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Cláusulas restritivas da propriedade no projeto de reforma do Código Civil

segunda-feira, 24 de novembro de 2025

Atualizado em 21 de novembro de 2025 10:03

1. É tempo de discussões sobre a reforma do Direito Civil. Contribuição em relação à regulamentação da aposição das cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade

A apresentação de um PL, como ocorre com aquele 4 de 2025, que visa reformar o Direito Civil, nos remete a duas reflexões, a saber, (i) qual a experiência de resultados e aceitação social de um determinado instituto jurídico na história e (ii) como buscar na regulamentação legal a função promocional do direito. Com efeito, dentre as funções exercidas pelo Direito, está aquela repressiva-protetora do direito, que se reduz em comandar, proibir e punir, bem como uma função promocional, baseada em sanções positivas, prêmios e incentivas, visando encorajar comportamentos sociais desejados.

Em relação ao histórico das cláusulas restritivas da propriedade, estas sempre foram objeto de críticas contundentes, uma vez que retiram um bem do comércio, gerando, não raro, um estorvo ao titular do bem gravado. Ditas críticas culminaram no caput do art. 1.848, que exige uma justa causa para a posição de ditas cláusulas na legítima dos herdeiros necessários. A crítica a tal dispositivo é direcionada ao fato de que o legislador não apresentou critérios hermenêuticos para a interpretação da justa causa.

Agora, em tempo de reforma, as críticas referidas acima permanecem vigentes, sendo certo que, apesar da maior abertura da jurisprudência para pedidos de dispensa e sub-rogação de gravames, inclusive em virtude do Código atual, que ampliou as hipóteses de sub-rogação às necessidades e conveniência do titular do bem, indaga-se qual a melhor forma de regulamentar o referido instituto.

Sem dúvida, não é conforme o ordenamento jurídico a manutenção de um bem fora do comércio, que tenha o condão de dificultar (rectius, senão impedir) o devedor de pagar suas dívidas, prejudicando os credores. Da mesma forma, uma vez que paralisa determinado bem no patrimônio do seu titular, a inalienabilidade pode representar fonte de descumprimento da função social da propriedade e, ainda, exigir que, para a correção de um inconveniente ao proprietário, este tenha de recorrer ao Poder Judiciário. 

Por outro lado, há casos que poderão justificar o gravame, em razão de vulnerabilidade do seu titular nas relações sociais, bem como em virtude da natureza e função do bem clausulado.

Nessa direção, este texto apresenta uma contribuição ao debate, à luz do PL 4/25. 

2. Inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade

A cláusula de inalienabilidade é uma restrição imposta pelo testador ou pelo doador ao direito de propriedade do herdeiro, legatário ou donatário, proibindo a alienação da coisa a título gratuito ou oneroso. Consiste no aniquilamento do poder de dispor, temporário ou vitalício, oriundo da vontade particular. 

O efeito substancial da cláusula de inalienabilidade é a proibição de alienação. Assim, o titular do domínio não poderá, voluntariamente, vender, doar ou permutar o bem clausulado. A proibição também abrange os atos que visam à alienação eventual ou futura, como a hipoteca, o penhor e outros, sendo a impenhorabilidade um efeito da inalienabilidade. A sanção à violação do efeito substancial é a nulidade do negócio que originou o ato de alienação, uma vez que, nesse caso, haverá um objeto juridicamente impossível (CC, art. 166, II). 

A cláusula de impenhorabilidade tem por efeito tornar o bem gravado insuscetível de penhora por dívidas contraídas pelo titular do domínio, constituindo um desmembramento da cláusula de inalienabilidade, uma vez que a penhora tem por finalidade a alienação do bem para satisfação dos credores. 

Para conceituar a cláusula de incomunicabilidade, Caio Mário da Silva Pereira assinalava que a "Incomunicabilidade é a cláusula segundo a qual o bem permanece no patrimônio do beneficiado, sem constituir coisa comum ou patrimônio comum, no caso de casar-se sob regime de comunhão de bens", sendo certo que, tal como a impenhorabilidade, a incomunicabilidade também é um desmembramento da cláusula de inalienabilidade, estando logicamente, inserida nesta última, já que a comunicação de bens entre cônjuges é uma espécie de alienação, uma vez que dela decorre a transmissão de bens de um patrimônio para outro. 

Daí a redação do caput do art. 1.911 do CC, in verbis: "A cláusula de inalienabilidade, imposta aos bens por ato de liberalidade, implica impenhorabilidade e incomunicabilidade". Tanto a impenhorabilidade quanto a incomunicabilidade poderão ser estipuladas de forma autônoma e, nesses casos, não impedirão a alienação do bem. 

O bem incomunicável poderá ser objeto de garantia de créditos e penhorado e, não obstante ter como efeito a constituição de bens exclusivos de um dos cônjuges, a cláusula de incomunicabilidade não exclui a necessidade de outorga do outro cônjuge para a prática de certos atos. 

O testador ou doador poderá especificar que o bem é inalienável, mas comunicável. Entretanto, o testador ou doador, ao determinar a inalienabilidade do bem, não poderá excluir a impenhorabilidade, pois o art. 833, inciso I, do CPC estabelece que os bens inalienáveis são absolutamente impenhoráveis.

É importante registrar que a inalienabilidade não se estende aos frutos e aos rendimentos dos bens gravados, uma vez que, se assim fosse, a propriedade não conferiria qualquer benefício econômico ao proprietário. Indaga-se se a cláusula de inalienabilidade enseja a impenhorabilidade dos frutos e rendimentos dos bens gravados. Sobre a questão, o CPC estabelece, em seu art. 834, que, à falta de outros bens, podem ser penhorados os frutos e os rendimentos dos bens inalienáveis, sendo certo que a aludida previsão não poderá ser afastada pela vontade do testador ou do doador. No entanto, vale referir posicionamento de Silvio Rodrigues, para quem, se o testador ou doador assim dispuser, neste caso, a penhora dos referidos frutos e rendimentos deverá respeitar a parte destinada à mantença do proprietário do bem. 

Em relação à extensão da incomunicabilidade aos frutos e rendimentos dos bens gravados, a medida é salutar para a proteção almejada pelo doador ou testador, na medida em que, no regime da comunhão parcial, comunicam-se os frutos e rendimentos dos bens particulares do cônjuge (CC, art. 1.660, V) e, sendo os bens doados e herdados particulares no aludido regime, se a incomunicabilidade não se estender aos frutos e aos rendimentos, o bem não se comunicará com o consorte, mas os primeiros sim.

3. Hipóteses de alienação dos bens gravados pela inalienabilidade ou pela impenhorabilidade: Sub-rogação e dispensa dos gravames

Como acima aduzido, o bem gravado pela inalienabilidade não pode ser objeto de alienação, assim como o bem gravado pela impenhorabilidade não pode ser dado em garantia. Sem dúvida, estas restrições podem causar inúmeros transtornos aos proprietários dos bens, limitando o aproveitamento econômico da propriedade. 

O CC de 1916 determinava que as cláusulas restritivas da propriedade não poderiam ser invalidadas ou dispensadas por atos judiciais, exceto em casos de expropriação por necessidade ou utilidade pública ou de execução por dívidas relativas aos imóveis. Nesses casos, deveria ocorrer a sub-rogação do gravame, conforme dispunha o art. 1.677 do mesmo diploma legal, que consiste na substituição da coisa gravada por outra de propriedade do próprio interessado, para a qual será deslocada a cláusula de inalienabilidade, de impenhorabilidade ou de incomunicabilidade, liberando a primeira.

Assim, quando ocorresse a expropriação por necessidade ou utilidade pública, a indenização recebida deveria se converter em outros bens nos quais ficariam sub-rogados os gravames e, no caso de execução por dívidas provenientes de impostos relativos ao imóvel, o saldo deveria ficar sub-rogado nas cláusulas impostas pelo testador ou doador.

O CC de 1916 não previu a hipótese de sub-rogação decorrente de real conveniência ou necessidade daquele que recebeu o bem clausulado. No entanto, dita hipótese sempre foi amplamente aceita pela jurisprudência, valendo apontar que o procedimento de sub-rogação foi previsto no CPC de 1973 nos procedimentos especiais de jurisdição voluntária, dispondo o seu art. 1.109 que, nesses casos, o juiz não estará obrigado a observar o critério de legalidade estrita, podendo adotar em cada caso a solução que reputar mais conveniente ou oportuna, consagrando o juízo de equidade, que se fundamenta nas circunstâncias especiais de cada caso concreto, adotando a solução mais justa e razoável para ele.

Embora o art. 1.676 do CC de 1916 previsse que a cláusula de inalienabilidade não poderia ser dispensada por atos judiciais de qualquer espécie, sob pena de nulidade, a jurisprudência, atenta aos inconvenientes que o referido gravame origina para o proprietário, passou a interpretar tal dispositivo com menos rigor e, assim, em diversas ocasiões autorizou a dispensa das cláusulas restritivas quando a finalidade expressa de sua imposição, determinada pelo testador ou doador, não mais existisse, ou quando as cláusulas comprovadamente prejudicavam o titular do bem gravado, contrariando sua pretensa finalidade, que é a de "proteger e beneficiar" o herdeiro, legatário ou donatário.

O CC em vigor não previu a possibilidade de dispensa dos gravames, embora esta continue sendo admitida na jurisprudência, valendo destacar importante acórdão do STJ sobre a temática:

Recurso especial. Direito Civil. Estatuto da Pessoa Idosa. Doação. Imóvel rural. Cláusulas de inalienabilidade e impenhorabilidade. Cancelamento. Possibilidade. Art. 1.848 do Código Civil. Interpretação sistemática e teleológica. Critérios jurisprudenciais. Presença. 1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 2015 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3). 2. Cinge-se a controvérsia a definir se o cancelamento das cláusulas de inalienabilidade e impenhorabilidade melhor promoveria os direitos fundamentais dos recorrentes, pessoas idosas, e se existente ou não justa causa para o levantamento dos gravames no imóvel rural dos recorrentes. 3. No caso, a alegação de afronta aos arts. 2º, 3º e 37 do Estatuto da Pessoa Idosa deve ser analisada em conjunto com a arguição de violação do art. 1.848 do CC/2002, por meio de interpretação sistemática e teleológica. 4. A possibilidade de cancelamento das cláusulas de inalienabilidade e impenhorabilidade instituída pelos doadores depende da observação de critérios jurisprudenciais: (i) inexistência de risco evidente de diminuição patrimonial dos proprietários ou de seus herdeiros (em especial, risco de prodigalidade ou de dilapidação do patrimônio); (ii) manutenção do patrimônio gravado que, por causa das circunstâncias, tenha se tornado origem de um ônus financeiro maior do que os benefícios trazidos; (iii) existência de real interesse das pessoas cuja própria cláusula visa a proteger, trazendo-lhes melhor aproveitamento de seu patrimônio e, consequentemente, um mais alto nível de bem-estar, como é de se presumir que os instituidores das cláusulas teriam querido nessas circunstâncias; (iv) ocorrência de longa passagem de tempo; e, por fim, nos casos de doação, (v) se já sejam falecidos os doadores. 5. Na hipótese, todos os critérios jurisprudenciais estão presentes. 6. Recurso especial provido.

O CC consagrou, ainda, na linha da jurisprudência anterior, a possibilidade de a sub-rogação ocorrer por real conveniência econômica do proprietário (CC, art. 1.911, p. único) e na hipótese de haver justa causa que a autorize (CC, art. 1.848, § 2º). O CPC/15 manteve a sub-rogação como procedimento de jurisdição voluntária (CPC, art. 725, II), ao qual se aplica o juízo de equidade (CPC, art. 723, p. único).

Confira aqui a íntegra da coluna.