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Telemedicina: o papel dos provedores de telemedicina e os vínculos jurídicos com os profissionais da saúde

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Atualizado às 08:50

Texto de autoria de José Augusto Fontoura Costa e Marco Aurélio Fernandes Garcia

Ganham-se tanta eficiência e tantas vantagens a ponto de ser impossível, além de indesejável, interromper o crescimento da telemedicina. Autorizada legalmente no Brasil por meio da Lei 13.989/20, a telemedicina ocupou rapidamente vários espaços e, irremediavelmente, se expandirá muito mais. A complexidade dos vínculos contratuais sobre os quais se apoiam os negócios relacionados ao setor já deixou de fazer parte do futuro para se integrar ao presente. Essas relações são o objeto desse breve artigo.

Para sua discussão são necessárias duas observações preliminares. Em primeiro lugar, é preciso compreender o potencial de transformar em profundidade os modos e estruturas de prestação de serviços de saúde, dentre os quais se destacarão as consultas médicas. Além disso, deve-se discutir a inexistência de um quadro regulatório claro e seguro no Brasil atual, até em razão da autorização legal estar condicionada à continuidade da crise ocasionada pelo coronavírus (Lei 13.989/20, Art. 1o). Por fim, é importante discutir brevemente a posição jurídica dos médicos em suas relações aos provedores de telemedicina.

Para avaliar possíveis cenários da transformação dos modos de oferta de serviços de saúde, deve-se partir da estrutura do sistema brasileiro. Definida como um direito social (CF, Art. 6o, caput), a saúde deve ser oferecida universal e igualitariamente pelo Estado (CF, Art. 196) por meio do SUS (CF, Art. 198) e, complementar e suplementarmente, pela iniciativa privada (CF, Art. 199). A oferta pública tende a ver a telemedicina como um instrumento para a redução de custos e, desta ótica, avaliar a aquisição e desenvolvimento de tecnologias em face dos potenciais benefícios em termos de eficiência e qualidade. A iniciativa privada, por seu turno, não apenas buscará reduzir custos, mas buscará abrir o campo de novas possibilidades de negócios.

Da perspectiva pública, parece pouco provável haver mudanças sensíveis na estrutura de produção e distribuição dos serviços. Do outro lado, há potencial para transformações bastante significativas.

De fato, a oferta remota, sincrônica ou não, de serviços de saúde por meio de modernas tecnologias de informação agrega uma nova função ao quadro, já complexo, das entidades que atuam no setor sanitário: o provedor de serviços de telessaúde ou provedor de telemedicina, encarregado da estruturação negocial da plataforma de acesso por parte dos tomadores e prestadores dos serviços. Em princípio essa função pode ser absorvida por algum dos atores setoriais já existentes, como hospitais ou empresas de planos e seguros de saúde. Porém, em condições de puro funcionamento do mercado, é mais provável haver o aparecimento de entidades separadas, especializadas nessa intermediação e desvinculadas da produção direta do serviço ou de seu financiamento, assim como a Uber não dispõe de automóveis ou locadoras de veículos e a Airbnb não atua no setor imobiliário.

Uma plataforma de telemedicina, capaz, por exemplo, de disponibilizar consultas remotas sincrônicas, pode organizar as seguintes atividades: (i) contratação e parametramento da empresa de tecnologia para a construção e manutenção da plataforma digital; (ii) ações estratégicas para a formação direta de uma carteira de tomadores dos serviços; (iii) ações estratégicas para a formação indireta dessa carteira, inclusive envolvendo hospitais, seguradoras e associações de classe e (iv) formação da carteira de prestadores de serviços, inclusive os médicos. É possível, desde logo, identificar um amplíssimo campo para a multiplicação de questões contratuais de diversas naturezas, grande parte delas marcada por uma profunda assimetria informacional e, dependendo da escala e posição de mercado, disparidades de capacidade econômica.

Esse tipo de cenário, ainda que mitigado no caso brasileiro pela existência de uma oferta universal pública, levanta diversas preocupações, dentre as quais destacam-se (i) a possível uberização do trabalho dos profissionais da saúde, inclusive médicos e (ii) a potencial absorção de margens de lucratividade de outros atores empresariais do setor pelos provedores de serviços, sobretudo se tendentes ao monopólio ou oligopólios com nichos bem definidos. No campo da teoria e prática contratuais é importante refletir sobre tais aspectos e compreender os limites e possibilidades de estruturação de relações contratuais capazes de lidar com tais questões. Na seara regulatória, as pressões são bem mais imediatas.

Não cabe, em um espaço limitado e reservado a questões contratuais, o aprofundamento de questões regulatórias. Deve-se ressaltar, porém, a relação forte entre os possíveis desenhos normativos e institucionais, de um lado, e o desenvolvimento da estrutura dos negócios da telemedicina privada, do outro. Isso implica, no curto prazo, em um padrão complexo de cooperação e rivalidade entre os atores do campo da oferta privada de saúde. Essa, possivelmente, é a razão da inexistência, até o presente, de regras estáveis a respeito do tema.

Em particular, a breve trajetória da Res. CFM 2.227/18 ilustra a insegurança jurídica atinente ao tema. Com efeito, essa norma vigorou por pouco mais de dois meses e deu lugar à repristinação da Res. CFM 1.643/02, expressamente determinada (Res. CFM 2.228/19). A Lei 13.989/20 tratou de dar suporte à oferta de diversos serviços por meio remoto mas, como dito, tem a eficácia condicionada à continuidade da pandemia, finda a qual se restabelece o limbo. Deixe-se clara, não obstante, a ausência de necessidade de uma lei autorizante da oferta remota de serviços médicos; a Lei 12.842/13, reguladora do exercício da medicina, tem abrangência material suficiente para alcançar as teleconsultas e outras práticas. O problema é que muitos atores não se sentem razoavelmente confortáveis para realizar investimentos significativos em um ambiente de insegurança regulatória.

Por conseguinte, as contratações para estruturação de serviços de telemedicina realizadas hoje têm um horizonte de grande indeterminação. As questões regulatórias e a incerteza quanto ao comportamento do mercado não admitem previsibilidade. Isso reduz o apetite de alguns investidores. Por outro lado, a prometida lucratividade e as vantagens de chegar primeiro a um setor em que os efeitos de rede são significativos geram a percepção de que o momento é propício. Aqui, a estruturação de instrumentos contratuais adequados é fundamental. E não é possível fazer isso sem aliar a compreensão jurídica à da natureza econômica, social e regulatória do setor.

Por fim, resta compreender as posições jurídicas dos telemédicos em um ambiente dominado pelos provedores. Há, aqui, duas questões centrais. Em primeiro lugar coloca-se a relação entre médico e paciente e deve-se ter em vista a possibilidade de descaracterização dos modos históricos do vínculo. Em segundo lugar, há o vínculo jurídico entre telemédico e provedor, o qual pode até mesmo tomar a forma de duas caracterizações jurídicas especiais: a de trabalhador e a de consumidor.

A relação com o paciente é tradicionalmente enquadrada em uma ética médica relacionada com os modos de controle profissional, a cargo, no Brasil, do CFM e dos CRMs. Entende-se haver uma imensa vulnerabilidade dos pacientes em razão de ao menos dois fatores: (i) o desnível de conhecimento técnico e científico que impossibilita uma verificação imediata da qualidade e correção do serviço, deixando grande parte da relação ao estabelecimento de vínculos de confiança e (ii) o estado de debilidade decorrente das próprias enfermidades e das urgências delas decorrentes. Formas mediadas de oferta da medicina, das quais participam entidades coletivas como hospitais, planos de saúde ou sistemas públicos, tendem a mitigar essa assimetria.

É interessante observar que o Código de Ética Médica (Res. CFM 2.217/18) inclui entre seus princípios fundamentais a indicação de que "a natureza personalíssima da atuação profissional do médico não caracteriza relação de consumo" (Cap. I, XX). Com efeito, a tendência doutrinária e jurisprudencial brasileira vem no sentido de caracterizar o vínculo entre médico e paciente como alheio ao campo das relações de consumo, embora as entidades responsáveis pela prestação de serviços de saúde não tenham o mesmo destino (entendimento capitaneado pelo Resp 819.008, ainda em 2012, no sentido de que a relação médico-paciente é contratual e encerra obrigação de meio, salvo em casos de cirurgias plásticas de natureza exclusivamente estética). Nesse sentido, não é demais apontar que a responsabilidade do médico se apura mediante comprovação de culpa, por força do Art. 14, §4º CDC. Note-se que se trata de questão suficientemente profunda para repelir a tentação de um tratamento apressado. Importa destacar, porém, a tendência a uma considerável despersonalização e comoditização dos serviços dos telemédicos, inclusive nas teleconsultas.

Há poucas dúvidas de que o serviço dos provedores de telemedicina mediante as plataformas de acesso deverá vir a ser considerado como submetido às regras consumeristas. A situação dos médicos é menos clara. Há, aqui, vários elementos da ética e conduta médicas que devem ser preservados para evitar a reclassificação dos serviços prestados e a eventual responsabilização consumerista solidária. Particularmente, não é razoável que o médico deva avaliar com integral liberdade a viabilidade de realizar o diagnóstico e iniciar tratamento por via remota; ocorre que tal liberdade nem sempre é facilmente aceita por um paciente que pagou pela consulta. Alguns desses ajustes deverão estar não apenas no termo de adesão à plataforma pelos pacientes, mas nos contratos dos telemédicos.

Resta, ainda, discutir a ambiguidade da situação do médico em face do provedor de telemedicina. A figura do trabalhador médico já existe há muito tempo e não haveria nada de excepcional em sua aplicação à telemedicina, sobretudo na oferta pública. As situações difíceis ficam por conta da potencial uberização, ou seja, formas de prestação de serviços sem vínculo trabalhista formal, em jornadas flexíveis on demand, com o risco e os custos principais incidentes sobre o profissional e a ausência de exclusividade como indicador da inexistência de relação de dependência. Há, nesse sentido, indicadores importantes na doutrina e jurisprudência referente à equivalência entre franquia e trabalho. O tratamento dos condutores de Uber ainda está em construção na jurisprudência trabalhista, com destaque recente para decisão do TST contrária ao reconhecimento do vínculo de emprego (RR 1000123-89.2017.5.02.0038). Também nesse sentido, bons instrumentos contratuais podem reduzir a incerteza, seja pela contratação como empregado, seja por um modelo obrigacional suficientemente afastado dos elementos característicos do liame laboral.

Por fim, o telemédico pode eventualmente ser caracterizado como consumidor dos serviços do provedor de telemedicina. Decerto, o profissional interessado em utilizar uma plataforma digital e o conjunto de clientes cadastrados pelo provedor, bem como se beneficiar de sua propaganda e reputação como modo de assegurar algum fluxo de pacientes, contrata serviços como destinatário final e, nesse sentido, revela-se como consumidor. Há evidentes sutilezas relacionadas à condição de consumidor intermediário, mas a verificação de vulnerabilidade técnica, jurídica ou econômica foi aceita pela jurisprudência do STJ como suficiente para configurar a aplicabilidade do CDC (Resp. 716.877, Resp. 914.384, Resp. 1.010.834 e Resp. 1.080.719 i.a.).

Observa-se, portanto, que a novidade do setor e, sobretudo, seu potencial de gerar impactos significativos sobre os modelos de oferta de serviços de saúde pela iniciativa privada, com a eventual preponderância de provedores de telemedicina, levantam questões importantes e indicam um cenário de considerável incerteza. Nesse sentido, a boa estruturação dos contratos em face da compreensão dos modelos de negócio é fundamental para aqueles que pretendem desbravar esse novo campo.

*José Augusto Fontoura Costa é professor da Faculdade de Direito da USP, do Mestrado Profissional em Direito Universidade CEUMA e da Faculdade de Direito de Sorocaba. Doutor e livre-docente em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Bolsista produtividade do CNPq. Membro do IBDCont. Advogado.

**Marco Aurélio Fernandes Garcia é mestre em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Mestre pela Universidade de Luxemburgo. Atua na área de startups e novos negócios Advogado.