some-se a eles o desenvolvimento de novas receitas, dentre as quais o embrionário mercado de apostas, o aperfeiçoamento da política de licenciamentos, o ingresso em novos produtos (p.ex., para ser contemporâneo, o FAN Token), a inserção no fértil mundo dos E-Sports, neste caso não só pela monetização, mas também como estratégia de aderência e criação de atratividade para as novas gerações, o público consumidor futuro que hoje flerta com outros e variados interesses. De se considerar, para júbilo da SEP e conjugação nesta tentativa de incremento de receitas, a transformação do relacionamento com seu parceiro na Arena, agora que já decorrida a quinta parte do prazo contratual, sendo próxima e aparente a finalização dos processos de arbitragem, as sucessões seja na direção do clube como no grupo empresarial com a morte de seu fundador, e o entendimento de lado a lado quanto a importância de um caminho de mãos dadas para turbinar esse jogo de "ganha-ganha", vale dizer, vê-se um ambiente bastante favorável para a implementação de uma agenda comum ao parceiro objetivando aumento de receitas com o favorecimento dos dois lados, servindo de exemplo a recente inauguração da sala de troféus.  Diante disto não é simplesmente pela migração para a SAF que teria (ou terá) a SEP possibilidade de se viabilizar, talvez seja mais oportuno que essa decisão seja adiada, principalmente ao considerarmos a pujança que atualmente se experimenta; o que seria adequado, a propósito, é a preparação para eventual adoção deste modelo no futuro, através do estudo das alterações estatutárias obrigatórias, criação dos meios de controle e governança, formatação de confiáveis  demonstrações financeiras, levantamento de dados e informações estratégicas, enfim, deixando como se diz no jargão societário, uma empresa estruturada "na prateleira" para uso posterior. De outra banda, obviamente quando se incluiu a menção à EIRELI, tomou-se apenas uma licença poética para alertar à futura Presidenta sobre a necessidade da adoção de providências e/ou medidas que de saída minimizem os seus conflitos com a instituição na medida em que agora que definida a sorte do pleito, melhor que não os admitir (os conflitos) será propor as formas de mitigá-los, algo mais eficaz, justo e coerente para o enorme desafio de presidir o clube e se relacionar nas várias qualidades que assume e detém perante a Instituição e sua coletividade. Neste sentido, e mesmo não se tornando empresa, há de se estabelecer regras mínimas para a gestão deliberar e ser fiscalizada, principalmente com a preocupação de neutralizar qualquer ingerência e/ou imparcialidade no processo decisório que coloque a mandatária nos dois lados de uma mesma mesa de negociação. De novo, não será tarefa fácil. Vê-se, portanto, que mesmo com a roupagem societária atual, qual seja, a da sociedade civil, ainda que doutrinariamente neste caso da associação esportiva não vise lucro, é absolutamente palatável a manutenção do formato jurídico em curso, sem, no entanto, se perder de vista a necessidade do afastamento de potenciais conflitos e de qualquer confusão entre a SEP, sua mandatária e os interesses individuais de cada qual, o desenvolvimento de uma administração com rígidos mecanismos de gestão em sentido lato e a elevação econômica e estrutural da SEP.   Assim é, sra. presidenta, que lhe desejo sorte e um bom trabalho e, se me permite, não deixe jamais de levar em conta que administrar não é atividade de quem é o senhor da coisa própria, mas sim o gestor da coisa alheia. Que tenhas, de verdade, muito sucesso nesta empreitada!     *Savério Orlandi é advogado em SP, pós-graduado em Direito Empresarial pela PUC/SP, onde também se graduou. Membro do CD e Ex Diretor de Futebol da SEP, associado da ABEX.
A lei 14.193/21 (Lei da SAF), de autoria do Presidente do Congresso Nacional, Senador Rodrigo Pacheco, inaugura um novo sistema informacional no ambiente do futebol brasileiro. Sim: ao contrário das amarrações e das limitações que inibem o acesso às informações dos clubes, constituídos sob a forma de associação sem fins econômicos, a SAF, ao ser constituída, deverá se submeter a normas inafastáveis que oferecem ao torcedor, ao próprio clube que a constituir, ao investidor e às pessoas (e ao mercado, em geral), um conjunto informacional necessário à formação de um sistema sustentável.   Nesse sentido, o art. 8º da Lei da SAF lista documentos que devem ser mantidos pela SAF em seu sítio eletrônico. Além deles, outros documentos ou informações que devam ser publicizados, nos termos da Lei das Sociedades Anônimas (lei 6.404/76), também se manterão, de modo inovador, no sítio eletrônico.   O prazo de manutenção é de 10 anos, conforme previsto no art. 7º da Lei da SAF, e se aplica a todos os documentos publicados, mesmo aqueles que deixaram de ter conexão com a situação fática momentânea. É o caso, por exemplo, do conteúdo do inciso III do art. 8º, que trata da composição e da biografia dos membros do conselho de administração, do conselho fiscal e da diretoria. Assim, após o término dos mandatos e a modificação da composição de qualquer um dos órgãos, a publicação original, com todas as informações, deverá ser mantida pelo prazo legal. Essa solução reforça o princípio da publicidade, que serve não apenas para tomada de decisões imediatas, como para que, no futuro, se possa, por via de fácil e generalizado acesso, reconstruir matrizes de responsabilidade e imputá-la corretamente. Portanto - e se apresentando outro exemplo -, todas as alterações ou reformas de estatuto devem se tornar públicas, em sua íntegra, de modo que, além da ata da respectiva assembleia, o conteúdo reformado e o resultado consolidado constarão do sítio eletrônico, pelo prazo, como indicado acima, de 10 anos. O inciso IV do art. 8º trata do relatório da administração, que também integra a listagem do art. 133 da lei 6.404/76, que elenca os seguintes documentos que deverão ser, de modo obrigatório, disponibilizados e mantidos no sítio eletrônico: "I - o relatório da administração sobre os negócios sociais e os principais fatos administrativos do exercício findo; II - a cópia das demonstrações financeiras; III - o parecer dos auditores independentes, se houver; IV - o parecer do conselho fiscal, inclusive votos dissidentes, se houver; e V - demais documentos pertinentes a assuntos incluídos na ordem do dia". Todas as informações divulgadas deverão ser atualizadas mensalmente. O procedimento se refere àquelas que se sujeitem ou se submetam, por qualquer motivo, a algum tipo de mudança ou ajuste. A motivação é simples: a divulgação permanente de posições atualizadas da SAF. Os documentos ou as informações que sejam estáticos durante determinados períodos não precisarão, por motivo óbvio, ser revisados, bastando à SAF apontar a manutenção do conteúdo anterior. A Lei da SAF imputa aos administradores da SAF (membros do conselho de administração e da diretoria) a responsabilidade pela publicidade dos documentos ordenados por lei. Apesar de fazer referência apenas ao artigo 8º (da sua própria lei), a responsabilidade se estende à inobservância de disponibilização de qualquer informação ou documento ordenado por qualquer outra lei que incida sobre a SAF. Vale registrar que, apesar de o administrador não ser pessoalmente responsável pelas obrigações que contrair em nome da SAF em virtude de ato regular de gestão, responderá, na forma do art. 158 da lei 6.404/76, pelos prejuízos que causar (i) dentro de suas atribuições ou poderes, com culpa ou dolo ou (ii) com violação da lei ou do estatuto. É justamente esse o caso da ausência de publicação no sítio eletrônico da SAF de atos determinados em lei. Ademais, um administrador não será responsável por atos ilícitos de outros administradores, salvo se com eles for conivente, se negligenciar em descobri-los ou se, deles tendo conhecimento, deixar de agir para impedir a sua prática. Para que se exima da responsabilidade, o administrador dissidente deverá fazer consignar sua divergência em ata de reunião do órgão de administração ou, se não for possível, deverá dar ciência imediata e por escrito ao conselho fiscal (ou à assembleia geral, o que se fará na pessoa da pessoa a quem o estatuto confere a atribuição de presidi-la). Portanto, todos os administradores devem zelar pela correta publicação dos atos previstos em lei. Se não diligenciarem nesse sentido, poderão responder pela inobservância da norma. Aliás, de acordo com o parágrafo 2º do mencionado art. 158, os administradores são solidariamente responsáveis pelos prejuízos causados em virtude do não cumprimento dos deveres impostos por lei para assegurar o funcionamento normal da companhia, ainda que, pelo estatuto, tais deveres não caibam a todos eles. Há, no entanto, um obstáculo, de natureza política, que ameaça a higidez sistêmica pretendida pela Lei da SAF: o veto presidencial ao inciso I do art. 8º. Esse inciso determina que informações sobre a composição acionária da SAF, com indicação do nome, da quantidade de ações e do percentual detido por cada acionista, inclusive, no caso de pessoas jurídicas, dos seus beneficiários finais, nos termos do art. 6º da lei 14.193/21, devem ser publicadas no seu sítio eletrônico. A decisão de vetar o inciso foi suportada pelas seguintes falácias:   "(...) em que pese se reconheça o mérito da proposta, a medida contraria o interesse público, pois implicaria em um desnecessário sistema administrativo de controle e reporte de participações pouco relevantes para a governança da Sociedade Anônima do Futebol, além de desestimular o ingresso de tais sociedades no mercado de capitais, quando a amplitude e a rotatividade de suas bases acionárias tenderiam a atingir níveis elevados. "Ademais, o dispositivo poderia ensejar no desestímulo ao investimento minoritário nas Sociedades Anônimas do Futebol, visto que promoveria uma excessiva exposição de posições financeiras de investidores". Os argumentos vão na contramão dos princípios formadores da proposta de criação do novo mercado do futebol: transparência, publicidade, controle, segurança jurídica e sustentabilidade. Não haveria - como não há - exposição excessiva; ao contrário: o investidor que pretenda alocar seus recursos na SAF deve ser conhecido, pelos impactos sociais e econômicos associados a uma atividade empresarial que consiste, ao mesmo tempo, no mais valioso patrimônio imaterial do torcedor. A característica única do futebol justifica a transparência que se pretende com a lei 14.193/21. Daí a necessidade de o Congresso Nacional derrubar não apenas esse, mas os demais vetos, e reconstituir a Lei da SAF em sua integralidade.
A lei 14.193/21 (ou Lei da SAF ou, ainda, Lei Rodrigo Pacheco) prevê um regime específico de governação da sociedade anônima do futebol ("SAF"): além da diretoria, órgão obrigatório em qualquer companhia, também deverá ter um conselho de administração. O conselho de administração é órgão de deliberação colegiada e não lhe cabe a representação da SAF, função que se atribui com exclusividade à diretoria. Aliás, conselheiros, isoladamente, ou em colégio, não exercem funções executivas. O órgão será composto por pelo menos 3 membros, eleitos e destituíveis, a qualquer tempo, pela assembleia geral da SAF. O estatuto da SAF deverá estabelecer (i) o número de integrantes do órgão, ou os números mínimo e máximo permitidos, (ii) o modo de substituição e (iii) o prazo de gestão, que não poderá ser superior a 3 anos, permitida a reeleição. Apesar do emprego da expressão no singular, não há limite de candidaturas e de reeleições. Compete ao conselho de administração, dentre outras matérias, nos termos do art. 142 da lei 6.404/76: "(i) fixar a orientação geral dos negócios da companhia; (ii) eleger e destituir os diretores da companhia e fixar-lhes as atribuições, observado o que a respeito dispuser o estatuto; (iii) fiscalizar a gestão dos diretores, examinar, a qualquer tempo, os livros e papéis da companhia, solicitar informações sobre contratos celebrados ou em via de celebração, e quaisquer outros atos; (iv) convocar a assembleia geral quando julgar conveniente, ou no caso do artigo 132; (v) manifestar-se sobre o relatório da administração e as contas da diretoria; (vi) manifestar-se previamente sobre atos ou contratos, quando o estatuto assim o exigir; (vii) deliberar, quando autorizado pelo estatuto, sobre a emissão de ações ou de bônus de subscrição; (viii) autorizar, se o estatuto não dispuser em contrário, a alienação de bens do ativo não circulante, a constituição de ônus reais e a prestação de garantias a obrigações de terceiros; (ix) escolher e destituir os auditores independentes, se houver". Inexiste impedimento legal para que associado ou membro de algum órgão do clube que constituir a SAF exerça, nela, cargo de conselheiro de administração. Mas, se for eleito e, cumulativamente, preencher ambos os requisitos, ou seja, ser associado e participar de algum órgão administrativo, deliberativo ou fiscalizatório no clube, não poderá receber qualquer remuneração da SAF.   A vedação se estende a formas indiretas de remuneração. Assim, somente (i) associados que não tenham função específica no clube ou (ii) membros externos ao clube poderão ser remunerados. Já a diretoria da SAF deverá ser composta por 2 ou mais diretores, nos termos do art. 143 da lei 6.404/76, eleitos e destituíveis a qualquer tempo pelo conselho de administração. O estatuto deverá tratar, dentre outros temas, sobre (i) o número de diretores, ou o máximo e o mínimo permitidos, (ii) o modo de substitição e o prazo de gestão, que não será superior a 3 anos, permitida a reeleição (sem limite de vezes) e (iii) as atribuições e poderes de cada diretor. Até 1/3, no máximo, dos membros do conselho de administração poderá compor a diretoria (cumulando, pois, cargos em ambos os órgãos). Por outro lado, a Lei da SAF proíbe a eleição para cargo de diretoria do empregado ou de membro de qualquer órgão, eletivo ou não, de administração, deliberação ou fiscalização do clube criador da SAF, enquanto dela permanecer acionista. Diretores da SAF deverão dedicar-se com exclusividade a ela, sendo vedada a ocupação apenas parcial, observadas eventuais determinações estatutárias. A SAF também terá, obrigatoriamente, um conselho fiscal, que funcionará de modo permanente. Sua composição terá pelo menos três e, no máximo, cinco membros, e suplentes em igual número. De acordo com o art. 162 da lei 6.404/76, somente podem ser eleitos para o órgão pessoas naturais, residentes no país, diplomadas em curso de nível universitário, ou que tenham exercido por prazo mínimo de três anos, cargo de administrador de empresa ou de conselheiro fiscal. Ademais, não podem ser eleitos para o conselho fiscal, além das pessoas enumeradas nos parágrafos do art. 147 da lei 6.404/76, membros de órgãos de administração (portanto, do conselho de administração ou da diretoria) e empregados da SAF ou de sociedade controlada ou do mesmo grupo, e o cônjuge ou parente, até terceiro grau, de administrador da SAF. Compete ao conselho fiscal (i) fiscalizar, por qualquer de seus membros, os atos dos administradores da SAF e verificar o cumprimento dos seus deveres legais e estatutários, (ii) opinar sobre o relatório anual da administração, fazendo constar do seu parecer as informações complementares que julgar necessárias ou úteis à deliberação da assembleia geral, (iii) opinar sobre as propostas dos órgãos da administração, a serem submetidas à assembleia geral, relativas a modificação do capital social, emissão de debêntures ou bônus de subscrição, planos de investimento ou orçamentos de capital, distribuição de dividendos, transformação, incorporação, fusão ou cisão, (iv) denunciar, por qualquer de seus membros, aos órgãos de administração e, se estes não tomarem as providências necessárias para a proteção dos interesses da companhia, à assembleia geral, os erros, fraudes ou crimes que descobrirem, e sugerir providências úteis à companhia, (v) convocar a assembleia geral ordinária, se os órgãos da administração retardarem por mais de um mês essa convocação, e a extraordinária, sempre que ocorrerem motivos graves ou urgentes, incluindo na agenda das assembleias as matérias que considerarem necessárias, (vi) analisar, ao menos trimestralmente, o balancete e demais demonstrações financeiras elaboradas periodicamente pela companhia, (vii) examinar as demonstrações financeiras do exercício social e sobre elas opinar, e (viii) exercer essas atribuições, durante a liquidação, tendo em vista as disposições especiais que a regulam. As atribuições e os poderes conferidos ao conselho fiscal são indelegáveis. O parágrafo 1º do art. 5º da Lei Rodrigo Pacheco estabelece regras impeditivas comuns, aplicáveis ao conselho de administração, ao conselho fiscal ou à diretoria da SAF. Neste sentido, não podem integrar estes órgãos as seguintes pessoas: (i) membro de qualquer órgão de administração, deliberação ou fiscalização, bem como de órgão executivo, de outra SAF; (ii) membro de qualquer órgão de administração, deliberação ou fiscalização, bem como de órgão executivo, de clube ou pessoa jurídica original, salvo daquele que deu origem ou constituiu a própria SAF; (iii) membro de órgão de administração, deliberação ou fiscalização, bem como de órgão executivo, de entidade de administração, nacional ou regional; (iv) atleta profissional de futebol com contrato de trabalho desportivo vigente; (v) treinador de futebol em atividade com contrato celebrado com clube, pessoa jurídica original ou SAF; e (vi) árbitro de futebol em atividade. Esses impedimentos somam-se aos demais aplicáveis a todo ou a qualquer um dos órgãos da sociedade anônima, nos termos da lei 6.404/76. Anota-se, por fim, que, durante o processo legislativo, acabou-se abandonando importante regra, contida no PL 5.516/19, originador da lei 14.193/21, que previa que enquanto o clube fosse acionista único da SAF, no mínimo a metade do conselho de administração deveria ser integrado por conselheiros independentes, adotado o conceito de independência estabelecido pela CVM para as companhias abertas. Apesar da ausência da norma, nada impede que se insira conteúdo semelhante no estatuto da SAF, por ocasião de sua constituição. Aliás, essa previsão poderá conferir mais credibilidade ao plano futebolístico-empresarial definido pelo clube, ao criar a SAF, ou pela própria SAF. Enfim, a lei 14.193/21 oferece um conjunto normativo no qual se inserem normas de governação que abrem uma nova perspectiva para os times e para investidores no mercado brasileiro.
O art. 6º da Lei Rodrigo Pacheco (lei 14.193/21), criadora do novo mercado do futebol e da SAF, estabelece que a pessoa jurídica que detiver participação igual ou superior a 5% do capital social da SAF deverá informar à própria SAF e à CBF o nome, a qualificação, o endereço e os dados de contato da pessoa natural que, direta ou indiretamente, exerça o controle da entidade ou que seja a sua beneficiária final. A inobservância dessas normas implicará suspensão dos direitos políticos e retenção dos dividendos, dos juros sobre o capital próprio ou de outra forma de remuneração eventualmente declarados, até o cumprimento desse dever. Cria-se, assim, um necessário instrumento informacional para o clube criador da SAF, para os torcedores e para o mercado em geral, incluindo-se jornalistas e autoridades, consistente na identificação da pessoa que, de fato, manda no investidor pessoa jurídica que detiver participação na SAF. E vai além: trata-se, na verdade, de um dos pilares de sustentação do novo mercado do futebol, concebido para oferecer um ambiente jurídica e estruturalmente seguro e sustentável. Assim, a Lei Rodrigo Pacheco cria o mecanismo adequado para superar barreiras societárias ou de outras naturezas erigidas para evitar que pessoas naturais controladoras ou beneficiárias finais de investidoras no futebol brasileiro sejam reveladas. É verdade que ela não acabará com as modelagens locais ou internacionais arquitetadas para dificultar, por diversos motivos, a revelação do verdadeiro proprietário de determinados ativos; mas servirá como obstáculo para sua criação no microssistema da SAF. Imagine-se, portanto, que uma SAF tenha em seu quadro de acionistas determinada pessoa jurídica, titular de ações representativas de 20% do respectivo capital social. Esta por sua vez tem dois acionistas: uma pessoa física norte-americana e uma sociedade com sede no Panamá. A sociedade panamenha, ao seu turno, tem dois acionistas: uma pessoa jurídica constituída de acordo com as leis da Holanda, titular de 51% das ações, e outra constituída de acordo com as Leis da Austrália. O capital da companhia holandesa é distribuído entre uma pessoa física residente em Londres, titular de 50% mais uma das ações, e o restante das ações está distribuído entre 4 pessoas físicas residentes em diferentes países. É a pessoa física residente em Londres que a lei brasileira pretende que seja revelada como controladora final da pessoa jurídica investidora da SAF. A revelação deverá ser feita à própria SAF investida e à CBF. Enquanto ambas as entidades não tiverem sido providas com as devidas (e idênticas) informações, o comando legal não terá sido atendido. Apesar de não ter sido previsto prazo, a obrigação se aplicará no imediato momento em que a pessoa jurídica se tornar acionista da SAF. Caso, porém, seja inobservada a regra, desde o descumprimento, então, os direitos políticos e econômicos ficarão suspensos. As consequências, pela sua gravidade, devem servir de estímulo à observância das normas contidas na Lei. Aliás, a SAF que houver recebido as informações deverá se certificar, antes da realização de assembleia geral de acionistas na qual os direitos políticos poderiam ser exercidos - ou, então, antes do pagamento de qualquer remuneração ao investidor -, que a CBF também foi destinatária das mesmas informações. O dever de informar se renova a toda mudança do conteúdo informacional mandatório, incluindo-se as eventuais (ou constantes) alternâncias do controlador direto ou indireto da pessoa jurídica acionista da SAF. A suspensão dos direitos, vale registrar, não tem caráter expropriatório, pois esses serão restabelecidos, inclusive no tocante ao recebimento de remunerações retidas, com a entrega da informação antes sonegada. O art. 6º foi originalmente composto por parágrafo único que, de maneira acertada, prevê a aplicabilidade das normas também aos fundos de investimento, os quais, por meio de sua instituição administradora, devem informar à SAF o nome dos cotistas titulares de cotas correspondentes a 10% (dez por cento) ou mais do patrimônio, se houver.  Tal parágrafo foi vetado pela Presidência da República, sob o argumento de que "fundos de investimento contam com estruturas de gestão profissional e discricionária, ou seja, sem influência dos cotistas nas decisões de investimento ou nos direitos políticos correspondentes às ações que integram seu patrimônio". Apesar do temor presidencial de que a preservação do parágrafo poderia afugentar do mercado do futebol interessados na aplicação de recursos disponíveis, a natureza da atividade investida e a obscuridade que pautou, historicamente, o envolvimento de investidores no futebol, justificam a extensão do conteúdo do caput aos fundos de investimento (e seus cotistas). O problema que assola a atividade futebolística não é de falta de liquidez; há muito dinheiro disponível, aqui ou no exterior, para bons projetos, de quase qualquer espécie. O que falta, sobretudo no âmbito do futebol, é ambiente seguro e crível para abrigar, de um lado, agentes como a SAF e, de outro, entidades para recepcionar recursos realmente interessados no desenvolvimento da atividade. Nesse momento da história do esporte no país, em que se constata uma crise sistêmica provocada pelas práticas e pela falta de transparência do associativismo, o caminho que se deve construir é o do disclosure total. E isso exige uma adaptação conceitual para que não se deturpe um dos princípios essenciais da Lei Rodrigo Pacheco, pela adoção de instrumentos que, conquanto legais e legítimos, podem se prestar a fins distintos dos pretendidos. O parágrafo único, aliás, não impede a participação de fundos de investimento no mercado do futebol; ao contrário. Mas exige que, pelas características do mercado que se pretende construir, o fundo revele, para SAF e para entidade de administração, informações que, em geral, não estaria obrigado a divulgar - a despeito da mencionada estrutura de gestão profissional e discricionária interna. A derrubada do veto é necessária, pois, para afirmação da higidez sistêmica criada pela Lei Rodrigo Pacheco.
A partir do Relatório apresentado pelo Senador Carlos Portinho, a lei 14.193, de 6 de agosto de 2021, de autoria e iniciativa fundamental do Senador Rodrigo Pacheco, trouxe ao ordenamento jurídico os chamados "Modos de Quitação de Dívida", previstos na Seção V do texto legal. Trata-se, sem dúvida, de medida com a importante finalidade, conforme bem apontado pelo Senador Portinho, de criar instrumentos para que os clubes de futebol encontrem meios para pagarem suas dívidas constituídas ao longo dos anos anteriores à edição da lei, preservando os direitos dos credores dos clubes de receber o que lhes é devido. Com efeito, a redação do artigo 13 da Lei da SAF confere ao "clube ou pessoa jurídica original"1 a possibilidade de se utilizar das ferramentas contidas no modo de quitação de dívidas contempladas pela norma. O artigo 1º, §1º da Lei da SAF conceitua o termo "clube" para fins de interpretação do dispositivo legal como sendo "associação civil, regida pela lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil) dedicada ao fomento e à prática do futebol". Portanto, o "clube" que, conforme o dispositivo do artigo 13 da Lei da SAF, pode se utilizar do regime centralizado de execução (inciso I), ou da recuperação judicial (inciso II) para quitação de suas dívidas é o clube-associação, não propriamente a SAF, que, de sua parte, nasce "limpa", indene das dívidas anteriormente contraídas pelo clube que a tenha constituído. Pretendeu expressamente o legislador, pois, que o clube-associação possa utilizar do regime centralizado de execução, ou mesmo da recuperação judicial, independentemente da constituição da SAF. E desse modo está, indubitavelmente, redigido o texto legal. Tanto assim, que dias após a entrada em vigor da Lei da SAF, o Corregedor do TRT da 2ª Região, Desembargador Sérgio Pinto Martins, reconheceu a possibilidade de a Associação Portuguesa de Desportos aderir aos prazos previstos no artigo 15 da Lei da SAF. A decisão2 sequer adentrou à discussão sobre a possibilidade de utilização do regime centralizado de execução por clubes-associações que não tenham constituído SAF. Tampouco seria necessário. O texto legal é absolutamente claro nesse sentido, conforme acima demonstrado. Maiores digressões sobre esse aspecto somente serviriam para alimentar falsas polêmicas sobre uma interpretação que não comporta dúvidas. O fato de a Portuguesa - a Lusa dos seus torcedores e de todos que temos por ela especial memória afetiva - encontrar caminhos para saldar suas dívidas sem inviabilizar seu funcionamento é, por esse lado, boa notícia. Ainda mais, quando percebido que o seu atual Presidente, o Sr. Antônio Castanheira, está tomando uma série de medidas para resgatar e modernizar o Clube, como de fato tem ocorrido. Porém, é preciso chamar a atenção para a constatação, clara, de que, por mais que os modos de quitação das dívidas dos clubes e pessoas jurídicas originais previstos na Seção V da Lei da SAF sejam, conforme delineado acima, aplicáveis aos clubes-associações, independente da constituição ou transformação em SAF, parece-nos fundamental ressalvar o caráter sistémico da norma enquanto preceito fundamental de sua efetividade. Utilizar somente os mecanismos de quitação das dívidas, sem a adoção do modelo societário das SAFs é, por assim dizer, um enorme desperdício de uma oportunidade única de realizar a imprescindível evolução da qual a grande maioria dos clubes de futebol do Brasil realmente necessitam. Constituir a SAF significa ter acesso a novas possibilidades de geração de receita e financiamento, às atuais estruturas eficientes de governança e, ao fim e ao cabo, trocar o modelo obsoleto dos clubes-associação, pela moderna estrutura das sociedades anônimas. Sem a constituição da SAF, o clube-associação poderá, como é legitimo porque previsto na Lei, obter até um alívio imediato, pela adoção de mecanismos de quitação de dívida que poderão diminuir a pressão no caixa decorrente da iminência do vencimento de obrigações de curto prazo. Porém, é o alívio do remédio paliativo, que ataca os sintomas como consequência, mas não enfrenta a doença enquanto causa. A mudança estrutural, a transmutação do ultrapassado modelo associativo para o regime das SAFs é a alternativa viável para evitar a enorme frustração que poderá ser percebida pelos clubes que, mesmo tendo aderido ao regime centralizado de execução agora, poderão, no futuro não tão distante, terem constituído novas "dívidas impagáveis", que lhes obriguem a se socorrer de novas formas de auxílio em meio ao cenário de iminente insolvência. O injustificado apego de alguns poucos pelo modelo antigo pode, sim, levar a esse cenário desolador em alguns anos. Isso é tudo de que o futebol brasileiro não precisa. Para tanto, é de se reconhecer, como é fundamental destacar novamente nesse momento, que, para incentivar os clubes de futebol à constituição da SAF, é imprescindível a derrubada dos vetos trazidos ao PL 5.516/2019 pela Presidência da República pelo Congresso Nacional. Todavia, superado esse óbice, com o reinclusão no texto legal do indispensável Regime Especial de Tributação e das normas de transparência dos fundos quotistas, caberá aos dirigentes dos clubes a iniciativa, a ousadia e vontade de se notabilizar historicamente como aqueles que conduziram os clubes que dirigem na direção do passo fundamental rumo à modernização, a estabilidade, a confiabilidade e a viabilidade econômica, enfim. A Lusa, querida por tanta gente, está voltando aos trilhos, mas precisa fazer a mudança profunda, separar o futebol do clube social - como o Presidente Castanheira já está realizando - e, concluir a jogada decisiva, fazendo o gol que será a constituição da Portuguesa de Desportos S.A, para gerir o seu futebol profissional. Assim, o tradicional Clube paulista irá retornar ao lugar de destaque no cenário nacional, celeiro de craques e de campanhas memoráveis, do qual nunca deveria ter saído. E os outros clubes deverão seguir seus passos, resolvendo suas dívidas e apostando na mudança de organização interna para, enfim, poderem trilhar um caminho novo que poderá chegar a uma nova era de pujança, segurança e modernidade no futebol brasileiro. __________ 1 "Seção V Do Modo de Quitação das Obrigações Art. 13. O Clube ou a Pessoa Jurídica Original poderá efetuar o pagamento das obrigações diretamente aos seus credores, ou a seu exclusivo critério: I - pelo concurso de credores, por intermédio do regime centralizado de execução previsto nesta Lei; ou II - por meio de recuperação judicial ou extrajudicial, nos termos da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005." 2 TRT 2ª região - PP 1000064-79.2021.5.02.0000 REQUERENTE: ASSOCIACÃO PORTUGUESA DE DESPORTOS - REQUERIDO: Juízo Auxiliar em Execução)
Uma leitura apressada da Lei Rodrigo Pacheco (lei 14.193, de 6 de agosto de 2021) poderia deixar a impressão equivocada de que a sociedade anônima do futebol (SAF) se constitui apenas pelas vias listadas no art. 2º, ou seja, pela: (i) transformação do clube ou pessoa jurídica original em SAF; (ii) cisão do departamento de futebol do clube ou pessoa jurídica original e transferência à SAF; ou (iii) iniciativa de pessoa natural ou jurídica ou de fundo de investimento. Mas não é só isso o que está previsto na Lei. Além daquelas três vias, uma quarta é expressamente mencionada no art. 3º, a única, aliás, que viabiliza a manutenção da propriedade ou do controle da SAF pelo clube, como se verá abaixo. Nesse sentido, e de acordo com o mencionado art. 3º, o clube poderá integralizar a sua parcela ao capital da SAF mediante a transferência de seus ativos, tais como, mas não exclusivamente, nome, marca, dísticos, símbolos, propriedades, patrimônio, ativos imobilizados e mobilizados, inclusive registros, licenças, direitos desportivos sobre atletas e sua repercussão econômica - relacionados, em qualquer situação, à atividade futebolística. Por essa 4ª via, o próprio clube irá constituir uma SAF e transferir-lhe patrimônio para integralização do capital subscrito. Trata-se de operação conhecida como drop down. O drop down, no âmbito da SAF, deverá ser aprovado pelos associados do clube, na forma do art. 27, parágrafo 2º, da Lei Pelé, conforme nova redação conferida pelo art. 34 da Lei Rodrigo Pacheco: "a entidade a que se refere este artigo poderá utilizar seus bens patrimoniais, desportivos ou sociais, inclusive imobiliários ou de propriedade intelectual, para integralizar sua parcela no capital de Sociedade Anônima do Futebol, ou oferecê-los em garantia, na forma de seu estatuto, ou, se omisso este, mediante aprovação de mais da metade dos associados presentes a assembleia geral especialmente convocada para deliberar o tema". Como afirmado acima, a via constitutiva prevista no art. 3º é a única que preserva a participação do clube na SAF - e que viabiliza, portanto, a utilização de muitos (e necessários) instrumentos de controle, veto e proteção de interesses difusos (como os de torcedores), do próprio clube e de credores. Vejamos. Na transformação, prevista no inciso I do art. 2º, opera-se a modificação da natureza do clube, que passa de associação, sem fins lucrativos, à condição de SAF. Neste caso, todos os associados convertem-se em acionistas de uma companhia. Mas não se criam entidades distintas, isto é, um clube e uma SAF, sendo o primeiro acionista da segunda. O resultado da transformação é ilustrado da seguinte forma: Já a cisão, prevista no inciso II, consiste na operação mediante a qual uma pessoa jurídica - no caso, o clube - transfere parcelas do seu patrimônio para uma ou mais sociedades, constituídas para esse fim ou já existentes. A cisão pode ser total ou parcial, com versão patrimonial para uma ou mais pessoas jurídicas, existentes ou não. A Lei Rodrigo Pacheco refere-se apenas à cisão parcial, ao delimitar a segregação ao patrimônio relacionado ao departamento de futebol, mantendo-se, pois, os demais elementos do clube. O ponto que surge dessa forma de constituição da SAF é o seguinte: a cisão implica a redução patrimonial do clube e consequente transferência do patrimônio cindido para formação do capital da SAF; mas os subscritores - e titulares das ações - da SAF serão todos os associados do clube, e não a própria SAF. Ao cabo da operação, os associados passarão a ostentar, portanto, além da condição de associados do clube, a de acionistas da SAF, conforme ilustração que se segue: Essa não deverá ser, portanto, a via mais almejada pelos clubes, que quererão, e com razão, manter vínculo com a SAF, para exercício dos diretos que lhes são conferidos na Lei Rodrigo Pacheco (tais como o veto na alteração de denominação, símbolo, hino ou município da sede). Mais do que isso, aliás: também implicaria o rompimento societário definitivo, inviabilizando o recebimento de dividendos pelo clube. A terceira modalidade, prevista no inciso III, envolve a constituição da SAF por pessoa natural ou jurídica, ou fundo de investimento. Trata-se de uma nova entidade, sem vínculo com clube, que não afeta os times existentes. A quarta via constitutiva, contida no art. 3º, é a que, em princípio, deverá oferecer o caminho mais adequado para que clubes possam exercer o papel que a Lei Rodrigo Pacheco lhes reservou, de guardião das tradições clubísticas, enquanto preservarem ao menos uma ação classe A, prevista no inciso VII e no parágrafo 3º, bem como de viabilizador da satisfação de obrigações anteriores à constituição da SAF, observado o disposto no art. 10. Com efeito, ao promover o drop down, o clube será acionista da SAF - e não os seus associados - e passará a ostentar, em seu balanço, as ações subscritas, que serão lançadas em contrapartida à baixa do patrimônio transferido à SAF. Inexiste, pois, em princípio, perda, redução ou ampliação patrimonial; apenas uma troca de posições para refletir a substituição de bens diversos por ações. No plano estrutural, o resultado é o seguinte: Conclusão: a Lei Rodrigo Pacheco prevê, de modo expresso, 4 vias de constituição da SAF, que servem para situações e agentes distintos - e não apenas 3, como uma leitura apressada ou isolada do art. 2º poderia erroneamente suscitar. De todo modo, seria realmente importante que o DREI - Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração, órgão que vem fazendo, desde o início da gestão do Diretor (e Professor) André Luiz Santa Cruz Ramos, um trabalho monumental de revisão, simplificação, modernização e regulação do registro público do empresário, estabelecesse e consolidasse, em instrução específica, as diretrizes relacionadas às 4 vias constitutivas da SAF. O País agradecerá. E o futebol brasileiro também.  
Escrevo este artigo ainda sob os efeitos estimulantes da última goleada do Mais Querido do Brasil, o meu Flamengo. A derrota do tradicional e multicampeão paraguaio foi uma vitória justa e convincente do rubro-negro contra tudo o que há de consabidamente ruim nos costumes futebolísticos do cenário sulamericano, foguetório no hotel dos atletas, estádio acanhado, torcida mal-educada, time tecnicamente mediano que busca o embate físico, arbitragem vacilante e outros que tais. De fato, para esse Flamengo do técnico Renato Portaluppi, cada rodada é uma goleada. Os jogos sob sua direção são marcados por resultados com largo saldo de gols e, felizmente, quase todos positivos. Na rodada anterior, contudo, quando o retrospecto indicava um destino melhor, a goleada foi imposta pelo adversário. Um duro 4 a 0! Assim também ocorre com a Sociedade Anônima do Futebol (SAF), novo tipo de empresa criado pela lei 14.193 de 6 de agosto de 2021, destinado às companhias que tiverem por atividade principal a prática do futebol, feminino e masculino, em competição profissional. A lei 14.193, de 2021, é resultado do projeto de lei 5.516/19 de autoria do Senador Rodrigo Pacheco e, não por outra razão, é intitulada Lei Rodrigo Pacheco. Em seu trâmite legislativo pelas casas do Congresso Nacional, o Projeto de Lei mostrou "a força do seu futebol". Na Câmara dos Deputados1, foi aprovado por um acachapante 429 a 7! No Senado Federal2, por sua vez, a defesa sequer foi vazada e a aprovação se deu de forma unânime. A análise do texto mostra os gols que ensejaram as vitórias do projeto em sua jornada. A Lei Rodrigo Pacheco institui um microssistema adaptado para a empresa do futebol abordando aspectos tão importantes quanto delicados para o sucesso da nova forma de companhia. Cada um desses pontos é fundamental para romper o ciclo vicioso que mantém o futebol brasileiro nas mãos de dirigentes não profissionais, afasta investidores nacionais e internacionais, diminui a transparências das informações financeiras dos clubes e impede que o potencial econômico dessa atividade, no "país do futebol", se transforme em resultado esportivo perene. Na perspectiva dos clubes tradicionais, a Sociedade Anônima do Futebol pode surgir pela transformação do clube ou pela cisão do departamento de futebol com transferência do patrimônio relacionado à atividade futebol. Depois de criada, a SAF só poderá exercer a) atividades diretamente ligadas ao futebol, previstas na Lei; b) atividades conexas ao futebol, como a organização de eventos esportivos; e c) atividades ligadas ao seu patrimônio, como a gestão de um imóvel que detenha. É uma delimitação que impede que a nova empresa se aventure em atividades estranhas ao futebol, contribui para a profissionalização e especialização de dirigentes, além de facilitar que os futuros investidores compreendam melhor os riscos e as vantagens do investimento. Vale dizer que a nova companhia terá o direito de participar de campeonatos nas mesmas condições do clube original, ou seja, o Palmeiras S/A ou o Cruzeiro S/A não sofrerá quaisquer prejuízos de ordem desportiva. A Lei preocupou-se em manter certos direitos para o clube do qual se origina a nova empresa, mesmo que ela venha a ser alvo de grandes investimentos de terceiros. O clube original passa a ser um acionista com direitos especiais que, por exemplo, tem poder de veto em propostas de mudança de denominação, de brasões e símbolos e de sede. Há também diversas disposições em benefício da governança das SAFs em paralelo aos aprimoramentos que já seriam devidos em razão do fato de se tornarem sociedades anônimas submetidas subsidiariamente a Lei n° 6.404/76 (Lei das Sociedades Anônimas - LSA). São regras que, entre outras medidas, evitam conflitos de interesse que poderia haver na participação de dirigentes em mais de uma SAF, na participação de dirigentes dos clubes originais na nova companhia, na participação de atletas e árbitros na gestão, etc. Ciente da realidade dos atuais clubes, que convivem com dívidas trabalhistas e cíveis que por vezes inviabilizam a condução dos negócios, a Lei cria uma modalidade especial de concurso de credores por meio do chamado Regime Centralizado de Execuções. A ideia aqui é centralizar as execuções de dívidas judiciais em um mesmo juízo, organizar o pagamento dos credores em termos compatíveis com os fluxos de caixa e evitar penhoras e bloqueios enquanto a SAF estiver comprometida com um plano de soerguimento financeiro. Aqui, efetivamente, não se trata de qualquer perdão de dívida, mas, sim, de organizar o passivo anterior do clube para viabilizar o nascedouro da empresa. Perceba-se. Até aqui, independentemente de qualquer juízo quanto à tecnicidade jurídica da norma, verifica-se que a Lei cuidou da forma de constituição da empresa, do objeto social, da participação do clube original, da governança da empresa, da proteção de seus ativos, da reorganização de suas dívidas, e de vários outros itens que mereceriam comentários positivos num espaço mais amplo. Uma goleada! Aliás, considerando todas as disposições da Lei Rodrigo Pacheco e a aplicação subsidiária da LSA, valeria falarmos num momento futuro sobre a revolução que se verificaria no Brasil numa realidade em que times de futebol fossem fruto de sociedades anônimas de capital aberto, sob diversas perspectivas, a saber: do investidor, do produto futebol, da gestão profissional, da fiscalização por órgãos especializados como a CVM, da responsabilidade socioambiental, do uso das mídias sociais, etc. Entretanto, a SAF (e o meu Flamengo) não tem vivido apenas de goleadas positivas, é necessário falar dos pontos fundamentais da Lei que foram vetados por oportunidade da sanção presidencial. Dessa vez, nós perdemos. Parece-me evidente que uma alteração tão substancial na realidade de agentes econômicos tradicionais requer, além de legislação especializada, um robusto conjunto de incentivos. Um clube de futebol já poderia constituir uma sociedade anônima, utilizar os instrumentos de recuperação judicial e emitir dívida. Clubes de futebol já foram objeto de programas de repactuação de dívidas. A nova legislação trouxe arcabouço jurídico específico para a realidade das agremiações futebolísticas, mas não prescinde de incentivos financeiros que permitam o aumento de receitas e a diminuição de custos, ao menos por oportunidade de sua estruturação. Os vetos presidenciais perpassaram vários pontos da Lei, mas, no contexto deste artigo, dois deles merecem destaque. O primeiro deles é o incentivo fiscal para os investidores que adquirissem debêntures emitidas pelas Sociedades Anônimas do Futebol, as chamadas debêntures-fut. A fim de incentivar os investidores privados a financiar as SAFs e diminuir os custos de captação de recursos por essas empresas, a Lei previa redução de impostos sobre os rendimentos que esses investidores obtivessem. Os vetos também suprimiram o Regime de Tributação Específica do Futebol (TEF), que facilitava a arrecadação, unificava tributos e reduzia alíquotas aplicáveis às SAFs, trazendo importante desoneração fiscal para esse mercado. Neste ponto, ainda que eu considere louvável a preocupação com responsabilidade fiscal, o argumento não se sustenta, como já observou Rodrigo Monteiro de Castro: "34% de zero é igual a zero"3. Assim como ocorreu com o rubro-negro carioca, o retrospecto das SAFs nas casas do Congresso Nacional sugeria um resultado melhor por oportunidade da sanção do texto pela presidência da república. De toda forma, torço pela recuperação dos pontos perdidos quando da análise dos vetos pelo parlamento. Os analistas do direito, e amantes do esporte, lembrarão que o Congresso Nacional derrubou este ano outros vetos da presidência fundamentados na impossibilidade de renúncia fiscal.  Foram 12 vetos derrubados4 entre os 14 realizados na lei 14.112/2020, que alterava a Lei de Recuperação Judicial e Falências, e 4 vetos derrubados5 na lei 14.130/2021, que instituiu o FIAGRO (Fundo de Investimento do Agronegócio). Podemos esperar uma nova goleada a favor da Sociedade Anônima do Futebol? A torcida agradece. *Henrique Machado é advogado e professor convidado da FGV-Rio, OAB/DF, IDP e KOPE em disciplinas relativas ao mercado de capitais. Pós-graduado em Direito Econômico da Regulação Financeira, pela UnB, foi secretário do Conselho Monetário Nacional (CMN), secretário-executivo adjunto do Banco Central do Brasil (BCB), secretário-executivo do Comitê de Regulação e Fiscalização dos Mercados Financeiro, de Capitais, de Seguros, de Previdência e Capitalização (Coremec) e Diretor da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). É sócio do escritório Warde Advogados. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Acessível aqui. 4 Acessível aqui.   5 Acessível aqui.
Após aprovação unânime no Senado Federal e aprovação do texto integral, sem qualquer alteração, na Câmara dos Deputados, com 429 favoráveis e apenas 7 contrários, o PL 5.516/19, de autoria do Senador da República, Rodrigo Pacheco, que institui a sociedade anônima do futebol (SAF) e o novo mercado do futebol, foi encaminhado à sanção presidencial. No limite do prazo constitucional, o Presidente da República o sancionou, convertendo-o na lei 14.193, de 6 de agosto de 2021 ("Lei Rodrigo Pacheco"). A SAF tornou-se, enfim, realidade, e poderá cumprir seu papel nuclear no novo sistema futebolístico. Mas a derradeira batalha ainda haverá de ser vencida para que seus propósitos não sejam desviados.  Seguindo-se a miopia de governos anteriores, foram vetados institutos indispensáveis à formação do novo mercado e à criação de um ambiente sustentável. Isso mesmo: operou-se uma mutilação na Lei Rodrigo Pacheco que, se não for derrubada pelo Congresso Nacional, poderá contribuir para que a casta cartolarial intensifique o processo de auto encastelamento. Deixarei de lado, neste texto, as críticas que deveria fazer aos vetos ao parágrafo único do art. 6º e ao inciso I do caput do art. 8º, ambos destinados a dar transparência e publicidade à identidade de investidores e a atos da SAF. Não que não sejam relevantes; muito ao contrário. Mas, pelo tamanho do espaço, focarei em dois aspectos essenciais ao novo sistema do futebol: o Regime de Tributação Específica do Futebol, ou TEF, e o mais promissor instrumento de financiamento do futebol da história, a debênture-fut. Em relação ao primeiro, a sistemática originalmente prevista no PL 5.516/19, que previa um regime tributário transitório, por prazo suficiente para que, após alguns anos de adaptação, a SAF se submetesse às regras de tributação de qualquer empresa, parecia-me ser a melhor alternativa. Mas o Congresso Nacional, em processo democrático e irretocável, optou por um regime permanente. E é esse regime, o TEF, que, após superação de debates e de verificação de legalidade e constitucionalidade em duas casas congressuais, foi barrado na Presidência da República. Aliás, apesar de reconhecer a "boa intenção do legislador", o veto indica que sua manutenção acarretaria renúncia de receita e, pelos motivos nele expostos, contrariaria a Lei de Responsabilidade Fiscal e a Lei de Diretrizes Orçamentárias. Ora, em primeiro lugar, o Estado vem custeando e financiando os clubes há décadas, com imunidades, isenções, parcelamentos e patrocínios; e em troca recebe o inadimplemento no tocante às poucas obrigações tributárias que são impostas às entidades clubísticas - além, o que é muito grave, do não recolhimento aos cofres públicos de tributos retidos e não pagos, na forma da lei (caracterizando, eventualmente, crime de apropriação indébita). Nada - pelo menos com relação aos tributos que passariam a ser devidos de forma consolidada, com base na receita mensal da SAF - é, atualmente, arrecadado. A suposta renúncia não passa de argumento retórico, e a irresponsabilidade, no caso, não tem natureza fiscal; mas, apenas, política, e de quem orientou o veto. Inclusive porque não se inclui, no orçamento, receitas advindas dessas atividades. No que se refere ao segundo veto, consistente no afastamento dos benefícios instituídos às pessoas que aplicassem seus recursos em debêntures emitidas pela SAF, e assim se precipitasse a formação de inovador, promissor e pujante mercado para o futebol - aliás, jamais formado no Brasil -, entendeu-se, na mesma linha do veto anterior, tratar-se de renúncia de receita e de norma contrária à Lei de Responsabilidade Fiscal e à Lei de Diretrizes Orçamentárias. Aqui a retórica (ou falácia) se revela ainda mais absurda: associações sem fins econômicos, como os clubes de futebol, não emitem (nem podem emitir) debêntures; e inexiste, no País, um mercado de dívida estruturada, o que leva os times a se financiarem da forma mais arcaica possível, a taxas escorchantes. A debênture-fut, aprovada pelo Congresso Nacional, que estabelece que os rendimentos decorrentes de aplicações nesses valores mobiliários sujeitam-se à incidência do imposto sobre a renda às alíquotas de (i) 0%, quando auferidos por pessoa natural residente no País e (ii) 15% quando auferidos por "pessoa jurídica ou fundo de investimento com domicílio no País, ou por qualquer investidor residente ou domiciliado no exterior, incluindo pessoa natural ou jurídica ou fundo de investimento, exceto nos casos em que os rendimentos sejam pagos a beneficiário de regime fiscal privilegiado, nos termos dos arts. 24 e 24-A da lei 9.430, de 27 de dezembro de 1996, hipótese em que o imposto sobre a renda na fonte incidirá à alíquota de 25% (vinte e cinco por cento)", além de não abalar o orçamento - porque nada é orçado a esse respeito -, não implica renúncia de receita, pois se trata de mercado que ainda não existe e, portanto, será criado. A consequência da miopia governamental poderá resultar, pois, (i) na inviabilização da ocorrência de milhares de negócios que atrairiam a incidência da norma tributária - e, aí sim, gerariam uma legitima expectativa arrecadatória - e, pior, (ii) na criação apenas de um mercado de recuperação judicial e centralização de execuções. O problema reside no fato de que, esse mercado, sem o estímulo da passagem do ambiente associativo ao da SAF, estimulará arranjos no plano dos próprios clubes que, durante e após a recuperação, continuarão a ser clubes - e não deixarão de ser clubes. E assim se reforçará o associativismo como meio de detenção da propriedade da empresa futebolística e se alimentará o ambiente para perenização do cartolismo. Por esses motivos, a luz para o futebol consiste no restabelecimento, pelo Congresso Nacional, do conteúdo integral do PL 5.516/19, com a derrubada dos vetos presidenciais.
Ouve-se, por aí, que o Brasil não é um país para amadores. A afirmação encobre, na verdade, vários sentidos mais complexos (e pejorativos) relacionados às nossas mazelas (estruturais ou conjunturais). Amadorismo, burocracia, corrupção, conflito ético, conchavo, partidarismo, negacionismo e outras condutas podem ser justificadas pela frase. Sim, pois o que se revela não é um excesso de profissionalismo - ou de sofisticação -, inacessível ao agente amador; mas, ao contrário, um ambiente imprevisível e, em algumas situações, inviável, por conta de posturas inexplicáveis (tendentes ao favorecimento de pessoas ou grupos de interesses). Mesmo assim, ousarei apropriar-me da frase para, dando-lhe mais um significado, tratar do tema central da coluna. O ponto de partida é a relação que parcela dos brasileiros, especialmente os supostamente mais informados e educados, estabelece com o futebol. Desde criança ouço que o futebol é um instrumento a serviço do poder para alienar as massas. Acho que essa proposição estava associada, naquela época, à utilização da seleção brasileira pelos governos militares. A incompreensão do fenômeno, que foi ressignificado nos governos seguintes (de esquerda ou de direita), contribuiu para que parte do patrimônio nacional se esvaísse ou fosse capturada por pequenos grupos de cartolas (e por outros agentes que sangram o esporte), que se tornaram espécies de donos daquilo que não lhes pertencia - e não lhes pertence - em detrimento do verdadeiro dono: o povo (ou o torcedor). Resultado: alienante ou não, tornou-se o maior espetáculo de entretenimento da terra; e as riquezas produzidas passaram a circular e a se acumular no velho continente, enquanto o Brasil assumiu o papel de fornecedor de matéria-prima (i.e., de jovens jogadores em estado de formação). Dois outros eventos recentes também me fizeram sugerir uma relação com a mencionada frase. O primeiro envolveu a recente final da Copa América e o enfrentamento de dois rivais (e não inimigos) históricos: Brasil e Argentina. Muita gente esclarecida (e culta) torceu contra a seleção nacional porque, dentre outros argumentos, (i) os jogadores que ali estavam representariam o discurso do atual governo (ou, especificamente, do presidente da república); e (ii) seus principais jogadores, em especial Neymar, refletiriam uma visão futilizada, exibicionista e alienada de mundo. Não podemos nos esquecer que, ao contrário da maioria - ou da totalidade dos bem formados críticos -, os homens - e mulheres, também - que vestem a camisa da seleção de futebol enfrentaram e venceram obstáculos estruturais, sociais e pessoais, em relação aos quais nós, torcedores (ou críticos), não contribuímos em absolutamente nada (ou quase nada) para superação. Ele são vencedores pelo simples fato de, em sua esmagadora maioria, sobressaírem em sociedade que, de modo geral, não os valoriza como seres humanos ou profissionais - exceto, eventualmente, a partir do momento em que se tornam estrelas. Isso tudo, é verdade, não justifica posturas egoísticas; mas também não legitima, em minha opinião, a apropriação do fato para construção de uma narrativa maniqueísta - a qual, aliás, vem contribuindo para o afundamento do país em todas as suas esferas. Até porque, do outro lado, naquela final, havia uma seleção representativa de um país que enfrenta, historicamente, dilemas políticos, éticos e sociais semelhantes aos nossos, o que não impede que as desavenças clubísticas ou políticas sejam momentaneamente recolhidas para que se unifique a torcida pelo time nacional. Mais ainda: também havia, do lado de lá, Messi, jogador que, ao menos que eu saiba - apesar de não se expor como Neymar -, também não é um exemplo de cidadão engajado. O segundo evento emerge a cada quatro anos, por ocasião dos jogos olímpicos, e se manifesta como um reconhecimento de representatividade (e orgulho) dos atletas de todas as modalidades, exceto os futebolistas masculinos, porque: a sua maioria (ou totalidade) já atingiu o alto profissionalismo; eventualmente, joga ou jogou na seleção principal; é rica; e assim por diante.  Um ou outro, talvez. Assim como um ou outro, praticante de outras modalidades, também. E proveniente de qualquer país competidor. Mas a generalização e a aversão não contribuem com nada. Ao contrário: apenas estimula o sentimento segregacionista que se inaugurou entre a sociedade e a seleção, a meu ver a partir dos fracassos das emblemáticas seleções de 1982 e 1986, e se intensificou com o advento do (fracassado) pragmatismo simbolizado pela seleção de 1990.   Ninguém é obrigado a gostar de esporte ou de futebol. E muito menos a torcer por atletas ou seleções nacionais. Porém, a campanha contrária, para justificar ideologias, valida, também, as proposições ideológicas dos grupos opostos, que se distinguem apenas, em regra, pelo ponto de vista. Por fim, não se diga que a aversão decorre do sistema de controle centralizado e da ojeriza aos desmandos e dos escândalos envolvendo a politicalha na CBF ou no COB. Sempre houve uma entidade situada entre os esportistas e o torcedor - mesmo nas ocasiões em que a seleção encantava o Brasil e o mundo -, e sempre houve uma casta cartolarial, eventualmente bem-intencionada, mas em geral preocupada com os seus projetos de poder, responsável pelo atual estado de coisas. Os abusos dessas pessoas não se confundem com a função dos jogadores que vestem a camisa amarela.
quarta-feira, 28 de julho de 2021

Brasil, Amazônia, futebol e o mercado

O amigo brigadista e guia turístico em Alter do Chão, Daniel Govino, afirmou, numa conversa informal, que o problema do desmatamento não era o agro, mas o ogro. A frase me perturbou, inicialmente, mas depois se abriu com certa clarividência. Quando ela já parecia se solidificar em meus pensamentos, Daniel proferiu, na mesma conversa, outra frase, atribuída a Caetano Scannavino, coordenador do Projeto Saúde Alegria, ativista radicado no local, que tinha mais ou menos a seguinte construção: precisamos nacionalizar a Amazônia e amazonizar o mundo. A conjunção de ambas parecia fazer ainda mais sentido, a despeito das eventuais idiossincrasias que pudessem suscitar. (Ainda) não sou um estudioso do tema ambiental; apenas um leitor assíduo de matérias jornalísticas e de livros eventuais. Mesmo assim, achei que deveria trazer a temática para esta coluna. O Brasil é pródigo em entregar, sem contrapartidas, as suas riquezas. Mais do que isso, aliás: em permitir ou estimular processos de esgotamento de elementos que poderiam contribuir para sua afirmação como país hegemônico. O entreguismo vem de suas origens, apesar de que, antes, fora fundamentado mais na ingenuidade ou na dependência colonial, do que numa convicção patrimonialista destrutiva e na ganância individualista, marcas da sociedade contemporânea - e que norteiam as condutas internas em relação a situações essenciais como o meio-ambiente e o futebol. Antes de ser um patrimônio mundial, a Amazônia (ou parte dela) pertence ao Brasil. O problema é que, para que o sentimento de pertencimento se efetive, o brasileiro deve conhecê-la, reconhecê-la como sua, apropriar-se dela (figurativa e fisicamente) e se envolver com a sua ocupação e utilização sustentáveis - que pressupõem a preservação, o desenvolvimento das comunidades locais e o exercício de atividades empresariais responsáveis e engajadas. Talvez esse seja o propósito da ideia de nacionalização, imaginada pelo autor daquela frase. E talvez ela revele um conteúdo intrínseco de difícil (mas necessário) enfrentamento: o sucesso desse processo depende da celebração de um amplo pacto em torno do tema ambiental, do qual deverão fazer parte o Estado, governos, empresários, comunidades, entidades não governamentais e turistas. A preservação e o desenvolvimento sustentável da Amazônia viabilizariam, então, o alcance de objetivo maior, consistente numa espécie de polinização planetária a partir da afirmação e liderança em movimento que norteia a agenda multilateral e internacional. Sem exageros, a situação e a relação com o futebol podem ser encaradas sob mesmo ângulo. Não se trata, é verdade, de atividade autóctone; porém, foi a partir da intervenção esportiva brasileira - e de brasileiros - que se espalhou por praticamente todos os países existentes. Não custa lembrar que, além de a FIFA contar com mais membros do que a ONU, o cidadão brasileiro, por onde anda, costuma ser recebido com uma simpática lembrança sobre a importância (ou reverência) que se presta a Pelé, Ronaldo, Ronaldinho, Kaká, Neymar e outros ídolos. Ao invés de valorizar essa riqueza, o Brasil a explorou - e ainda explora - ao limite do esgotamento, permitindo o enriquecimento de pequeninos e nada representativos grupos de interesses e, ao mesmo tempo, a apropriação externa de suas riquezas. Não à toa que se convive com (i) o endividamento bilionário dos clubes brasileiros,  financiado (o endividamento) por recursos públicos, (ii) a intensificação de uma indústria exportadora de pé-de-obra e (iii) a ainda pífia participação da indústria futebolística no PIB nacional. Uma solução salvadora se anuncia com a aprovação, pelo Congresso Nacional, da Lei Rodrigo Pacheco (PL 5.516/19), que cria a sociedade anônima do futebol (SAF) e o novo mercado do futebol. Antes mesmo da sanção presidencial - que se aguarda para as próximas horas ou para os próximos dias -, a imprensa já noticia o interesse de alguns dos maiores e mais ativos grupos financeiros no desenvolvimento de projetos futebolísticos. A futura lei poderá viabilizar, assim, a libertação e o desenvolvimento de uma atividade que, mais do que qualquer outra no plano humano, se presta a afirmar a cultura e a influência brasileiras. Por esses motivos, a sociedade deve ficar atenta e cobrar do mercado atuações condizentes com o propósito grandioso da lei, que não foi concebida para que um ou outro agente se beneficie e enriqueça ainda mais. Ganhos financeiros são legítimos e benéficos para formação de um sistema sustentável e pujante. Mais do que isso: eles devem ocorrer, para que a riqueza se distribua entre os participantes diretos e indiretos do sistema, e com a sociedade em geral. Com eles, aliás, o próprio sistema se alimentará e autoalimentará, espalhando suas virtudes por todos os cantos e entre times de distintas dimensões - para deleite dos torcedores e do povo. O lema do mercado que se formará deve ser composto, portanto, pelo trinômio responsabilidade, sustentabilidade e lucratividade. É a partir de iniciativas que se fundamentem nessa perspectiva que o futebol cumprirá suas funções econômicas e sociais. E com base nele, também, que o Estado deve nortear suas políticas públicas, a partir de agora.
Roberto Teixeira da Costa é um economista brasileiro que dedicou sua vida à criação e à consolidação do mercado de capitais no Brasil. Desde os anos 60, atua em instituições privadas e exerce cargos públicos proeminentes: foi gestor do Fundo Crescinco (um dos primeiros a atuar no país), vice-presidente do Banco de Investimento do Brasil, 1º presidente da CVM e presidente da Brasilpar; também foi conselheiro da SulAmérica e do BNDESPar; e, atualmente, integra o board do Inter-American Dialogue, os conselhos de administração do CEBRI (Centro Brasileiro de Relações Internacionais) e do MUBE (Museu Brasileiro de Escultura e Ecologia), além de presidir a Câmara de Arbitragem do Mercado. Dr. Roberto, como é merecida e respeitosamente tratado, publicou, durante a pandemia, um livro (o sexto, aliás, de sua carreira) chamado "O Brasil tem medo do mundo? Ou o mundo tem medo do Brasil?" (Ed. Noeses). Na obra são apresentadas as origens históricas do pensamento e das posturas patrimonialistas (ou individualistas) que norteiam a sociedade brasileira. As consequências desse (equivocado) encaminhamento podem ser identificadas nas políticas dos sucessivos governos, bem como de grupos de interesses empresariais, que se fecharam ao mundo ao recusar a disputa pelo mercado global e, ao mesmo tempo, impediram a entrada no país de novas soluções ou tecnologias (por meio de barreiras protecionistas). Não bastasse o suposto medo que o Brasil teria do mundo, que se traduz, nas palavras de Nelson Rodrigues, como uma espécie de complexo de vira-lata, as erráticas orientações em relação a temas atuais (essenciais e globais), como o meio-ambiente, a redução da desigualdade e o enfrentamento da crise sanitária, criaram, nas gentes, um sentimento inverso, de medo do Brasil e do brasileiro, que passaram a ser tóxicos.     Da leitura do livro se sai com a amarga (e ao mesmo tempo elucidadora e, daí, reversível) impressão, ou certeza, de que, parafraseando Robert Burton (e Aldous Huxley), o maior inimigo do Brasil é o Brasil e o maior inimigo do brasileiro é o brasileiro. Essa lógica se estende ao futebol, tema que mereceu a atenção do Dr. Roberto. Assim como o país entregou e desperdiçou o pau-brasil, o ouro, os diamantes, o café, a borracha e está renunciando à sua Amazônia, também mantém uma relação autodestrutiva com o futebol - atividade que, como nenhuma outra, apresenta os elementos para se tornar, a um só tempo, vetor de integração nacional e de desenvolvimento econômico e social. Essa inexplicável postura vem sendo revertida pela notável atuação do Congresso Nacional, que aprovou, inicialmente no Senado Federal, por votação unânime, o PL 5.516/19, de autoria de seu presidente, Rodrigo Pacheco (DEM/MG), e, na sequência, na Câmara dos Deputados, com 429 votos favoráveis, contra apenas 7 desfavoráveis. O projeto aprovado obteve rara - e, espera-se, a partir de agora, frequente - adesão coletiva de dezenas de clubes, que solicitaram, em petição pública, a conclusão do processo legislativo e a entrega de uma lei que, apesar de não se prestar a resolver com um passe de mágica a crise sistêmica, é condição necessária para o resgate e a reconstrução da atividade futebolística (e formação no novo mercado do futebol). A maior (ou a única) resistência à sanção pelo Presidente da República do PL 5.516/19 parece advir de um grupo preocupado apenas com cifras arrecadatórias - e não com o desenvolvimento do país -, o qual, de modo equivocado, enxerga no Regime de Tributação Específica do Futebol (TEF) um sistema de renúncia de receitas e, consequentemente, prejudicial aos cofres públicos. É aí que se revela a necessidade de afirmar que o Brasil não pode mais se posicionar como inimigo do Brasil. A solução arquitetada no PL 5.516/19 introduz instrumentos para formação de um novo mercado, indutor de relações e negócios, que: (i) se, de um lado, viabilizarão a captação de recursos pelas SAFs constituídas pelos clubes - com a devida segurança jurídica que outras iniciativas, tais como Lei Zico e Lei Pelé, não ofereceram - e, assim, propiciarão a geração e a distribuição de riquezas; (ii) de outro lado, atrairão a incidência de normas tributárias que contribuirão para, sob uma perspectiva desenvolvimentista, incrementar a arrecadação fiscal. O PL 5.515/19 entrega, pois, uma nova perspectiva, diametralmente oposta à realidade atual, a qual foi construída há mais de um século sobre pilares que se tornaram inviáveis social e economicamente, apoiadas, esta sim, na renúncia arrecadatória por conta das imunidades ou isenções associativas e a leniência com o clube mal pagador, acumulador de dívidas de todas as naturezas - incluindo as tributárias. Pois bem: o Regime de Tributação Específica do Futebol (TEF) é um instrumento essencial à criação da empresa futebolística, que determina o recolhimento mensal, "mediante documento único de arrecadação, dos seguintes impostos e contribuições, a serem apurados seguindo o regime de caixa: I - Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ); II - contribuições para os Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público (PIS/Pasep); III - Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL); IV - Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins); e V - Contribuições previstas nos incisos I, II, III do caput e no § 6º do art. 22 da lei 8.212, de 24 de julho de 1991". Abandona-se, enfim, o modelo paternalista e dependente de subvenções, o qual, na prática, cobra da sociedade em geral (e dos contribuintes) a conta dos desmandos e da irresponsabilidade, e se inaugura um novo modelo, pautado na responsabilidade e na ampliação da base contributiva para formação de um país menos desigual. Por esses motivos, não faz sentido a alegação daqueles grupos de interesse que, erroneamente, sustentam, por mero capricho ou corporativismo, haver um impacto negativo pela não sujeição da SAF ao IR à alíquota consolidada de 25% e à CSLL, à alíquota de 9%. Primeiro porque, atualmente, nada se arrecada; segundo porque, fosse esse o caminho, o novo mercado não se formaria. E aí, continuar-se-ia a arrecadar, como afirma o Senador Carlos Portinho (PP/RJ), relator no Senado Federal do PL 5.516/19, a carga imaginária de "34% sobre nada; que é igual a nada". Não há, portanto, motivo algum para que o Presidente da República vete qualquer dispositivo do PL 5.516/19. E por se tratar da vontade da sociedade brasileira - expressa pelo Congresso Nacional e pelos clubes brasileiros -, espera-se que a sanção venha com a celeridade que a situação demanda.
quarta-feira, 14 de julho de 2021

A SAF e o crivo da Academia

A aprovação pelo Senado do PL 5.516/19, seguida das manifestações reivindicando apreciação com urgência do texto pela Câmara, remetida por entidades representativas de grandes clubes do futebol brasileiro, aumentou sobremaneira o ambiente de otimismo e expectativa pela entrada em vigor do conjunto de normas que deverá colocar o futebol brasileiro em novo patamar de obtenção de receitas, geração de riquezas, qualidade do espetáculo e resultados esportivos.  Entretanto, nem sempre foi assim. Nessa trajetória que vem desde 2015, houve muitos momentos nos quais pessoas expressaram ceticismo ou mesmo a convicção - não totalmente infundada - de que qualquer proposta de alteração na forma de organização dos clubes pudesse prosperar.  A bola hoje está com a Câmara dos Deputados, que acaba de aprovar, com razão, regime de urgência de votação.  Tudo indica, portanto, que em breve o Poder Legislativo cumprirá sua função e remeterá  ao Poder Executivo, para sanção, um marco transformacional, sem precedente na história do pais e sem comparação, em sua amplitude, com qualquer país do planeta. Seja como for, só o fato de colocar o tema da organização "societária" dos clubes brasileiros no centro do debate, como está, já configura, por si só, significativa vitória daqueles que entendem que esse é o ponto central quando se discute evolução do nosso futebol. E isso aconteceu ao longo de tantos encontros, tantos debates, tantas discussões, tantos artigos publicados, tal qual nesse prestigioso espaço que nos é concedido semanalmente para tratar do tema.  Vitória ainda mais relevante quando percebemos que o tema da SAF conseguiu atrair a Academia para as discussões. Professores e autoridades de diversas áreas do Direito, alguns sem nenhuma relação anterior com temas do esporte, se propuseram a participar de painéis, seminários, escrever prefácios de livros e colaborar com artigos, transbordando a conversa sobre o modelo de organização dos clubes de futebol para além do ambiente do direito desportivo e seus valorosos, preparados e competentes operadores.  Exemplo de tal fenômeno deu-se no último dia 9 de julho de 2021, quando a tradicional e respeitadíssima Associação Brasileira de Direito Financeiro - ABDF realizou o Evento "Sociedade Anônima do Futebol - desafios e experiências.", no qual juristas do porte do Senador Carlos Portinho, Rodrigo Monteiro de Castro, Tácio Lacerda Gama, Lucia Pauliello Guimarães, Roberto Duque Estrada, Lina Santin, Gustavo Noronha, André Chame e Marcos Catão dedicaram horas de seu precioso tempo e parte de seu vasto conhecimento para discorrerem sobre o tema. A íntegra do seminário pode ser assistida aqui. Nesse mesmo evento, no qual todos os participantes fizeram apontamentos brilhantes, chama especialmente a atenção a marcante a fala da Professora Paula Forgioni (link acima, minutos 41:45 a 57:45), não só pela autoridade que lhe confere sua condição de Professora Titular e Chefe do Departamento de Direito Comercial da Faculdade de Direto da USP, mas, especialmente, pela forma incisiva e clara com que abordou o tema, com a qualidade daqueles que conseguem em pouco tempo de explanação trazer argumentos definitivos sobre o assunto a que se dispõem a falar.  Professora Paula Forgioni se apresenta como descendente de fundadores da Sociedade Esportiva Palmeiras, portanto, alguém com vínculos ancestrais com os movimentos de abnegados que fundaram nossos clubes-associações lá nos idos de 1900. Para, em seguida, contrapor o modelo associativo até hoje vigente com uma das colocações essenciais que fez: "Nós estamos prisioneiros de uma evolução histórica que foi barrada!".  Em seguida, aponta para o processo de "dissipação de riqueza", fruto do "aprisionamento histórico" do futebol brasileiro, por uma "casta" que se recusa a abrir mão de parte do poder gerado pelo associativismo, privando o Brasil de adotar os meios e instrumentos de desenvolvimento de um mercado como potencial econômico absurdo no futebol.  O futebol brasileiro pode gerar muito mais riqueza, contribuir com a economia de forma ainda mais significativa e, melhor, fazer essa riqueza circular, aponta Professora Paula Forgioni. Porém, na mesma conclusão, adverte: "não tem jeito de captar recurso se não for via Sociedade Anônima, se não for via instrumento de captação de recursos de mercado. Deixe-me explicar: Você não capta recursos de mercado via sociedade limitada, isso não existe! Associação é para Clube! Quando meus tios avós fundaram o Palmeiras, tenho fotos deles fazendo remo no Rio Tietê, aquilo é para aquela época (rindo) não tem nada a ver!"  E complementa, captando exatamente a intenção de atrair o futebol brasileiro para que use os instrumentos de mercado hoje existentes e em pleno e saudável desenvolvimento no Brasil, dos quais o sistema associativo priva nossos clubes completamente: "Nosso mercado de capitais é perfeito? Não! Tem problemas? Tem. Mas é um muito melhor do que ter um monte de associação... nós temos um mercado financeiro e de capitais que está sendo capaz de atrair investimentos. Olha o que aconteceu com a nossa bolsa ao longo de toda pandemia. O Mundo está com excesso de liquidez, o Brasil tem que ser um porto e nós, com todos os nossos problemas, estamos conseguindo atrair esse capital. Ou seja, há uma caixa de ferramentas pronta que o Projeto tenta acessar... que, apesar de todos os defeitos, está funcionamento bem, obrigada. Nós estamos conseguindo atrair investimentos."  Mais adiante, sua fala enfrenta a questão dos casos de má-gestão e atos de corrupção privada nas associações. Efetivamente, nesses últimos tempos, clubes-associação e entidades de administração do esporte tem apostado na criação de diretorias ou comitês de conformidade e compliance como instrumento de demonstração ao ecossistema de uma certa intenção em coibir e censurar internamente malfeitos dos dirigentes.  Numa imagem de enorme felicidade, Professora Paula Forgioni ensina: "compliance é como vela, não faz milagre, mas demonstra no mínimo boa intenção... nós temos que demonstrar essa boa intenção, com sociedades anônimas, com fiscalização, com auditoria externa, trazendo a CVM (trazer a CVM para o jogo é genial) ... a contabilidade tem que ser feita tal qual companhias abertas...".  Isoladamente, portanto, diretorias de conformidade e compliance em clubes-associação - desta vez a imagem é nossa - serviriam não como medicina preventiva, para evitar a doença, ou mesmo como hospital, assim pensado como local de tentativa de cura, mas sim, infelizmente, como um IML, que serve para fazer a autópsia depois do paciente morto e tentar entender, depois do fato consumado, as causas do óbito já irreversível. No contexto da adoção do regime empresarial e acompanhado de auditoria e fiscalização, amparada pelo sistema de proteção da Lei das SAs, aí sim, compliance teria inegável valor e eficácia.  A fala da Professora Paula Forgioni, como as demais, no evento organizado pela ABDF, tem a qualidade histórica do olhar científico, distanciado de paixões e envolvimentos pessoais/profissionais, com a autoridade que seus títulos acadêmicos, seus diversos livros jurídicos e sua trajetória absolutamente irretocável lhe conferem e a precisão didática que somente se encontra naqueles que são vocacionados ao magistério.  É a Academia se debruçando e reconhecendo no PL 5.516/19, que cria a Sociedade Anônima do Futebol, uma alternativa de necessária evolução do futebol brasileiro enquanto patrimônio cultural da nação e meio econômico de geração e distribuição de riqueza.  Valiosíssimo aval.
Escrevi, neste espaço, que o Red Bull poderia ser a nova marca do futebol brasileiro. A afirmação não era oportunista, como se costuma fazer quando um time atinge a ponta de um campeonato - e que geralmente é acompanhada, rodadas adiante, por uma manifestação de descrédito, após o declínio na tabela. Ela foi feita e publicada em 27 de março de 20191. Há mais de dois anos, portanto. Pois, neste exato momento, o Red Bull se situa na primeira colocação do campeonato brasileiro, após 9 rodadas disputadas. O marco se mostra ainda mais relevante, considerando que essa é apenas a segunda temporada do time na primeira divisão nacional e, em seu ano inaugural (2020), terminou em honroso 10º lugar (mesmo ano em que se assistiu os rebaixamentos de dois clubes considerados grandes: Vasco e Botafogo).    Não se tratava - ou se trata - de uma visão profética. Afirmava-se apenas o óbvio. E a afirmação também não perderá valor se, nas rodadas vindouras, a liderança ficar para trás, porque, no plano organizacional, o Red Bull vem impondo um modelo que já se revela superior aos retrógrados padrões associativos, com raízes no século retrasado. Fato é que, no tocante ao futebol (ou melhor, não apenas a ele), o Brasil se tornou pródigo em negar a obviedade; no caso, a negação servia, assim como ainda serve, para preservar posições de uma pequenina classe que se apropriou do patrimônio nacional e não defende, sob qualquer aspecto, o interesse coletivo do torcedor. Três dogmas se perpetuam no tempo e servem para manutenção dessa situação. O primeiro, no sentido de que a cultura local é diferente e não comporta a adoção, mesmo por simples referência, de modelos propostos e praticados no exterior. O segundo, que nada mais é do que uma variação do primeiro, consiste na afirmação de que o torcedor brasileiro não admitiria o ingresso de investidores numa suposta estrutura societária criada para deter a propriedade do time de futebol (a exemplo da SAF). O terceiro, que é uma variação do segundo (e, logo, do primeiro também) - o que permite a conclusão de que o desmembramento dogmático não passa de uma estratégia de confusão e dominação -, tenta impor o cartolismo, cujos representantes são oriundos de herméticos e interessados processos político-clubísticos, como guardião da tradição futebolística. Todos eles foram superados - ou, eventualmente, jamais existiram dessa forma - nos principais centros europeus, que reduziram países como o Brasil (e a Argentina) a fornecedores de matéria-prima. Daí não haver surpresa no posicionamento do Red Bull - que não se confunde, diga-se a verdade, com o modesto, e apenas existente no nome, Bragantino. O que se projeta ali, respeitadas as diferenças, e até as limitações orçamentárias, é a mesma evolução, ou revolução, que alçou times europeus outrora não tão relevantes à ponta mundial. Com efeito, o atual líder do campeonato brasileiro não se caracteriza pela atuação folclórica ou midiática de um presidente-associado de clube, exibicionista de redes sociais, vendedor de sonhos e/ou semeador de dívidas e decadência patrimonial. Ao contrário, vislumbra-se por lá um modelo de negócios que pouquíssimos times brasileiros teriam coragem de implementar: captação de jovens promessas descartadas (ou não devidamente aproveitadas) pelos clubes formadores; estrutura de aperfeiçoamento de atletas; uma imagem moderníssima (sim, ambos os uniformes são comparáveis aos de times europeus) e uma diretoria profissional norteada por objetivos imediatos e mediatos. Além, o que é tão ou mais relevante, de acesso a recursos financeiros para implementação de todas as etapas do plano. Por essas razões o Brasil não deve se surpreender quando (não é uma questão de se, mas de quando, exceto se o projeto for sabotado) o Red Bull se confirmar como uma força permanente do futebol, apesar da minúscula ou quase inexistente torcida. Aliás, nesse histórico ou dramático momento do esporte no Brasil, em que Cruzeiro, Vasco e Botafogo, além de Coritiba, Goiás e Vitória disputam a segunda divisão do brasileirão, e Grêmio e São Paulo estacionam na zona de rebaixamento da primeira divisão, outro time, que há muito tempo vem se organizando para passar ao modelo empresarial, também se apresenta como candidato a protagonista do contemporâneo futebol brasileiro: o Athletico Paranaense (sobre o qual, aliás, já foram publicados, neste espaço, ao menos 3 artigos, em que se enfatizaram os méritos das decisões corajosas adotadas pela sua diretoria). É verdade que a diferença entre o Athletico e o Red Bull não está apenas nos dois pontos que os separam na tabela, mas, sim, no bolso sem fundo do segundo. Porém, com o novo marco regulatório do futebol brasileiro, de autoria do Presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco (DEM/MG), que deverá em breve ser votado na Câmara dos Deputados, o time do Paraná poderá, enfim, acessar o que lhe falta para se afirmar como potência sul-americana: investidores e recursos para aplicação na empresa futebolística. Ficam aí duas belas lições aos brasileiros. E uma advertência: o discurso populista de cartolas irresponsáveis não garantirá a permanência, nem a continuidade de trajetórias vitoriosas. ___________ 1 https://www.migalhas.com.br/coluna/meio-de-campo/298950/atencao--o-red-bull-brasil-pode-ser-a-marca-do-novo-futebol-brasileiro
quarta-feira, 30 de junho de 2021

Desigualdade, Anitta e a função do futebol

O jornalista Cristiano Romero apontou de modo cirúrgico, em sua coluna no Valor do dia 24 de junho, a origem e o motivo da manutenção da desigualdade no Brasil: "a escravidão, usada como fator de acumulação de capital por quase 400 anos, nunca nos deixou, o que explica o estranhamento das elites diante da maioria da população e seu desdém com a educação do povo, característica ausente na maioria das nações". Ele tem razão. O ser cordial, simbolizador da brasilidade, talvez se revele, na verdade, um ser egoísta, centrado em seus interesses (mesmo que legítimos) e sem preocupação, de modo geral, com o coletivo - especialmente com a educação das gentes. Aquela característica - o egoísmo - explica o "sonho brasileiro", uma variante deformada do american dream: condomínio-fechado + carro-blindado + clube-social-exclusivo + casa-de-campo-em-condomínio-fechado + viagem-aos-Estados-Unidos. Isso tudo, como já se tornou parte do costume, servido pelos ocupantes das classes menos favorecidas, desprovidos, não raro, de oportunidades, e submetidos a situações de trabalho que, se tivessem escolha, não se submeteriam (submissão que, por definição, não deixa de indicar, aliás, na linha da crítica de Cristiano Romero, a face contemporânea da escravidão, preservada pela desigualdade). Daí o horror que parcela da sociedade sente ao ter que conviver com empregados domésticos ou operários em aviões com destino a Orlando. Mais ainda: a raiva indisfarçada ao se ver abandonada, como se viu em tempos recentes, por seus subalternos, libertados da ausência de escolha. No plano corporativo, uma ação, ainda incompreendida, provocou, sob certos aspectos, reação semelhante da burocracia gerencial: a indicação de Anitta, pelos acionistas do Nubank, para compor seu conselho de administração. Anitta é muito mais do que a girl from Rio: é uma garota do Brasil e uma garota do mundo. Um fenômeno musical e empresarial, que poderá ter o tamanho de Jennifer Lopez (ou de outras divas pop), se conseguir superar o obstáculo que Oscar Niemayer (talvez o maior arquiteto da história), por exemplo, não superou (se é que se preocupou com isso): o desdém das instituições e das elites locais. A contribuição que a nova conselheira pode dar a uma companhia pretensamente disruptiva (termo transformado em mantra de uma geração) vai muito além de longas reuniões de conselho, embaladas por planilhas, café e pão de queijo; porque ela é, na essência, contestadora, transformadora e realizadora. O tempo cuidará de confirmar o acerto do movimento. Entretanto, parece que se deu início à revisão de uma estrutura excludente e estimuladora da concentração de oportunidades. Consciente ou inconscientemente, os acionistas do banco contribuem com o rompimento de uma barreira que cria e isola pequena casta beneficiada pelo corporativismo. Não só: também lançam luz sobre a impertinência dos padrões de manuais, construídos para afirmar a mesma casta que, desde os anos 1990, se espalha pelas empresas brasileiras. Uma ampla revisão estrutural, por motivos semelhantes, deveria ser feita no âmbito do futebol. Apesar de classificado como o esporte do povo, estabeleceu-se e se mantém, na verdade, como esporte da elite, que o domina, desde antes da Lei Áurea, por intermédio dos reservados clubes associativos. Nesse ambiente, a torcida representa tão somente a via legitimadora do discurso preservacionista. A resistência histórica às mudanças estruturais, ou melhor, à possibilidade de escolha entre ao menos dois modelos, sendo um caracterizado pela ausência de finalidade econômica (que vem desaparecendo nos principais centros mundiais de prática do futebol) e o outro pela afirmação da natureza econômica (predominante naqueles mesmos centros), estimulou a manutenção do cartolismo como instituição definidora dos padrões nacionais. É pela lente do cartola, e para satisfação de seus projetos, que o futebol vem sendo governado. Raramente um representante do povo, ou seja, um jogador, transpõe as barreiras sociais e controla o destino de um time de futebol. Daí a dominação do esporte por herméticos grupos que se revezam no e pelo poder (e raramente pela diversidade de ideias). A estratificação no futebol não é, pois, obra do acaso; mas da preservação de uma narrativa que, mesmo responsável pela falência do sistema - afinal, os principais clubes acumulam dívidas superiores a R$ 11 bilhões -, ainda se mantém (quase) incólume aos avanços tecnológicos e empresariais. O futebol expressa, portanto, os mesmos problemas de concentração e de inacessibilidade que impedem o desenvolvimento da Nação. Por isso a necessidade de reconstruí-lo como poderosa via de inserção e de desenvolvimento. É sobre isso - e não apenas a respeito de gols feitos ou perdidos, impedimentos, cartões ou posição na tabela - que o brasileiro deveria se preocupar. E exigir mudanças imediatas.