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Migalhas das Civilistas

Um observatório do Direito Civil

Maria Celina Bodin de Moraes, Silvia Felipe Marzagão, Joyceane Bezerra de Menezes, Maria Cristina De Cicco, Flávia Alessandra Naves Silva e Thaís Fernanda Tenório Sêco
Uma família coparental é aquela em que dois ou mais indivíduos, sem estarem em uma relação conjugal ou união estável, decidem ter filhos de forma voluntária, exercendo sua autodeterminação e sem que haja qualquer implicação jurídico-patrimonial entre os genitores. Para Conrado Paulino da Rosa, a coparentalidade ou as famílias coparentais são aquelas que "se constituem entre pessoas que não necessariamente estabeleceram uma conjugalidade, ou nem mesmo uma relação sexual. Apenas se encontram movidos pelo interesse e desejo em fazer uma parceria de paternidade/maternidade"1. Essa relação entre os pais coparentais é regida pelo pacto de coparentalidade2, que pode ser compreendido como um negócio jurídico atípico celebrado entre duas pessoas capazes, com o propósito de estabelecer cláusulas tanto patrimoniais quanto existenciais para a geração, criação, manutenção e desenvolvimento de um filho, independentemente da presença de um vínculo afetivo entre os genitores. Durante a IX Jornada de Direito Civil, realizada pelo Conselho da Justiça Federal (CJF), entre os dias 19 e 22 de maio de 2022, foi proposto o seguinte enunciado: "é admissível o acordo de coparentalidade, fundando no direito ao planejamento familiar, em consonância com o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente", sendo rejeitado sob o argumento de que o mencionado pacto (i) seria eivado de nulidade, pois seria utilizado para tentar descaracterizar os efeitos tanto patrimoniais (sejam eles inter vivos ou sucessórios) quanto extrapatrimoniais (como o dever de alimento) da união estável; e (ii) não poderia dispor de elementos que são intrinsecamente indisponíveis, intangíveis e personalíssimos, quais sejam, os direitos e deverem inalienáveis da filiação e o direito de personalidade do filho3. Ocorre que a subordinação imposta por previsões normativas impede que situações complexas como essas, não abarcadas diretamente pelo ordenamento jurídico, recebam a tutela adequada. Nesse contexto, surge a noção de situações jurídicas, a qual reformula o conceito tradicional de direitos subjetivos na medida em que reconhece a necessidade de uma estrutura conceitual mais ampla para lidar com as interações sociais contemporâneas. De acordo com Perlingieri, a elaboração das situações jurídicas subjetivas está profundamente conectada com o propósito de conferir uma estrutura conceitual a comportamentos e interesses, ou seja, de inserir aspectos da realidade social no âmbito jurídico, razão pela qual assumem relevância para o direito, já que se originam da análise de fatos e da realidade concreta4. Dentro do contexto familiar, diversas formas de expressão são reconhecidas, incorporando a autonomia privada nas decisões relacionadas à família. Assim, a intervenção do Estado se justificada apenas para garantir espaços e liberdades, permitindo que cada pessoa busque sua realização de acordo com suas necessidades e dignidade, dentro do contexto do seu projeto de vida5. Maria Celina Bodin de Moraes e Ana Carolina Brochado Teixeira6 apontam que, no contexto do Estado Democrático de Direito, as decisões sobre as escolhas existenciais têm adquirido crescente importância, à medida que a pessoa humana assume um papel central no sistema jurídico. A constitucionalização e a individualização do direito civil destacaram a relevância das decisões judiciais, uma vez que todas as situações jurídicas devem ser orientadas para a funcionalização da realização plena da pessoa humana. Dentro desse contexto se encaixa o pacto de coparentalidade, impregnado de interesses existenciais, podendo ser compreendido também como um negócio jurídico existencial, no qual a relação jurídica é primariamente composta por situações jurídicas existenciais carentes de proteção, e cujo foco de interesse requer resguardo. Os pactos de coparentalidade podem e devem abranger cláusulas sobre uma variedade de questões importantes, desde o método de concepção dos filhos até a divisão dos custos com os procedimentos médicos relacionados à gravidez e eventual fertilização, os gastos relacionados ao parto e as despesas de saúde do bebê, como também assuntos como religião, puericultura, alimentação e nutrição da criança. Além disso, podem abranger aspectos como educação, atividades extracurriculares, uso de tecnologia (internet, tempo de tela), o estabelecimento do modelo de guarda compartilhada, diretrizes para a tomada de decisões tanto espontâneas quanto emergenciais, e estabelecimento de pensão alimentícia. Defende-se a desnecessidade de homologação pelo Poder Judiciário em todas as questões, acreditando-se na tendência da desjudicialização7. Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda, ao estruturar os elementos essenciais, naturais e acidentais do negócio jurídico, teorizou a denominada "Escada Ponteana". A partir dela, o negócio jurídico pode ser compreendido em três planos: (i) plano da existência; (ii) plano da validade; e (iii) plano da eficácia. No plano da validade, os elementos essenciais ganham corpo, ou seja, deixam de ser meros substantivos e passam a receber adjetivações: partes capazes; vontade livre; objeto lícito, possível, determinado ou determinável e forma prescrita ou não defesa em lei. No pacto de coparentalidade, o que se exige para que seja considerado válido é que os celebrantes sejam civilmente capazes, que o objeto seja a geração de filhos - objeto lícito, uma vez que se autoriza a reprodução assistida), destacando-se que não há forma especial a ser observada, tratando-se de um negócio atípico. No plano da eficácia, a coparentalidade fica amplamente condicionada à inexistência da união estável. Isso porque, caso haja relação de união estável, portanto, um ato-fato jurídico, a assinatura de pacto de coparentalidade com o propósito de fraudar a lei seria considerada inválida, resultando em nulidade (artigo 166, inciso VI do Código Civil). Isso posto, indaga-se quais seriam as consequências jurídicas em caso de descumprimento da celebração do pacto de coparentalidade? Para tanto, passe-se a analisar a relação jurídica obrigacional. A obrigação nasce para ser extinta, seja com o adimplemento, seja com o inadimplemento. Flávio Tartuce conceitua obrigação como:  A relação jurídica transitória, existente entre um sujeito ativo, denominado credor, e outro sujeito passivo, o devedor; e cujo objetivo consiste em uma prestação situada no âmbito dos direitos pessoais, positiva ou negativa. Havendo o descumprimento ou inadimplemento obrigacional, poderá o credor satisfazer-se no patrimônio do devedor8.  No pacto de coparentalidade, há uma relação jurídica obrigacional complexa, pois as partes são, ao mesmo tempo, credoras e devedoras entre si, ou seja, há um sinalagma. A quebra do sinalagma é tida como geradora da onerosidade excessiva, do desequilíbrio negocial, como um efeito gangorra. A principal consequência do inadimplemento é consagrada pelo princípio da responsabilidade patrimonial do devedor, prevendo-se que todos9 os bens do devedor respondem em caso de descumprimento da obrigação, conforme o artigo 391 do Código Civil. No entanto, nos casos que envolvem o pacto de coparentalidade, a desistência por parte de um dos celebrantes não poderá impactar no cumprimento forçado da obrigação, tendo em vista a sensibilidade do tema e o objeto pactuado. Por esse motivo, deverá ser aplicada a regra do inadimplemento absoluto, cuja principal consequência é o pagamento de perdas e danos, tratados entre os artigos 402 a 404 do Código Civil. Conforme o artigo 402 do Código Civil, as perdas e danos devidos ao credor abrangem não apenas o que ele efetivamente perdeu, mas também o lucro razoavelmente deixado de auferir. No entanto, no contexto do pacto de coparentalidade, não se vislumbra a possibilidade de falar em lucros cessantes, tendo em vista a impossibilidade de se atribuir um valor monetário à prole. A perfectibilização do pacto ocorre com a assinatura das partes, sendo que sua principal obrigação é a geração do filho, que se inicia com a fecundação; momento em que as demais cláusulas são então estabelecidas e confirmadas. Caso uma das partes desista anteriormente à fecundação, deverá ser condenada a indenizar materialmente todas as despesas provenientes da celebração do pacto (exames, medicação, alimentação etc.), com atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, abrangendo juros, custas e honorários de advogado, sem prejuízo da pena convencional. Na ocasião em que um dos pactuantes quebre o pacto durante a gestação, ficará inadimplente e sujeito às consequências desse descumprimento, incluindo a obrigação de indenizar por todas as despesas relacionadas à gestação, tanto antes, durante quanto depois do parto. É importante ressaltar que o reconhecimento da paternidade e/ou maternidade é um ato jurídico stricto sensu e não está sujeito aos efeitos do negócio jurídico celebrado entre as partes. Portanto, após a fecundação, o reconhecimento da filiação está devidamente resguardado em razão da sua natureza jurídica. Além disso, sugere-se a pactuação de cláusula penal, que é a penalidade civil imposta pela falta de cumprimento total ou parcial de um dever patrimonial assumido (artigos 408 a 416 do Código Civil). Pactuada entre as partes para casos de violação da obrigação, a cláusula penal reflete o princípio da autonomia privada, sendo também chamada de multa contratual ou pena convencional. É uma obrigação acessória que visa assegurar o cumprimento da obrigação principal e estabelecer antecipadamente o valor das perdas e danos em caso de descumprimento. Por fim, independentemente do reconhecimento legal, as pessoas têm realizado os pactos de coparentalidade e, em breve, o Poder Judiciário poderá ser chamado a intervir para a resolução de disputas eventualmente surgidas. O que se sugere é a aplicação da teoria do inadimplemento das obrigações, aplicando a indenização por perdas e danos, com eventual execução da cláusula penal em relação à parte que descumpriu o negócio pactuado.  Referências  BORGES, Yago. Sobre este grupo: coparetanlidade, barriga solidária, casais LGBTQIA+. Facebook. Disponível aqui. Acesso em 21 abr. 2023, n.p.  BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível aqui. Acesso em 15 mar. 2023.  BRASIL. Senado Federal. Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil. Relatório final dos trabalhos da Comissão. Brasília, DF: 11 abr. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 16 abr. 2024.  MATOS, Ana Carla Harmatiuk; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Pacto antenupcial na hermenêutica civil-constitucional. In: MENEZES, Joyceana Bezerra de; CICCO, Maria Cristina de; RODRIGUES, Francisco Luciano Lima (Orgs.). Direito civil na legalidade constitucional: algumas implicações. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 19.  MORAES, Maria Celina Bodin de; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Contratos no ambiente familiar. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RODRIGUES, Renata de Lima. Contratos, família e sucessões: diálogos interdisciplinares. 2. ed. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 1-2.  PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. Tradução de Maria Cristina de Cicco. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.  PROJETO COPARENTS WORLD. 10 mar. 2024. Instagram: @coparents.world. Disponível aqui. Acesso em: 10 mar. 2024, n.p.  ROSA, Conrado Paulino da. Direito de Família Contemporâneo. 10 ed. São Paulo. JusPodivm, 2023, p. 253.  STROZZI, Arthur Lustosa et al. Análise jurídica do pacto de coparentalidade à luz da teoria do negócio jurídico e das consequências de seu inadimplemento. In: ROSA, Conrado Paulino da; IBIAS, Delma Silveira (coord.). IBDFAM/RS, Instituto Brasileiro de Direito de Família (org.). Diálogos contemporâneos sobre família e sucessões: perspectivas e desafios. Porto Alegre: Gráfica RJR, 2024.  TARTUCE, Flávio. Direito civil: direito das obrigações e responsabilidade civil. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. 3.  VIEIRA, Danilo Porfírio de Castro. O contrato de coparetanlidade e a finalidade (ir)resistível: a (des)caracterização da união estável. Associação de Direito de Família e das Sucessões, São Paulo, 23 mai. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 07 mai. 2023, n.p. __________ *Aprofunde-se no tema: STROZZI, Arthur Lustosa et al. Análise jurídica do pacto de coparentalidade à luz da teoria do negócio jurídico e das consequências de seu inadimplemento. In: ROSA, Conrado Paulino da; IBIAS, Delma Silveira (coord.). IBDFAM/RS, Instituto Brasileiro de Direito de Família (org.). Diálogos contemporâneos sobre família e sucessões: perspectivas e desafios. Porto Alegre: Gráfica RJR, 2024. 1 ROSA, Conrado Paulino da. Direito de Família Contemporâneo. 10. ed. São Paulo. JusPodivm, 2023, p. 253. 2 Adotamos a expressão pacto de coparentalidade por entendê-lo enquanto negócio jurídico complexo, que envolve elementos existenciais e patrimoniais patrimoniais e, exatamente por essa razão, utiliza a expressão "pacto" em vez de "contrato". 3 VIEIRA, Danilo Porfírio de Castro. O contrato de coparetanlidade e a finalidade (ir)resistível: a (des)caracterização da união estável. Associação de Direito de Família e das Sucessões, São Paulo, 23 mai. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 07 mai. 2023, n.p. 4 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. Tradução de Maria Cristina de Cicco. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. 5 MATOS, Ana Carla Harmatiuk; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Pacto antenupcial na hermenêutica civil-constitucional. In: MENEZES, Joyceana Bezerra de; CICCO, Maria Cristina de; RODRIGUES, Francisco Luciano Lima (Orgs.). Direito civil na legalidade constitucional: algumas implicações. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 19. 6 MORAES, Maria Celina Bodin de; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Contratos no ambiente familiar. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RODRIGUES, Renata de Lima. Contratos, família e sucessões: diálogos interdisciplinares. 2. ed. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 1-2. 7 A redação proposta pela relatoria-geral da comissão de juristas responsável pela reforma do anteprojeto do Código Civil contempla a possibilidade de adicionar um novo artigo, o 1.655-A, ao Código Civil. Esse artigo estabelece que os pactos conjugais e convivenciais podem incluir cláusulas para resolver questões relacionadas à guarda e sustento dos filhos em caso de término da convivência conjugal. O tabelião deve informar a cada uma das partes envolvidas, separadamente, sobre o alcance potencial das limitações ou renúncias de direitos. Contudo, sabe-se que há corrente que defende a necessidade de judicialização e homologação de determinadas cláusulas, em especial, nos casos de inseminação caseira ou autoinseminação. 8 TARTUCE, Flávio. Direito civil: direito das obrigações e responsabilidade civil. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. 3. 9 Destacam-se as exceções, entre outras existentes, os artigos 1.711 a 1.722 do Código Civil (bem de família) e 833 do Código de Processo Civil.
A união estável é um modelo de família pautada na conjugalidade informal muito conhecido entre nós e bastante utilizado pela sociedade brasileira. De acordo com a Constituição Brasileira, no art.226, §3º. "A união estável entre homem e mulher é reconhecida como entidade familiar para efeitos de proteção estatal, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento". Após o julgamento da ADI nº4.277, pelo Supremo Tribunal Federal, também pode ser formada por pessoas do mesmo sexo. As principais normas que disciplinam a união estável estão concentradas nos artigos 1.723 e seguintes do Código Civil e o seu suporte fático ou hipótese normativa se extrai, principalmente, do art.1.723, cuja redação sempre foi alvo de críticas porque enseja confusão interpretativa, em especial quanto à natureza do instituto. Art. 1.723. É reconhecida como (A) entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, (B) configurada na convivência pública, contínua e duradoura e (C) estabelecida com o objetivo de constituição de família. No que toca à parte final do dispositivo, há forte dissidência doutrinária que resulta em três posições distintas quanto à importância atribuída à vontade dos companheiros, classificando a união estável como ato-fato jurídico, ato jurídico ou negócio jurídico. A posição majoritária é liderada por Paulo Lobo1 e qualifica a união estável como um ato-fato jurídico, uma vez que, na hipótese normativa do art.1.723, há fatos decorrentes da ação humana, seja ela volitiva ou avolitiva. Isso porque a família decorrente dessa conjugalidade informal é formada a partir de uma convivência pública, contínua e duradoura. Presentes os pressupostos que demonstram a família já formada, será indiferente que os conviventes tenham firmado um contrato de namoro, de acompanhante, de patrocínio etc. Tais documentos serão ineficazes, e a união estável com seus efeitos pessoais e patrimoniais prevalecerá, desde que estejam presentes os elementos que compõem a hipótese normativa, independentemente da chamada 'formalização' ou da manifestação expressa da vontade. Em outra publicação, compartilhando o entendimento do Professor Paulo Lobo, escrevi: "Sendo a união estável um ato-fato jurídico, não haverá necessidade de se perquirir sobre a manifestação volitiva e/ou a conduta intencional dos partícipes. Seria suficiente a configuração da situação de fato com o cerne e os elementos completantes do suporte fático, todos já comentados. Ainda que os companheiros tenham declarado a vontade de estabelecer a sua convivência como união estável, essa tal vontade não seria, em si, relevante para a formação do instituto jurídico."2 No mesmo sentido, Débora Gozzo e Maria Carolina Nomura Santiago afirmam: "A união estável, por sua vez, é um ato-fato, que não tem data exata de início, não tem tempo mínimo de existência para que assim seja considerada, e não tem o condão de alterar o estado civil".3 A segunda posição qualifica a união estável como ato jurídico stricto sensu e assim, atribui importância à vontade dos conviventes. Nesse caso, a vontade pode ser apenas manifesta a partir da conduta cotidianamente praticada. Rolf Madaleno4 e o saudoso Zeno Veloso defendem a união estável como ato jurídico.5 Marcos Bernardes de Melo6 chegou a pensar do mesmo modo, conforme texto publicado no ano de 2010, havendo alterado o seu posicionamento posteriormente. Se os conviventes agirem como se casados fossem, presume-se que há intenção de formar uma união estável. Para afastar essa presunção, eles poderão fazer uma declaração formal, expressando que sua conduta não deve ser interpretada como consentimento para enquadramento do relacionamento como união estável. Nessa medida, um contrato de namoro, de acompanhante ou de patrocínio poderia ser útil para afastar o enquadramento da relação dos contratantes como uma união estável. A terceira posição é minoritária e segue capitaneada pelo civilista Marcos Bernardes de Melo7 para quem a união estável é um negócio jurídico. Nesse entendimento, a união estável só ocorrerá se houver a declaração de vontade das partes que, inclusive, poderão autorregular o seu relacionamento nos aspectos patrimoniais e existenciais. Sob essa natureza jurídica, a união estável se aproxima bastante do casamento, vez que ambos os tipos de conjugalidade dependerão da prévia declaração volitiva das partes. Diferenciam-se, principalmente, pelo conjunto de formalidades que cercam o casamento, negócio jurídico complexo de direito de família. Se voltarmos o olhar ao passado, encontraremos fortes evidências que justificam a positivação do instituto como um ato-fato jurídico. Nas atas das sessões da Comissão de Família, na Constituinte "§ 3° do art. 1° realmente cria a possibilidade de se amparar a união estável entre o homem e a mulher. É a antiga luta em que me empenhei, em favor da companheira, que e´ a mulher livre que vive com um homem livre e com quem não se casa, muitas vezes, porque ele não quer casar."  (Sr. constituinte Mendes Ribeiro - Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, Ciência e Tecnologia da Comunicação. reunião em 1º de junho de 1987). Assim como na mensagem presidencial para vetar os artigos 3º., 4º. e 6º. Do projeto de lei que deu ensejo à lei 9.278/96 "em primeiro lugar, o texto é vago em vários dos seus artigos e não corrige as eventuais falhas da lei 8.971. Por outro lado, a amplitude que se dá ao contrato de criação da união estável importa em admitir um verdadeiro casamento de segundo grau, quando não era esta a intenção do legislador, que pretendia garantir determinados efeitos a posteriori a determinadas situações nas quais tinha havido formação de uma entidade familiar." (Trecho do veto presidencial). Não sem razão, a maioria dos julgados do Supremo Tribunal de Justiça qualifica a união estável como um ato-fato jurídico, como se pode verificar nos REsp nº 1.761.887; nº 1.688.836 e nº 2.042.88. É assim que insistimos em afirmar que a união estável e o casamento são modelos de conjugalidades diferentes. Se fossem equivalentes, a Constituição da República não teria determinado que a lei facilitasse a sua conversão em casamento. A distinção resiste tão somente na forma como se constituem vez que, para os fins da proteção do estado, a família decorrente da união estável tem o mesmo status que a família matrimonial. Em suma, o casamento é um negócio jurídico, enquanto a união estável viceja no mundo dos fatos assim como as flores brotam na primavera. Sendo um fato derivado da ação humana, é considerado ato-fato jurídico, figura genuinamente brasileira, idealizada por Pontes de Miranda.8 Na vida cotidiana, muitos(as) companheiros(as) que compartilham uma plena comunhão de vida não se preocupam em formalizar essa união ou em refletir sobre como nomear o relacionamento, seja como namoro, amizade ou união estável. Há pessoas tão discretas que não se expõem e amam baixinho, como dizia Mário Quintana: "se tu me amas, ama-me baixinho. Não o grites de cima do telhado. Deixa em paz os passarinhos". Os dados informados pelo Cartório em Números mostram que de 2006 a novembro 2023, foram lavradas 2.180.948 escrituras de união estável.9 Em período equivalente, de 2002 a novembro de 2023, foram celebrados mais de 20 milhões casamentos.10 Será isso indica uma preferência nacional pelo casamento? Parece que o brasileiro gosta de se casar, mas também parece certo que há muita gente vivendo união estável sem declaração formal e/ou registro. Muitas pessoas de baixa renda só se darão ao trabalho de nominar a sua relação quando precisarem pleitear a pensão por morte, no INSS, após o óbito do(a) companheiro(a). Muitos(as) não se ocupam de "formalizar" a sua união. Esse termo é, aliás, um equívoco: a união estável, enquanto ato-fato jurídico se distingue do casamento exatamente por não ser formalizada. Com a alteração da lei de registros público pela Lei no.14.382/2022, que lhe acrescentou o art.94-A, facultou-se aos conviventes a "formalização" da sua união estável por meio de um termo declaratório, escritura declaratória ou sentença judicial. O termo declaratório de união estável é figura nova. Deve ser realizado perante o Ofício de Registro Civil e parece uma espécie de escrituração registral por meio da qual as pessoas fazem a declaração a existência de sua união, indicam o regime de bens aplicável e também declaram a dissolução da união, a tudo registrando no livro E, aquele livro utilizado para registrar todos os atos para os quais a lei não indicou livro específico. A escritura pública declaratória (de existência ou de dissolução) de união estável é lavrada pelo notário (registrador de notas) e também deve ser levada a registro no livro E. A sentença judicial que reconhece a união estável ou que a dissolve também pode ser levada a registro nesse mesmo livro. Não poderá ser registrado no livro E, a união estável de pessoas casadas e separadas de fato, ressalvado o caso em que já houver separação judicial ou extrajudicial, ou quando a declaração da união estável for decorrente de sentença judicial transitada em julgado. A lei também criou o chamado procedimento de certificação eletrônica que se presta a indicar os marcos inicial e/ou final da união estável, a partir de procedimento administrativo que tramitará no ofício de registro civil. Com essa providência, a certidão de conversão da união estável em casamento poderá apontar o termo inicial da convivência a partir do qual retroagirão os efeitos do casamento. Visando orientar a atividade cartorária, o CNJ editou normas especiais que hoje estão compiladas no Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça - Foro Extrajudicial (CNN/ CN/CNJ-Extra) - Provimento nº149/2023, a partir do art. 537. Essa mudança não altera a natureza da união estável porque a chamada formalização é mencionada pela própria legislação como uma providência facultativa. O termo declaratório ou a escritura pública não são atos constitutivos da união estável, como diz a lei, repita-se. No entanto, observa-se um impulsionamento legal para que se adotem essas medidas, haja vista que os efeitos jurídicos atribuídos à essa "união formalizada" não se estendem à união estável de fato. Na linha do anteprojeto do novo Código Civil, adotada a providência facultativa do registro, os conviventes terão o seu estado civil alterado,11 nelas se aplicando as presunções relativas à filiação (art.1.597) e os efeitos patrimoniais (art.9º., §1º). Embora a redação do art.1.564-A induza ao entendimento de que a união estável é um ato fato jurídico, o art.1.564-C, parágrafo único, ressalta que o termo inicial declarado no registro será o marco para a retroatividade dos efeitos do casamento, em caso de conversão.12 Teme-se o esvaziamento da proteção para aqueles casais que vivem uma união estável sem a formalização. Estarão eles expostos ao risco de uma interpretação restritiva do Judiciário que, eventualmente, poderá negar efeitos jurídicos à sua união, argumentando que a falta de formalização reflete a ausência da intenção de estabelecer a união estável. Outras questões mais formais são decorrentes dessa formalização: O termo declaratório oficializado no registro civil pode ser utilizado para dissolver a união estável e, nesse aspecto, infringe-se mandamento constitucional segundo o qual medida provisória não pode legislar sobre matéria de direito processual (CF/88, art.62, §1º, I, alínea b). O termo declaratório não é escritura pública e, no entanto, poderá realizar partilha de imóveis. Trata-se de uma exceção ao art.108, do Código Civil, cuja disposição afirma que a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visam à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário-mínimo vigente no País? Uma vez que o termo declaratório é hábil pra escolha de qualquer regime de bens, na hipótese de conversão da união estável em casamento, a regra será a manutenção do regime escolhido. Assim, havendo o casal optado por um regime diverso da comunhão parcial no termo declaratório, o mesmo regime será aplicado ao casamento sem a necessidade de pacto antenupcial por escritura pública "Como o termo declaratório é documento hábil para a escolha de qualquer regime de bens (separação de bens, participação final nos aquestos, comunhão universal), na conversão da união estável em casamento, o regime escolhido será mantido sem a necessidade de pacto antenupcial que só será exigido para os casos em que desejarem a aplicação de um outro regime de bens para o casamento (CC/02 arts.1.640 e 1.653). Portanto, poderá suscitar mudança de regime sem prévia discussão quanto à partilha e admitir-se-á, a aplicação de regime diverso do convencional sem pacto antenupcial.  Em caso de óbito, o termo declaratório de união estável é documento hábil para habilitação do companheiro sobrevivente como herdeiro? Eis o problema. O casal poderia não estar vivendo união estável com os seus pressupostos legais.  E assim, a união estável poderá ser questionada pelos interessados.  E quanto aos preços: será que a providência formalizadora é atrativa ou acessível à população mais pobre? Receia-se que não. No estado do Ceará, o custo para a formalização do casamento é de  R$389,05 enquanto o custo do termo declaratório com o registro é de R$222,10 e o da escritura declaratória, é de  R$252,86. A certificação eletrônica, conforme o provimento no.149/2023, do CNJ deve custar 50% do valor da habilitação para o casamento. Nas hipóteses de termo declaratório com a certificação eletrônica, somam-se os valores; assim como na escritura pública declaratória.  Cuide-se para que a medida não venha a desnaturar a união estável, ainda que a legislação ressalte a sua facultatividade. À margem continuarão aquelas pessoas a quem o constituinte queria prestigiar quando positivou a figura da união estável no texto constitucional. A quem a providência atenderá e a quem prejudicará? Essa é a reflexão. __________ 1 LOBO, Paulo Luiz Neto. Direito Civil: Famílias. 14. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2024, p.154. 2 MENEZES, Joyceane Bezerra de. União estável: conceito. In: União estável: aspectos materiais e processuais. MENEZES, Joyceane Bezerra de (Org.). 1ed. Indaiatuba: Editora Foco, 2024, p. 34. 3 GOZZO, Débora; Santiago, Maria Carolina Nomura. Regime da separação legal de bens na união estável: impossibilidade de aplicação por analogia. Revista de Direito Civil Contemporâneo. v.33, p.4, out. /dez.2022. 4 MADALENO, Rolf. Direito de família. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p.455. 5 VELOSO, Zeno. União estável e o chamado namoro qualificado. Direito Civil: temas. Belém: ANOREG, 2018, p.296. 6 Marcos Bernardes de Melo adotou essa posição em artigo publicado no ano de 2010. Dizia ele que a união estável requer o "[...] consentimento, configurado na vontade determinante de formar uma união ao estilo do casamento, de viver como se tratasse de uma relação conjugal, compartilhando duas vidas, que antes transitavam separadas, agora, em uma real união de fato, onde cada um dos conviventes tem a exata dimensão e a natural capacidade de entender e, principalmente, querer viver como se casado fosse, e para isso o tempo é irrelevante. " (MELO, Marcos Bernardes. Sobre a classificação do fato jurídico da união estável. In: Famílias no Direito Contemporâneo: Estudos em homenagem a Paulo Luiz Netto Lôbo. ALBUQUERQUE, Fabíola Santos; EHRHARDT JR., Marcos; OLIVEIRA, Catarina Almeida de (Coord.). Salvador: JusPodivm, 2010, p. 160-163. 7 MELO, Marcos Bernardes. Breves notas sobre o perfil jurídico da união estável. Revista Fórum de Dir. Civ. - RFDC, Belo Horizonte: ano 9, n. 24, p. 256, maio/ago. 2020. 8 MIRANDA, Pontes de. Coleção Tratado de Direito Privado: parte geral. São Paulo: Ed. RT, 2012, v.2. p.457. 9 ASSOCIAÇÃO DOS NOTÁRIOS E REGISTRADORES DO BRASIL. Cartórios em números: 5ª edição 2023 - Especial Desjudicialização. Brasília: ANOREG-BR, 2023, p.93. Disponível aqui. Acesso em: 11 out. 2024. 10 ASSOCIAÇÃO DOS NOTÁRIOS E REGISTRADORES DO BRASIL. Cartórios em números: 5ª edição 2023 - Especial Desjudicialização. Brasília: ANOREG-BR, 2023, p.48. Disponível aqui. Acesso em: 11 out. 2024. 11 Art. 1.564-A. E´ reconhecida como entidade familiar a unia~o esta´vel entre duas pessoas, mediante uma convive^ncia pu´blica, conti´nua e duradoura e estabelecida como fami´lia. § 3o E´ facultativo o registro da unia~o esta´vel, mas, se feito, altera o estado civil das partes para conviventes, devendo, a partir deste momento, ser declarado em todos os atos da vida civil." 12 Art. 1.564-C. A unia~o esta´vel podera´ converter-se em casamento, por solicitac¸a~o dos conviventes diretamente no Carto´rio de Registro Civil, das Pessoas Naturais, apo´s o oficial certificar a ause^ncia de impedimentos, na forma deste Co´digo. Para´grafo u´nico. Ter-se-a´ como data do ini´cio da unia~o que se pretende converter em casamento a do registro e em caso de unia~o esta´vel de fato a data declarada pelos interessados ao oficial." 
Os direitos das mulheres são fruto de lenta e gradual conquista ao longo dos últimos séculos, sobretudo por força do movimento feminista nas últimas décadas que tem descortinado as múltiplas formas de opressão do patriarcado1. Notadamente, o controle sobre os corpos femininos constitui traço marcante ainda presente no direito brasileiro2, em que pese os recentes avanços na matéria3. Contudo, assinala-se que tais direitos são constantemente ameaçados em cenários de convulsão política e/ou econômica, além de discursos religiosos que ainda atravessam o tema. No entanto, não é apenas em tempos de tensão social que a conquista de tais direitos é posta em xeque, o que descortina a permanência da vulnerabilidade da mulher diante da desigualdade de gênero. Desse modo, vale frisar que discursos científicos e práticas médicas igualmente podem desconsiderar o protagonismo da mulher sobre seus corpos e tolher a liberdade de escolha no governo de suas vidas. A gravidez e o parto são exemplos de fases fortemente medicalizadas e que a discussão sobre a autonomia da mulher ainda permanece em pauta. Em março de 2018, o CREMERJ - Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro propôs ação civil pública em face do Coren/RJ - Conselho Regional de Enfermagem do Rio de Janeiro, do Cofen - Conselho Federal de Enfermagem e de duas enfermeiras obstétricas. O CREMERJ objetivava com a referida demanda que: (a) o COREN e ao COFEN fossem compelidos a coibir através de medidas restritivas a prática do denominado Parto Humanizado; e (b) confirmando a tutela antecipada requerida exclusivamente em relação às duas enfermeiras obstétricas, fosse coibida a essas enfermeiras a execução do procedimento denominado parto humanizado, domiciliar ou qualquer outra prática obstétrica, sem que façam parte de equipe médica. O cerne da questão controvertida consistia em ser possível ou não a realização por enfermeiras obstétricas do procedimento denominado parto humanizado, inclusive em domicílio, desde que seja um parto sem distocia, isto é, um parto sem perturbações, ou qualquer outra prática obstétrica sem que faça parte de equipe médica. Afirmava o CREMERJ que a execução de partos humanizados extrapola a competência das enfermeiras obstétricas e seria "totalmente irregular e declaradamente imbuída de riscos à Saúde da parturiente e seu feto, adentrando a um risco em demasia a população, ao consumidor e a saúde como um todo". O pedido do CREMERJ foi rejeitado em primeira instância, tendo sido reconhecida a legitimidade da atuação autônoma das enfermeiras obstétricas para realizar partos normais. A decisão apresentou sólidos fundamentos, dentre os quais merecem ser citados: (a) a realização de parto por enfermeira obstétrica, sem integrar equipe de saúde, é prevista na lei 7.498/86, art. 11, inciso II; (b) o parto sem distocia, como um evento normal e sem risco, não é atividade privativa do profissional médico; os enfermeiros obstétricos são qualificados e não há usurpação de competência ou desrespeito ao exercício indispensável, digno e ético da medicina, tendo em vista que o parto não é atividade privativa do profissional médico. Com precisão se identificou que a celeuma consistia precisamente na interpretação do disposto na lei 7.498/86, em relação ao que seria atividade privativa de enfermeiro (inciso I do art. 11) e o que seria atividade do enfermeiro como integrante de equipe de saúde (inciso II do art. 11). Atividade privativa é aquela que somente o enfermeiro pode fazer, à exclusão de todos os outros profissionais; e atividade de participação é aquela em que o enfermeiro pode fazer, concorrendo com outros profissionais, na modalidade em que determina o verbo. No caso do parto, o enfermeiro pode "executar", o médico e até a parteira, desde que sem distocia, como bem se infere da mens legis. Como consignado na referida decisão, a lei é bem nítida. Caso a execução do parto normal por enfermeira obstétrica exigisse a presença de um médico, nenhum sentido teria a previsão legal para que a enfermeira, ao identificar distocias obstétricas, tome providências até a chegada do médico. Torna-se evidente que ela pode executar partos sem distocia sozinha e que apenas se houver distocia é que se faz necessária a presença de um médico. A importância da situação não escapou ao julgador, que esclareceu ter o Ministério da Saúde criado, no âmbito do SUS, centros de parto normal (Casas de Parto), com o objetivo de resgatar a humanização do parto como evento natural, fisiológico, garantindo às gestantes menores intervenções e com a necessária atenção à mulher num contexto gravídico-puerperal, através de um atendimento ao pré-natal e ao parto normal de baixo risco, sem distocias.4 Na verdade, a criação das casas de parto decorreu da constatação de que o modelo de atenção ao parto em nosso país contraria as recomendações mundiais acerca dos critérios na utilização das práticas obstétricas, diante dos altos índices de intervenção médica5. O resgate do parto normal como um evento natural, com assistência pré-natal e cuidado humanizado assistencial à parturiente e ao seu bebê, revela a retomada da concepção de que o parto e o nascimento não significam eventos de risco certo e implícito. Efetivamente dúvidas não podem restar quanto à legitimidade de atuação autônoma das enfermeiras obstétricas, quando se verifica que as diretrizes nacionais de assistência ao parto normal no Brasil, aprovadas pelo Ministério da Saúde nos termos da portaria 353, de 14 de fevereiro de 2017, estabelecem expressamente que "[A]a assistência ao parto de risco habitual, que se mantenha dentro dos limites da normalidade, pode ser realizada tanto por médico obstetra quanto por enfermeira obstétrica ou obstetriz" (6, 10). Não obstante as consistentes razões de direito apresentadas, a decisão de primeiro grau foi reformada pela 8ª turma Especializada do TRF da 2ª região, que, por unanimidade, deu provimento parcial à apelação do CREMERJ, para reformar a sentença proferida pelo Juízo da 6ª Vara Federal da seção Judiciária do Rio de Janeiro, para: (a) julgar procedente em parte o pedido formulado na ação civil pública a fim de determinar que o COREN-RJ e o COFEN realizassem medidas aptas a coibir a execução de partos domiciliares por enfermeiros e enfermeiras obstétricas sem que faça parte de equipe médica; e (b) condenar as duas enfermeiras obstétricas na obrigação de não fazer, consistente em se absterem de executar partos domiciliares, sem que façam parte de equipe médica. A 8ª turma Especializado do TRF da 2ª região igualmente entendeu que o mérito da questão consistia na possibilidade ou não de realização por enfermeiras obstétricas do parto sem distocia ou qualquer outra prática obstétrica sem que faça parte de equipe médica, bem como inexistir nos autos controvérsia quanto à qualificação das enfermeiras então recorrentes. Contudo, concluiu a referida turma que a atuação dessas profissionais não deve ocorrer isoladamente, sem uma equipe médica, sobretudo porque, em caso de intercorrências capazes de complicar o quadro, afastando a possibilidade de parto normal ou qualquer outro evento mais grave, haverá necessidade da intervenção médica. A questão foi levada ao STJ, tendo a 1ª turma, por unanimidade, dado provimento ao RE 2.099.736/RJ, de relatoria do ministro Gurgel de Faria. Em síntese, entendeu a 1ª turma que: (a) o art. 11, inciso II, da lei 7.498/86 autoriza aos enfermeiros a execução direta do parto sem distocia (sem perturbação), não condicionando a realização do ato à assistência direta de um médico; (b) a norma interpretada não traz, em nenhum momento, a necessidade da presença de um médico em si, nem mesmo da equipe de saúde; (c) a lei  do ato médico (lei 12.842/13) também não contém a previsão de que a identificação da distocia é exclusiva do médico; percebendo a perturbação para o bom andamento do parto (com distocia), compete à enfermeira obstétrica encaminhar o paciente ao médico (art. 11, parágrafo único, alínea b, da lei 7.498/86), e só então o médico terá a competência exclusiva para, se for o caso, determinar a doença que acomete a paciente; d) se a enfermeira obstétrica necessitasse da presença de um médico para fazer o parto normal sem distocia, não faria sentido a disposição legal que determina à enfermeira tomar providências até a chegada do médico; e) a portaria 353/17, do Ministério da Saúde, que aprovou as diretrizes nacionais de assistência ao parto normal no Brasil, expressamente previu que "a assistência ao parto e nascimento de baixo risco que se mantenha dentro dos limites da normalidade pode ser realizada tanto por médico obstetra quanto por enfermeira obstétrica e obstetriz".6 Não parece razoável, como observado na decisão de primeira instância, que o CREMERJ monopolize a realização do parto sem distocia em favor apenas dos profissionais médicos. De igual modo, não se mostra legítimo o pleito da autarquia de se condicionar a atividade da(o) enfermeira(o) obstétrica(o) à presença do médico, quando a lei assim não o faz, ainda que busque fazê-lo através da mão do Judiciário, especialmente quando atingidos seriam os direitos de terceiras, gestantes e parturientes. Efetivamente não se mostra legítimo condicionar a atividade da(o) enfermeira(o) obstétrica(o) à presença do médico, quando a lei assim não o faz, nem poderia o Judiciário, por vias obliquas, legislar em contrário. Estabelecer tal condicionamento, além de restringir a atividade da(o) enfermeira(o), violaria de sobremaneira o exercício do direito de escolha da gestante e parturiente. Cabe sublinhar que as investidas do CREMERJ em face da atuação da enfermagem obstétrica e, por conseguinte, do direito de escolha da gestante pela via do parto são anteriores à aludida ação civil pública. Em 2012, a resolução 265 proibiu a participação de médicos em partos domiciliares. Igualmente nesse sentido, foi editada a resolução 266/12, que vedava a participação de pessoas não habilitadas e/ou profissionais não reconhecidas na área da saúde durante e após a realização do parto, em ambiente hospitalar, tais como doulas, obstetrizes e parteiras. As citadas resoluções foram consideradas ilegais em decisão irrecorrível do TRF da 2ª região. Em sede de julgamento de embargos infringentes, registrou o desembargador Guilherme Calmon Nogueira da Gama em seu voto: "Não se afigura razoável admitir que o CREMERJ inove e limite direito e garantias fundamentais, criando, por meio de resoluções, vedações e restrições não contempladas pelas normas constitucionais e infraconstitucionais vigentes".7 Posteriormente, o CREMERJ editou a resolução 348/23, que igualmente dispõe sobre a proibição da participação do médico em partos domiciliares planejados. O ato normativo está suspenso por decisão judicial por força de ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal8. Como se vê, o panorama de reiteradas tentativas paternalistas e interventivas apenas descortina a violação à autonomia das gestantes e vilipendia o direito ao próprio corpo de mulheres grávidas sob o argumento da autonomia dos médicos9. Além disso, a edição da Resolução após a decisão imutável em relação às anteriores ofende a coisa julgada material e apenas reforça a cruzada da autarquia contra a liberdade de escolha e dignidade das mulheres grávidas e parturientes. A mencionada decisão do STJ, portanto, tem grande alcance social, na medida em que resgata e assegura o direito das mulheres gestantes e parturientes à escolha do parto normal e das enfermeiras obstétricas ao exercício autônomo da profissão que escolheram, para qual se credenciaram e à qual se dedicam com reconhecido desvelo. ________ 1 V., em especial, HOOKS, Bell. Teoria feminista: da margem ao centro. Trad. de Rainer Patriota. São Paulo: Perspectiva, 2019. 2 Seja permitido remeter a BARBOZA, Heloisa Helena; ALMEIDA JUNIOR, Vitor de Azevedo. (Des)Igualdade de gênero: restrições à autonomia da mulher. Pensar - Revista de Ciências Jurídicas, v. 22, p. 240-271, 2017. 3 Vide, por exemplo, a lei 14.443, de 2 de setembro de 2022, que alterou a lei 9.263, de 12 de janeiro de 1996, para determinar prazo para oferecimento de métodos e técnicas contraceptivas e disciplinar condições para esterilização no âmbito do planejamento familiar. 4 A Portaria 11, de 7 de janeiro de 2015, redefiniu as diretrizes para implantação e habilitação de Centro de Parto Normal (CPN), no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), para o atendimento à mulher e ao recém-nascido no momento do parto e do nascimento, em conformidade com o Componente PARTO E NASCIMENTO da Rede Cegonha, e dispõe sobre os respectivos incentivos financeiros de investimento, custeio e custeio mensal. De acordo com o Ministério da Saúde: "Os Centros de Parto Normal - CPN são unidades de saúde destinadas à assistência ao parto de risco habitual, fora de estabelecimento hospitalar, que prestam assistência ao trabalho de parto, parto, puerpério e cuidados com o recém-nascido. São projetados para oferecer um ambiente acolhedor e assistência humanizada às gestantes que desejam o parto normal". Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/novo-pac-saude/centros-de-parto-normal. Acesso em 22 ago. 2024. 5 Cf. WHO recommendations: intrapartum care for a positive childbirth experience. Geneva: World Health Organization, 2018. 6 Em relação à discussão a partir do veto do art. 10 da lei 7.498/86, concluiu a c. Corte: "Em outras palavras, se, à época do veto do art. 10 da lei 7.498/1986, era 'discutível' a autonomia dos serviços e da assistência de enfermagem sem supervisão médica, essa discussão parece ter evoluído para o sentido contrário, ao menos no que concerne à atividade da enfermeira obstétrica em sua atuação no parto normal de baixo risco". STJ, REsp. 2.099.736/RJ, 1ª turma, Rel. Min. Gurgel de Faria, julg. 20 ago. 2024, publ. 26 ago. 2024. 7 TRF 2ª região, Embargos Infringentes 0041307-42.2012.4.02.5101, Rel. Des. Sergio Schwaitzer, julg. 04 nov. 2020, publ. 09 nov. 2020. 8 A decisão que deferiu a liminar para suspender os efeitos da citada Resolução destacou os seguintes pontos: "Sob uma ótica constitucional, na qual se valoriza o livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer, não pode o CREMERJ impedir que os médicos exerçam seu ofício, com base no art. 5º, XIII, da CF. Além disso, a proibição de médicos em partos domiciliares poderá afetar negativamente o direito fundamental à saúde, uma vez que, diante da carência de hospitais, os procedimentos domiciliares são frequentemente preenchidos, nos quais é imprescindível que o profissional de medicina esteja presente". Justiça Federal, Seção Judiciária do Rio de Janeiro, 7ª Vara Federal do Rio de Janeiro, Ação Civil Pública 5106390-31.2023.4.02.5101/RJ, Juiz Luiz Norton Baptista de Mattos, julg. 08 nov. 2023. 9 Tal argumento é encontrado no Processo Parecer Consulta CREMERJ 06/2021 e Parecer CREMERJ 11/2021, que tratam do Direito da gestante à escolha da via de parto, e restou ementado da seguinte forma: "Não há lei específica sobre o direito da gestante à escolha da via do parto. Observância conjunta da indicação médica e da preferência da gestante, após informada. Respeito à escolha da gestante, desde que não ofereça risco ao binômio materno-fetal. Elaboração de termo de consentimento livre e esclarecido, salvo em caso de risco iminente de morte. Garantia da autonomia do médico, ressalvado o dever de referenciar a outro profissional em caso de discordância e de agir nos casos de urgência, emergência ou risco de morte". Disponível aqui. Acesso em 28 ago. 2024. Sobre o tema, cf. ALBUQUERQUE, Andressa Souza de. Autonomia existencial e escolha da via de nascimento: direitos, limites e parâmetros para uma decisão informada. Dissertação (Mestrado em Direito) - Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2023.
É incontroverso que os seres humanos possuem anseios e aspirações individuais e que cada pessoa tem valores próprios e uma maneira peculiar de viver a sua vida. Ainda que tal premissa seja aceita como verdadeira por todos os que lerão essas linhas, poucas pessoas conseguem compreender que a realidade familiar, especialmente a conjugalidade de um casal, também detém elementos peculiares e individuais. É fato que há muito a legislação em vigor não tem conseguido isoladamente acompanhar a agilidade das mudanças sociais quanto à constituição e formação das famílias. Procedimentos de irresponsabilidade afetiva com filhos, fertilização assistida, vinculação familiar por afinidade e pluralidade de modalidades de conjugalidade e parentalidade têm tido, não raras vezes, guarida maior nas decisões judiciais do que da lei vigente. Diante disso, a construção de um direito de família mais adequado a cada núcleo de pessoas acaba por representar a plenitude da autonomia privada familiar, de modo que cada vez mais são consagrados espaços de normativa própria a cada família,1 traduzidos fielmente nos contratos firmados em âmbito familiar.  Os ajustes intrafamiliares, portanto, ganham cada vez mais força e adeptos e têm como objetivo regular tanto questões existenciais quanto patrimoniais. Vale lembrar, todavia, que os ajustes de cunho existencial não possuem relação necessária com patrimonialização questões existenciais. De fato, parece-nos absolutamente possível que questões que digam respeito à parcela existencial de cada qual seja ajustada para que se busque uma plena realização familiar (especialmente dentro do âmbito da busca da plena comunhão de vidas), sem que isso necessariamente reverbere na transformação de aspectos existenciais em compensações de cunho financeiro. Essa ideia se coaduna com a alteração do direito privado que ocorre contemporaneamente, o que Paulo Nalin chama de alteração no sistema do personalismo (superação do individualismo) e patrimonialismo (superação da patrimonialidade voltada a si mesma), caminhando-se para uma despatrimonilização voltada para a dignidade do contratante e a função social do contrato.2 Há, portanto, que se considerar que não há nenhuma justificativa razoável para vedar cláusulas com cunho existencial3 constantes nos contratos familiares, sendo imprescindível, no entanto, que contatos não sejam usados para colocar uma das partes em situação de desigualdade ou de dependência, nem para restringir liberdade e tampouco para violar direitos fundamentais de um dos entes da família. No âmbito da contratualização familiar, portanto, tratando o contrato de ajuste que verse exclusivamente sobre a intimidade das partes, compreendemos impossível violação e imposição estatal sobre o tema, de modo que a limitação da participação do ordenamento e da sistemática jurídica deverá ser limitada e compreendida tão somente como controladora e fiscalizadora da observância da dignidade, proteção de vulnerabilidades e ilicitude do ato contratado. Os ajustes familiares com vieses financeiros, por sua vez, são mais facilmente aceitos. Inúmeras situações patrimoniais no âmbito das famílias - amplamente passíveis de negociações e ajustes - são antecedidas por situações existenciais e que delas não se dissociam. Como exemplo, vale indicarmos a fixação de eventual compensação financeira, paga à ex-esposa, a título de indenização compensatória: a situação que antecede a patrimonialização (fixação de indenização) acaba por ser, justamente, o dever de solidariedade relativo ao vínculo conjugal outrora mantido e o ajuste de comunhão de vidas quando ela, em prol da família, deixou sua carreira de lado.  De fato, a contratualização parte da ideia de ampliação da autonomia e ingerência estatal menos significativa na vida familiar, especialmente nas questões ligadas à parcela de intimidade vivenciada por cada família. Com efeito, o pensamento de intervenção mínima estatal nas questões de intimidade não é algo de todo contemporâneo. Lições de Lafayette Rodrigues Pereira, no final do século XIX, já traziam a ideia de que as relações que formam a teia da vida íntima pertencem ao domínio da moral e que o direito só intervém para regular e garantir aqueles deveres, cuja inobservância, contrariando o fim do casamento, pode ocasionar graves perturbações.4 Também o entendimento de nossos tribunais, em alguma medida, tem caminhado para a aplicação do direito de família mínimo. De fato, o Superior Tribunal de Justiça, por ocasião do julgamento do REsp 1.119.462/MG, de relatoria do Ministro Luís Felipe Salomão, já teve a oportunidade de ponderar que "o direito de família deve ocupar, no ordenamento jurídico, papel coerente com as possibilidades e limites estruturados pela própria CF, defensora de bens como a intimidade e a vida privada. Nessa linha de raciocínio, o casamento há de ser visto como uma manifestação de liberdade dos consortes na escolha do modo pelo qual será conduzida a vida em comum, liberdade que se harmoniza com o fato de que a intimidade e a vida privada são invioláveis e exercidas, na generalidade das vezes, no interior de espaço privado também erguido pelo ordenamento jurídico à condição de 'asilo inviolável'. Sendo assim, deve-se observar uma principiologia de 'intervenção mínima', não podendo a legislação infraconstitucional avançar em espaços tidos pela própria CF como invioláveis. Deve-se disciplinar, portanto, tão somente o necessário e o suficiente para a realização não de uma vontade estatal, mas dos próprios integrantes da família".5 É certo, como se tem visto, que o caminho da contratualização das questões que contemplem reflexos nas relações familiares é sem volta e poderá ser, sem dúvidas, o ápice da maturidade emocional dos relacionamentos afetivos. Diante disso, não há como não pontuar que se mostra necessária a existência maturidade negocial e emocional para pessoas, ligadas por laços familiares, possam ajustar por contrato situações que, até pouco, eram vividas sem qualquer regulação específica. Diante desse fato, mostra-se válido e recomendável que os contratantes, no âmbito do direito de família, estabeleçam contratualmente também as regras de interpretação e de preenchimento de lacunas de acordo com a peculiaridades daqueles indivíduos e da situação jurídica transformada em relação obrigacional contratual. De fato, a legislação civil contempla ampla liberdade negocial aos contratantes,6 limitada apenas pela função social do contrato.7 A interpretação dos negócios jurídicos, por sua vez, dar-se-á estabelecida por cláusula geral prevista no caput do art. 113, conforme a boa-fé e usos do lugar de sua celebração. Muito embora prevista na cláusula geral acima explicitada, nada impede que as partes criem, por si, regras de interpretação e preenchimento de lacunas, estabelecendo critérios objetivos e pormenorizados para que se dê a devida compreensão à dimensão das cláusulas contratuais encetadas pelos contratantes. Nesse sentido, aliás, é o disposto no § 2º do citado art. 113 do CC, que estabelece que as partes poderão livremente pactuar regras de interpretação, de preenchimento de lacunas e de integração dos negócios jurídicos diversas daquelas previstas em lei. Não se pode olvidar que a inclusão, pela lei 13.874/19, do parágrafo 2º no art. 113 traduz a mais ampla leitura e compreensão da autonomia privada, incluindo no texto legislativo prática que, incorporada pela prática contratualista, traz evidente segurança aos contratos. A aplicação dessa inovação legislativa acaba por contemplar, em definitivo, a ampla liberdade de escolha e autonomia na contratação. Estabelecer a forma de interpretação de cláusulas contratuais traz às partes contratantes a certeza que, havendo necessidade de interpretação do contrato por terceiro (leia-se, juiz em caso de judicialização da questão), o preenchimento da cláusula aberta prevista no caput do artigo se dará de acordo com valores previamente ditados pelos próprios contratantes, em verdadeira conformidade com o espírito que norteou o ajuste desde a fase contratual. Pode-se considerar, ademais, que a aplicabilidade do disposto no art. 113, CC nos contratos familiares pode, inclusive, permitir que as partes reconheçam a existência de vulnerabilidade de um dos contratantes - por exemplo, em razão da ausência de isonomia entre os gêneros - permitindo uma maior flexibilização no cumprimento e interpretação das regras contratuais em benefício daquele menos favorecido negocialmente. Daí porque é possível afirmarmos que nada impede que, diante da possibilidade de criação de regras de interpretação e preenchimentos de lacunas, possam os cônjuges, por exemplo, afastar a presunção de paridade indicada no art. 421A. Pode-se, portanto, ponderar que a possibilidade de pactuar regras de interpretação e preenchimento de lacunas, no âmbito do direito contratual de família, traz uma compreensão considerável da existência da busca plena quanto a comprovação de que quem contratou tinha, materialmente, um conjunto razoável de escolhas:8 as escolhas feitas pelo intérprete devem ser assumidas expressamente, não para libertá-lo do direito institucionalizado, mas exatamente para permitir o debate argumentativo acerca da sua adequação ao ordenamento: trata-se de responsabilidade do intérprete.9 Ajustes sobre a interpretação dos contratos de família ganham ainda mais importância quando consideramos que ao direito, como regra, é irrelevante o que as pessoas sentem. Interessam, ao invés, o aspecto objetivo e exterior da conduta humana, e também os seus reflexos sociais,10 de modo que valorações sobre questões específicas daqueles contratantes podem ser, se não estipuladas previamente, desconsideradas quando for necessária a análise interpretativa do negócio jurídico ajustado. Pontue-se, ademais, que ao estabelecer regras de interpretação e preenchimento de lacunas o casal contratante, de maneira ainda mais ampla, reforça e reafirma a sua boa-fé na consecução do negócio jurídico que se apresenta, mormente porquanto poderão, em um momento em que os ânimos não estejam acirrados, em que estejam plenamente ligados por elos de afeto e confiança. Aliás, ressaltemos que confiança e boa-fé - intimamente ligados na origem, já que a boa-fé muitas vezes tem relação de superposição à confiança, pautada pelo que comumente acontece em certo setor ou situação da vida.11 Com a pactuação quanto aos termos de interpretação e preenchimento de lacunas, as partes poderão agir coerentemente com a contratação, de modo que a exequibilidade do contrato fique ainda mais firme em seu propósito de cumprimento. Ademais, se até mesmo os comportamentos no ato de execução podem evidenciar a intenção e a boa-fé das partes,12 o que se dirá do ajuste claro e objetivo, realizado por elas, quanto a forma que deva ser utilizada para interpretação do negócio jurídico que se visa firmar? Por fim, importante que se diga, mais uma vez, que a questão afeta às vulnerabilidades intrafamiliares não pode passar desapercebida quando se fala em contratualização de situações de direito de família, devendo essa situação ser também contemplada quando se pensa no ajuste interpretativo do contratado e na maneira mais acurada de preenchimento de eventuais lacunas. O fato é que a contratualização das relações familiares está posta e fechar os olhos para essa realidade não auxiliará em nada àqueles que se socorrem dessa alternativa para fazer valer os anseios de seu núcleo familiar. Daí porque, não restam dúvidas, cabe à doutrina, aos estudiosos e aos que integram o sistema judicial pensarem em alternativas e soluções para integrá-la, com validade e eficácia, ao mundo jurídico. __________ 1 MORAES, Maria Celina Bodin de; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Contratos no ambiente familiar. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RODRIGUES, Renata de Lima (Coord.). Contratos, família e sucessões: diálogos interdisciplinares. 2. ed. Indaiatuba: Foco, 2021. p. 2. 2 NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno. Curitiba: Juruá, 2008. p. 249. 3 Nesse sentido, inclusive, é o Enunciado 635 da Jornada de Direito Civil que pontua: "O pacto antenupcial e o contrato de convivência podem conter cláusulas existenciais, desde que estas não violem os princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade entre os cônjuges e da solidariedade familiar." 4 PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direitos de família. Rio de Janeiro: Typ. da Tribuna Liberal, 1889. p. 62. Disponível aqui. Acesso em: 13 jul. 2022. 5 Ainda no acórdão: "a melhor interpretação que se deve conferir ao art. 1.639, § 2º, do CC/2002 é a que não exige dos cônjuges justificativas exageradas ou provas concretas do prejuízo na manutenção do regime de bens originário, sob pena de esquadrinhar indevidamente a própria intimidade e a vida privada dos consortes (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.119.462/MG. Relator: Min. Luis Felipe Salomão. Julgamento: 26.02.2013. Órgão Julgador: Quarta Turma. Publicação: DJe 12.03.2013). 6 "Art. 122. São lícitas, em geral, todas as condições não contrárias à lei, à ordem pública ou aos bons costumes; entre as condições defesas se incluem as que privarem de todo efeito o negócio jurídico, ou o sujeitarem ao puro arbítrio de uma das partes." 7 "Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato." 8 RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Institutos fundamentais de direito civil e liberdade(s): repensando a dimensão funcional do contrato, da propriedade e da família. Rio de Janeiro: GZ, 2011. p. 274. 9 PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Trad. Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 96. 10 NEGREIROS, Teresa. O princípio da boa-fé contratual. In: BODIN DE MORAES, Maria Celina (Org.). Princípios do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 222. 11 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 253. 12 MARTINS-COSTA, Judith. Loc. cit.
O namoro costumava ser apenas uma etapa anterior ao noivado e ao casamento, um estágio de um casal para um posterior e natural avanço no relacionamento. Contudo, na sociedade contemporânea, cada vez mais plural e multifacetada, o namoro ganhou novos contornos, sem necessariamente conduzir a uma condição subsequente. As pessoas passaram a ter mais igualdade, e nessa esteira, passou-se a almejar a ter mais proteção ao próprio patrimônio e a estabelecer regras atinentes a convicções relacionadas a situações existenciais de cada indivíduo dentro da relação. A complexidade desses relacionamentos abriu caminho para a contratualização não apenas às formações das famílias, mas para uma etapa anterior a ela - o namoro, puro e simplesmente considerado, sem que haja qualquer confusão de sua concepção com as diversas modalidades de família presentes na sociedade. Justamente para fugir de qualquer configuração de constituição de entidade familiar que surge o contrato de namoro, que fortalece a qualificação existente no relacionamento do casal, a fim de afastar a configuração de união estável e as consequências jurídicas desta decorrentes. No entanto, não somente a este fim serve um contrato de namoro atualmente, já que diversas outras situações jurídicas patrimoniais e existenciais podem ser estabelecidas nesse tipo de contrato, inclusive com a estipulação de cláusulas penais, coercitivas ou indenizatórias, que reforçam a obrigatoriedade dos deveres acordados pelo casal. O artigo 226 da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988 ("CRFB/1988"), ampliou a proteção a diversos tipos de famílias, indo além do modelo patriarcal constituído pelo casamento, que era a única modalidade antes considerada, em um rol meramente exemplificativo de suas possibilidades.Na atual sistemática, o fato de a pessoa humana ocupar a centralidade do sistema jurídico brasileiro fundamenta a tutela de diversos tipos de famílias, advém daí a noção de família democrática1, que é a entidade familiar menos hierarquizada e patrimonializada, mais voltada à afetividade e às questões de cunho existencial na sua constituição. Houve uma transformação de valores que norteiam o ordenamento, ganhando destaque a despatrimonialização do Direito Civil, antes de 1988 tão voltado a questões predominantemente patrimoniais2. A constitucionalização do Direito Civil conferiu espaço de construção de normativas privadas, que funcionalizadas à realização da personalidade do indivíduo, imprimem merecimento de tutela à negócios jurídicos de situações jurídicas existenciais. Assim, projetou-se uma maior autonomia privada no âmbito das famílias, com amplo espaço de reafirmação dos valores de cada indivíduo, em progressiva limitação da intervenção estatal no ambiente familiar. Dentre outros avanços, destaca-se a mudança promovida pela Lei nº 11.441/2007, a qual promoveu a possibilidade de separação ou divórcio por meio de escritura pública a ser firmada diretamente no cartório de notas, desde que não houvesse incapazes ou litígios envolvidos. A ingerência do Estado foi ainda menor quando por intermédio da Emenda Constitucional ("EC") nº 66/2010 foi suprimido do texto constitucional o requisito temporal da separação para que ocorresse o divórcio, em uma visão cada vez menos paternalista do Estado. Nessa sociedade marcada pela pluralidade de formas de vida íntima é que surge a necessidade de contratualizar também questões existenciais, seja por meio de pactos antenupciais ou de convivência. Em sua origem projetados apenas para a escolha do regime de bens que regeria a família, atualmente os contratos familiares ganham novos contornos, indo além da esfera meramente patrimonial. Dessa forma, desde que tais cláusulas "não violem a dignidade das partes e o princípio da isonomia, não parece haver, a priori, óbice de ordem pública para a sua admissão"3. Na complexidade da vida a dois, situações como compartilhar o mesmo teto por alguns dias da semana e dividir contas podem causar confusões em uma linha tênue entre a existência de namoro ou união estável, o que se busca afastar com a elaboração de um contrato de namoro. Ainda que existam no art. 1.723 do Código Civil ("CC") os requisitos legais para a configuração da união estável, os pressupostos de um relacionamento público, contínuo, duradouro, estabelecido com o objetivo de constituição de família, ainda assim, são subjetivos, o que faz com que a contratualização do namoro venha a ajudar o julgador a interpretar melhor o relacionamento e a intenção das partes quando postos à prova perante o Poder Judiciário. Reconhecida sua validade pelo Superior Tribunal de Justiça ("STJ"), esse contrato é um negócio jurídico que atesta a existência de um namoro no momento de sua elaboração, podendo conter cláusulas escalonadas que retratem o relacionamento em caso de evolução, com a pactuação antecipada de regime de bens em caso de vir a se constituir uma união estável no futuro.4 Contudo, por ser um contrato que atesta o atual status dos namorados, é preciso interpretá-lo à época da avença posta a ser julgada, não podendo ser subterfúgio para fraudes. Em emblemático acórdão do STJ, a Corte Superior já teve a oportunidade de diferenciar a união estável do denominado contrato de namoro qualificado, com o escopo de afastar o reconhecimento da união estável, no caso concreto. Nos termos do voto do Min. Marco Aurélio Bellizze, a configuração de um namoro qualificado tem, "no mais das vezes, como único traço distintivo da união estável, a ausência da intenção presente de constituir uma família"5. Ainda na seara jurisprudencial, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo ("TJSP") também já afastou o pleito de reconhecimento e dissolução de união estável, especialmente, com base na existência de contrato de namoro. Na hipótese, a despeito da comprovação da habitação em comum, tal fato não foi considerado como elemento circunstancial, por si só, apto ao reconhecimento da união estável. De acordo com a 9ª Câmara de Direito Privado do TJSP, o contrato de namoro firmado pelas partes foi considerado válido e corroborou as alegações de uma das partes no sentido de que, de fato, a relação "não passava de um namoro"6. Em outro caso, também julgado pelo TJSP, por outro lado, entendeu-se que restou configurada a união estável entre as partes, não obstante a existência de contrato de namoro. Nessa hipótese, diversos elementos contribuíram para a conclusão da 4ª Câmara de Direito Privado. Em primeiro lugar, restou incontroverso que as partes tentaram realizar fertilização artificial para terem um filho juntos - embora sem sucesso -, durante três anos. Além disso, a parte requerida do processo doou um bem imóvel à autora e mantinha o seu sustento por meio de mesada. Não só: de acordo com testemunhas, "o réu estava presente nos aniversários da autora e ela constantemente era reconhecida pelos funcionários do posto de gasolina deste como 'patroa'"7. Com efeito, atualmente, o contrato de namoro é uma realidade, havendo um número recorde de escrituras firmadas em cartórios de todo o país em 2023, segundo o Colégio Notarial do Brasil ("CNB"), que registrou um aumento de 35% em relação ao ano anterior8. Não há impedimento legal para o ajuste de situações extrapatrimoniais, como o reconhecimento de filhos, seja biológico ou socioafetivos, ou que vislumbrem a organização doméstica do casal. Contudo, é incontroverso que cláusulas sobre vulnerabilidades, questões sobre deveres da parentalidade, que abranjam a vida dos filhos ou que firam o princípio da dignidade da pessoa humana são intangíveis, e não podem ser objeto de disposição, sob pena de invalidade de suas pactuações9. Na linha do destacado anteriormente, o Enunciado nº 635 da VIII Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, dispõe que "[o] pacto antenupcial e o contrato de convivência podem conter cláusulas existenciais, desde que estas não violem os princípios da dignidade humana, da igualdade entre os cônjuges e da solidariedade familiar". Então, em um contexto em que os "brasileiros se divorciam cada vez mais e mais rápido"10, coloca-se a seguinte questão: afinal, é possível a estipulação de cláusula penal para a hipótese de violação do pacto antenupcial?11 A cláusula penal é tradicionalmente definida como "aquela em que se estabelece uma prestação para o caso de inexecução da obrigação"12. Em outros termos, trata-se de obrigação acessória, com origem na stipulatio penae - estipulação da pena - do Direito Romano,13 "pela qual se obriga o devedor a uma prestação determinada", cuja estipulação visa "garantir de parte a parte o exato cumprimento das obrigações contratuais, sendo geralmente recíproca, neste sentido que costuma ser posta, tanto para garantir a obrigação de um contratante, como de outro"14. Além disso, a cláusula penal - também denominada de multa contratual ou de pena convencional -15 é devida pela parte responsável pelo inadimplemento culposo da obrigação principal ou pela mora, conforme dispõe o art. 408 do Código Civil, regra segundo a qual se podem extrair os pressupostos para a imposição da cláusula, quais sejam (i) a existência de cláusula penal, e (ii) o inadimplemento culposo ou a mora16-17. Ao fim e ao cabo, a cláusula penal atua como "instrumento à disposição das partes para a gestão de riscos, configurando, por assim dizer, mecanismo estabelecido pelo direito para proteger o contratante contra os riscos do inadimplemento"18. De forma ampla, no âmbito de ações de divórcio ou de reconhecimento de dissolução de união estável, a infidelidade, por si só, não é reconhecida pelos Tribunais como apta a gerar o dever de indenização à parte traída. Entende-se que deve ocorrer a comprovação de que a parte foi submetida a humilhação ou constrangimento social em decorrência da traição19. Com isso, um movimento que tem ganhado força é o de noivos que estabelecem a previsão de cláusula penal para a hipótese de traição nos pactos antenupciais20. Quanto ao lugar de estabelecimento da multa, há quem defenda, na prática, que o acordo seja formalizado, por meio de escritura pública, em um documento separado do pacto antenupcial. Isso, porque é comum que o pacto antenupcial circule com frequência entre terceiros, devido às previsões de questões patrimoniais e de regime de bens21. Sobre o tema, um caso do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais ("TJMG") teve elevada repercussão. Na hipótese, um casal estabeleceu em um pacto antenupcial uma cláusula penal no montante de R$ 180.000,00 (cento e oitenta mil reais), a qual foi reputada válida pela juíza Maria Luiza de Andrade Rangel Pires, titular da Vara de Registros Públicos de Belo Horizonte22. Do acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul ("TJRS"), ao seu turno, depreende-se o reconhecimento de cláusula estabelecida em pacto antenupcial no valor de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais) para a circunstância da dissolução do vínculo conjugal23. Em suma, admite-se o estabelecimento de cláusula penal em sede de pacto antenupcial, sempre com a ressalva de que os princípios da dignidade da pessoa humana e da isonomia sejam observados. __________ *A expressão foi utilizada pelos Professores Ana Carolina Brochado Teixeira e Carlos Nelson Konder. Vide Situações jurídicas dúplices: controvérsias na nebulosa fronteira entre patrimonialidade e extrapatrimonialidade. In: TEPEDINO, Gustavo et al (Coords.). Diálogos sobre Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2012, p. 142. 1 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito das Famílias. Rio de Janeiro: Forense, 2023. p. 18. 2 TEPEDINO, Gustavo. A constitucionalização do Direito Civil: perspectivas interpretativas diante do Novo Código. In: FIUZA, Cézar et al (Coords.). Direito Civil: atualidades. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 118-119. 3 Nessa direção: "Além disso, matérias não exclusivamente patrimoniais, mas também de cunho existencial, contidas nas regras de convivência, passam a ser adicionadas a tais pactuações. Tem-se admitido, nessa linha de entendimento, que até mesmo a divisão de atribuições domésticas seja previamente estabelecida. Quando relativas ao modo de vida a dois, especialmente quanto à fidelidade e à coabitação, as cláusulas hão de ser examinadas casuisticamente. Desde que não violem a dignidade das partes e o princípio da isonomia, não parece haver, a priori, óbice de ordem pública para a sua admissão" (TEPEDINO, Gustavo. O valor jurídico do afeto e a contratualização do direito de família. In: Revista brasileira de Direito Civil - RBDCivil. v. 31, n. 4, pp. 13-15, out.-dez./2022, p. 14). Em linha semelhante, ver também BODIN DE MORAES, Maria Celina; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Contratos no ambiente familiar. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RODRIGUES, Renata de Lima (Coords.). Contratos, famílias e sucessões: diálogos interdisciplinares. Indaiatuba - SP: Foco, 2019, p. 8. 4 Veja-se: "Nessa direção, o contrato de namoro constitui presunção relativa de inexistência de união estável, além de compromisso ético que poderá ser eficaz, do ponto de vista social e mesmo jurídico, no momento da extinção do vínculo" (TEPEDINO, Gustavo. O valor jurídico do afeto e a contratualização do direito de família. In: Revista brasileira de Direito Civil - RBDCivil. v. 31, n. 4, pp. 13-15, out.-dez./2022). 5 STJ. REsp nº 1.454.643/RJ. Relator: Min. Marco Aurélio Bellizze. 3ª Turma. Julgamento em 03.03.2015. DJ em 10.03.2015. 6 TJSP. AC nº 1000884-65.2016.8.26.0288. Relator: Des. Rogério Murillo Pereira Cimino. 9ª Câmara de Direito Privado. Julgamento em 25.06.2020. 7 TJSP. AC nº 1015043-04.2017.8.26.0506. Relatora: Des. Marcia Dalla Déa Barone. 4ª Câmara de Direito Privado. Julgamento em 21.11.2019. 8 Artigo: Contratos de namoro batem recorde no Brasil para evitar reconhecimento de união estável - por Mônica Bergamo. In: Colégio Notarial do Brasil. Disponível em: .   Acesso em 14 de jul. 2024. 9 TEPEDINO, Gustavo; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Fundamentos do direito civil: direito de família. 5 ed. - Rio de Janeiro: Forense, 2024. p. 93. 10 Brasileiros se divorciam cada vez mais e mais rápido. In: G1. Disponível em: < Brasileiros se divorciam cada vez mais e mais rápido | Economia | G1 (globo.com)>. Acesso em 30 ago. 2024. 11 Para um exame aprofundado da questão, vide BARBOZA, Heloisa Helena; ALMEIDA, Vitor. Contratualização das famílias e inexecução dos pactos antenupciais: admissibilidade e limites da cláusula penal. In: TERRA, Aline de Miranda Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz (Coords.). Inexecução das obrigações: pressupostos, evolução e remédios. Rio de Janeiro: Processo, 2021, v. 2, p. 1007 e seguintes. 12 FULGÊNCIO, Tito. Do Direito das Obrigações: das modalidades das obrigações (Artigos 863-927). Rio de Janeiro: Forense, 1958, p. 393. Acerca da natureza jurídica da cláusula penal, na doutrina francesa, vide: MAZEAUD, Denis. La notion de clause pénale. Paris: Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1992, p. 289 e seguintes. 13 Sobre a evolução da cláusula penal no Direito Romano, vide, dentre outros: FRANÇA, R. Limongi. Teoria e prática da cláusula penal. São Paulo: Saraiva, 1988, pp. 15-28. 14 SANTOS, J. M. Carvalho. Código Civil Brasileiro Interpretado: principalmente do ponto de vista prático. Parte Geral (Arts. 863-927). 9 ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1964, v. 11, p. 300. 15 SIMÃO, José Fernando. In: SCHREIBER, Anderson; TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando; MELO, Marco Aurélio Bezerra de; e DELGADO, Mário Luiz (Coords.). Código civil comentado: doutrina e jurisprudência. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 231. 16 MARTINS-COSTA, Judith. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord.). Comentários ao Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2003. v. 5, t. 2, p. 422-423. 17 STJ. REsp nº 1.340.199/RJ. Relator: Min. Luis Felipe Salomão. 4ª Turma. Julgamento em 10.10.2017. DJ em 06.11.2017. 18 TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). Fundamentos do Direito Civil: obrigações [versão digital]. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024, v. 2. 19 Nesse sentido: (i) TJSP. AC nº 1000091-40.2018.8.26.0488. Relator: Des. Henrique Rodriguero Clavisio. 18ª Câmara de Direito Privado. Julgamento em 19.03.2019; (ii) TJSP. AC nº 1005574-43.2018.8.26.0038. Relator: Des. Luiz Antonio Costa. 7ª Câmara de Direito Privado. Julgamento em 03.08.2021; (iii) TJSP. AC nº 0007772-20.2013.8.26.0564. Relator: Des. Salles Rossi. 31ª Câmara Extraordinária de Direito Privado. Julgamento em 11.10.2017, dentre outras. 20 Noivos estipulam multa por traição em pactos antenupciais. In: Valor econômico. Disponível em: < Noivos estipulam multa por traição em pactos antenupciais | Legislação | Valor Econômico (globo.com)>. Acesso em 30 ago. 2024). 21 Noivos estipulam multa por traição em pactos antenupciais. In: Valor econômico. Disponível em: < Noivos estipulam multa por traição em pactos antenupciais | Legislação | Valor Econômico (globo.com)>. Acesso em 30 ago. 2024. 22 TJMG. Justiça autoriza pacto antenupcial com multa de R$ 180 mil em caso de infidelidade. In: TJMG Notícias. Disponível em:< Justiça autoriza pacto antenupcial com multa de R$ 180 mil em caso de infidelidade | Portal TJMG>. Acesso em 30 ago. 2024. 23 TJRS. AC nº 70054895271. Relator: Des. Luiz Felipe Brasil Santos. 8ª Câmara Cível. Julgamento em 01.08.2013.
segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Planejamento: a palavra da vez?

A pandemia nos mostrou que alguns temas precisam ser enfrentados no presente, não obstante a delicadeza com que precisam ser tratados e as barreiras culturais cujo enfrentamento eles pressupõem. Planejar é organizar um roteiro, programar, arquitetar formas de realizar um objetivo. Há inúmeros institutos jurídicos que traduzem esse ato de planejar. A abordagem contemporânea convida a organizá-los de forma coordenada para o alcance do objetivo do/a planejador/a. Esse texto abordará dois tipos de planejamento: o planejamento do envelhecimento e o planejamento patrimonial e sucessório. Em ambos os casos, a questão central é a assunção do protagonismo na autonomia sobre a própria vida, além de zelar por aqueles que lhe são importantes. A primeira modalidade de planejamento é o do envelhecimento. No Brasil, o número de idosos cresceu quase 60% nos últimos 12 anos. Em 2023, eles representavam 15,6% da população do país. O crescimento desse segmento vem ocorrendo de forma acelerada: enquanto a população do país aumentou em 6,43%, os idosos cresceram 57% em relação a 2010.1 A expectativa de vida em 2022, era de 75,5 anos,2 e em 2023, 76,4 anos.3 Esse aumento expressivo dos idosos implica uma série de fatores, inclusive a necessidade de uma programação da velhice, tanto em termos de saúde, quanto de finanças, da vida social, etc., enquanto se tem autonomia suficiente para traçar estratégias e manifestar livremente a vontade. É nesse sentido que o planejamento do envelhecimento também tem ganhado espaço nos escritórios de advocacia, na medida em que as pessoas querem ser independentes o quanto possível, além de desejar o respeito aos seus desejos, conforme prevê o Estatuto da Pessoa Idosa.4 Sabe-se que o envelhecer pode implicar o desenvolvimento de vulnerabilidades, e de vínculos de dependência de diversas ordens que podem influenciar no querer e no entender. Por essa razão, um olhar global sobre o futuro - além de um processo de autoconhecimento - pode ser interessante para se definir quais são as estratégias mais interessantes para uma velhice saudável e digna, de acordo com os parâmetros próprios de vida boa. A autonomia privada exerce papel de grande relevância para a construção da própria esfera pessoal, para que cada um possa estabelecer os parâmetros dentro dos quais pretende viver no presente e no futuro, dentro dos valores que elegeu como mais coerentes para a própria vida. Mesmo porque suas decisões devem espelhar as prioridades e as concepções do declarante. A velhice pode e deve ser um tempo bom, com colheita de uma vida de experiências, novas possibilidades, convivência intergeracional, viagens e aprendizado. Mas também pode ser um tempo de perda de renda, dependências, fragilidades e solidão. Recente relatório da FAPESP informou que ao menos 1,76 milhão de brasileiros com mais de 60 anos vivem com alguma forma de demência que gera a perda progressiva das células cerebrais e, a partir daí, a incapacitação e a morte. A previsão é de que esse número cresça na medida em que a população envelhece.5 É claro que não é possível ter controle sobre tudo. Mas eleger instrumentos que facultam a melhor gestão possível da vida é uma busca que tem crescido cada vez mais, existindo algumas possibilidades interessantes para esse propósito. Dispor sobre administração futura dos próprios bens para que esses tenham longevidade e possam para fazer frente aos custos do envelhecimento tem um grande valor. Se a pessoa continuar lúcida e com possibilidades de expressar sua vontade, ela poderá continuar fazendo escolhas cotidianas a respeito de seus bens e de sua saúde. Mas, e se for diferente? E se, por alguma razão, ela perder essa condição? Daí a importância da autocuratela.6 Trata-se de um instrumento por meio do qual a pessoa pode fazer escolhas para expressar validamente a sua autonomia para momento futuro, se for necessário submetê-la ao procedimento de curatela. Conquanto se trate de negócio jurídico atípico, recomenda-se que seja feita por escritura pública para maior segurança da produção de efeitos da expressão de sua vontade. É um documento que só tem eficácia a partir da decisão judicial que determina a curatela de seu autor, ainda que de forma provisória - razão pela qual ele, necessariamente, deve ser parte integrante do referido processo. Seu conteúdo pode ter enorme gama de possibilidades: a) escolher o curador e indicar expressamente quem não deve exercer o munus, b) dar diretrizes para administração do patrimônio, que vão desde a forma de gestão, estilo de administração, consultores específicos cujas sugestões deverão ser respeitadas, c) recusar a nomeação de pro-curador, d) determinar a remuneração do curador, e) em relação à prestação de contas, entende-se possível dispensar apresentação anual de balanço (a despeito do art. 1.756 do Código Civil), dispensar a comprovação de despesas rotineiras da prestação de contas, podendo prever uma margem de valor mensal destinado a tais despesas (como a previsão do caput do art. 1.753 do CC), exigir a prestação de contas mesmo quando o curador indicado seja o cônjuge casado sob o regime da comunhão universal, dentre outras possibilidades.7 Outra ferramenta é o testamento vital, documento por meio do qual a pessoa decide os tratamentos e não tratamentos aos quais deseja se submeter se não mais tiver condições de expressar seu consentimento.8 Trata-se de importante manifestação de vontade que direciona o médico e a família em relação aos desejos do paciente incapacitado de se manifestar, a partir dos seus valores e da sua história biográfica, a fim de que tenha um fim de vida e uma morte com dignidade. A determinação do como morrer é algo da maior intimidade e, por isso, estando a pessoa devidamente informada, é algo que deve estar no seu espectro de decisão. Luciana Dadalto propõe que todos os que têm discernimento possam fazer seu testamento vital (inclusive menores de idade com autorização judicial), o qual deve poder assumir a forma pública ou privada - e ser sempre anexado ao prontuário médico do paciente. Por ser revogável por natureza, não deve ter prazo de validade. É um documento que só passa a produzir efeitos quando o paciente não tiver mais condições de se manifestar.9-10 A segunda modalidade de planejamento é o patrimonial e sucessório. Quando o planejamento se volta à sucessão, tem como propósito pensar sobre a transmissão dos bens por direito hereditário - tradicionalmente, portanto, após a morte do titular - embora, em alguns casos, possa ser antecipada em vida ou ao menos com a tomada de providências preparatórias para a sucessão. Vencer o obstáculo de se deparar com a realidade de que todos são finitos requer coragem. Por outro lado, as mudanças nas estruturas familiares, as preocupações com os vulneráveis, as transformações nos bens e na riqueza, as mudanças legislativas, as questões tributárias tornam o debate a pauta do dia. Têm crescido os anseios da população por maior liberdade no âmbito sucessório. O status atual em que o cônjuge casado pelo regime da separação total de bens concorre à herança com os descendentes (art. 1.829, I, CC) é causa de incômodo em quem busca um planejamento que envolva a escolha do regime de bens. Contraditoriamente, no entanto, os brasileiros não são acostumados a fazer testamentos. Os números do Colégio Notarial do Brasil apontam um crescimento dos testamentos na pandemia (2021) com uma redução posterior: em 2020 foram 31.977 testamentos públicos; em 2021, 38.264; em 2022, 26.259 e até novembro de 2023, 32.835.11 Ainda assim, a quantidade de pessoas que faz testamento público é muito pequena. Percebe-se, todavia, que a sucessão sem planejamento satisfaz cada vez menos, na medida em que o ordenamento jurídico sucessório foi talhado para uma realidade bem diferente da atual. E, por esse motivo, a aplicação da lei nem sempre atenderá às necessidades de quem planeja. Fazer um bom planejamento sucessório não é tarefa simples, pois não há um modelo pronto. É preciso personalizar o procedimento, a partir dos anseios do(a) titular do patrimônio: quais as razões para se buscar o planejamento? Quais as preocupações? Evitar litígios futuros, proteger algum herdeiro vulnerável, economia tributária, evitar condomínios são alguns exemplos de razões que levam as pessoas a planejar. Ter clareza na motivação é essencial, pois ela será o fio condutor de todas as etapas do procedimento e orientará as decisões quando não for possível atender a todas as expectativas. Além disso, o planejamento pode potencializar a utilidade do patrimônio pelos futuros herdeiros, promovendo uma distribuição mais coerente com as necessidades de cada um, em observância de sua eventual vulnerabilidade, a fim de que a atribuição dos bens possa auxiliar no suprimento dessas fragilidades e que atue de modo a proteger o herdeiro e a promover sua dignidade, no âmbito material, quando aquele responsável por suprir seu sustento tiver falecido. Também é relevante atentar em a eventuais vínculos existentes entre potenciais herdeiros com algum bem do acervo patrimonial do titular do patrimônio e que, sob o viés quantitativo, caberia no quinhão de um dos herdeiros - é a filha, por exemplo, que trabalha na empresa do pai, sendo interessante para a continuidade do negócio e para a preservação do trabalho da filha que ela fique com as quotas da empresa, ou o filho que reside em um dos imóveis do planejador, proporcionando-lhe segurança a continuidade da moradia. Outro pilar a ser considerado são os custos com manutenção dos bens, liquidez, potencial de exploração econômica e as condições financeiras dos herdeiros, que podem demandar necessidades específicas.12 Os instrumentos de planejamento são inúmeros e não se restringem ao direito sucessório, que tem ferramentas clássicas, como testamento e codicilo. Há também aqueles de natureza contratual (doação, compra e venda, pacto antenupcial e de união estável etc.), real (usufruto e direito real de habitação), societária (holding, pactos parassociais etc.), financeira (previdência privada, seguro de vida), por exemplo. A escolha da(s) melhor(es) ferramenta(s) será definida a partir da combinação motivação do planejador e escolha do(s) instrumento(s) adequado(s), que atenda(m) às prioridades possíveis dentro dos limites legais. É importante observar que ele não se presta a blindar o patrimônio e provocar fraudes, mas é meio de realização da vontade sucessória daquele que construiu seus bens em sua vida, administrou-os e pretende que eles sirvam à sua família ou àqueles que lhe são caros, nos espaços de autonomia permitidos pela lei, também cuidando da longevidade e crescimento dos bens. Diante dessas breves reflexões, pergunta-se: planejamento é a palavra da vez? Infelizmente, não, pois parece que as barreiras culturais e os tabus morais acabam dificultando "conversas difíceis". Mas, sem dúvida, planejamento deve se tornar cada vez mais presente no dia a dia, pois é só lançando mão desses instrumentos que será possível a assunção do verdadeiro protagonismo da própria vida e dar segurança no sentido de que os bens tenham o melhor aproveitamento possível na transmissão sucessória, independentemente do momento em que ela aconteça. ___________ 1 Disponível em Censo: número de idosos no Brasil cresceu 57,4% em 12 anos - Secretaria de Comunicação Social (www.gov.br) . Acesso em 11.08.2024. 2 Disponível em Em 2022, expectativa de vida era de 75,5 anos | Agência de Notícias (ibge.gov.br) , acesso em 11.08.2024. 3 Disponível em IBGE prevê envelhecimento e queda populacional a partir de 2041 (uol.com.br). Acesso em 28.08.2024. 4 Destaca-se: Art. 10. É obrigação do Estado e da sociedade assegurar à pessoa idosa a liberdade, o respeito e a dignidade, como pessoa humana e sujeito de direitos civis, políticos, individuais e sociais, garantidos na Constituição e nas leis". § 1o O direito à liberdade compreende, entre outros, os seguintes aspectos: (...) II - opinião e expressão; III - crença e culto religioso; (...) § 2o O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, de valores, idéias e crenças, dos espaços e dos objetos pessoais."  5 "Os dados brasileiros indicam que 3% dos indivíduos com idade entre 65 e 69 anos desenvolvem demência. Essa frequência sobe para 9% na faixa dos 75 aos 79, 21% na dos 85 aos 89 e chega a 43% depois dos 90 anos." Disponível em Ao menos 1,76 milhão de pessoas têm alguma forma de demência no Brasil : Revista Pesquisa Fapesp . Acesso em 28/8/2024. 6 O termo autocuratela é da autoria da Profa. Thais Câmara Maia Fernandes Coelho, que em seu mestrado desenvolveu dissertação a respeito do tema "Autocuratela patrimonial". (In COELHO, Thais Câmara Maia Fernandes. Autocuratela patrimonial: Mandato permanente para o caso de incapacidade superveniente. Dissertação de mestrado. PUC Minas. 2012). 7 O conteúdo da autocuratela já foi objeto de reflexão mais profunda em outra oportunidade: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RETTORE, Anna Cristina de Carvalho; ALMEIDA, Beatriz. Reflexões sobre a autocuratela na perspectiva dos planos do negócio jurídico. In: MENEZES, Joyceane Bezerra de (org.). Direito das pessoas com deficiência psíquica e intelectual nas relações privadas: Convenção sobre os direitos da pessoa com deficiência e Lei Brasileira de Inclusão. Rio de Janeiro: Processo, 2016, pp. 319-361. 8 Ver, por todos, DADALTO, Luciana. Testamento vital. 6ª ed. Indaiatuba: Foco, 2022. 9 DADALTO, Luciana. Testamento vital. 6ª ed. Indaiatuba: Foco, 2022, p. 93-98. 10 Há outras modalidades de planejamento do envelhecimento, tal como a Tomada de Decisão Apoiada, inaugurada pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência que, em suma, significa que a pessoa com deficiência, com fragilidade reduzida, propõe um plano de apoio juntamente com 2 pessoas, para fins específicos, mediante controle judicial (art. 1.783-A do Código Civil). 11 Trata-se de dados da 5ª edição do Relatório Cartório em Números. Disponível em Cartorios-em-Numeros-5a-Edicao-2023-Especial-Desjudicializacao.pdf (anoreg.org.br) . Acesso em 11.08.2024. 12 MIRANDA, Alexandre; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Qualificação e quantificação da legítima: critérios para partilha de bens. In: TEIXEIRA, Daniele Chaves. Arquitetura do planejamento sucessório. Tomo II. Belo Horizonte: Fórum, 2021, p. 27-39.
Em reunião extraordinária semipresencial realizada no dia 2 de julho de 2023, a Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência da Câmara (CPD) aprovou o Projeto de Lei (PL) 5679/23, após deliberação que durou aproximadamente dois minutos e quarenta e cinco segundos. Conforme consta na ementa, o PL tem o objetivo de alterar a Lei do Planejamento Familiar (lei 9.263/1996) para prever que a esterilização cirúrgica em pessoas absolutamente incapazes ou com deficiência que impossibilite a expressão da vontade ocorra após autorização judicial e oitiva do Ministério Público, com prioridade de realização dentro dos procedimentos de esterilização cirúrgica eletiva. Como justificativa, foram invocados os princípios da dignidade humana e da paternidade responsável, somados ao entendimento de que as especificidades envolvendo "pessoas com transtorno mental" seriam pouco conhecidas pelos profissionais da atenção básica nas equipes de Estratégia Saúde da Família, o que dificultaria a difusão das estratégias que estão ao alcance desse público-alvo para aqueles e aquelas que atuam nos CAPS (Centros de Atenção Psicossocial). Inicialmente, é de se estranhar que seja invocado o princípio da paternidade responsável como fundamento para esterilizar mulheres, que, em regra, são secularmente as responsáveis pelo cuidado e em vilipêndio à sua dignidade. Além disso, as autoras do PL pontuam que o art. 10, § 6º da lei 9.263/1996, o qual estabelece que a "esterilização cirúrgica em pessoas absolutamente incapazes somente poderá ocorrer mediante autorização judicial, regulamentada na forma da Lei", carece de autoaplicação, o que desafia a regulamentação por lei, que inexiste atualmente. Em arremate, concluem pela maior suscetibilidade das pessoas que estariam sob a incidência do regramento a uma gravidez não planejada, o que poderia causar prejuízos aos filhos e onerar as famílias das mulheres que apresentam estas condições. Ocorre que, sobretudo quando estão envolvidas pessoas vulnerabilizadas e em situação de marginalização social, a ponderação entre a proteção e a desarrazoada intervenção não é tarefa simples. Cabe relembrar as situações que impulsionaram o nascimento da bioética, por meio da publicação dos relatos de "pesquisas" realizadas com cidadãos considerados como de "menor valia", grupo no qual estavam inseridas as pessoas com deficiências psíquicas, como recorda Henry Beecher na obra "Ethics and clinical ressearch". Este fato, dentre tantos outros, evidencia que as pessoas com deficiência já são alvo de interferências indevidas por procedimentos biomédicos desde longa data. Em função disso, é necessário verificar se os interesses invocados como merecedores de tutela devem de fato se sobrepor de forma absoluta ao direito à saúde, autonomia e integridade física, ou seja, à vida digna. Embora tenha sido pontuada na justificativa do PL uma preocupação com o direito à vida das crianças que são geradas por pessoas com deficiências, indaga-se: teriam essas vidas maior valor do que a daqueles e daquelas que tem alguma deficiência? Mais do que isso: seriam as cirurgias de esterilização, tão invasivas e repletas de repercussões, as únicas alternativas para a proteção? Além disso, e as obrigações paternas? Qual o papel dos homens nos cuidados com as crianças nestes casos? Convém ressaltar que o direito ao livre planejamento familiar está expressamente previsto no artigo 226, § 7º, da Constituição da República e foi, posteriormente, regulado pela Lei 9.263/1996. Albuquerque elucida sobre as pessoas com deficiência: "A dignidade humana como empoderamento consiste na capacidade individual de fazer escolhas livres, o que permite a construção do edifício dos direitos humanos centrado na promoção da autonomia individual. [...] Ressalte-se, assim, que a desconsideração total de sua autonomia não é aceitável, porquanto mesmo quando absolutamente impossibilitada de qualquer entendimento ou de exercício de liberdade, há a adoção dos modelos de decisão substituta que buscam, de alguma forma, contemplar sua autonomia"1. Ainda tendo como esteio uma norma com status constitucional, conforme o §3º do art. 5º da Constituição, é imperioso relembrar que o Decreto 6.949/2009, que promulgou a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, estabelece que as ações do Poder Público e da sociedade civil devem ser direcionadas a promoção e garantia da dignidade das pessoas com deficiência. De acordo com Diniz, Barbosa e Santos: "O Brasil ratificou a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência em 2008. Isso significa que um novo conceito de deficiência deve nortear as ações do Estado para a garantia de justiça a essa população"2. No que tange a legislação infraconstitucional, o artigo 6º do Estatuto da Pessoa com Deficiência (lei 13.146/2015) dispõe expressamente que a pessoa com deficiência não tem a capacidade civil afetada inclusive para "III - exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar; IV - conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória". No mesmo diploma, outro dispositivo violado pelo PL é o artigo 114, que alterou o Código Civil para prever que são absolutamente incapazes os apenas os menores de 16 anos. Logo, há uma incompatibilidade não apenas com a lei, como também uma evidente confusão entre capacidade civil e deficiência. Vale sempre repisar que findou com a promulgação da Lei Brasileira de Inclusão a incapacidade absoluta para pessoas maiores de 16 anos, bem como a deficiência em si não mais constitui causa de incapacidade civil, sob pena de afronta ao texto constitucional. Igualmente preocupante é o poder atribuído ao Judiciário para intervir nos corpos, uma vez que a ausência de parâmetros objetivos e mensuráveis permite uma margem de discricionariedade demasiada, o que pode resultar em uma seletividade extremamente danosa para a sociedade e um retorno ao passado, que definitivamente encontra obstáculo na CDPD. Como exemplo, cita-se a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Esterilização da Mulher que foi instaurada em 1992, com o objetivo de investigar a esterilização em massa de mulheres negras, após a verificação de um número alarmante de procedimentos de laqueadura no Brasil. O controle e a docilização do corpo feminino é reflexo de uma sociedade patriarcal, que impõe sobre as mulheres com deficiência restrições ainda mais severas em sua autonomia, com feição de punição. Contudo, mesmo após a CPI, seguiram sendo prolatadas decisões judiciais favoráveis a laqueadura mesmo contra a vontade das mulheres, tendo sido amplamente noticiado o "Caso Janaína". Em 2018, Janaina Aparecida Quirino, que na época tinha 36 anos, foi ao hospital ter seu oitavo filho. Na oportunidade, a casa de saúde não apenas realizou a cesárea, como submeteu Janaína a uma laqueadura cumprindo a ordem judicial, depois de o Ministério Público ter ingressado com uma Ação Civil Pública requerendo a esterilização, sob a alegação de que ela era usuária de entorpecentes e já tinha sete filhos. Embora não se trate de um julgamento envolvendo pessoa com deficiência, o caso demonstra a seletividade que envolve este tipo de cirurgia e suscita outra preocupação: ao prever a atuação do Ministério Público, o PL parece acrescentar uma proteção, quando na verdade a atuação do órgão já é obrigatória nos casos em que há incapazes, conforme o art. 178, II, do Código de Processo Civil. Além disso, a garantia de prioridade na esterilização compulsória, mencionada no PL, descortina o caráter eugênico, eis que a celeridade milita em desfavor das mulheres, além das ofensas processuais. Ao comentar o caso Janaína, Schulman elucida: "enfatiza-se a garantia constitucional do planejamento familiar como direito fundamental (§7º do art. 226 da Constituição Federal), a essencial proteção aos direitos reprodutivos (Lei Brasileira de Inclusão, art. 6º, inc. II), o direito de decidir sobre o número de filhos (Lei Brasileira de Inclusão, art. 6º, inc. III), o direito ao corpo, bem como o direito de conservar a fertilidade (Lei Brasileira de Inclusão, art. 6º, inc. IV)"3. Em sentido semelhante está o entendimento expresso no ARE 1.195.999-RS, julgado em 2019 pela Ministra Carmen Lúcia. Trata-se do caso de uma mulher que era interditada por problemas psiquiátricos irreversíveis, razão pela qual foi autorizada em primeira instância sua laqueadura tubária e, após diversos recursos, o STF não autorizou o procedimento, com fundamento no artigo 226, §7º da CF, no Estatuto da Pessoa com Deficiência e na Lei do Planejamento Familiar. A Ministra pontua ainda que não foram ouvidos os pais da interditada, a própria, os médicos, o Ministério Público e tampouco peritos médicos. Assim, o recurso foi provido para não autorizar a laqueadura. Por todo o exposto, a previsão de uma regra de esterilização compulsória destinada especificamente para pessoas com deficiência parece discriminatória e, portanto, inconstitucional e com demarcado caráter eugênico. Mais do que buscar proteger as pessoas invadindo seus corpos, propõe-se a promoção do respeito e cuidado. Não há no Congresso Nacional projetos de lei que promovam a educação sexual de forma acessível, o fomento da capacitação de agentes de saúde para o aumento do uso de preservativos e outras formas de contracepção. A esterilização forçada representa uma violência de gênero que desumaniza as mulheres com deficiência, tendo a autodeterminação corporal violada e ceifada. Conforme as palavras de Leo Pessini: "Isso exigirá uma transformação em termos de cultura organizacional, que envolve mudanças de outros elementos, entre os quais destacamos a passagem de um modelo de cuidados de saúde biomédico para um novo modelo mais holístico que vê o ser humano em sua integralidade; do enfoque hospitalar para o comunitário"4. Em suma, uma transformação que deixe de partir do pressuposto que um corpo com deficiência é um corpo sem sujeito. __________ 1 ALBUQUERQUE, Aline. Esterilização compulsória de pessoa com deficiência intelectual: análise sob a ótica do princípio da dignidade da pessoa humana e do respeito à autonomia do paciente. Bioethikos, São Paulo, v. 7, n. 1, 2013, p. 20. 2 DINIZ, Debora; Barbosa, Lívia; SANTOS, Wederson Rufino dos. Deficiência, Direitos Humanos e Justiça. SUR. REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS, v. 6, 2009, p. 66. Disponível aqui. Acesso em 14 jul. 2024. 3 SCHULMAN, Gabriel. Esterilização Forçada, Incapacidade Civil e o Caso Janaína: não é segurando nas asas que se ajuda um pássaro a voar. REDES - Revista Eletrônica Direito e Sociedade, v. 6, 2018, p. 114 4 PESSINI, Leo. A medicina atual: entre o dilema de curar e cuidar. In: TEIXEIRA; Ana Carolina Brochado; DADALTO, Luciana (coord.). Dos hospitais aos tribunais. Belo Horizonte: Del Rey, 2013, p. 08.
O Direito Civil francês passou por um processo de discussão para reforma do Código Civil na disciplina de responsabilidade civil que culminou com alterações legislativas que merecem ser consideradas, dado o importante debate sobre a reforma legislativa do Código Civil brasileiro. Na exposição de motivos da proposta de lei 678, é possível acompanhar a trajetória desse processo de modificação da lei francesa. No texto é referido que a partir dos anos 2000 ganhou força o movimento para a reforma do Código Civil francês no Direito das Obrigações para reforçar a acessibilidade e a segurança jurídica do Direito da Responsabilidade Civil.1 O processo de modificação legislativa francês foi acompanhado de ampla discussão e debate e contou com expoentes da disciplina como coordenadores dos trabalhos. Nessa direção, em 2005 um primeiro grupo de trabalho dirigido por Pierre Catala e Geneviève Viney, entregou um projeto de reforma das obrigações e da prescrição, denominado anteprojeto Catala. Um outro projeto, denominado anteprojeto Terré foi elaborado a partir de 2008 por um grupo de trabalho constituído sob a direção de François Terré.2 Com base nessas reflexões, em julho de 2009, o Senado francês propôs 28 recomendações para uma reforma da responsabilidade civil.3 Somente em 13/3/17 o Ministério da Justiça apresentou um projeto de reforma de responsabilidade civil depois de uma consulta pública realizada no ano de 2016. A partir desse projeto, e inspirado também no relatório adotado pela comissão de leis do Senado de 22/7/20, que apontou para "necessidade de obter uma reforma do Direito da Responsabilidade Civil esperada e útil", foi apresentada no Senado a proposta de lei 678 para a reforma do Código Civil francês em 29/7/20.4 Todo esse percurso para elaboração legislativa foi acompanhado pela comunidade acadêmica francesa que se ocupou do tema em debates para discutir as mudanças e desafios apresentados pela proposta. Nesse sentido, em 22/10/21, foi realizado um encontro na Universidade de Nîmes, que reuniu diversos juristas com a finalidade de compreender de maneira crítica, a extensão e o impacto da reforma, considerando por exemplo matérias que teriam sido deixadas de lado (como a pena civil) e outras que teriam sido ignoradas (como a inteligência artificial).5 A doutrina francesa, sempre esteve atenta à reforma, publicando importantes trabalhos acadêmicos a propósito do tema, analisando não só o texto proposto, como a efetiva transformação normativa e social provocada pela alteração na hipótese de seu acolhimento pelo legislador, tal como se pode ver, exemplificativamente, pelo artigo publicado por Patrice Jordain, na importante revista Archives de Philosophuie du Droit em volume dedicado especialmente à responsabilidade civil.6 Na sequência do debate sobre a reforma, foi apresentada na Assembleia Nacional Francesa a proposição legislativa 278, com a finalidade de adaptar o Direito da Responsabilidade Civil aos desafios atuais.7 A proposição apresentou um único artigo para modificação do Código Civil, cujo texto propunha alterar o art. 1.253, para incluir um regime de responsabilidade civil objetiva nos casos de perturbação anormal da vizinhança.8 A proposta legislativa transformou-se na lei. 346 de 15/4/249 que efetivamente alterou o art. 1.253 do Código Civil francês, incorporando o sistema de responsabilidade objetiva nos casos de perturbação anormal de vizinhança.10 Ao comentar o dispositivo legal, Philippe Delebecque refere que a modificação legislativa pouco contribuiu, pois considera que a matéria já estava bem regulada pelo direito real de propriedade. Para o autor, ao alterar o texto do Código Civil, o legislador teria criado um "justo título" para um regime especial de responsabilidade civil. No mais, defende que a alteração legislativa não teria trazido outras alterações já que a matéria era pacificada no Direito Francês em razão do princípio estabelecido pela Corte de Cassação segundo o qual: "ninguém deve causar a outros perturbações anormais de vizinhança" (V. Cass. 1ª civ., 19/11/86, 84-16.379: JurisData 1986-702120). Aduz ainda, que o princípio assentado jurisprudencialmente não estabelecia um rol de responsáveis, ao contrário do que agora é trazido no dispositivo legal, que passa a elencar os legitimados, o que faz questionar: Este seria um rol taxativo? Outra questão referida pelo autor é que o parágrafo segundo do dispositivo incluiria uma exceção à responsabilidade civil para os casos de perturbações existentes antes do ato de transferência de propriedade ou de transferência da posse do imóvel, disposição que já era contemplada no art. L112-16 do Código de Construção.11 Numa crítica mais dura, Nadège Reboul-Maupin refere que o dispositivo não representa somente a reprodução da jurisprudência, mas sacrifica os direitos da propriedade no "altar da responsabilidade civil". A autora explica que além de compensar os danos resultantes dos transtornos causados pela perturbação anormal o princípio jurisprudencial permitia por fim à própria perturbação. No seu entendimento, ato tratar da matéria na responsabilidade civil, a alteração legislativa limitaria a extensão da aplicabilidade do princípio.12 Ou seja: Além de não trazer inovação significativa, o art. 1.253 abriu a possibilidade para questionamentos até então inexistentes. Isso demonstra que mesmo uma reforma mínima pode trazer inconvenientes e dúvidas significativas, naturais do processo de interpretação e aplicação da "lei nova". De fato, depois de um processo de mais de 20 anos de discussão para reformar o Código Civil francês na disciplina de Responsabilidade Civil, que contou com juristas cuja trajetória e importância é reconhecida não só no Direito francês, mas também são referência mundial na matéria, o legislador francês optou por uma reforma pontual, alterando somente um dispositivo que trata de um ponto muito específico, após a profunda análise sobre as reais necessidades de modificação legislativa em face do desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial sobre a matéria.   Há que se destacar que quanto à reforma ao Direito das Obrigações a opção do legislador francês foi bem diferente, a matéria sofreu alteração legislativa mais profunda, inclusive no que respeita à responsabilidade civil contratual.13 De todo esse cenário, é impossível não revelar espanto ao comparar o tempo dedicado para o processo de reforma no Direito francês, com o brasileiro. O espanto permanece ao considerar a extensão das propostas de alteração legislativa nos dois países (e mais ainda se for analisado o texto efetivamente modificado). O projeto para a reforma da disciplina de Responsabilidade Civil foi apresentado no Senado francês praticamente 20 anos depois do movimento mais expressivo nesse sentido. Esse tempo é praticamente o da vigência do nosso Código Civil, que se iniciou em janeiro de 2023, sem qualquer comparação com uma lei datada de 1804.    No passado, o ordenamento francês foi espelho para se alcançar avanços no Direito brasileiro, sobretudo na Responsabilidade Civil.  Agora talvez seja novamente oportuno, olhar para aquele ordenamento para refletir sobre a conveniência, oportunidade e extensão de uma reforma, sob pena de que toda a construção jurídica até aqui desenvolvida seja perdida, ao ser adotada uma legislação completamente "inventiva" em comparação com os grandes sistemas jurídicos atuais, com riscos de grande insegurança jurídica que acompanham o processo de interpretação e aplicação da lei nova.   E, tratando-se de Responsabilidade Civil, não é demais lembrar: prudência, perícia e diligência, não fazem mal a ninguém! ___________ 1 Disponível aqui. Acesso em agosto de 2024. 2 Esses autores possuem produção doutrinária sólida, além de extensa carreira acadêmica nas Universidades Públicas francesas, nas quais o tema tem sido objeto de debate há décadas. 3 Disponível aqui. Acesso em agosto de 2024. 4 Disponível aqui. Acesso em agosto de 2024. 5 O resultado do encontro pode ser conferido em obra coletiva que reuniu textos de diversos especialistas e foi publicada como produto das discussões do encontro realizado na Universidade de Nîmes a se ver: Le Projet de Réforme du Droit de la Responsabilité Civile - Études à la lumière de de la proposition de Loi Sénatorial du 29 juillet 2020. Sous la Direction de Gustavo Cerqueira et Vanessa Monteillet. Paris: Dalloz, 2021. Importante registrar a generosidade do Prof. Gustavo Cerqueira da Universidade de Nîmes, por sua disposição em oportunizar discussões e troca de ideias sobre a reforma do Código Civil francês. 6 JOURDAIN, Patrice. Les enjeux dúne réforme de la responsabilité civile.Archives de philosophie du droit. Tome 63, La Responsabilite. Paris: Dalloz, 2022, p. 277 - 282. 7 Disponível aqui. Acesso em agosto de 2024. 8 "Le propriétaire, le locataire, l'occupant sans titre, le bénéficiaire d'un titre ayant pour objet principal de l'autoriser à occuper ou à exploiter un fonds, le maître d'ouvrage ou celui qui en exerce les pouvoirs qui est à l'origine d'un trouble excédant les inconvénients normaux de voisinage est responsable de plein droit du dommage qui en résulte.  Sous réserve de l'article L. 311-1-1 du code rural et de la pêche maritime, cette responsabilité n'est pas engagée lorsque le trouble anormal provient d'activités, quelle qu'en soit la nature, existant antérieurement à l'acte transférant la propriété ou octroyant la jouissance du bien ou, à défaut d'acte, à la date d'entrée en possession du bien par la personne lésée. Ces activités doivent être conformes aux lois et aux règlements et s'être poursuivies dans les mêmes conditions ou dans des conditions nouvelles qui ne sont pas à l'origine d'une aggravation du trouble anormal." Disponível aqui. Acesso em agosto de 2024. 9 Disponível aqui. Acesso em agosto de 2024. 10 Texto do Código Civil francês, disponível aqui. Acesso em agosto de 2024. 11 DELEBECQUE, Philippe, Trobles de voisingage: porqui legiférer? Revue Mensuelle du Jurisclasseur. n. 6, juin 2024. 12 Recueil Dalloz, 18 janvier 2024, p. 65 e ss. 13 A propósito ver DESHAYES, Olivier, GENICON, Thomas e LAITHIER, Yves-Marie. Réforme du droit des contrats, du régime général et de la preuve des obligations. 2ª ed. Paris: Lexis Nexis, 2018; GILARDEAU, Eric. Lémpire du matérialisme juridique sur le contrat. La reforme du contrat dans les codes civils allemand et français.  Paris: L'Harmattan, 2022.
A previdência social é uma técnica de proteção social destinada a debelar as necessidades sociais decorrentes de contingências que reduzem ou eliminam a capacidade de autossustento do trabalhador e/ou de seus dependentes.1 Uma dessas contingências mais relevantes é a morte do trabalhador, que gera necessidade no conjunto dos dependentes. Para fazer face a tal contingência, é previsto o benefício de pensão por morte, rateado entre os dependentes. Há uma ordem de prioridade para recebimento da pensão por morte, considerando a previsão do art. 16 da Lei 8.213/1991, que trata do Regime Geral de Previdência Social, a cargo do INSS. Em primeiro lugar, o benefício é concedido aos indicados no inciso I do art. 16 da Lei 8.213/1991, ou seja, os filhos, em regra até 21 anos de idade, cônjuge e companheira(o).  Não havendo dependente dessas classes, os pais são indicados no inciso II, e podem receber a pensão, desde que provem dependência econômica em relação ao falecido segurado. Inexistindo os dependentes indicados nos incisos I e II, poderão ter direito os irmãos, em regra até os 21 anos de idade, devendo também provar a dependência econômica. Como se verifica, há pontos de contato entre o direito previdenciário e o direito de família, vez que os beneficiários previstos possuem vínculos de parentesco ou conjugalidade com o segurado falecido. A emancipação antecipa a cessação da condição de dependente para o filho e o irmão que tenham menos de 21 anos de idade. Quanto ao cônjuge e companheiro(a), há questões interessantes sobre o rateio do benefício como se verifica no art.76, § 2º, da lei 8.213/1991, autorizando a sua aplicação entre  os filhos do falecido e o ex-cônjuge (divorciado, separado judicialmente ou de fato) que recebia pensão alimentícia à época do falecimento. Atualmente, a mesma possibilidade se defere ao ex-cônjuge separado ou divorciado extrajudicialmente, conforme o art.373, da Instrução Normativa Pres/INSS nº128/2022. A seguir a Súmula nº336/STJ, a mulher renunciante de alimentos ao tempo da separação judicial terá direito a essa pensão previdenciária, se comprovar a necessidade econômica superveniente. Mas como a legislação previdenciária define o vínculo entre companheiros? E qual é tratamento dispensado à união paralela ao casamento ou à união estável quando os cônjuges ou companheiros preservam a vida em comum, não estando separados de fato? A legislação previdenciária (art. 16, § 3º, da lei 8.213/1991 e art. 16, § 6º, do decreto 3.048/1999) considera união estável a mantida entre pessoas não casadas na forma do § 3º do art. 226 da Constituição Federal, configurada na convivência pública, contínua e duradoura entre pessoas, estabelecida com intenção de constituição de família, observado o disposto no § 1º do art. 1723 do Código Civil. Aplicam-se os impedimentos do art. 1521 do Código Civil, salvo se houver separação de fato, judicial ou extrajudicial. Assim, o segurado(a) casado(a) não pode manter união estável com outra pessoa, salvo se provada a separação de fato ou a separação judicial/extrajudicial. Poderia se reconhecer o direito à pensão ao sobrevivente dessas uniões não eventuais, quando era provada a sua dependência econômica. Permitia-se o rateio do benefício entre cônjuge/companheiro e o sobrevivente das uniões não eventuais de longo período, corriqueiramente nomeadas como "concubinato de longa duração". Mas a  possibilidade foi extinta em 2021, após o STF decidir o Tema 526 de Repercussão Geral e fixar a seguinte tese: "É incompatível com a Constituição Federal o reconhecimento de direitos previdenciários (pensão por morte) à pessoa que manteve, durante longo período e com aparência familiar, união com outra casada, porquanto o concubinato não se equipara, para fins de proteção estatal, às uniões afetivas resultantes do casamento e da união estável". Na ementa do voto foi reiterada a impossibilidade do rateio entre esposa e concubina no caso de convivência simultânea ao casamento, e que o que o concubinato - união entre pessoas impedidas de casar - não geraria efeitos previdenciários, citando os princípios da exclusividade e da boa-fé, bem como os deveres de lealdade e fidelidade, na fundamentação jurídica da decisão. Ressalte-se que, no caso de prova da separação de fato entre o(a) segurado(a) e seu cônjuge, a conformação de uma nova união estável permitirá a concessão de direitos ao companheiro(a) sobrevivente, nos termos da legislação vigente. Todo o entendimento acima indicado também se aplica a servidores públicos, abrangidos por regimes próprios de previdência social. No entanto, merece referência, ainda quanto ao rateio da pensão por morte, a disposição constante do art. 178, § 5º, da Instrução Normativa PRES/INSS nº 128, de 28 de março de 2022. Trata-se de uma expressa  exceção ao entendimento acima indicado para permitir o reconhecimento de união estável entre uma pessoa indígena e mais de um(a) companheiro(a). In verbis, § 5º Será reconhecida, para fins previdenciários, a união estável entre um segurado indígena e mais de um(a) companheiro(a), em regime de poligamia ou poliandria devidamente comprovado junto à Fundação Nacional do Índio (FUNAI). (grifo intencional). Em respeito às peculiaridades culturais de grupos indígenas que adotam a poligamia e a poliandria, admite-se a união estável com mais de um(a) companheiro(a) e, consequentemente, o rateio de pensão por morte entre os sobreviventes, quando comprovada a situação perante a FUNAI. Considere-se o art.231, da Constituição que reconhece ao povo indígena a sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, garantindo-lhes a correspondente tutela. Soma-se ainda, os termos do artigo 1°, item 1, alínea b, da Convenção nº169, da Organização Internacional do Trabalho -  OIT, e a Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas, que reconhecem e preservam a autoidentificação como elemento essencial para determinar a condição de indígena. A declaração fornecida pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas - FUNAI tem sido considerada documento suficiente para comprovação da união estável envolvendo pessoas indígenas, dispensando-se, inclusive, a apresentação dos documentos listados pela Portaria nº, do INSS.2 Voltando, porém, à concessão do benefício aos(às) companheiros(as) sobreviventes do segurado falecido, seria o caso de reconhecimento de união poliamorosa ou de uniões paralelas? A resolução é aberta ao reconhecimento das peculiaridades de cada comunidade indígena quanto à sua organização social e aos seus costumes, referindo-se expressamente aos casos de poligamia ou poliandria. Trecho de Gilberto Freyre rememora que a monogamia não era um princípio hegemônico entre os povos indígenas: "Entre os indígenas do Brasil, notou nos meados do século XVI o padre Anchieta que a mulher não se agastava com o fato de o homem, seu companheiro, tomar outra ou outras mulheres: "ainda que a deixe de todo, não faz caso disso, porque se ainda é moça, ela toma outro". E "se a mulher acerta ser varonil e virago, também ela deixa o marido e toma outro."33 Era ponto, naturalmente, esse de variar marido de mulher e mulher de marido, com o qual não podia transigir, nem transigia no Brasil, a moral católica: isto é, a dura, ortodoxa, representada pelos padres da Companhia."3 Com o passar dos anos, a fricção cultural e a força do continuado processo de colonização dos povos, a monogamia atravessou os costumes de muitas comunidades indígenas, como ressalta a historiadora Vania Moreira. Segundo ela, o combate a poligamia era uma "obsessão" dos missionários dedicados a sua evengelização.4 Não obstante a isso, a legislação acolheu a possibilidade de uniões paralelas ou simultâneas entre pessoas indígenas, quando a prática é considerada um costume da comunidade indígena correspondente. Ressalta-se que a poligamia, assim considerada a união entre uma pessoa do gênero masculino com duas ou mais pessoas do gênero feminino; e a poliandria, a união entre uma pessoa do gênero feminino com mais de duas pessoas, do gênero masculino não se confundem conceitualmente com o poliamor que se constitui mais como uma "filosofia de vida". Ainda que caracterizada pela "possibilidade de uma pessoa manter um relacionamento amoroso íntimo e afetivo com duas ou mais pessoas ao mesmo tempo, com o conhecimento e consentimento dos envolvidos".5 O relacionamento poliamoroso fechado há uma relação estável entre mais de duas pessoas que compartilham uma comunhão plena de vida por elas qualificada como família. O mesmo raciocínio pode ser estendido às pessoas refugiadas polígamas, egressas de um país no qual a prática é consentida. Altas taxas de poligamia podem ser verificadas na Nigéria, por exemplo. Entre nós, embora a monogamia seja um princípio geral de direito de família, recentemente reforçado pelo STF em decisões recentes, de acordo com a Lei do Refúgio (Lei nº 9.474/97), os efeitos da condição de refugiado são extensivos ao respectivo cônjuge. Nessa medida, como recusar a tutela jurídica aos cônjuges do refugiado polígamo? De igual sorte, se o refugiado consegue um emprego e se afilia ao sistema da previdência social, em caso de morte, como recusar o rateio do pensionamento às esposas ou companheiras sobreviventes? Na unidade do ordenamento jurídico, é possível afirmar que as teses recentes fixadas pelo Supremo Tribunal Federal não afastam, por completo, a possibilidade da existência de uniões estáveis paralelas ou mesmo de uniões poliamorosas.  Outra interessante decisão do STF, tomada em março de 2024, ao decidir o Tema 1072 de Repercussão Geral, diz respeito a casais formados por duas mulheres, nos quais uma delas tenha dado à luz. Discutia-se se o salário-maternidade deveria ser concedido a apenas uma delas ou a ambas. A tese fixada pelo STF foi: A mãe servidora ou trabalhadora não gestante em união homoafetiva tem direito ao gozo de licença-maternidade. Caso a companheira tenha utilizado o benefício, fará jus à licença pelo período equivalente ao da licença-paternidade. Assim, a mãe não gestante só terá direito ao salário-maternidade se sua companheira não tiver usufruído do benefício. Terá, não obstante, o direito ao salário-paternidade. Ou seja, o STF reconheceu os mesmos direitos de uniões entre pessoas de sexos diferentes. O prazo do salário-maternidade é de 120 dias e da licença paternidade é de 5 dias, sendo que no âmbito do Regime Geral de Previdência Social há a possibilidade de ampliar o primeiro para 180 dias e o segundo para 20 dias, no caso de empregados de empresa que adira ao Programa Empresa Cidadã (Lei 11.770/2008). No âmbito de regimes próprios de previdência de servidores públicos, o prazo já é de 180 dias para a licença maternidade. A licença-paternidade, prevista atualmente no § 1º do art. 10 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, é, em regra, de cinco dias até que haja regulamentação. Em dezembro de 2023, o STF, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 20, reconheceu que há omissão inconstitucional na regulamentação da licença-paternidade prevista no art. 7º, XIX, da Constituição, e fixou o prazo de dezoito meses para o Congresso Nacional legislar a respeito da matéria. Caso não o faça, não sobrevindo a lei regulamentadora no prazo acima estabelecido, caberá ao STF fixar o período da licença-paternidade. Eis a tese de julgamento fixada:  1. Existe omissão inconstitucional relativamente à edição da lei regulamentadora da licença-paternidade, prevista no art. 7º, XIX, da Constituição. 2. Fica estabelecido o prazo de 18 meses para o Congresso Nacional sanar a omissão apontada, contados da publicação da ata de julgamento. 3. Não sobrevindo a lei regulamentadora no prazo acima estabelecido, caberá a este Tribunal fixar o período da licença paternidade  Há assim possibilidade de o Congresso Nacional regulamentar a licença-paternidade e contribuir para uma maior igualdade entre os pais na fruição do benefício e no cuidado e atenção com os filhos. ______________ 1 Dias, Eduardo Rocha e Macedo, José Leandro Monteiro de. Direito Previdenciário. Leme/São Paulo - Editora Mizuno, 2023, p.18. 2 PREVIDENCIÁRIO. PENSÃO POR MORTE. COMPANHEIRO. REGISTRO ADMINISTRATIVO DE CASAMENTO DE ÍNDIO. UNIÃO ESTÁVEL. COMPROVAÇÃO. CONSECTÁRIOS LEGAIS. 1. Em se tratando de indígena, a expedição de certidão e os registros administrativos realizados pela FUNAI constituem início de prova material, pois têm fé pública e são previstos expressamente no Estatuto do índio (Lei nº 6.001/73). 2. Comprovada a união estável entre o casal, a dependência econômica é presumida, sendo devida a concessão da pensão por morte à companheira. 3. Consectários legais fixados nos termos do decidido pelo STF (Tema 810) e pelo STJ (Tema 905). A partir de 09/12/2021, deve ser observada para fins de atualização monetária e juros de mora, de acordo com art. 3º da EC 113/2021, o índice da taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (Selic), acumulado mensalmente. (TRF-4 - AC: 50019369320234049999, Relator: ALEXANDRE GONÇALVES LIPPEL, Data de Julgamento: 28/03/2023, QUINTA TURMA). 3 FREYRE, Gilberto. Casa-grande e senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 48. ed. Rio de Janeiro: Global, 2003. p. 168. 4 MOREIRA, Vania Maria Losada. Casamentos indígenas, casamentos mistos e política na América portuguesa: amizade, negociação, capitulação e assimilação social. Topoi (Rio de Janeiro), [S.L.], v. 19, n. 39, p. 29-52, set. 2018. FapUNIFESP (SciELO). 5 SANTOS, Anna Isabella de Oliveira; VIEGAS, Cláudia Mara de Almeida Rabelo Viegas. Poliamor: conceito, aplicação e efeitos. Cadernos de Pós-Graduação em Direito PPGDir/UFRGS. Ed. Digital. Porto Alegre. Vol. XII, n.2. 2017, p.263.
O anteprojeto de reforma do Código Civil faz expressa menção às diretivas antecipadas de vontade (DAV), contudo, vai além da (necessária) inovação e inventa uma (desarrazoada) diretiva antecipada de vontade. Assim, o objetivo deste texto é apresentar de forma sucinta as razões pelas quais a forma como os documentos de DAV são tratados no anteprojeto precisa de reforma, sob pena de a abordagem normativa destes documentos já nascer velha e, o pior, disforme. Há dois artigos que tratam das diretivas antecipadas, dispostos em livros diferentes, a saber: Livro I - Parte Geral Art. 15. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica. § 1º É assegurada à pessoa natural a elaboração de diretivas antecipadas de vontade, indicando o tratamento que deseje ou não realizar, em momento futuro de incapacidade. § 2º Também é assegurada a indicação de representante para a tomada de decisões a respeito de sua saúde, desde que formalizada em prontuário médico, instrumento público ou particular, datados e assinados, com eficácia de cinco anos. § 3º A recusa válida a tratamento específico não exime o profissional de saúde da responsabilidade de continuar a prestar a melhor assistência possível ao paciente, nas condições em que ele se encontre ao exercer o direito de recusa. Livro IV - Direito de Família Art. 1.778-A. A vontade antecipada de curatela deverá ser formalizada por escritura pública ou por instrumento particular autêntico. "Art. 1.778-B. O juiz deverá conferir prioridade à diretiva antecipada de curatela relativamente: I - a quem deva ser nomeado como curador; II - ao modo como deva ocorrer a gestão patrimonial e pessoal pelo curador; III - a cláusulas de remuneração, de disposição gratuita de bens ou de outra natureza. Parágrafo único. Não será observada a vontade antecipada do curatelado quando houver elementos concretos que, de modo inequívoco, indiquem a desatualização da vontade antecipada, inclusive considerando fatos supervenientes que demonstrem a quebra da relação de confiança do curatelado com a pessoa por ele indicada." O simples fato de os documentos de diretivas antecipadas serem tratadas de modos diferentes em dois títulos diferentes já demonstra a falta de compreensão sobre o tema. E tal demonstração é preocupante, notadamente, porque estamos em 2024 e já há uma vastíssima construção normativa estrangeira sobre os documentos de DAV, que se originaram nos anos 1960. Apesar de o art. 15 conter inúmeras impropriedades terminológicas - como será visto a seguir - ele se refere, realmente, aos documentos de diretivas antecipadas de vontade, ou seja, documentos de manifestação prévia do paciente, que produzirão eficácia quando e se o outorgante ficar gravemente doente e impossibilitado de manifestar vontade. Os documentos de DAV, portanto, são manifestação de autonomia prospectiva para cuidados, tratamentos e procedimentos de saúde. Em contrapartida, os arts. 1.778-A e 1.778-B inovaram ao nomear a "autocuratela1" de "diretiva antecipada de curatela", instituto que não existe em ordenamentos jurídicos que positivaram os documentos de DAV. O uso do termo "diretiva antecipada de curatela" tem o potencial de confundir a aplicação da autocuratela e impedir o avanço de outros (verdadeiros) documentos de DAV. Inclusive, a própria justificativa do anteprojeto  - "Inovação que também merece destaque é a diretiva antecipada de curatela, uma espécie de 'testamento para a vida', em que o interessado delineia a forma como deseja ser tratado, no caso de perda da sua autonomia cognitiva"- já demonstra essa confusão. A ideia de que o indivíduo tem o direito de planejar seus cuidados de saúde remonta à segunda metade do século XX e é produto do reconhecimento da autonomia da pessoa sobre seu corpo. Nesse contexto, surgem nos EUA os documentos de manifestação prévia de vontade do paciente - comumente chamados de documentos DAV - que partem da ideia de que toda pessoa tem autonomia prospectiva sobre seus cuidados de saúde futuros. Em 1967, a Sociedade Americana para a Eutanásia desenvolveu a ideia de um documento de manifestação antecipada de cuidados de saúde a ser usado em situações em que o paciente estiver impossibilitado de expressar seus desejos. Tal documento recebeu o nome de living will e, em 1969, foi sistematizado em um artigo científico escrito por Luis Kutner2, advogado representante da entidade. Kutner propôs que essa manifestação de vontade se dê como um adendo ao consentimento informado feito em cirurgias e procedimentos complexos ou ainda como um documento autônomo, feito especificamente com a finalidade de recusa de tratamento em caso de terminalidade. Tal documento foi renomeado para direct for phisicians, pelo Natural Death Act, lei californiana de 1977.3 Em 1983, a Califórnia publicou o California's Durable Power of Attorney for Health Care, reconhecendo o direito de o paciente nomear um procurador para tomar decisões médicas quando estiver impossibilitado de fazê-lo. Em 1990, a PSDA - Patient Self Determination4, lei federal sobre os direitos dos pacientes, dispôs especificamente sobre o direito dos pacientes a manifestarem sua vontade prévia por meio de documentos de diretivas antecipadas, reconhecendo, naquele momento, duas espécies: Living will e durable power of attorney for health care. Este modelo foi recepcionado por inúmeros países como Espanha, Itália, Argentina, Alemanha, Inglaterra, México, etc. Ocorre que, como os documentos de DAV são reflexo das conquistas dos pacientes e nas últimas décadas a compreensão de autodeterminação destes foi alargada (e continua a ser), novas espécies de documentos de diretivas surgiram e, atualmente, há oito recepcionadas na doutrina jurídica estadunidense: Testamento vital; Procuração para cuidados de saúde; Diretivas antecipadas psiquiátricas/para saúde mental; Diretivas antecipadas para demência; Ordens de não reanimação; Documentos de recusa terapêutica; Plano de parto; Diretivas de parada voluntária de comer e beber. No Brasil, a recepção dos documentos de DAV aconteceu de maneira sui generis - vez que a primeira norma a tratar do tema foi uma resolução do CFM - o que, possivelmente, influenciou a falta de compreensão destes documentos em nosso país. A resolução CFM 1.995/125 estabeleceu que a manifestação prévia de vontade do paciente deve ser respeitada pelos médicos e que prevalecerá sobre a vontade dos familiares; todavia, seguindo o modelo da lei portuguesa, optou por substituir o termo "testamento vital" pelo gênero, DAV. Em 2017, o Conselho Federal de Enfermagem publicou um novo Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem6 replicando as premissas da norma do CFM: Reconhecimento de que as diretivas antecipadas do paciente devem ser respeitadas pelos profissionais e uso do termo diretivas antecipadas como sinônimo de testamento vital. Em 7/5/24, foi publicada pelo Ministério da Saúde a Política Nacional de Cuidados Paliativos7, que apresenta como um de seus princípios a observância à diretiva antecipada de vontade da pessoa cuidada, esclarecendo textualmente que a DAV "compreende o testamento vital ou outro documento em que haja registro expresso das preferências da pessoa com relação a tratamentos ou outras medidas de cuidado quando em condições de saúde irreversíveis e potencialmente terminais." Sim, é verdade que o termo "testamento vital" é uma má-tradução do termo "living will" e que isso influencia sobremaneira as tentativas de substituí-lo pelo termo "diretivas antecipadas de vontade". Contudo, os efeitos deletérios desta substituição continuam a reverberar e a redação dos arts. 15, 1.778-A e 1.778-B do anteprojeto de reforma do Código Civil é apenas mais um exemplo disso. Por todo o exposto, entende-se que a manutenção da redação dos referidos artigos não significará a esperada (necessária) inovação, mas sim a positivação do desconhecimento acerca dos documentos de diretivas antecipadas. Diante disso, propõe-se que: O artigo 15, § 1º seja alterado para evidenciar as diversas espécies de diretivas antecipadas; O artigo 15, § 2º seja alterado para: Nomear o documento ali disposto como "procuração para cuidados de saúde"; Dispor que a procuração para cuidados de saúde é um documento de representação voluntária e prevalece sobre eventual representante legal; Esclarecer que se trata de uma espécie de documento de diretivas antecipadas; Evidenciar que o procurador para cuidados de saúde não precisa ter vínculo de parentesco ou de casamento com o outorgante; O retirar o prazo de eficácia de 5 anos, pois os documentos de DAV devem ser entendidos como documentos de manifestação de vontade e, portanto, eficazes até que sejam alterados ou revogados pelo outorgante, independentemente de tem mínimo ou máximo. Ademais, o prazo de eficácia de 5 anos é usado pela lei 25/12 de Portugal e os dados portugueses demonstram que a inclusão deste prazo burocratizou o registro destes documentos e contribuiu para a baixa adesão dos cidadãos. O termo "vontade antecipada de curatela", previsto no art. 1.778-A seja substituído pelo termo "autocuratela"; O termo "diretiva antecipada de curatela", previsto no art. 1.778-B seja substituído por "autocuratela".   Alternativamente, caso o termo "autocuratela" seja rechaçado, haja a substituição do termo "vontade antecipada de curatela/diretiva antecipada de curatela" por outro que diferencie o instituto dos documentos de diretivas antecipadas de vontade. _________ 1 Coelho, Thaís Câmara Maia Fernandes. Autocuratela. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016. 2 Kutner, L. Due process of Euthanasia: The Living Will, A Proposal. Indiana Law Journal, vol. 44, p. 539-554, 1969. 3 Towers, B. The impact of the California Natural Death Act. Journal of Medical Ethics. 1978, n. 4, v. 2, p.96-98. Disponível aqui. Acesso em 16 jul. 2024. 4 ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Patient Self Determination Act of 1990. Disponível aqui. Acesso em 16 jul. 2024. 5 Conselho Federal De Medicina. Resolução 1995/2012. Disponível aqui. Acesso 11 jun. 2024. 6 Conselho Federal de Enfermagem. Resolução COFEN 564/2017. Disponível aqui. Acesso 11 jun. 2024. 7 Ministério da Saúde. PORTARIA GM/MS Nº 3.681, DE 7 DE MAIO DE 2024. Institui a Política Nacional de Cuidados Paliativos. Disponível aqui. Acesso em 11 jun. 2024.
A globalização das famílias, podendo ser este movimento entendido como a mudança de domicílio para países estrangeiros, constituição de casamentos e uniões estáveis entre pessoas de nacionalidades diversas, bem como a aquisição de bens fora do território nacional, enseja diversos desafios. Nesta sede, vale um registro sobre testamentos celebrados no exterior e sua eficácia em território brasileiro. Importante assinalar que a análise aqui proposta não se refere a testamentos lavrados em Repartições Consulares do Brasil. De fato, o Manual do Serviço Consular e Jurídico, aprovado pela Portaria 457, de 02 de agosto de 2010, do Ministério das Relações Exteriores, em seu artigo 4.1.2, dispõe que os registros públicos civis ou notariais lançados nos livros consulares destinam-se, primordialmente, a atender à circunstância de ausência do Brasil das partes interessadas e têm plena validade enquanto estas se encontrarem no exterior, prevendo, ainda, que no Livro de Escrituras e Registro de Títulos e Documentos serão lançados testamentos. Ainda segundo o referido Manual, em seu artigo 4.9.7, a Autoridade Consular dará, por ofício, imediata ciência à SERE/DAC dos testamentos públicos que lavrar e dos cerrados que aprovar, devendo constar em ditos ofícios a data, o livro e a folha da lavratura do testamento público ou do Termo de Aprovação do testamento cerrado, bem como a completa identificação do testador, inclusive seu domicílio no Brasil, o local de registro de seu nascimento e, sempre que possível, o cartório, o livro, a folha e o número desse registro. Os atos de última vontade devem ser analisados sob o ponto de vista da sua forma, da capacidade do testador e, ainda, sob o ponto de vista da sua substância. Em relação à forma, ou seja, a validade extrínseca do ato, aplica-se a lei do local em que o testamento foi realizado, ou seja, locus regit actum. Já quanto à capacidade do testador, trata-se de questão relativa ao seu estatuto pessoal e, portanto, aplica-se o disposto no art. 7º da LINBD, sendo a aludida capacidade regulada pela lei do domicílio do testador quando realizou o testamento. Quanto às disposições testamentárias, ou seja, quanto à substância do ato, aplica-se à lei reguladora da sucessão, que é aquela do domicílio do de cujus, consoante o art. 10 da LINDB. De fato, esta última regulará a eficácia das disposições testamentárias1. Para que um testamento celebrado em país estrangeiro possa ser cumprido no Brasil, será necessário que seja traduzido por tradutor público juramentado, contendo apostila ou legalização consular e, ainda, devendo ser registrado no Cartório de Títulos e Documentos. O desafio nessa análise é aquele da qualificação no Direito Internacional Privado, uma vez que, "o que um Estado considera como sendo questão de forma, para outro pode ser questão de substância"2. Há muitas teorias que explicam a qualificação no Direito Internacional Privado. Segundo Jacob Dolinger, o Direito Internacional Privado brasileiro aplica a lex fori, ou seja, a lei local para a qualificação em geral, com exceção dos bens e contratos e rejeita qualquer reenvio indicado pela lei estrangeira3 (LINDB, art. 16). Assim, a qualificação é o ponto de partida do processo conflitual e deve se reger pela lei do foro, pois, conforme a classificação que for dada, haverá ou não a aplicação da lei estrangeira, conforme seja a determinação da normativa do Direito Internacional Privado4. Assim, verificando o juiz que a qualificação da matéria não é idêntica em seu direito e no direito estrangeiro, atenta-se para a qualificação em seu próprio direito, para depois verificar, diante da qualificação em seu próprio direito, se deve ou não aplicar a lei estrangeira na hipótese. Em matéria de testamentos, há exemplos interessantes. Uma situação emblemática é aquela do testamento conjuntivo, vedado pelas características essenciais do ato de última vontade (CC, artigo 1.863), que é revogável, personalíssimo e unilateral, para preservar a espontaneidade da manifestação de última vontade. Há quem defenda que essa questão é da substância do ato, pois o testamento de mão comum violaria os preceitos de ordem pública no Brasil, que proíbem os pactos sucessórios (Código Civil, artigo 426) e concebem o testamento de forma livre, espontânea e revogável. Dessa forma, mesmo se a lei reguladora da sucessão permitir o testamento conjuntivo, aqui no Brasil, este não poderia ser executado por afrontar a ordem pública5. Em sentido oposto, posiciona-se Daniela Vargas, ao ponderar que aquele que lavra testamento conjuntivo no país de seu domicílio onde o formato em questão é permitido, não estará diante de um ato nulo e terá plena capacidade para testar sob essa forma, uma vez que a lei aplicável à sucessão não será a brasileira e o testamento estará condizente com a lei local onde o documento foi produzido, sendo aplicado o artigo 9º da LINBD: locus regit actum6. De fato, considerando que ao qualificar a hipótese segundo a lei brasileira, a questão se insere em matéria de forma, estando disciplinada no artigo 1.863 do Código Civil, em capítulo intitulado Disposições Gerais das Formas Testamentárias, uma vez lavrado em país no qual é admitido, aplicando-se aqui a lei estrangeira pelo domicílio do de cujus, não haverá óbice ao cumprimento do ato de última vontade7. Condição de herdeiro e ordem de vocação hereditária, substituição, direitos dos herdeiros ou dos legatários, validade e eficácia das disposições testamentárias, limites à liberdade de testar, colação, modo de partilha e dívidas, são questões da substância da sucessão hereditária e, portanto, devem ser regidas pela lei do domicílio do autor da herança, como determinado pelo art. 10 da LINBD. No entanto, "a lei estrangeira aplicável à sucessão, em razão do domicílio do de cujus, precisará passar pelo crivo da ordem pública do país da situação dos bens para ser aplicável à partilha"8. Questão interessante poderia ser aquela de previsões no Direito Português, denominadas de substituição pupilar e quase-pupilar (Código Civil Português, art. 2.298º), que permite que o ascendente nomeie herdeiros ou legatários ao filho menor ou incapaz de testar, sendo certo que esta substituição só poderá abranger os bens que o substituído haja adquirido por via do testador, mesmo que por força de sucessão legítima9. De acordo com o Direito Português, a substituição pupilar cessa logo que o substituído perfaça os dezoito anos, ou se falecer deixando descendentes ou ascendentes. Já a substituição quase-pupilar fica sem efeito logo que cesse a impossibilidade de testar ou se o substituído falecer deixando descendentes ou ascendentes. Sem dúvida, não são incomuns casos de pessoas que têm filhos impossibilitados de manifestar sua vontade testamentária e, assim, temem pelo destino do patrimônio que ditos filhos herdarão. Não raro, há divergências nas famílias e os herdeiros do filho com deficiência são justamente seus desafetos familiares. Na hipótese de um testamento lavrado em Portugal com previsão de uma substituição quase-pupilar, sendo o filho com deficiência e o ascendente testador domiciliados em Portugal, poderia a referida previsão produzir efeitos no Brasil? Considerando que a lei aplicável à sucessão no Brasil seria a lei portuguesa e restando cabalmente comprovada a impossibilidade de o substituído testar, a resposta parece afirmativa. No entanto, trata-se de uma questão tormentosa, em virtude das características do testamento, que é ato personalíssimo e unilateral. Uma última palavra deve ser dita em relação ao disposto no art. 10, § 2º, da LINDB, que dispõe que a lei do domicílio do herdeiro ou legatário regula a capacidade para suceder. O dispositivo em referência não está relacionado com a condição de herdeiro ou legatário, uma vez que esta é definida pela lei aplicável à sucessão. Trata o artigo em comento da capacidade para suceder. Assim, questões atinentes à indignidade, por exemplo, serão reguladas pela lei do domicílio do herdeiro ou legatário, o mesmo se passando para a hipótese de herdeiros submetidos ao regime de curatela, que precisarão observar a legislação do país de seu domicílio quanto à extensão dos poderes concedidos ao curador diante da herança a ser recebida. No Brasil, por exemplo, segundo dispõe o art. 1.748, II, compete ao curador, com autorização do juiz, aceitar pelo curatelado heranças, legados ou doações. Assim, havendo uma sucessão no exterior com herdeiro curatelado domiciliado no Brasil, a aceitação da herança, praticada pelo curatelado por meio de seu curador, dependerá de autorização judicial. __________ 1 Em relação ao disposto no caput do artigo 10 da LINDB, não se pode perder de vista o disposto em seu § 1º, que prevê que a sucessão de bens de estrangeiros, situados no Brasil, será regulada pela lei brasileira em benefício do cônjuge ou dos filhos brasileiros, ou de quem os represente, sempre que não lhes seja mais favorável a lei pessoal do de cujus. Dita previsão encontra-se, ainda, prevista no inciso XXXI, do artigo 5º da Constituição Federal. Na jurisprudência, vale citar: Inventário. Direito Internacional Privado. Decisão que determinou a juntada de Legislação Civil Estrangeira e outras providências. Recurso Provido. Inventário. Direito Internacional Privado. Insurgência contra decisão que determinou a juntada de legislação civil estrangeira e outras providências. Efeito suspensivo indeferido. Falecido estrangeiro, com bens situados no Brasil. Art. 23, inciso II, do CPC. Impossibilidade, em tese, de aplicação da lei civil helvética, a qual não poderá ser mais favorável a cônjuge brasileira, nos termos do art. 5º, XXXI, da CR e do art. 10, § 1º da LINDB. As providências determinadas pelo juízo do inventário mostram-se desnecessárias. Legislação brasileira é mais benéfica à agravante, conforme art. 1.829, inciso III, do CC, porque faz desta única herdeira. Ausentes descendentes ou ascendentes, a cônjuge herda a totalidade dos bens do falecido, independentemente do regime de bens. Suposto testamento aberto na Suíça, aludido pela sobrinha do de cujus, não apresentado nas três oportunidades conferidas para tanto. O falecimento dos pais do autor da herança é presumível, diante dos dados demográficos daquele país. Evidência de que o falecido consta como proprietário dos bens inventariados, independentemente da grafia do nome. Decisão revogada, determinando-se o regular andamento do feito. Recurso provido. TJSP, 10ª Câmara de Direito Privado, Agravo de Instrumento nº 2146694-40.2019.8.26.0000, Rel. Des. J.B. PAULA LIMA, jul. em 27.08.2019. 2 ARAÚJO, Nádia de. Direito Internacional Privado: Teoria e Prática. São Paulo: Revista dos Tribunais, 7ª edição, 2018, p. 320. 3 DOLINGER, Jacob. Direito Internacional Privado - Parte Geral. Rio de Janeiro: Forense, p. 403. 4 DOLINGER. Ob. cit., p. 394. 5 VELOSO, Zeno. Testamentos. Belém: Edições Cejup. 2ª edição, pp. 97-99. 6 VARGAS, Daniela T., "Patrimônio Internacional e Sucessões: Perspectiva do Direito Brasileiro", in TEIXEIRA, Daniele Chaves, Arquitetura do Planejamento Sucessório. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 118. 7 O Tribunal de Justiça do Distrito Federal considerou válido um testamento conjuntivo lavrado no Brasil em virtude das peculiaridades do caso, a saber, testadores estrangeiros, erro do Tabelião e a inequívoca vontade de deixar os bens para a filha de criação. Processual Civil. Sucessão. Registro e Cumprimento de Testamento. Jurisdição Voluntária. Testamento Conjuntivo. Vedação Legal. Código Civil de 1916. Vedação repetida no Código Civil de 2002. Excepcionalidade da situação fática. Testadores Estrangeiros (Portugueses). Equívoco do Tabelião. Excesso de Formalismo. Aplicação do Juízo de Equidade. Possibilidade. Art. 1.109 do CPC. Legalidade Estrita. Mitigação. Recurso Conhecido e Improvido. 1. No caso dos autos, não há dúvidas de que o casal falecido, estrangeiros (portugueses) que residiam no Brasil, criaram a requerente, também portuguesa, como a filha que não tiveram. Também não resta nenhuma dúvida de que a intenção deles foi a de deixar o único bem que amealharam em vida para a filha de criação. Não há outros filhos, nem parentes conhecidos do casal falecido. 2. In casu, não se pode desprezar, em razão do equívoco perpetrado pelo Tabelião - que lavrou as últimas vontades dos testadores em um único documento -, a intenção ali assentada, vez que os falecidos manifestaram inequívoco interesse em deixar seus bens (presentes e futuros), em favor da requerente/apelada, sua filha de criação. 3. O argumento de que o testamento que aparelha os autos é conjuntivo, o que ensejaria, nos termos do art. 1.630 do CC/1916 (dispositivo repetido no art. 1.863 do CC/2002), sua nulidade; encerra excessivo apego ao formalismo, tendo em vista que, em razão da moldura fática apresentada nos autos, os bens deixados pelo casal falecido, em razão da ausência de ascendentes, descendentes e da inexistência de notícia de colaterais, serão entregues à Fazenda Pública.  (...) 7. Recurso conhecido e improvido. Sentença mantida. TJ-DF - APC: 20110610113130 DF 0011120-70.2011.8.07.0006, Relator: Alfeu Machado, Data de Julgamento: 01/10/2014, 1ª Turma Cível, Data de Publicação: Publicado no DJE : 06/10/2014 . Pág.: 80. 8 VARGAS, Daniela T., "Patrimônio Internacional e Sucessões: Perspectiva do Direito Brasileiro", in TEIXEIRA, Daniele Chaves, Arquitetura do Planejamento Sucessório. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 104. 9 VELOSO, Zeno. "Substituição quase-pupilar - deve ser introduzida no Direito Brasileiro", in PEREIRA, Rodrigo da Cunha e DIAS, Maria Berenice (coords), Famílias e Sucessões: polêmicas, tendências e inovações. Belo Horizonte: IBDFAM, p. 373.
O Código Civil vigente, no art. 1.593, estabelece que o parentesco pode ser natural ou civil, conforme decorra da consanguinidade ou de outra origem. Assim, natural é o parentesco biológico, e o de outra origem o parentesco civil, qual seja qualquer forma de desdobramento da socioafetividade, tal como a adoção. Analisando tal dispositivo, percebe-se que os laços de parentesco são, pela lei, excludentes - ou são calcados em vínculos biológicos ou decorrem de vínculos socioafetivos - embora a expressão socioafetividade não esteja presente na codificação atual. Todavia, as relações familiares tiveram mudanças significativas e profundas, de tal modo que hoje, em decorrência de uma busca pela realização plena das pessoas e suas recomposições familiares, a socioafetividade faz-se presente de forma marcante nos grupos familiares. Embora a codificação atual não traga de forma expressa a socioafetividade, ela permeia as relações familiares e, como consequência, aparece como fator, por vezes determinante, nas relações de parentesco. Em uma busca livre no site do STJ, foram encontrados 23 julgados com o termo 'socioafetividade'. O mais antigo (REsp 709.608) foi julgado no ano de 2004 e mantém a paternidade socioafetiva de pai registral (já falecido) que reconheceu uma filha como sua - mesmo não sendo o pai biológico -, de modo espontâneo. Nos demais casos, todos versam sobre a questão de filiação, reconhecimento de paternidade, anulação de registro, adoção, multiparentalidade, reconhecimento de maternidade e fraternidade socioafetiva. Com o termo 'afetividade' são 85 julgados, sendo que o primeiro deles foi julgado em 1999. Já no STF, a busca livre do termo 'socioafetividade' traz apenas um julgado que impede a expulsão de estrangeiro em decorrência deste ter adotado um filho, visando a proteção integral da criança e do adolescente (RHC 123.891). Com a busca pelo termo 'afetividade', outros três casos foram encontrados. O que se percebe é que, embora não prevista de forma expressa no Código Civil atual, a socioafetividade é reconhecida na via jurisprudencial e, portanto, traz consequências jurídicas. Uma vez inserida a filiação socioafetiva no registro, teremos consequências extrapatrimoniais, como nome, filiação, parentesco, impedimento para casamento, guarda e convivência familiar; e patrimoniais, como alimentos e herança. Em decorrência do art. 1.593, o parentesco que constava no registro do filho poderia ser ou o biológico ou o socioafetivo. Quando o exame de DNA surgiu, as ações de investigação de paternidade mantinham o genitor biológico e retiravam o pai socioafetivo registral. Com o passar do tempo, em muitos dos casos, não se fazia tal substituição e mantinha-se o pai socioafetivo (registral). Até que, por meio do RE 898.060, permitiu-se o reconhecimento jurídico da multiparentalidade. O que se tinha até então era a monoparentalidade (apenas um genitor no registro) ou a biparentalidade (dois genitores). Com o reconhecimento da multiparentalidade, o STF entendeu que "A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem genética, com todas as suas consequências patrimoniais e extrapatrimonias." Permitiu-se, com isso, a convivência registral de genitores biológicos e socioafetivos concomitantemente, viabilizando uma releitura do art. 1.593, no sentido de que o parentesco possa ser natural ou civil quando resultar da multiparentalidade, prestigiando, assim, o princípio do melhor interesse do filho (em detrimento da hierarquia entre as formas de filiação), bem como o princípio da paternidade responsável. A ideia do reconhecimento da filiação socioafetiva levou alguns Estados a editarem provimentos permitindo o reconhecimento espontâneo de filiação socioafetiva em cartório - como Pernambuco, Santa Catarina, Mato Grosso e outros. Tempos depois, o CNJ editou um provimento com validade para todo território nacional, permitindo o reconhecimento espontâneo de paternidade ou maternidade socioafetiva de forma extrajudicial. Hoje, o que disciplina a temática do reconhecimento extrajudicial de filiação socioafetiva é o provimento 83/19 do CNJ. Tal reconhecimento é permitido desde que o filho tenha mais de 12 anos (caso contrário, deve-se seguir a via judicial) e deve o registrador apurar a existência da afetividade e a inclusão de mais um genitor (que acarretará a multiparentalidade. Além disso, ela só pode ser reconhecida ou do lado paterno ou do materno (denominada multiparentalidade unilateral), proibindo-se, deste modo, a inclusão, por exemplo, de um pai e de uma mãe na via extrajudicial (multiparentalidade bilateral). A proposta de alteração do Código Civil traz de modo expresso as consequências da socioafetividade, seja em um capítulo em específico, seja de modo esparso, o que se revela extremamente interessante e se coaduna com as tendências que já vinham sendo observadas à luz das supracitadas decisões. O art. 9º da proposta, ao tratar dos atos que serão registrados ou averbados no cartório de registro civil das pessoas naturais, disciplina em seu inciso VIII sobre a sentença que reconhecer a filiação socioafetiva ou a adoção de crianças e de adolescentes e a escritura pública ou a declaração direta em cartório que reconhecer a filiação socioafetiva ou a adoção. Ou seja, aqui fala-se tanto do reconhecimento judicial quanto extrajudicial da socioafetividade. A extrajudicialidade aparece novamente no inciso subsequente. Contudo, no parágrafo 2º daquele dispositivo, afirma-se que o reconhecimento de filiação socioafetiva de pessoa com menos de 18 anos será por sentença judicial. Enquanto o provimento do CNJ permite o reconhecimento socioafetivo em cartório a partir dos 12 anos de idade, o Código - caso seja efetivamente alterado - aumentará o limite para 18 anos de idade. Tal mudança pode, salvo melhor juízo, aumentar o número de demandas e eventualmente desestimular o reconhecimento espontâneo. Tal fato é reiterado no art. 1.617 - C, ao tratar da multiparentalidade, mencionando a necessidade de utilização da via judicial para crianças, adolescentes e incapazes. O reconhecimento extrajudicial só poderá ser feito quando houver consenso entre as partes e a pessoa a ser reconhecida for maior de 18 anos. Revela-se importante perquirir a intenção da respeitável Comissão, que talvez possa ter se pautado em evitar um eventual reconhecimento "imaturo/não suficientemente ponderado e livremente decidido", que pode ser derivado de uma relação temporária/instável. Outro ponto referente à socioafetividade diz respeito à alteração do nome civil, que não induz, por si só, a socioafetividade (art. 10, p. 2º). De fato, a alteração de seu nome civil não implica a presunção da socioafetividade. A afirmação constante do início deste texto, no sentido de que o parentesco civil é uma forma de socioafetividade, adoção ou reprodução assistida homóloga, agora virá regulamentada no art. 1.512 - A, caso a mudança seja aprovada. A socioafetividade, felizmente, ganha um capítulo específico, reconhecendo-se expressamente a multiparentalidade no art. 1617-A, com seus desdobramentos. O art. 1629-U, quando dispõe sobre a possibilidade de ação negatória de parentalidade em situações de reprodução assistida, esclarece que a relação parental subsistirá se ficar comprovada a socioafetividade. No que se refere aos efeitos patrimoniais, a socioafetividade faz-se presente nos alimentos (art. 1694 e seguintes) - a obrigação alimentar é devida independente da natureza do parentesco - ressaltando-se a não hierarquização das formas de parentesco. E, por fim, o art. 1.799, em seu parágrafo 3º., menciona a possibilidade de recebimento de herança se o herdeiro nascer com vida, não importando a natureza do parentesco. A inclusão expressa da socioafetividade na proposta de alteração do Código Civil corrobora o que já está consolidado na jurisprudência nacional. Vê-se, portanto, de forma positiva, a inserção na parte dos alimentos, da herança e da multiparentalidade. A especificidade do marco temporal e da exigência de capacidade integral para o reconhecimento extrajudicial da socioafetividade merece um olhar mais atento. Atualmente, o provimento 83/19 permite que se possa reconhecer a socioafetividade em cartório se o filho tiver 12 anos ou mais, o que será significativamente modificado com a aprovação da proposta em comento. ______________ BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível aqui. BRASIL. Lei n. 8069 de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Disponível aqui. BRASIL. Lei n. 10.406 de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). Disponível aqui. PAIANO, Daniela Braga. A família atual e as espécies de filiação: da possibilidade jurídica a multiparentalidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017. PAIANO, Daniela Braga. DA MULTIPARENTALIDADE JUDICIAL: ANÁLISE DOS VOTOS E DOS EFEITOS DO JULGAMENTO DO RE 898060. REVISTA DO DIREITO PÚBLICO (LONDRINA), v. 18, p. 10-29, 2023. PAIANO, Daniela Braga. Aspectos controvertidos da multiparentalidade e espaços em construção. Civilistica.com - Revista Eletrônica de Direito Civil, v. 12, p. 1-14, 2023. PAIANO, Daniela Braga; NABAS SCHIAVON, ISABELA. O princípio da afetividade como instrumento de reconhecimento da multiparentalidade. Revista da Faculdade de Direito da FMP, v. 18, p. 102-116, 2023. STF. RHC 123891 AgR, Relator(a): ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 23-02-2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-085 DIVULG 04-05-2021 PUBLIC 05-05-2021. STJ. REsp n. 709.608/MS, relator Ministro João Otávio de Noronha, Quarta Turma, julgado em 5/11/2009, DJe de 23/11/2009.
A publicação da lei 14.905 no Diário Oficial de 1/7/24 traz um novo capítulo aos debates sobre juros de mora no inadimplemento de obrigações. Cuida-se de tema em aberto desde a revogação do Código Civil de 1916 - que fixava a taxa de juros em 6% ao ano - pelo Código Civil de 2002 cuja redação originária previa que na falta de convenção ou lei, a taxa de juros seria aquela aplicada a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional. Juros são "o preço pelo uso do capital, isto é, a expressão econômica da utilização do dinheiro e, por isso mesmo, são considerados frutos civis" 1 e por essa razão possuem dupla finalidade: Remunerar o credor pela privação do capital próprio e pagar o risco do inadimplemento. Essas duas funções dão origem a duas espécies de juros: Juros compensatórios, que se destinam a remunerar o capital disponibilizado pelo credor2; e juros moratórios (ou de mora), esses destinados a reduzir os riscos da mora e indenizar o credor caso sobrevenha inadimplemento. Além dessa classificação, podemos também distinguir os juros em convencionais, quando arbitrados pelas partes da relação obrigacional ou legal, se fixados em lei. Durante a vigência do Código Civil de 1916 a taxa de juros de mora, ou seja, os juros decorrentes do inadimplemento, estavam fixadas em 6% ao ano, calculados de forma simples. Com a vigência do Código Civil de 2022, passou-se a adotar a taxa de juros pagas à Fazenda Pública, o que levou a controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais sobre qual seria exatamente essa taxa. Inicialmente, o STJ oscilou entre a determinação de uso da SELIC3 e da aplicação do art. 161, § 1º, do CTN que fixava a taxa de juros em 1% ao mês.4 Diante das dificuldades de apuração da taxa de juros na SELIC, a qual é composta de juros e correção monetária, somada a aprovação do enunciado 205 na I Jornada de Direito Civil do CNJ, o STJ acabou adotando a tese da aplicação do art. 161, § 1º, do CTN, fixando os juros de mora em 1% ao mês ou 12% ao ano, no que foi seguido pelos demais órgãos do Poder Judiciário. Não estão muito claros os motivos pelos quais a taxa de juros de mora retornou ao debate, mas em 1/7 foi publicada a lei 14.905 que altera o art. 406 do Código Civil de 2002 para determinar que "a taxa legal corresponderá à taxa referencial do Selic - Sistema Especial de Liquidação e de Custódia, deduzido o índice de atualização monetária de que trata o parágrafo único do art. 389 deste Código", salvo se houver convenção entre as partes ou previsão legal diferente. Existem consequências bastante importantes na alteração legislativa, especialmente algumas que irão prejudicar grupos específicos de pessoas, como, por exemplo, mulheres, crianças e trabalhadores em geral. Para compreender o parágrafo anterior, algumas informações são importantes: De acordo com o relatório Justiça em Números produzido pelo CNJ6, em 30/4/24 estavam pendentes um total de 84.448.482 para julgamento. Desse total, a grande maioria são processos que têm o INSS como réu e ficam de fora da análise desse texto porque benefícios previdenciários e ações remuneratórias de servidores públicos têm regras próprias de cálculo de juros e atualização monetária, conforme a lei 9.494/97. Há também regras específicas de inadimplemento para processos tributários, que seguem o CTN7, contratos bancários, que se submetem às normas do BACEN, e para desapropriação.8 Ou seja, a taxa de juros do Código Civil é essencialmente utilizada em processos trabalhistas e processos entre litigantes privados, incluindo ações em face de instituições financeiras (mas o oposto não é verdadeiro, pois contratos bancários têm regras próprias, permitindo inclusive capitalização de juros, por exemplo). Novamente recorrendo as estatísticas do CNJ, essa alteração tem potencial de atingir os 1.124.970 processos trabalhistas, 406.933 processos por dano material, 405.626 processos por negativação indevida, 369.771 processos por dano moral e 186.198 processos de alimentos pendentes de julgamento até 30/4/24, que são os principais assuntos processuais esperando julgamento em 2024. Tendo esses números em atenção, reafirmamos: A alteração legislativa prejudica pessoas em situação de maior vulnerabilidade porque acarreta uma redução na taxa de juros. Isso acontece porque a SELIC é composta de juros mais correção monetária, de modo que só é possível conhecer a taxa de juros real depois de se efetuar o desconto da inflação, tanto que o novo § 1º do art. 406 do Código Civil exige esse abatimento a fim de evitar a dupla incidência de atualização monetária. Em momentos de alta inflacionária sem aumento da taxa de juros, ocorre uma diminuição dos juros, na medida em que a parcela de atualização consome uma parcela maior da SELIC. Em baixa inflação e baixos juros, o mesmo fenômeno acontece. Só há benefício em relação ao modelo anterior consolidado nos Tribunais se a despeito da inflação, a taxa de juros se mantiver acima de 12%, o que não tem sido a regra desde 2004, quando havia juros altos e baixa inflação.9 Ou seja, a alteração legislativa diminuiu a taxa de juros aplicável aos processos privados sem mencionar que estava reduzindo; é efeito indireto. A título exemplificativo, a taxa SELIC em junho de 2024 estava em 10,5% ao ano e o IPCA acumulado entre maio/2023 e maio/2024 estava em 4,16%, o que significa taxa anual de juros de 6,34%, quase a metade dos juros atuais. A única possibilidade de escapar a redução dos juros é interpretar o art. 406 do Código Civil é entender que a SELIC deverá ser reduzida do valor mensal da taxa de juros. Nesse caso, estaríamos diante de possibilidade de aumento dos juros, uma vez que a taxa mensal de inflação costuma oscilar entre 1% e 2%. Essa interpretação é, contudo, complexa porque a SELIC é calculada de forma anualizada, o que exigiria que o IPCA seja abatido de forma igualmente anualizada. Para além da redução indireta dos juros de mora, gostaríamos de chamar a atenção que a SELIC não é índice que se amolda à finalidade de indenização pelo capital ou pela mora, uma vez que o Banco Central define o índice como "taxa básica de juros da economia, que influencia outras taxas de juros do país, como taxas de empréstimos, financiamentos e aplicações financeiras. A definição da taxa Selic é o principal instrumento de política monetária utilizado pelo Banco Central (BC) para controlar a inflação". A SELIC tem funções de política monetária e de contenção da inflação, função essa que não está presente nos juros de mora decorrente do inadimplemento. Temos aqui uma incompatibilidade ontológica entre o índice e a razão de existência dos juros de mora, que deveriam ter feito o legislador se afastar da sua utilização. Particularmente nos preocupa com mais intensidade a mudança em relação a processos de alimentos, cujos credores são, em regra, crianças e adolescentes, e ocasionalmente mulheres que não possuem renda própria ou foram vítimas de violência doméstica. Nesses casos, a taxa de juros como instrumento de coerção de cumprimento regular da obrigação e a redução dos juros implica na redução das garantias de sobrevivência dessas pessoas, valendo lembrar que crianças e adolescentes têm proteção especial por força da doutrina de proteção integral incorporada no art. 226 da Constituição da República. Para além da desproteção de pessoas em situação de vulnerabilidade, essa alteração legislativa traz outros questionamentos sobre a sua efetividade, pois a taxa SELIC é divulgada em oito reuniões da diretoria do Banco Central ao longo de um ano, enquanto o IPCA é índice mensal. A lei não explicita se o cálculo da dívida terá que ser periodicamente adaptado a cada divulgação de um dos dois índices, pois pode haver mudanças, tampouco qual o período do IPCA que deverá ser considerado para fins do abatimento do § 1º do art. 406 do Código Civil. Em síntese, é uma lei que tem potencial de prejudicar pessoas em vulnerabilidade e cria mais dificuldades em cálculos judiciais do que facilidades. ____________ 1 TEPEDINO, Gustavo et alii. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 741, v. I. 2 Juros compensatórios não serão objeto de análise desse artigo inicial. 3 STJ, REsp n. 666.676/PR, relatora Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 3/5/2005, DJ de 6/6/2005, p. 281. 4 STJ, REsp n. 464.605/SP, relatora Ministra Laurita Vaz, relator para acórdão Ministro Franciulli Netto, Segunda Turma, julgado em 25/11/2003, DJ de 25/2/2004, p. 145. 5 "A taxa de juros moratórios a que se refere o art. 406 é a do art. 161, § 1º, do Código Tributário Nacional, ou seja, um por cento ao mês." 6 Disponível aqui. Acesso em 03.07.2024. 7 Art. 161 do Código Tributário Nacional 8 STJ, Tema 1004. 9 O histórico da SELIC, disponível aqui. Para o IPCA deve-se consultar o IBGE. Disponível aqui.
No Brasil, o índice de envelhecimento chegou a 80,0 e isso indica que há 80 pessoas com mais de 60 anos para cada 100 crianças entre 0 e 14 anos. Comparado a 2010, o índice quase dobrou. De acordo com o Censo de 20221, a população brasileira com mais de 60 anos corresponde a 15% e computa o número de 32.113.490. Desse contingente, estima-se que cerca de 1,76 milhão sofre algum tipo de demência.2 Os números demonstram a necessidade de investimento na atenção integral para garantir a todos um envelhecimento pautado na vida digna e ativa, prestigiando-se a independência, saúde e autonomia. Para além das políticas públicas capitaneadas pelos estados, tal qual recomenda a OMS, desde 2015, a sociedade e a família também são chamadas ao dever de respeitar a pessoa idosa e a promover o feixe de direitos que circundam o envelhecimento saudável. Segundo o Estatuto da Pessoa Idosa, o direito ao respeito "consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, de valores, ideias e crenças, dos espaços e dos objetos pessoais" (art.10, §6º). É dever de todos, "zelar pela dignidade da pessoa idosa, colocando-a a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor." (art.10, § 3º). E, nos termos do art.4º. (aditado pela lei 14.423/22), "nenhuma pessoa idosa será objeto de qualquer tipo de negligência, discriminação, violência, crueldade ou opressão, e todo atentado aos seus direitos, por ação ou omissão, será punido na forma da lei. Todos têm o dever de prevenir a ameaça ou violação aos direitos da pessoa idosa." (art.4º. § 1º ). Os direitos acima estão alinhados aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentáveis previstos na Agenda 2030, da ONU, em especial, os ODS 3 e 10, relativos à garantia de uma vida saudável e à promoção do bem-estar para todas as pessoas, em todas as idades; bem como à redução das desigualdades e eliminação da discriminação. Esses objetivos visam o empoderamento e a promoção da inclusão social de todos, independentemente de fatores como a idade e gênero. A pessoa idosa tem os mesmos direitos que as demais, não podendo sofrer restrição à sua autonomia ou capacidade por motivo de idade. Uma vez acometidas de doenças demenciantes serão consideradas pessoas com deficiência e, portanto, destinatárias da CDPD - Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência e da lei brasileira de LBI - Inclusão da Pessoa com Deficiência, documentos que reafirmam fortemente o respeito à autonomia, independentemente da capacidade mental (art. 12, item 2 da CDPD e arts.6º. e 84, da LBI). Por meio da CDPD, a capacidade legal ou capacidade jurídica é assegurada a todas as pessoas (art.12, item 2). Conforme a explicação do Comitê da ONU, instituído pela própria Convenção interpretar os seus dispositivos e fiscalizar a sua aplicação pelos países signatários, em sua Observação Geral 1/143 13. La capacidad jurídica y la capacidad mental son conceptos distintos. La capacidad jurídica es la capacidad de ser titular de derechos y obligaciones (capacidad legal) y de ejercer esos derechos y obligaciones (legitimación para actuar). Es la clave para acceder a una participación verdadera en la sociedad. La capacidad mental se refiere a la aptitud de una persona para adoptar decisiones, que naturalmente varía de una persona a otra y puede ser diferente para una persona determinada en función de muchos factores, entre ellos factores ambientales y sociales. En instrumentos jurídicos tales como la Declaración Universal de Derechos Humanos (art. 6), el Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos (art. 16) y la Convención sobre la eliminación de todas las formas de discriminación contra la mujer (art. 15) no se especifica la distinción entre capacidad mental y capacidad jurídica. El arti'culo 12 de la Convención sobre los derechos de las personas con discapacidad, en cambio, deja en claro que el "desequilibrio mental" y otras denominaciones discriminatorias no son razones legítimas para denegar la capacidad jurídica (ni la capacidad legal ni la legitimación para actuar). En virtud del artículo 12 de la Convención, los déficits en la capacidad mental, ya sean supuestos o reales, no deben utilizarse como justificación para negar la capacidad jurídica. Segundo essa Observação Geral, a capacidade jurídica prevista pela Convenção engloba a capacidade de gozo (de direito) e a capacidade de exercício (de fato), constituindo-se como um direito inerente à pessoa. Toda pessoa maior com deficiência terá a capacidade jurídica como um direito inerente, do mesmo modo que as demais. Derrogar ou desconsiderar essa capacidade jurídica da pessoa com deficiência, idosa ou não, é um ato classificado como discriminação pela Observação Geral 6 desse mesmo Comitê.4 47. El derecho a la capacidad jurídica es un derecho mínimo, es decir, es necesario para el disfrute de casi todos los demás derechos contemplados en la Convención, incluido el derecho a la igualdad y la no discriminación. Los artículos 5 y 12 están intrínsecamente relacionados, ya que la igualdad ante la ley debe incluir el disfrute de la capacidad jurídica de todas las personas con discapacidad en igualdad de condiciones con las demás. La discriminación mediante la denegación de la capacidad jurídica puede adoptar distintas formas, como en los sistemas basados en la condición, los sistemas funcionales y los sistemas basados en los resultados. La denegación de la adopción de decisiones sobre la base de la discapacidad mediante cualquiera de esos sistemas es discriminatoria14. Mas o que fazer na ausência de capacidade mental? Nos termos do próprio art. 12, item 3 da CDPD, caberá aos estados signatários a estruturação de medidas de apoio para que a pessoa com capacidade mental reduzida possa exercer a sua capacidade jurídica, sem a derrogação da sua autonomia. Na explicação do Comitê sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, o apoio ao exercício da capacidade jurídica deve sempre respeitar a vontade e as preferências do sujeito apoiado e nunca se consubstanciar em mera substituição de vontade que atribui ao apoiador o poder de dizer, segundo um juízo pessoal, o que será melhor para a pessoa apoiada. Em sentido amplo, o apoio engloba suportes oficiais e oficiosos, de diferentes tipos e intensidades. O conjunto de amigos e amigas, os parentes, o cônjuge/companheiro(a) configura uma rede de apoio. As medidas de acessibilidade universal adotadas pelas entidades públicas e privadas para facilitar o exercício dos direitos pela pessoa com deficiência podem constituir apoio (art. 9, item 1, alínea f; art. 19, alínea b; art. 24, alíneas d, e). Mas nas situações em que se demanda um apoio ao exercício da capacidade jurídica para a prática de atos da vida civil impactantes no mundo jurídico, haverá que se recorrer aos instrumentos de apoio formal instituídos pelo Estado, como determina o art. 12, item 3 da CDPD. São os apoios à tomada de decisão, à celebração de atos da vida civil que produzem efeitos jurídicos. Conforme a alínea J, do Preâmbulo da Convenção o apoio pode ser intenso, a depender da necessidade de quem o receberá. Em todo caso, até mesmo nas hipóteses de apoio intenso, a autonomia e a capacidade da pessoa apoiada deve ser respeitada, inclusive, nas situações de crise: 16. El tipo y la intensidad del apoyo que se ha de prestar variará notablemente de una persona a otra debido a la diversidad de las personas con discapacidad. Esto es acorde con lo dispuesto en el artículo 3 d), en el que se describen como un principio general de la Convención "el respeto por la diferencia y la aceptación de las personas con discapacidad como parte de la diversidad y la condición humanas". En todo momento, incluso durante situaciones de crisis, deben respetarse la autonomía individual y la capacidad de las personas con discapacidad de adoptar decisiones.5 Nesse panorama, a pessoa idosa tem assegurados a autonomia e o direito de realizar suas próprias escolhas. Sob um quadro demencial, o apoio intenso deve considerar suas preferências e a sua vontade. O apoiador não pode decidir em nome do idoso apoiado, segundo o que ele próprio julga como sendo o "bem", para submeter a pessoa apoiada aos efeitos jurídicos de sua decisão. A despeito disso, o que se vê é o apagamento completo da pessoa idosa, em especial, quando afetada por doença demenciante. À revelia de sua vontade, elas são lançadas à curatela total (hoje, revogada), sem um plano específico que coteje suas vontades e preferências a respeito de questões existenciais e patrimoniais circundantes, como possibilita o art. 755, inciso II, do CPC. O Brasil não estruturou um sistema de apoio adequado à CDPD. Embora a LBI haja instituído a tomada de decisão apoiada, acrescentando o art. 1.783-A ao Código Civil por seu art. 116, manteve a curatela (art. 84, §1º., LBI; art. 1.767, CC), figura substitutiva de vontade que é estabelecida por meio da interdição (art. 747, CPC). Alguns insistem que a curatela seja forma de apoio intenso, mas isso não é correto. E assim, na falta de apoio mais intenso, as pessoas com deficiência grave são submetidas à curatela, figura que repercute todos os significantes acumulados ao longo de sua história. Conquanto a LBI tenha restringido a curatela aos assuntos negociais e patrimoniais, a jurisprudência do STJ se encarregou de estendê-la às matérias existenciais, como a saúde (REsp 1.998.492 - MG) e o casamento (REsp 1.645.612 - SP). E chancelou a condição de relativamente incapaz àquela pessoa que estiver sob curatela (REsp 1.927.423 - SP), sem considerar o art. 12 da CDPD e os arts. 6º. e 84, da LBI. Antes disso, porém, o relatório do Comitê sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência sobre as medidas adotadas pelo Estado Brasileiro, havia identificado a curatela como um ponto negativo da nossa legislação, recomendando a devida alteração.6 Essa recomendação ainda não foi atendida e, como se vê, na falta de um instrumento de apoio mais intenso, a curatela continua sendo aplicada conforme decisões dos tribunais, em especial, o STJ. Nesse momento presente, considerando o anteprojeto encomendado pelo Senado Federal, caberia a correção das inconsistências e lacunas da legislação para sua adequação aos comandos da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência. Mas o texto final do anteprojeto de mudança do Código Civil manteve a figura da curatela e não apresentou um apoio judicial mais intenso como aquele que já foi instituído em países da América Latina, como a Colômbia (lei 1.996/19) e a Costa Rica. Igualmente não apresentou adequadas salvaguardas. A bem da verdade, o anteprojeto do Código Civil em questão menciona a locução "apoios e salvaguardas" no art.4º., parágrafo único7, sem resgatar o que sejam eles no livro de Direito de família, em especial no título IV, que traz a curatela, a tomada de decisão apoiada e a chamada "diretiva antecipada de curatela". O mais grave é que a pessoa idosa com demência será havida como alguém que não pode manifestar a sua vontade e lançada à condição de absoluta incapacidade, quando vier a ser interditada (art.3º., II).8 Sendo esta solução incompatível com o teor da CDPD, notadamente, os arts. 5 e 12. Reitere-se que, de acordo com as observações gerais 1 e 6 do Comitê instituído pela Convenção, qualquer derrogação da capacidade jurídica de pessoa com deficiência constitui ato discriminatório. Uma inovação singela do anteprojeto é a diretiva antecipada de curatela, nos arts. 1.778-A e 1.778-B. Mostra alguma importância para ressaltar a vontade e as preferencias da pessoa que antevê uma situação futura de limitação da sua capacidade mental, como um diagnóstico de Alzheimer na fase inicial. Por meio desse instrumento público ou particular, o declarante poderá indicar a pessoa que deseja como seu curador (quando e se for o caso), definir o modo de gerenciamento de suas questões patrimoniais e pessoais, bem como estabelecer cláusulas de remuneração, de disposição gratuita de bens ou de outra natureza. Mas diretiva orbita somente em torno da curatela, figura agigantada no âmbito dos direitos da pessoa com deficiência e que já foi apontada como inadequada ao propósito da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência. Enquanto isso, a Comissão de Desenvolvimento Econômico da Câmara dos Deputados aprovou o PL 9.234/17 que altera alguns dispositivos do Código Civil e do CPC quanto à curatela, em especial para autorizar a pessoa a solicitar a autocuratela e a indicar aquele que deseja como curador. Também propõe a eliminação do termo interdição do CPC, sugerindo que a ação seja simplesmente nominada como curatela. Em que pese a simpatia dessas soluções, ainda não propõem a estruturação de uma medida de apoio intenso, concentrando na curatela, medida substitutiva da vontade, as expectativas de administração da vida e do patrimônio da pessoa com capacidade mental prejudicada. Continuamos presos à ideia de uma autonomia insular e distantes da autonomia na interdependência ou relacional, albergada pela Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência. A autonomia da pessoa é corolário da dignidade e caberá ao Estado, à família e à sociedade respeitar e fazer respeitar a pessoa sem discriminação de qualquer natureza. Ao aplicador do direito impõe-se a criatividade para engendrar soluções na unidade do ordenamento jurídico, visando otimizar tutela de situações jurídicas existenciais e patrimoniais, de sorte a evitar eventuais conflitos e lesão ou ameaça de lesão aos direitos. __________ 1 Censo 2022: número de pessoas com 65 anos ou mais de idade cresceu 57,4% em 10 anos. Disponível aqui. Acesso em 10/05/2024. 2 Pesquisa realizada na UNIFESP, com recursos da FAPESP, sob coordenação da psiquiatra Claudia Ferri e a neuropsicóloga Laiss Bertola, "Ao menos 1,76 milhão de brasileiros com mais de 60 anos vivem com alguma forma de demência, um conjunto de enfermidades sem cura que, por mecanismos diferentes, causam a perda progressiva das células cerebrais e levam à incapacitação e à morte. A maior parte dessas pessoas - uma fração ainda não bem conhecida que, segundo especialistas, pode superar 70% do total - nem sequer tem diagnóstico, o que as impede de receber tratamento adequado para ajudar a controlar as alterações de memória, raciocínio, humor e comportamento que surgem com a progressão da doença". Disponível aqui. Acesso em: 14/05/2024. 3 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS - ONU. Comité sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad. Observación general No 1 (2014). Disponível aqui. Acesso em 01/04/2024. 4 NACIONES UNIDAS. Comité sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad. Observación general núm. 6 (2018) sobre la igualdad y la no discriminación. Disponível aqui. Acesso em: 24/04/2024. 5 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS - ONU. Comité sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad. Observación general No 1 (2014). Disponível aqui. Acesso em 01/04/2024. 6 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Observações finais sobre o relatório inicial do Brasil. Comitê sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência. Disponível aqui. Acesso em 24/04/2024. 7 "Parágrafo único. As pessoas com deficiência mental ou intelectual, maiores de 18 anos, têm assegurado o direito ao exercício de sua capacidade civil em igualdade de condições com as demais pessoas, observando-se, quanto aos apoios e às salvaguardas de que eventualmente necessitarem para o pleno exercício dessa capacidade, o disposto nos arts. 1.767 a 1.783 deste Código." 8 "Art. 3o São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil:  II - aqueles que por nenhum meio possam expressar sua vontade, em caráter temporário ou permanente."
Desde que se pretendeu a unificação do direito das obrigações no Código Civil de 2002, têm-se desenvolvido discussões similares àquelas já havidas no século XIX sobre a autonomia do Direito Comercial. Com efeito, por motivos que não resistem a uma análise mais atenta, alguns juristas convenceram-se de que estando as regras relativas às obrigações entre empresários reunidas àquelas aplicáveis a não empresários em um só documento, todas teriam a mesma natureza. Esse movimento, a rigor, inicia-se mesmo antes. Desde a promulgação da Constituição de 1988 que, por seu caráter analítico, tratou de assuntos cuja pertinência em texto constitucional é questionável, o recurso a princípios abstratos como fonte direta de interpretação/aplicação do direito privado também contribuiu para uma paulatina desconsideração da natureza e características próprias do Direito aplicado às relações entre empresários. Ainda na mesma linha, há movimento entre civilistas que procura enfraquecer a natureza privada do Direito Civil (e, dentro de sua linha de raciocínio, de partes do Direito Comercial), por meio da utilização de princípios constitucionais de conteúdo subjetivo por vezes em detrimento da própria regra positiva, prejudicando a segurança das relações jurídicas. Ocorre que os negócios interempresariais têm dinâmica própria e o desvirtuamento das características dessas relações têm consequências para além de uma interação específica. As obrigações civis tendem a abranger um número limitado de pessoas, dizem respeito a interesses particulares como contratos entre pessoas naturais, relações familiares e relações patrimoniais de natureza mais estática, como aquelas envolvendo direitos reais. As relações empresariais, por outro lado, compreendem uma cadeia interligada de contratos, que pretendem alocar os riscos envolvidos da maneira mais eficiente. Esse "feixe de contratos"1, como uma teia, enfraquece como um todo quando quaisquer de seus componentes esgarça ou parte-se. A alocação de riscos anteriormente pretendida muda, e fatores não previstos acabam por aumentar os custos de transação, o que estimula comportamentos oportunistas por parte dos agentes econômicos. O respeito aos princípios e características do Direito Comercial quando se analisam casos concretos é essencial para o equilíbrio e saúde do mercado2, do qual, apesar do que diz o senso comum, fazem partes todos os agentes econômicos. São as escolhas dos agentes que definem os vieses do mercado. Ocorre que não há positivação dos princípios do Direito Comercial, nos moldes de outras relações privadas. Existem princípios bastante delimitados e já com conteúdo bem definido em áreas como Direito do Consumidor, Direito do Trabalho ou Direito Civil, que têm foco em relações interpessoais. Isso não ocorre nas relações entre empresários, o que faz com que o intérprete e aplicador da lei no caso concreto recorra a princípios não adequados à natureza das relações entre empresários. Nas palavras de Forgioni3 "Portanto, a interpretação do negócio comercial, sob o ponto de vista do mercado, não pode desconsiderar os pressupostos de funcionamento do sistema apontados de funcionamento do sistema apontados no segundo ensaio deste livro, especialmente aqueles referentes à boa-fé, aos usos e costumes, custos de transação, necessidade de segurança e previsibilidade para o tráfico, tutela do crédito e, especialmente, que a função econômica do negócio deve pautar sua interpretação." Entre 2011 e 2021, houve forte empenho de segmentos do Poder Legislativo e do Poder Executivo na construção de um Código Comercial, de modo a lançar luzes sobre as diferenças entre as relações entre empresários e as demais relações obrigacionais, assim como estabelecer que forma clara os princípios a serem observados na interpretação do Direito Comercial. A iniciativa não avançou, e mantiveram-se constantes interpretações não adequadas das relações interempresariais: "Com a análise de posicionamentos do STJ, observa-se que há uma progressiva aplicação de elementos exógenos aos cânones tradicionais da relação privada interempresarial, contaminando essas relações com elementos próprios de subsistemas como o do Direito do Consumidor, ou mesmo dos institutos contratuais filtrados por hermenêutica publicizada ou constitucionalizados, sem que se atente para a especialidade do Direito Comercial. Essa "colonização expansiva" do Direito Privado, por sua vez, mascara a necessária diferenciação da lógica e princípios jurídicos aplicáveis entre contratos sujeitos ao direito consumerista (B2C) e os contratos empresariais (B2B)." 4 Nova oportunidade vem com a iniciativa de reforma do Código Civil em 2023. Sob a justificativa de modernizar e adequar o texto do Código às mudanças na sociedade nos últimos 20 anos, forma-se comissão de juristas para propor as alterações julgadas necessárias para tanto. Ocorre que o texto apresentado oscila entre uma salutar intenção de diferenciar as obrigações oriundas de contratos empresariais daqueles de outra natureza - conforme de depreende de trechos da exposição de motivos5, e o receio vacilante de quem não reconhece a real dinâmica das relações no mercado. Têm-se, como resultado, proposições confusas e mesmo tecnicamente questionáveis, que tendem a aumentar a insegurança jurídica. Tome-se como exemplo as alterações propostas para o art. 421 do Código. Ainda em 2019, a lei 13.874, conhecida como lei da liberdade econômica, havia modificado esse artigo para incluir seu parágrafo único, bem como o art. 421-A6, na clara intenção de evitar o avanço de intervenções em relações empresariais com fundamento na "função social" do contrato, à qual está submetida a liberdade contratual. Parece claro, para o legislador de 2019, que os agentes econômicos são aqueles que melhor condições têm de alocar seus riscos, e que a intervenção estatal nessa alocação deve ser efetivamente excepcional. Note-se que a lei da liberdade econômica, com o intuito de proporcionar melhor ambiente para o desenvolvimento da atividade econômica, criou tanto regras de sobredireito, quando trata de balizas na interpretação das normas aplicáveis às relações entre entes privados, e do regulador ou aplicador da norma no caso concreto7, como alterações na legislação já positivada.8 As alterações ao texto em vigor, portanto, não têm o condão de alterar os princípios balizadores de interpretação, o que pode levar a uma insegurança ainda maior caso haja franco conflito entre elas. A proposta de alteração apresentada traz um parágrafo segundo para o art. 421, determinando que é "nula de pleno direito" a cláusula que violar a função social do contrato. Essa determinação apresenta a nulidade como pena para uma circunstância oriunda de um conceito vago.9 Pode-se observar na jurisprudência a utilização do conceito de função social para os mais diversos fins e com resultados, inclusive, antagônicos para situações similares. Assim, propõe-se que caso entenda-se que determinada cláusula não atenda à função social do contrato, ela estaria sujeita ao regime de nulidade, o que implicaria em eventual reflexo em relações jurídicas já havidas, e na impossibilidade de convalidação ou confirmação de seus efeitos. Isso, em se tratando de negócios empresariais, poria ter um efeito em cadeia. O art. 421-C, por sua vez, a pretexto de criar regras específicas para a interpretação de contratos empresariais, inclui em seu parágrafo segundo uma excepcionalidade à autonomia negocial que tem o condão de agravar o quadro de aplicação inadequada de princípios atinentes a outras áreas do Direito, quando determina que "Nos contratos empresariais, quando houver flagrante disparidade econo^mica entre as partes, na~o se aplicara' o disposto neste artigo." Assim, trata de positivar algo que a jurisprudência tem feito de maneira daninha: Tratar relações entre empresários como se não integrassem uma teia de contratos que dependem de prévia alocação de riscos. Importante ressaltar que o relatório não apresenta quaisquer dados que demostrem um problema ou disfunção a serem resolvidos pela inserção dos dispositivos comentados, o que é grave tendo em vista a "insuficiência dos esforços teóricos para entender o Direito e promover reformas". 10 Por outro lado, reforça a intenção de tratar as relações empresariais com base em princípios inerentes a outras relações. As propostas aparentemente apresentam uma solução para um problema não identificado, e, portanto, não só carecem de razão de ser, como configuram um risco real de aumentar a já tão presente insegurança na atividade econômica no país. __________ 1 Ronald Coase desenvolve teoria sobre a natureza da "firma" como forma de diminuir os custos de contratação no mecanismo de preços. Assim, muitos contratos isolados seriam centralizados de forma reduzir os custos envolvidos na contratação : "The main reason why it is profitable to establish a firm would seem to be that there is a cost of using the price mechanism. The most obvious cost of "organizing" production through the price mechanism is that of discovering what the relevant prices are." (The Firm, the Market and the Law, Chicago and London: The University of Chicago Press, 1992, p. 38) 2 Segundo Rachel Sztajn "Mercados, segundo muitos, levam a que se produzam os bens na qualidade e quantidade correspondentes à demanda existente. Mercados livres aparecem, portanto, coo condição objetiva necessária para a produção e circulação de bens - mercadorias e serviços - existentes, atuais ou em processo, para satisfação das necessidades, com o que se cria bem-estar e se produz riqueza" (Teoria Jurídica da Empresa. Atividade Econômica e Mercados. São Paulo: Atlas, 2004, p. 22) 3 Forgioni, Paula A. Teoria Geral dos Contratos Empresariais. 2ª Ed. Revista. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 218. 4 CAMINHA, Uinie e ROCHA, Afonso. P. P. . Assimetrias contratuais, dependência empresarial e o ethos comercial no projeto de Código Comercial. In: Coelho, Fábio Ulhoa; Lima, Thiago Asfor Rocha; Nunes, Marcelo Guedes. (Org.). Novas Reflexões sobre o Projeto de Código Comercial. 1ed.São Paulo: Saraiva, 2015, v. 1, p. 355-370. 5 "Atenta à complexidade das relações interpessoais e de mercado, a Comissão reconhece as diferentes funções a que os contratos podem se prestar, além de atentar para as redes contratuais altamente sofisticadas. Sob essa ótica, o texto sugerido respeita os regimes jurídicos das leis especiais para determinadas relações contratuais, inclusive o regime mais livre e menos intervencionista dos contratos empresariais (arts. 421-A, 421-B, 421-E e 421-F). Também se abrem maiores espaços para o exercício da liberdade contratual, com permissão expressa a fideicomissos por ato entre vivos, sempre, porém, respeitados os limites das normas de ordem pública (art. 426-A)". Trecho do Relatório Final apresentado pela Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil. Disponível aqui. Acesso jun. 2024 6 Art. 421.  A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato. Redação dada pela Lei nº 13.874, de 2019 Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual. Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019 Art. 421-A.  Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também. Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019 7 Art. 1º  Fica instituída a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, que estabelece normas de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício de atividade econômica e disposições sobre a atuação do Estado como agente normativo e regulador, nos termos do inciso IV do caput do art. 1º, parágrafo único do art. 170 e no caput do art. 174 da Constituição Federal. § 1º  O disposto nesta lei será observado na aplicação e na interpretação do direito civil, empresarial, econômico, urbanístico e do trabalho nas relações jurídicas que se encontrem no seu âmbito de aplicação e na ordenação pública, inclusive sobre exercício das profissões, comércio, juntas comerciais, registros públicos, trânsito, transporte e proteção ao meio ambiente. 8 Nesse sentido, Martins-Costa e Nitschke "Para além das disposições normativas específicas da LLE, muitas delas alterando o Código Civil, o art. 1º plasma norma de sobredireito, assim compreendido por versar sobre a aplicação e interpretação de outras normas de direito privado, tendo, na própria lei formulada, específicos exemplos de tal atuação." Origem e eficácia da Lei da Liberdade Econômica in Martins-Costa, Judith e Nitschke, Guilherme Carneiro Monteiro. Direito Privado na Lei da Liberdade Econômica. Comentários. São Paulo: Almedina, 2022. Pp. 37-8. 9 Soares e Leite (A função social do contrato sob a ótica do Superior Tribunal de Justiça in Revista Semestral de Direito Empresarial. N. 31, jul/dez 2022, pp. 145-65)) trazem interessante análise sobre a impossibilidade semântica da definição do conteúdo da "função social" e ainda um estudo empírico abrangendo decisões do STJ sobre a utilização desse conceito em litígios contratuais. Apesar de, nesse Tribunal, o conceito não ter sido utilizado, isoladamente, para justificar a intervenção no conteúdo dos contratos, foi utilizado prodigamente pelos jurisdicionados nos assuntos mais variados. Deve-se, todavia, atentar para o fato de que apenas uma parcela pequena dos casos julgados pelos Tribunais pátrios ascende ao STJ e, portanto, não se pode afirmar que as cortes brasileiras têm tido esse mesmo cuidado. 10 Nunes, Marcelo Guedes. Jurimetria. Como a estatística pode reinventar o Direito.  São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 30.
Na produção da normatividade jurídica, constitui indispensável ressalva de método apontar às cautelas que devem cercar o recebimento de princípios, categorias e institutos advindos do Direito estrangeiro. Com maior razão cabem essas ressalvas quando se está a produzir direito por via da atividade legislativa, cujos traços de vinculabilidade e generalidade sobressaem em face dos modelos jurisprudenciais e dos modelos hermenêuticos oferecidos por via doutrinária1.  Como infelizmente não é incomum na cultura jurídica brasileira, soluções advindas de outros sistemas jurídicos são por vezes transplantadas de modo acrítico, sem que o intérprete tenha em vista a integralidade do entorno normativo que originou a solução "transplantada", muito embora dentre as mais dificultosas questões do Direito Comparado esteja, justamente, a compreensão do fenômeno da circulação dos modelos jurídicos2. É que modelos podem migrar de um sistema a outro, mas não os seus formantes, inclusivos, para além da lei, da jurisprudência e da doutrina, elementos conformadores de sua estrutura, considerada no seu modo peculiar de articulação; nem seus criptotipos, quais sejam, ideias e concepções implícitas que o jurista, imerso em determinada cultura, acaba por considerar3, ainda que de modo inconsciente. Em outro contexto, mas igualmente atento às peculiaridades da cultura nacional, há décadas observou Roberto Schwarz que, quando as ideias viajam, elas podem, deslocadas, "ser verdadeiras ou falsas num sentido inverso", alimentando "contrastes rebarbativos, desproporções, disparates, anacronismos, conciliações, contradições", tudo levando à "composição arlequinal" de que falara Mário de Andrade4, isto é: "ao desacordo entre a representação e o contexto5". Por isso, a doutrina avisada recomenda cautela com as "ilusões de ótica"6, bem como com o anacronismo hermenêutico derivado da similitude meramente terminológica,7 utilizando, para tanto, a noção de mutação8. Soluções prestigiadas em outros sistemas e que passam a circular por meio de microrrecepções - expressas ou silenciosas - não são nunca "transplantáveis", mas tão somente acomodáveis por via de certas mutações e adaptações9. Para ser exitosa e útil, a adaptação há de considerar, para além da necessidade ou não da recepção, os diversos formantes do sistema que recebe o modelo, tudo tendo como efeito uma diversa modelação do instituto, regra, princípio ou solução "recebida". Essas lições vêm à mente quando se lê o parágrafo segundo do art. 169 da projetada reforma do Código Civil brasileiro10. Estabelecendo exceção à regra segundo a qual o negócio jurídico nulo não é suscetível de confirmação, nem convalesce pelo decurso do tempo, os anteprojetistas enunciaram: "A previsão contida no caput não impossibilita que, excepcionalmente, negócios jurídicos nulos produzam efeitos decorrentes da boa-fé, ao menos de uma das partes, a serem preservados quando justificados por interesses merecedores de tutela". A regra atenta ao sistema e à segurança jurídica por dois problemas graves. O primeiro é a remissão à boa-fé - a qual, pelo contexto do enunciado, deve ser a boa-fé subjetiva (ou "boa-fé fato", estado anímico do sujeito jurídico que é parte do negócio), o que demandará pesquisa empírica para a determinação da hipótese legal11. O segundo está na consequência, qual seja, o reconhecimento da validade do negócio nulo, se assim for permitido pelo critério do merecimento de tutela, que, retirado do Código Civil italiano por uma espécie de "passe de mágica", se quer ver agora transplantado ao Direito brasileiro. Mas não apenas "retirado" esse critério do Codice Civile: retirado de forma incompleta, tornando o conceito ainda mais problemático. O interesse de quem é tutelado? Com base em quais parâmetros? O Código civil italiano não usa o termo "merecimento" de forma genérica, mas o atrela ao parâmetro do ordenamento, quando especifica, no art. 1322, par. 2, que os atos de autonomia privada "devem ser voltados a realizar interesses merecedores de tutela segundo o ordenamento jurídico"12. Recentemente a Corte di Cassazione italiana, em Seções Unidas, reafirmou que o juízo de merecimento de tutela exprime-se à luz dos princípios fundamentais do ordenamento e dos valores que o caracterizam. Por conseguinte, qualquer ato de autonomia deve ser concretamente submetido a um controle qualitativo e axiológico que respeite a total identidade do sistema, a fim de verificar se, efetivamente, tende à concretização dos valores que fundamentam o ordenamento jurídico italiano e que são contidos nos seus princípios constitucionais. Nessa perspectiva, afirmam as Seções Unidas, evocando uma orientação consolidada, o juízo de "merecimento" a que se refere o art. 1.322, par. 2, do Codice civile, é um juízo que deve afetar não o contrato em si, mas o resultado que as partes almejaram com ele (ou seja, o propósito prático, a causa concreta). Os atos de autonomia negocial devem propender à concretização dos valores que fundamentam o ordenamento jurídico e contidos nos princípios constitucionais. Na Itália, o princípio da causalidade negocial impõe que os atos negociais sejam causais, de modo que o ato é merecedor somente quando responder a uma função jurídica e socialmente útil. Por conseguinte, a ausência de causa ou a sua ilicitude produzem a nulidade do ato, porquanto não são concebíveis atos de autonomia que prescindam da avaliação do fundamento justificador. Logo, mesmo que coubesse recorrer, no Direito brasileiro, a "importação" do critério do merecimento de tutela, não poderia ser feita como foi, incompleta, e para o efeito que foi, impondo-se, ao contrário, atrelá-lo a um parâmetro sólido, como, por exemplo, o ordenamento jurídico. Ocorre que o Direito Civil brasileiro, para além de admitir a abstração da causa13, conta com um conceito amplo de ilicitude civil. O art. 187, como é por todos sabido, estabelece "balizas de licitude" no exercício jurídico, quais sejam, a boa-fé, os bons costumes, e a finalidade econômica e social do direito. Atos conformes a esses parâmetros são os que, no exercício jurídico, são considerados, entre nós, como "merecedores da tutela do ordenamento", não havendo nenhuma necessidade do recurso a um conceito atado a diferentes formantes. Além do mais, são sabidos e ressabidos os graves problemas ligados à indeterminação no Direito, ao estabelecimento de seu conteúdo, do alcance de seu significado, de suas eficácias14. Tenha-se como exemplo contrastante o princípio da boa-fé objetiva ("boa-fé normativa"), talvez o mais conhecido "caso" de indeterminação semântica no Direito contratual. Ainda que exaustivamente trabalhado através dos séculos; ainda que considerado um "acquis culturel" do Direito, suscitando, nos diferentes sistemas, os mais aprofundados estudos; ainda assim a sua positivação na legislação brasileira, em 1990, no Código de Defesa do Consumidor e, posteriormente, em 2002, no Código Civil, gerou um ainda inacabado debate. Só agora, passados 30 anos, começa a amainar a sua "hiperinvocação"15 que abarrotou tribunais, começando a ser colhidos frutos da intensa produção doutrinária sobre o seu conteúdo, alcance, distinções e funções. Em suma, só agora - mesmo para princípio tão "antigo" e estudado como o é o da boa-fé objetiva - começa a verificar-se certa estabilização na jurisprudência, que ainda luta, todavia, para melhor precisar o seu campo operativo16. Se assim ocorre com um princípio como o da boa-fé, o que dizer da importação de um conceito tão altamente indeterminado como o de "interesse merecedor de tutela", cujo conteúdo e eficácia ainda não foram consolidados na doutrina brasileira17? E que, à diferença do princípio da boa-fé, cujas consequências se situam no plano da eficácia, atingirá - se prevalecer a proposta de redação ao art. 169 - o plano da validade dos negócios jurídicos? Não custa lembrar que a difusão de um modelo jurídico supõe certo conhecimento empírico por quem o vem a imitar. Esse conhecimento, contudo, ainda não é uma comparação, muito menos comparação aprofundada18. Os diferentes direitos comportam, cada um, conceitos à sombra dos quais exprimem suas regras; categorias ordenantes dos sistemas19, regras específicas das quais, à partida, o comparatista, olhando "de fora para dentro", não tem sequer a percepção. Uma noção que é explícita em um sistema pode ser implícita em outro, e certamente, não será compreendida via o mero lançamento de expressões sugestivas em texto de lei. Recordemos, para concluir, nosso escritor maior, Machado de Assis, segundo o qual todo transplante está sujeito à "lei de aclimação"20. Se essa "lei" não for obedecida, ficaremos com três males difíceis de superar: a composição arlequinal de um Código que deveria ser a referência maior em harmonia e sistematicidade; o aumento dos litígios, deixando ao nuto de cada juiz determinar qual negócio é ou não é "merecedor de tutela"; e, como resultado fatal, o crescimento da insegurança que mina a confiança no Direito. __________ 1 Para a ideia de modelos jurídicos: REALE, Miguel. Fontes e Modelos do Direito. Para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo: Saraiva, 1994, pp. 63-122. MARTINS COSTA, Judith. Autoridade e Utilidade da Doutrina: a construção dos modelos doutrinários In: Modelos de Direito Privado. (Org.) São Paulo: Marcial Pons, 2014.? 2 FRADERA, Véra Maria Jacob de. Reflexões sobre a Contribuição do Direito Comparado para a elaboração do Direito Comunitário. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 92-114. 3 Para essas categorias, reenvie-se a: SACCO, Rodolfo. La Comparaison Juridique au Service de La Connaissance du Droit. Paris: Economica, 1991, p. 41 e ss. 4 A expressão está em SCHWARZ, Roberto. As idéias fora do lugar. In: Ao Vencedor as Batatas. 2ª ed. São Paulo: Duas Cidades-Editora 34, 2000, p. 25. 5 SCHWARZ, Roberto. As idéias fora do lugar. In: Ao Vencedor as Batatas. 2ª ed. São Paulo: Duas Cidades-Editora 34, 2000, p. 21-25. 6 A expressão é de SACCO, Rodolfo. La Comparaison Juridique au Service de La Connaissance du Droit. Paris: Economica, 1991, p. 42. 7 LEGRAND, Pierre. Sur l'analyse différentielle des juriscultures. Revue Internationale de Droit Comparé, Paris, Societé de Législation Comparée, 4, 1999, p. 1053-1071. 8 SACCO, Rodolfo. La Comparaison Juridique au Service de La Connaissance du Droit. Paris: Economica, 1991, p. 113 e ss., em especial p. 118-128. 9 Assim se escreveu em MARTINS-COSTA, Judith. Apresentação a PARGENDLER, Mariana. Evolução no direito societário: lições do Brasil. In: Modelos de Direito Privado. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 533-539. 10 Refiro-me à iniciativa de reforma procedida por Comissão instituída pelo Senado Federal que, a pretexto de modernizar o Código Civil, modificou um milhar de seus artigos, promovendo completa subversão na letra, no espírito, na linguagem e no método da Lei Civil. (O arquivo consta do site do Senado Federal, na aba Comissão de Juristas responsáveis pela revisão e atualização do Código Civil. Último acesso em 13 de maio de 2024). 11 Vide PARGENDLER, Mariana. Alcance e limites da presunção de boa-fé. Custos probatórios e normas profiláticas no Direito Privado. In: BENETTi, Giovana et ali. História, Cultura, Método. Leituras da obra de Judith Martins Costa. Rio de Janeiro. GZ, 2019, pp. 259-278. Acerca das distinções entre a boa-fé subjetiva e a objetiva e dos problemas derivados da qualificação da boa-fé subjetiva como presunção, escreveu-se em: MARTINS-COSTA, Judith. o princípio da "boa-fé do particular perante o Poder Público. Comentário ao artigo 2º, inciso II. In: Direito Privado na Lei da Liberdade Econômica: Comentários. (Coord.). São Paulo: Almedina, 2022 (coord. em co-autoria com Guilherme Nitschke). 12 No original: "Le parti possono anche concludere contratti che non appartengano ai tipi aventi una disciplina particolare, purché siano diretti a realizzare interessi meritevoli di tutela secondo l'ordinamento giuridico". 13 COUTO E SILVA, Clóvis. A obrigação como processo. 2. ed. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2006, p. 52-61; PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Tomo III. Atualizado por Marcos Bernardes de Mello e Marcos Ehrhardt Jr. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, § 264, item 1, p. 147. 14 Na doutrina recente: ÁVILA, Humberto. Teoria da indeterminação no Direito: entre a indeterminação aparente e a determinação latente. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2023. 15 TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. A boa-fé objetiva no Código de Defesa do Consumidor e no Novo Código Civil. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). Obrigações. Estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 29-44. 16 Assim se examinou em MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito Privado: critérios para sua aplicação. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2024, § 16. 17 Ressalva-se, dentre outros trabalhos: De CICCO, Maria Cristina. Poderes do juiz, função social do contrato e equilíbrio contratual na legalidade constitucional. In: MENEZES, Joyceane Bezerra de e BARBOSA, Fernanda Nunes. A Prioridade da Pessoa Humana no Direito Civil-Constitucional. Estudos em homenagem a Maria Celina Bodin de Moraes. Indaiatuba: Ed. Foco. 2024, p 199-219. Ainda, entre outros interessantes trabalhos, ligados à "escola" do Direito Civil Constitucional, ver: SOUZA, Eduardo Nunes de. Merecimento de tutela: a nova fronteira da legalidade no direito civil. Revista de Direito Privado, vol. 58, 2014, p. 75-107. 18 SACCO, Rodolfo. La Comparaison Juridique au Service de la Connaissance du droit. Paris: Economica, 1991, p. 7. 19 DAVID, René; JAUFFRET-SPINOSI, Camille; GORÉ, Marie. Les grands systèmes du droit contemporains. 12ª ed. Paris: Dalloz, 2016, § 12, p. 12. 20 MACHADO DE ASSIS. Balas de Estalo. In: Crônicas. Obras Completas de Machado de Assis. Vol. 25. São Paulo: W. M. Jackson Inc. Ed., 1957.
O anteprojeto de reforma do Código Civil de 2002 (CC/02) retirou da invisibilidade jurídica o tema da terapia gênica coligada às técnicas de reprodução humana assistida (RHA). Isso porque, consoante o inciso V do art. 1.629-D, excepciona a possibilidade de intervir sobre o genoma humano, com vista à sua modificação, desde que haja a finalidade de tratar doenças graves via diagnóstico genético pré-implantacional - DGPI (anterior a implantação do embrião no útero) ou diagnóstico pré-natal - DPN (momento em que o embrião se encontra em desenvolvimento intrauterino).1 Todavia, distinguir a terapia gênica das práticas de aconselhamento genético se torna premente no debate sobre governabilidade genética. Isso, pois o propósito e o impacto na estrutura do genoma humano guardam especial diferença. De um lado, o condão da terapia gênica está na intervenção direta na estrutura do DNA, afetando, consequentemente, o genoma contido na dupla hélice.2 A exemplo, menciona-se o potencial da técnica CRISPR-Cas9, responsável por atuar como uma tesoura genética capaz de inserir, recortar ou excluir qualquer gene de animais ou plantas, seja em linhagem somática ou germinativa.3 Por outro lado, em regra, as práticas de aconselhamento genético mediante diagnósticos, consubstanciam a possibilidade de fazer a mera leitura das características genéticas atribuíveis e, a partir disso, possibilitar a seleção do material biológico ou proceder com possíveis cuidados à gestante ou à prole. Além disso, poderá atuar em diferentes momentos: a) anteriormente a concepção dos gametas reprodutivos (diagnóstico pré-conceptivo); b) posteriormente a concepção dos gametas reprodutivos, havendo, neste momento, o embrião em estágio pré-implantacional (diagnóstico genético pré-implantacional); c) após o momento de nidação e o desenrolar do desenvolvimento intrauterino, para verificar as condições de saúde do nascituro (diagnóstico pré-natal); e d) a partir do nascimento com vida, para se atentar às possíveis doenças congênitas (diagnóstico pós-natal).4 Diante disso, a proposta do anteprojeto parece ter excepcionado a regra geral de vedação às práticas de intervenção no genoma humano desde que haja o único propósito de ser fundamentado em um protocolo terapêutico, também chamado de eugenia negativa pela doutrina especializada. Em contrapartida, a eugenia positiva se baseia na ideia de utilizar a biotecnologia com o propósito artesão ou de melhoramento humano. Sendo assim, lembra-se da crítica moderna do filósofo alemão Habermas no sentido de que a preocupação na atualidade repousa, sobretudo, na possibilidade de não se saber distinguir, na prática, esses dois protocolos (terapêutico x aprimoramento humano) a partir dos valores sociais, fundamentando, portanto, a chamada eugenia liberal, que merece atenção e cuidado.5 À frente desse cenário, ainda que pareça acertada a regra de exceção à vedação na proposta de reformulação da legislação civil, carece de debate a determinação conceitual, também em esfera jurídica, quanto ao entendimento sobre o que seriam as doenças graves. Afinal, o avanço da biotecnociência no campo da genética e da reprodução humana fundamenta o que Norberto Bobbio6 intitulou de quarta era dos direitos, ao referir-se "aos efeitos cada vez mais traumáticos da pesquisa biológica, que permitirá manipulações do patrimônio genético de cada indivíduo". Ademais, a proteção do patrimônio genético encontra-se tutelado pelo legislador constituinte, no art. 225, na condição de interesse difuso, uma vez que importa a toda a coletividade ver protegida para as atuais e futuras gerações a biodiversidade. Dentro dessa percepção, o ser humano, enquanto um animal, ainda que dotado de racionalidade, deve ser abrangido nessa percepção para se proteger o patrimônio genético humano. Contudo, na própria ótica de proteção da herança genética, também merece proteção a diversidade biológica humana, cabendo a necessidade de distinguir (a) doença hereditária, (b) doença incompatível com a vida e (c) deficiências.7 Afinal, nesse quadro, merece distinção específica o conceito de deficiência e doenças. Isso porque a deficiência não deve ser vista como sinônimo de ausência de saúde, qualidade de vida ou incompatibilidade com a vida.  Na verdade, seguindo a própria tendência de reformulação da codificação civil, conforme os mandamentos do modelo social de deficiência, seria a pessoa com deficiência detentora de autonomia, inclusive, para gerir aspectos específicos da sua vida, ainda que demande apoio. Outra reflexão que merece ser discutida, neste momento de tramitação do anteprojeto, seria a possível antinomia do inciso V, do art. 1.629-D, com o art. 25 da Lei de Biossegurança (Lei n. 11.105/2005). Explica-se: segundo o art. 25 da Lei n. 11.105/2005 é proibido a engenharia genética em células germinativas (gametas, zigoto e embrião).8 Contudo, o anteprojeto fala que é proibido intervir no genoma, com a exceção de através da terapia gênica (sinônimo de engenharia genética) e do diagnóstico genético pré-implantacional (leitura do DNA) evitar doenças graves. A tendência de usar as técnicas reprodutivas com o fim de evitar doenças graves já existia, no corpo das normas deontológicas do CFM, todavia, direcionadas para a seleção cromossômica via DGPI, isto é, fora do escopo da edição genética.9 Por esse motivo, a dúvida que surge seria a seguinte: o anteprojeto poderá criar um conflito entre normas, na medida em que relativiza a prática da engenharia genética em células germinativas? Isso, pois uma norma-regra encontra-se em lei específica, estando no âmbito penal, e a outra, por sua vez, no âmbito civil, no livro de família. Nesse cenário, cumpre lembrar que a elaboração e a vigência da Lei de Biossegurança assentaram-se em momento próximo à conclusão do projeto genoma humano (1990-2003),10 responsável por se dedicar a decodificar quase que a totalidade dos genes que compõem a estrutura do DNA. Além do mais, o início do século XXI foi um momento de alarde na comunidade acadêmica no tocante a latente possibilidade de instrumentalização da vida humana a partir das técnicas medicamente assistidas. Neste momento histórico, também, as técnicas de edição genética disponíveis eram demoradas, demasiadamente onerosas e de difícil replicação pelos cientistas. A forma mais eficaz existente no tratamento de doenças era o simples diagnóstico genético, em qualquer das fases de desenvolvimento da vida humana, que em verdade não se trata de uma técnica que intervém diretamente na estrutura do DNA, mas possibilita tão somente decifrar os genes. A engenharia genética da precisão, por sua vez, através da ferramenta conhecida pelo acrônimo CRISPR-Cas9, tornou-se uma possibilidade científica somente no ano 2012, sendo provada cientificamente em 2014. Ao contrário das ferramentas disponíveis anteriormente, trata-se de metodologia inovadora por permitir intervir na estrutura do DNA de maneira rápida, pouco onerosa e de fácil replicação pelos cientistas. Ademais, a descoberta da técnica ocasionou uma verdadeira revolução no cenário da biotecnologia, ocasionando inclusive em briga, nos estados-nacionais, para o registro de sua patente consoante o impacto no mercado agrícola e de medicamentos humanos.11 Inclusive, as cientistas responsáveis pela descoberta do método, Jennifer Doudna e Emmanuelle Charpentier, foram as responsáveis por ganharem o prêmio Nobel de química, no ano de 2020,12 pela incrível descoberta da técnica que revolucionou sem sombra de dúvidas a história da humanidade. Consoante o exposto, argumenta-se, por isso, que a técnica eficaz no tratamento de doenças surgiu em momento posterior a Lei de Biossegurança. Portanto, sequer era uma possibilidade científica à época de elaboração desta lei vigente. Por esse motivo, entende-se que esta norma merece ser revisitada à luz dos novos paradigmas em matéria de governabilidade genética. Portanto, o diálogo promovido pelo anteprojeto do Código Civil nos leva a refletir sobre a atualização das potencialidades científicas não vislumbradas à época da Lei de Biossegurança, que atualmente promove a vedação absoluta à edição genética em linhagem germinativa (art. 25 da Lei de Biossegurança), não abarcando em sua proibição as células somáticas. Além disso, a previsão indicada no anteprojeto suscita muitas dúvidas: as práticas da terapia gênica (a exemplo do CRISPR) e dos diagnósticos genéticos (a exemplo do DGPI ou do DPN, mencionados no anteprojeto) poderiam ser utilizadas para todos os fins, como nas doenças incompatíveis com a vida, nas doenças hereditárias e nas deficiências? Qual o sentido empreendido à finalidade terapêutica? A intervenção no patrimônio genético com base na deficiência seria ou não discriminatória? Reconhecer a deficiência como diversidade da condição humana importa em reconhecer que o patrimônio genético deve ser protegido em sua diversidade de forma isonômica? Haveria um princípio da proteção à diversidade do patrimônio genético? Em havendo, este deve ser aplicado indistintamente ou poderia ser aplicado de forma relativizada, a partir de estágios distintos de determinado patrimônio genético, por exemplo, como antes ou depois da sua fecundação ou implantação?  São perguntas cujas respostas são distintas em diversas doutrinas que, ao cabo, devem estar voltadas à uma construção benéfica para a humanidade.  Referências  BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho.  Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.  BRASIL. Senado Federa. Anteprojeto de lei para revisão e atualização da lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que institui o Código Civil. Relatório final da comissão de juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil. Brasília DF: 11 abr. 2024. Disponível aqui. Acesso em 08 mai. 2024.  CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM nº 2.230, de 20 de setembro de 2022. Adota normas e'ticas para a utilizac¸a~o de te'cnicas de reproduc¸a~o assistida - sempre em defesa do aperfeic¸oamento das pra'ticas e da observa^ncia aos princi'pios e'ticos e bioe'ticos que ajudam a trazer maior seguranc¸a e efica'cia a tratamentos e procedimentos me'dicos, tornando-se o dispositivo deontolo'gico a ser seguido pelos me'dicos brasileiros e revogando a Resoluc¸a~o CFM no 2.294, publicada no Dia'rio Oficial da Unia~o de 15 de junho de 2021, Sec¸a~o I, p. 60. Disponível aqui. Acesso em 24 abr 2024.  CORREA, Marilena. O admirável Projeto Genoma Humano. Physis, Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, p. 277-299, 2002. Disponível aqui. Acesso em 13 mai. 2024.  DANTAS, Carlos Henrique Félix. Aprimoramento genético em embriões humanos: limites ético-jurídicos ao planejamento familiar na tutela da deficiência como diversidade biológica humana. 1ed. Belo Horizonte: Fórum, 2022.  DOUDNA, Jennifer; STERNBERG, Samuel. A crack in creation: gene editing and unthinkable power to control evolution. Boston: Editora Houghton Mifflin Harcourt, 2017.  GONÇALVES, Giulliana Augusta Rangel; PAIVA, Raquel de Melo Alves. Terapia gênica: avanços, desafios e perspectivas. Einstein (São Paulo), v. 15, p. 369-375, 2017. Disponível aqui. Acesso em 13 mai. 2024.  HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana: a caminho de uma eugenia liberal? Tradução de Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2004.  SOUZA, Iara Antunes de. Aconselhamento genético e responsabilidade civil: as ações por concepção indevida (Wrongful conception), nascimento indevido (Wrongful Birth) e vida indevida (Wrongful life). Belo Horizonte: Arraes Editores, 2014.  THE NOBEL PRIZE IN CHEMISTRY 2020. NobelPrize.org. Nobel Media AB, 2020. Disponível aqui. Acesso em 13 mai. 2024. __________ 1 "Art. 1.629-D. As técnicas reprodutivas não podem ser utilizadas para: [...] V - intervir sobre o genoma humano com vista à sua modificação, exceto na terapia gênica para identificação e tratamento de doenças graves via diagnóstico pré-natal ou via diagnóstico genético pré-implantacional." BRASIL. Senado Federa. Anteprojeto de lei para revisão e atualização da lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que institui o Código Civil. Relatório final da comissão de juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil. Brasília DF: 11 abr. 2024. Disponível aqui. Acesso em 08 mai. 2024. 2 Consultar GONÇALVES, Giulliana Augusta Rangel; PAIVA, Raquel de Melo Alves. Terapia gênica: avanços, desafios e perspectivas. Einstein (São Paulo), v. 15, p. 369-375, 2017. Disponível aqui. Acesso em 13 mai. 2024. 3 Ver DOUDNA, Jennifer; STERNBERG, Samuel. A crack in creation: gene editing and unthinkable power to control evolution. Boston: Editora Houghton Mifflin Harcourt, 2017. 4 Sobre o tema, recomenda-se SOUZA, Iara Antunes de. Aconselhamento genético e responsabilidade civil: as ações por concepção indevida (Wrongful conception), nascimento indevido (Wrongful Birth) e vida indevida (Wrongful life). Belo Horizonte: Arraes Editores, 2014. 5 HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana: a caminho de uma eugenia liberal? Tradução de Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2004. 6 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho.  Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 9. 7 DANTAS, Carlos Henrique Félix. Aprimoramento genético em embriões humanos: limites ético-jurídicos ao planejamento familiar na tutela da deficiência como diversidade biológica humana. 1. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2022. 8 Lei de Biossegurança: "Art. 25. Praticar engenharia genética em célula germinal humana, zigoto humano ou embrião humano: Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa." 9 "5. As te'cnicas de reproduc¸a~o assistida na~o podem ser aplicadas com a intenc¸a~o de selecionar o sexo (presenc¸a ou ause^ncia de cromossomo Y) ou qualquer outra caracteri'stica biolo'gica da crianc¸a, exceto para evitar doenc¸as no possi'vel descendente". CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM nº 2.230, de 20 de setembro de 2022. Adota normas e'ticas para a utilizac¸a~o de te'cnicas de reproduc¸a~o assistida - sempre em defesa do aperfeic¸oamento das pra'ticas e da observa^ncia aos princi'pios e'ticos e bioe'ticos que ajudam a trazer maior seguranc¸a e efica'cia a tratamentos e procedimentos me'dicos, tornando-se o dispositivo deontolo'gico a ser seguido pelos me'dicos brasileiros e revogando a Resoluc¸a~o CFM no 2.294, publicada no Dia'rio Oficial da Unia~o de 15 de junho de 2021, Sec¸a~o I, p. 60. Disponível aqui. Acesso em 24 abr 2024. 10 CORREA, Marilena. O admirável Projeto Genoma Humano. Physis, Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, p. 277-299, 2002. Disponível aqui. Acesso em 13 mai. 2024. 11 Consultar DANTAS, Carlos Henrique Félix. Aprimoramento genético em embriões humanos: limites ético-jurídicos ao planejamento familiar na tutela da deficiência como diversidade biológica humana. 1. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2022. 12 THE NOBEL PRIZE IN CHEMISTRY 2020. NobelPrize.org. Nobel Media AB, 2020. Disponível aqui. Acesso em 13 mai. 2024.
Segundo o disposto no § 2º do art. 421 do projeto de Código Civil, a cláusula contratual que violar a função social do contrato é nula de pleno direito. Temos aqui dois temas de grande relevância, talvez passados desapercebidos pela douta Comissão de Reforma do Código Civil de 2002, demandando, por isso, uma crítica construtiva por parte da doutrina, sob pena de ser aprovado um parágrafo, cujo teor pode conduzir, de um lado, a um impasse e, de outro, à referência a um termo de significado todavia incerto entre nós, qual seja, o sentido da locução função social do contrato. Vamos iniciar nossas ponderações pela sanção de nulidade da cláusula violadora da função social do contrato. Sendo o contrato uma espécie de negócio jurídico, faremos, inicialmente, algumas breves digressões em torno dessa peculiar figura.1 A noção de negócio jurídico está intimamente relacionada a um exaustivo controle, exercido pela Ordem Jurídica, no referente à capacidade dos agentes, à licitude de seu objeto e à observância da forma, quando ela for da substância do ato. Desta sorte, o negócio jurídico, diversamente de qualquer outro tipo de fato jurídico, deve passar, obrigatoriamente, por três planos, o da existência, o da validade e o da eficácia. Pertencem ao plano da existência (ou dos pressupostos) do negócio, o agente, uma declaração de vontade e as circunstâncias negociais. A doutrina refere-se aos elementos de existência do negócio jurídico, utilizando o vocábulo elemento em sua acepção aristotélica, ou seja, "aquilo com que se faz alguma coisa". De acordo com essa perspectiva, o negócio jurídico é, pois, constituído, feito, por esses elementos. O segundo plano a ser ultrapassado pelo negócio jurídico é o da validade, isto é, o plano das adjetivações, dos requisitos, aquilo que a ordem jurídica requer, nos elementos da existência, para que o negócio jurídico seja válido. Em relação ao agente, requer-se seja capaz e legitimado para o negócio, que sua declaração seja livre, sem vícios; em relação ao objeto, que seja lícito e possível, física e juridicamente, em relação à forma, que seja observada quando prescrita em lei. Já o tempo e o lugar, que integram o plano da existência, não estão sujeitos a requisitos. A terceira e última etapa a ser ultrapassada é aquela referente aos fatores de eficácia, assim denominados por serem externos ao negócio, não constituírem uma de suas partes integrantes, não obstante, relevantes para obtenção do resultado visado. É evidente que a eficácia a que se alude é a eficácia jurídica, ou seja, aquela própria ou típica, relativa aos efeitos manifestados como queridos, e não outra qualquer. Assim, os negócios jurídicos subordinados a uma condição suspensiva não serão eficazes enquanto não houver o implemento da condição. De acordo com a lição de Antônio Junqueira de Azevedo,2 é possível fazer-se uma classificação dos fatores de eficácia: Em primeiro lugar, os fatores de atribuição de eficácia em geral, sem os quais o negócio não produz efeito algum; em seguida, os fatores de eficácia diretamente visada, ou seja, aqueles indispensáveis para que um negócio, eficaz entre as partes, produza determinados efeitos, visados pelos contratantes. Por último, os fatores de atribuição de eficácia mais extensa, consistentes em certas medidas, por exemplo, as de publicidade, em que o negócio que já é eficaz entre as partes, tenha sua eficácia ainda mais ampliada, atingindo a terceiros ou a comunidade, tornando-se eficaz erga omnes. É o que ocorre, quando as partes recorrem às medidas de publicidade em geral. Assim sendo, seriam nulos os negócios jurídicos celebrados com inobservância dos requisitos de validade: Agente incapaz, objeto ilícito ou impossível e inobservância da forma, quando exigida em lei. Seriam ineficazes os negócios cujos efeitos, pretendidos pelas partes, não pudessem ser obtidos devido a determinados obstáculos: Aqueles postos pela Ordem Jurídica, os dependentes do acaso (como o implemento de uma condição) ou ainda aqueles obstáculos decorrentes da inobservância de certas medidas publicitárias. Tendo em vista a cominação, pelo legislador do futuro Código Civil, de sanção de  nulidade da cláusula violadora da função social do contrato, logo vem à mente do  leitor uma primeira pergunta: A nulidade de pleno direito da cláusula em questão anularia todo o contrato ou apenas aquela cláusula, restando as demais íntegras? Conforme o teor do art. 184 do Código Civil, a invalidade parcial de um negócio jurídico não o prejudicará na parte válida, se esta for separável; mas, segue o legislador: A invalidade da obrigação principal implica a das obrigações acessórias, mas a destas não induz a da obrigação principal. Como antes referido, o festejado professor Marcos Bernardes de Mello trata das espécies de invalidade, acentuando um aspecto que aqui nos interessa mencionar: O problema da possibilidade de poder ser a invalidade total ou parcial, constituindo assunto relacionado à questão da separabilidade de suas partes, a qual se condiciona à preservação da integridade do ato jurídico. O ilustrado professor chama a atenção para o fato de se poder falar objetivamente em invalidade parcial, se a exclusão da parte inválida não atinge o negócio jurídico como um todo. No caso do §2º do art. 421 do anteprojeto de Código Civil haveria a possibilidade de, eventualmente, permanecer o contrato válido, uma vez extirpada a cláusula violadora da função social. Contudo, parece-nos que seria mais coerente fosse essa cláusula qualificada como ineficaz, ou seja, não produziria os efeitos jurídicos pretendidos pelas partes, preservando o negócio, na hipótese de que esse fosse daqueles insuscetíveis de serem separados. A partir deste momento, passaremos a comentar a referência à persistência da exigência de exercer o contrato uma função social, de acordo com o aludido § 2º, exigência agravada com a sanção de nulidade da cláusula contratual que a violar. Utilizando a sabedoria popular, entendemos ser apropriado evocar aqui o dito conhecido por todos, mais católicos que o Papa! Com efeito, embora transcorridos 22 anos de vigência do Código Reale, a nossa doutrina e tampouco os tribunais todavia não chegaram a um consenso sobre qual seria o sentido dessa expressão, interpretada das mais diversas formas, segundo a ideologia do intérprete, sua filiação a uma ou a outra corrente da economia, da política, da filosofia, etc. A dificuldade em precisar seu exato sentido sempre foi reconhecida, tanto é que o Código italiano de 1942, modelo de inspiração maior do legislador Reale, não adotou a exigência de o contrato, ou a empresa, exercerem uma função social. Não há aqui, evidentemente, espaço bastante para debater esse assunto de forma aprofundada, contudo, desde que nos propusemos a comentar o §  2º do art. 421, acrescido ao texto do Código de 2002 pelo legislador da sua reforma, entendemos ser relevante expor essa dificuldade e sugerir que, em já havendo um certo consenso, seja retirada, no anteprojeto, a menção à função social do contrato e da empresa, sobretudo em razão da sugestão, partida do atual legislador, de ser anulada a cláusula que ferisse a função social do contrato. Novamente, dadas todas as vênias, essa exigência não se coaduna com a redação do texto do art. 421 e seu § único, após a vigência da lei 13.874/19, pois, o legislador dessa lei criou  uma verdadeira antinomia, de um lado, a exigência de cumprimento da função social (leia-se a extinção do princípio cardeal dos contratos, a sua relatividade); de outro, no seu § único, uma posição liberalista, afirmando a prevalência do principio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual. Podemos afirmar, sem receio, tratar-se de uma reforma um tanto desastrosa, porquanto  defeituosa desde o ponto de vista da lógica. Ademais, se examinarmos o estágio atual do direito contratual e empresarial brasileiro, veremos que, em razão da globalização, do incremento dos negócios no plano internacional, ocorre uma internacionalização do nosso direito civil, do nosso conceito de contrato, mediante o influxo dos princípios UNIDROIT, do Code Européen des Contrats, da UNCITRAL, da CISG e da Doutrina, nacional e internacional, onde a noção de função social não tem lugar, por variados motivos, merecendo destaque tanto o fato de ela eliminar a mais importante e mais clássica das qualidades do contrato, ou seja, a sua relatividade (le contrat est la chose des parties) além do fato de incumbir ao juiz verificar o seu cumprimento (da função social) gerando insegurança aos jurisdicionados, pois trata-se de conceito indeterminado. Por outro lado, percebe-se um movimento, nacional e internacional, segundo o qual a doutrina surge como uma fonte de unificação internacional do Direito, porquanto ela comanda todos os esforços em direção à formação de uma concepção meta-nacional do direito, sobretudo na área do contrato, ou, como afirma C. Mouly, "à l'état d'esprit qui préside au dépassement et à l'abstraction des cadres nationaux".3 Importante destacar o fato de, inversamente do ocorrido em relação ao  CC/16, o atual diploma civil  apresenta-se  como um modelo aberto, ou seja, ele não exclui o jogo de outras fontes, como o costume, as convenções internacionais e até mesmo as normas internacionais. É relevante referir  essa abertura  à influência estrangeira naquilo concernente ao Direito privado em geral, e, mais particularmente, no plano do Direito dos contratos e da empresa. Ademais, menção há de ser feita à  circulação de modelos jurídicos provindos da common law, inglesa ou americana, fato incontestável, sobretudo a  partir da segunda metade do século XX, na área dos contratos empresariais. Evocamos ainda o caso da ratificação, pelo nosso governo, da Convenção de Viena de 1980 sobre venda internacional de mercadorias, mediante o decreto 832/14, já com repercussão em nosso direito contratual, v.g., recepcionando o dever de o credor mitigar o próprio prejuízo, o recurso às práticas das partes na interpretação do contrato, etc., soluções fundadas em princípios igualmente adotados por nossa legislação (a BFO, a Confiança), integrantes dessas convenções internacionais, refletindo o pensar jurídico de muitos países, relativamente ao conceito de contrato. Por fim, evocamos um derradeiro argumento em favor da eliminação da exigência de função social do contrato e da empresa: O da contratualização do direito, definida como sendo o deslocamento do centro da organização da sociedade, tradicionalmente tendo como mais relevante instrumento a lei, para o contrato. Segundo afirmado por Camille Jaufret-Spinosi, nos dias atuais a parte dos vínculos prescritos diminui em proveito dos vínculos consentidos. Passamos do direito imposto ao direito negociado.4 Em sendo essa a atual compreensão do contrato, fica evidente que a exigência de exercerem, o contrato e a empresa uma função social, deve ser dispensada no novo diploma regulador das relações contratuais, contribuindo para atualização de nosso direito contratual. ________ 1 Recorremos, neste ponto aos ensinamentos do professor Marcos Bernardes de MELLO, Teoria  do fato jurídico, Plano da Validade, 7a edição,  revista e atualizada , Saraiva, S.P., 2006, pp. 69 a 87. 2 Negócio jurídico, existência, validade e eficácia, Saraiva, São Paulo, 3a edição revista, 2000, pp. 3 No original: ...ao estado de espírito que preside a ultrapassagem  e  a abstração dos quadros nacionais,  Revue internationale de droit comparé, vol. 38, n°2, pp 351-368. 4 V. Rapport de Synthèse, in Journées  Brésiliennes de l'Association Henri Capitant, Le Contrat, Tome LV, éditeur  SLC, Paris, 2008, p. 02-22, esp. p. 03.
No mundo social (que é também o mundo do Direito), o nome constitui uma instituição totalizante e de unificação do eu. O nome, diz Bourdieu, "atesta a identidade da personalidade, como individualidade socialmente constituída", ainda que "à custa de uma formidável abstração"1. A compreensão dessa abstração é ilustrada pelo autor a partir da obra de Proust, o qual faz uso, em suas personagens, do nome próprio precedido do artigo definido, como em "o Swann de Buckingham Palace", "a Albertina de então", "a Albertina encapotada dos dias de chuva", indicando este fracionamento do sujeito em seus múltiplos eus.2  Juridicamente, a importância primordial do nome está em servir como sinal designativo, que permite a individualização da pessoa humana a partir da qual ela constrói sua subjetividade. Por essa razão, constitui um dos direitos mais essenciais da personalidade, aqui entendidos a partir de um "conceito elástico"3.  Nesse sentido, nossa reflexão diz respeito às propostas de mudança do Código Civil contidas no anteprojeto apresentado ao Senado Federal no dia 17 de abril, a começar pelo artigo 16, cuja redação final apresentada assim prescreve:  Art. 16. A identidade da pessoa natural se revela por seu estado individual, familiar e político, não se admitindo que seja vítima de qualquer discriminação, quanto a gênero, a orientação sexual ou a características sexuais. § 1º O nome é expressão de individualidade e externa a maneira peculiar de alguém estar em sociedade. § 2º Sem autorização do seu titular, o nome da pessoa não pode ser empregado por outrem em publicações ou representações que a exponham ao desprezo público, ou que tenham fins econômicos ou comerciais. § 3º O pseudônimo, o heterônimo, o nome artístico, as personas, os avatares digitais e outras técnicas de anonimização adotados para atividades lícitas gozam da mesma proteção que se dá ao nome. § 4º Para os fins do parágrafo anterior, é vedada a adoção de técnicas ou estratégias de qualquer natureza que conduzam ao anonimato, que levem à impossibilidade de identificar agentes e lhes imputar responsabilidade. § 5º Sem autorização, não se pode usar o nome alheio em publicidade, em marca, logotipo ou em qualquer forma de identificação de produto, mercadoria ou de atividade de prestação de serviços, tampouco em manifestações de caráter religioso ou associativo. § 6º A mudança e a alteração do nome obedecerão à disciplina da legislação especial, sem que isso importe, por si só, alteração de estado civil. § 7º A modificação do sobrenome de criança ou de adolescente por força de novo casamento ou união estável de seus ascendentes só poderá ocorrer a partir dos 18 (dezoito) anos.  Verifica-se, do caput do aludido artigo, que este não trata do direito ao nome propriamente, mas sim do direito à identidade pessoal, considerado por alguns como direito autônomo da personalidade4. Ainda que se possa questionar a autonomia deste como direito da personalidade, fato é que o caput do dispositivo é bastante limitado ao abordar as formas pelas quais o direito à identidade da pessoa natural pode ser violado, já que as discriminações sociais não se limitam ao gênero, à orientação sexual ou às características sexuais, ainda quando se trate do direito ao nome como decorrência da identidade pessoal. E justamente porque o nome não expressa apenas a individualidade sexual ou de gênero da pessoa humana. O nome expressa também etnia, costumes, cultura, religião, crenças, ancestralidade5.  Se mais não fosse, veja-se que o caput do artigo seguinte do anteprojeto (art. 17) retoma o direito à identidade pessoal, expandindo-o para, agora, dele extrair-se, nos termos do parágrafo 1º, além do direito ao nome, o direito à imagem, à voz, à integridade psicofísica, à orientação ou expressão de gênero, sexual, religiosa, cultural e "outros aspectos que lhe sejam inerentes". No fim, não fica claro se o direito à identidade pessoal seria um direito aglutinador de outros direitos da personalidade, que englobaria específicos direitos cuja autonomia já se encontra reconhecida pela lei, pela doutrina e pela jurisprudência (como nome, imagem e integridade psicofísica, por exemplo) ou se seria um direito autônomo como os demais descritos na codificação, o qual se comporia de alguns elementos (quais seriam eles, o dispositivo tampouco refere) e que, em sua concretude, remeteria às "peculiaridades da pessoa natural". O artigo 17, in verbis, assim dispõe: Art. 17. Toda pessoa tem direito ao reconhecimento e à preservação de sua identidade pessoal, composta pelo conjunto de atributos, características, comportamentos e escolhas que a distingam das demais. § 1º Além do nome, imagem, voz, integridade psicofísica, compõem também a identidade pessoal os aspectos que envolvam orientação ou expressão de gênero, sexual, religiosa, cultural e outros aspectos que lhe sejam inerentes. § 2º É ilícito o uso, a apropriação ou a divulgação não autorizada dos elementos de identidade da pessoa, bem como das peculiaridades capazes de identificá-la, ainda que sem se referir a seu nome, imagem ou voz.  Uma complexa pergunta emerge do enunciado, que, se entrasse em vigor, obrigaria a doutrina e a jurisprudência a prover alguma resposta para ela: o que são os atributos e os elementos da identidade pessoal? Seriam estes a mesma coisa que direitos? A confusão está posta.  No Brasil, à diferença do que ocorreu na Itália desde a década de 1970, o direito à identidade não encontra autonomia dentre os direitos da personalidade, sendo visto, majoritariamente, como um direito que envolve outros direitos, estes sim de autonomia reconhecida tanto em doutrina quanto em jurisprudência e também na própria lei desde o Código Civil de 2002. Assim, o direito à identidade, visto como "o direito a que a projeção social da própria personalidade não sofra deturpações ou distorções devido à atribuição de ideias, opiniões ou comportamentos diferentes daqueles que o indivíduo expressou na sua vida de relações"6, encontra proteção primordialmente por meio do direito à imagem. Esta, que possui tanto uma feição estática (a chamada imagem-retrato) quanto uma feição dinâmica (a chamada imagem-atributo, ligada à "descrição do caráter da pessoa"7) dará guarida à proteção deste "direito de ser si mesmo", ainda que críticas possam ser feitas ao modo como o direito foi retratado na elaboração do artigo 20 do CCb.  Na Itália, os tribunais criaram o chamado "direito à identidade pessoal", de caráter supostamente mais amplo e aglutinador, para tratar desse aspecto da pessoa humana. Talvez esse tenha sido o intuito no anteprojeto de reforma. Se foi, a proposta não alcança o sentido desejado ao trazer incerteza.  Não sem razão, Maria Celina Bodin de Moraes, reconhecida entre os dez mais importantes juristas do Brasil no World Scientists Rankings 2024, afirma que "O direito à identidade pessoal contemplaria, então, duas instâncias: uma estática e outra dinâmica. A identidade estática engloba os direitos ao nome, à origem genética, à identificação biofísica e à imagem-retrato; a identidade dinâmica refere-se à verdade biográfica e ao estilo individual e social, isto é, à imagem-atributo, àquilo que a diferencia e singulariza em sociedade. Alguns autores, neste último sentido, falam de 'direito à paternidade de seus próprios atos'".8   Retornando à reflexão sobre o art. 16, quanto ao parágrafo 1º, cabe questionar o uso do adjetivo "peculiar". No que adjetivar a pessoa humana seria, afinal, útil em um enunciado normativo? E ainda chamando-a de "peculiar", considerando o sentido por vezes pejorativo com o qual se emprega o referido adjetivo na linguagem cotidiana?  Já no parágrafo 2º, a problemática é de outra ordem. De modo similar, em seu cerne, ao que dispõe o artigo 20 do Código em vigor9, dispõe acerca da necessidade de autorização da pessoa para o emprego de seu nome "em publicações ou representações que a exponham ao desprezo público, ou que tenham fins econômicos ou comerciais". Ocorre que a nova redação, ao reproduzir a proibição contida no art. 20 e parágrafo único do dispositivo atual, parece desconsiderar todo debate travado no Brasil quando do julgamento da ADI 4815, ocorrido em junho de 2015, no qual prevaleceu por unanimidade, junto ao Supremo Tribunal Federal, a liberdade de expressão e de informação diante do perigo de censura a editoras e veículos de comunicação em geral, tendo em vista o caráter econômico de sua atividade. No caso, debatia-se muito a questão das chamadas "biografias não autorizadas" e da (in)exigibilidade de autorização prévia do biografado para a sua publicação, discussão que o novo parágrafo 2º pode reacender no que tange ao direito ao nome e à identidade pessoal. Na ocasião, seguindo o voto da relatora, Min. Cármen Lúcia, a decisão conferiu interpretação conforme à Constituição aos artigos 20 e 21 do Código Civil, invocando os direitos fundamentais à liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação.  Como já tivemos a oportunidade de sustentar em tese de doutoramento, na elaboração da obra biográfica, cuja intenção, como premissa, não é difamatória, pode ocorrer de algumas passagens narradas exporem o nome do biografado ou biografada ao desprezo público, porquanto não só de gloriosos momentos é feita a vida de qualquer pessoa. Nesse sentido, ou bem se reconhece legitimidade às biografias de modo geral, ou bem se proíbe que publicações e representações exponham, em alguma medida, o nome de outrem ao desprezo público. Com efeito, não se pode dar todo peso ao nome, assim como a nenhum dos demais direitos da personalidade.       Da mesma forma, os parágrafos 3º e 4º que vêm na sequência também podem ensejar confusão no intérprete e, com isso, colocar em risco todo sentido de uma maior segurança jurídica buscado pela Comissão. Isso porque a redação do primeiro, ao proteger o pseudônimo, o heterônimo, o nome artístico, as personas e os avatares digitais, afirmando tratar-se de "técnicas de anonimização", seguindo-se da redação do parágrafo 4º, que diz ser "vedada a adoção de técnicas ou estratégias de qualquer natureza que conduzam ao anonimato, que levem à impossibilidade de identificar agentes e lhes imputar responsabilidade", pode soar contraditória. Embora o sentido do anonimato que o parágrafo 4º vete seja o que impossibilita a identificação para fins de responsabilidade, a verdade é que o parágrafo 3º não traz "técnicas de anonimização". Essas são utilizadas quando se abordam dados pessoais - proteção atualmente elevada à condição de direito fundamental da pessoa humana no Brasil10 - de que é exemplo a técnica da criptografia. O pseudônimo, por exemplo, pode exercer diferentes funções na produção literária, sendo a preservação da privacidade apenas uma delas, ao lado de diversas outras, dentre as quais a separação de identidades de escrita, questões que envolvem preconceitos ou estereótipos de qualquer natureza e até mesmo liberação criativa.  Em relação ao parágrafo 6º do art. 16, este parece-nos absolutamente despiciendo, uma vez que não se cogitaria, de forma séria, que a legislação especial, ao tratar da possibilidade de alteração registral do nome tivesse qualquer reflexo no estado civil da pessoa. Do mesmo modo, melhor sorte não parece ter o parágrafo 7º, visto que a modificação do sobrenome de criança ou de adolescente deve observar às questões de filiação (biológica, por adoção ou socioafetiva), tendo relação com direito próprio dela, nada tendo a ver com o novo estado civil de um de seus ascendentes.  Por fim, a redação proposta para o artigo 20, parágrafo 1º, traz nova menção ao direito ao nome, que vai na contramão das liberdades democráticas. Veja-se: "Quando houver ameaça ou lesão ao nome, à imagem e à privacidade de pessoa que exerça função pública, a aferição da potencialidade ofensiva da ameaça ou da lesão será definida, proporcionalmente, à autoridade que exerce, resguardado o direito de informação e de crítica."  Trata-se de dispositivo com potencial para silenciar vozes que se pretendam levantar contra personalidades do cenário político nacional, cujo poder econômico e de mobilização de forças sociais e institucionais não pode deixar de ser destacado. Sabemos que é da própria democracia aceitar, especialmente em relação a políticos (mais do que em relação a qualquer outra figura pública) a crítica mais ácida e a multiplicidade de versões sobre sua trajetória de vida. Na política, mais do que nas artes ou no esporte, a vida privada da pessoa se relaciona com sua vida pública, na medida em que a cada eleição o eleitor deve fazer uma escolha dentre um número determinado de pessoas para representá-lo na tomada de decisão sobre os temas públicos mais importantes, que afetam diretamente a sua existência. É preciso que nos recordemos sempre, como uma vez me disse uma notável jurista brasileira: ingenuidade não é qualidade. __________ 1 BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes (Org.). Usos e abusos da história oral. 8ª ed. Rio de Janeiro: FGV, 2006, p. 186. 2 Ibidem, p. 187. 3 BODIN DE MORAES, Maria Celina. A tutela do nome da pessoa humana. Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 149. Hoje compreendido como um direito da personalidade humana, que não se realiza "através de um esquema fixo de situação jurídica subjetiva - o direito subjetivo -, mas sim por meio de uma complexidade de situações subjetivas, que podem se apresentar ora como poder jurídico, ora como direito potestativo ou como autoridade parental, interesse legítimo, faculdade, estado - enfim, qualquer acontecimento ou circunstância (rectius, situação) juridicamente relevante" (BODIN DE MORAES, Maria Celina. Ampliando os direitos da personalidade. Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 126), o nome já foi visto, na seara jurídica, como simples "designação da personalidade", e não um direito em si, sendo esta mesma "um complexo de direitos" [subjetivos] e não, tampouco, um direito. Assim BODIN DE MORAES, Maria Celina. Na medida..., p. 151. 4 Na década de 1950, o jurista italiano Adriano De Cupis lecionava que o direito à identidade se decompunha em direito ao nome, direito ao título e direito ao sinal figurativo. (DE CUPIS, Adriano. Os direitos da personalidade. Trad. Adriano Vera Jardim e Antonio Miguel Caeiro. Lisboa: Livraria Morais Editora, 1961, p. 165-308). Foi a partir da década de 1970 que, na Itália, a cultura jurídica passou a reconhecer um caráter dinâmico a este direito, também definido pela doutrina daquela país como "l'interesse alla individualità personale" ou "l'interesse alla verità personale", "il diritto all'identità morale", "il diritto ad essere se stessi" ou ainda "falsa luce agli occhi del publico". É nesse sentido, da autonomia do direito à identidade pessoal em relação ao nome e a outros direitos, que Giorgio Pino defendeu sua tese de doutoramento que resultou na obra Il diritto all'identità personale: interpretazione constituzionale e creatività giurisprudenziale. Bologna: Il Mulino, 2003. No Brasil, defendeu tese de doutoramento nesse mesmo sentido Raul Cleber da Silva Choeri, que resultou no libro O direito à identidade na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2010 e, em nível de mestrado, Ligia Fabris Campos. O direito de ser si mesmo: a tutela da identidade pessoal no ordenamento jurídico brasileiro. Dissertação de Mestrado - PUC-Rio, 2006. Em ambos os trabalhos acadêmicos o direito à identidade pessoal foi fundamentado na cláusula geral de tutela da pessoa humana do art. 1º, III, da CF/88.    5 Apenas para citar-se um exemplo, em 2023, o Ministério Público Federal (MPF) expediu recomendação aos cartórios do Acre para que registrem indígenas recém-nascidos com nomes em suas línguas tradicionais. Disponível aqui. Acesso em 03 de maio de 2024. 6 PINO, Giorgio. Il diritto all'identità personale: interpretazione constituzionale e creatività giurisprudenziale. Bologna: Il Mulino, 2003, p. 9. 7 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 25. ed. rev. e atual. por Maria Celina Bodin de Moraes. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 215, v. I. 8 BODIN DE MORAES, Maria Celina. Na medida..., p. 138. 9 "Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais. (Vide ADIN 4815) Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes." 10 Art. 5º, LXXIX, da CF/88 - é assegurado, nos termos da lei, o direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 115, de 2022).
segunda-feira, 13 de maio de 2024

Editorial - Migalhas das Civilistas

Com enorme alegria e comprometidas com os valores da igualdade, pluralidade, alteridade e amizade, As Civilistas se uniram ao Migalhas para inaugurar essa coluna editorial quinzenal. Nós, as Civilistas, somos uma associação de mulheres dedicadas ao estudo do Direito Civil nas diversas áreas de atuação do direito: advogadas, magistradas, professoras, registradoras, notárias ligadas pelo desejo de aprimoramento técnico e leitura interdisciplinar desse campo do direito, tão fundamental para a sociedade. Estudamos e aplicamos o Direito Civil, considerando a unidade do ordenamento jurídico, sob uma visão multidisciplinar e atenta às demandas da sociedade contemporânea. Compreendemos o sujeito de direito dos códigos como o sujeito de direitos humanos e fundamentais, razão pela qual apostamos na aplicação do direito civil segundo a legalidade constitucional. Nosso objetivo primordial é contribuir para a construção e disseminação de um discurso jurídico, político e social que promova a dignidade da pessoa humana, e seus corolários: integridade psicofísica, liberdade, igualdade e solidariedade. Sob essa premissa, buscamos a efetivação da igualdade de gênero e a inclusão de grupos sociais vulneráveis. Se historicamente fomos talhadas para a tarefa do cuidado, esse viés nos inspira a análise cautelosa e globalizada dos institutos, visando à máxima promoção da pessoa humana que, na quadra histórica atual, constitui um valor constitucional. Não se pode desconsiderar que somente após as duas Grandes Guerras do Século XX, as mulheres romperam a barreira do silêncio e, paulatinamente, passaram a ocupar os bancos das universidades e buscar as carreiras jurídicas. O interesse pela história das mulheres, em geral, é muito recente, remontando às décadas de 1960-70.1 Mais recente é a atuação das civilistas que, no cenário nacional, despontaram apenas a partir da década de 1980. Chega a ser inacreditável que, poucas gerações atrás, simplesmente não havia mulheres presentes nos espaços de discussão e construção do direito. De fato, como se o direito não dissesse respeito à vida de mulheres, as leis eram feitas exclusivamente por homens. Dentre essas, a partir de um grande esforço, que engajou civilistas de todo o Brasil, pudemos identificar pouco mais de 30. Sem dúvidas que essas mulheres pioneiras tiveram que enfrentar muitas barreiras e preconceitos para se afirmar nestes espaços antes obstruídos para nós. E por isso mesmo, tratamos de expressar-lhes nossas homenagens e nossa gratidão, por terem aberto os caminhos para a nossa presença, neste ambiente que antes nos fora obstruído, dedicando-lhes a medalha das Civilistas Eméritas. Não obstante, esses espaços são vistos, ainda, como naturalmente ocupados por homens, sendo sempre excepcional a presença das mulheres. A hegemonia masculina, herança dos tempos em que nossa participação era efetivamente obstruída e negada, se retroalimenta. Ainda hoje, uma rápida análise sobre os currículos do curso de Direito mostra a preponderância da bibliografia masculina, confirmando que foram os homens que, nos últimos anos, explicaram e construíram a estrutura e função dos diversos institutos, notadamente, do Direito Civil. A despeito de sua competência técnica, porém, eles nem sempre demonstraram atenção aos impactos decorrentes da discriminação de gênero e/ou das vulnerabilidades, tampouco podem tratar do tema com a percepção própria ao existir e ser mulher. É o próprio olhar masculino que precisa se transformar e vislumbrar aquilo que antes não enxergava, a partir do momento em que a mulher, presente no espaço público, passa a pautar os temas e os problemas que a sociedade até pouco ignorava. O Supremo Tribunal Federal, ostenta um total de 10 Ministros e uma única Ministra; enquanto o Superior Tribunal de Justiça, possui 27 Ministros homens e apenas  seis Ministras mulheres. Do ponto de vista do recorte racial a exclusão é ainda mais evidente, não há mulheres negras, e dentre homens negros, conta-se hoje, apenas um no STJ. Embora sejamos maioria entre os inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil, apenas quatro das 24 seccionais são lideradas por mulheres, valendo também lembrar que o Conselho Federal jamais teve uma presidente. Segundo dados de Relatório do Conselho Nacional de Justiça, a participação das mulheres na composição de tribunais superiores caiu de 23,6% para 19,6% nos últimos dez anos. Os dados caminham em direção contrária do ODS nº05, da Agenda 2030, da ONU, com a qual o Brasil se comprometeu. Nesse cenário,  nosso empenho é sobretudo de ocupar esses espaços de debate e construção e ressignificação dos institutos e categorias do Direito Civil, fazendo ressaltar os valores que proclamamos e a imperiosidade de sua releitura para favorecer a representatividade e visibilidade  daqueles e daquelas que têm sido historicamente excluídos nesta dupla camada: como partícipes da construção do direito e da definição das normas jurídicas, e como sujeitos de direito, nunca devidamente considerados, com especial atenção ao tema das vulnerabilidades. Por meio dessa coluna, buscamos incentivar o diálogo e o debate sobre temas relevantes, funcionando como um canal aberto a todas e todos os juristas que se dedicam ao estudo do direito civil e áreas afins, ocupados em construir pontes e/os meios para a otimização da tutela integral da pessoa na área dos direitos existenciais e patrimoniais.  Perceber as contradições do direito que não se apresenta, efetivamente, como uma unidade coerente e irretocável, é parte do processo reflexivo e dialógico para a propositura de mudanças. E isso requer tempo e pluralidade de personas à mesa, debruçados sobre o mesmo problema, a fim de construir soluções mais firmes e ajustadas aos fins almejados por uma sociedade democrática. Acreditando no diálogo franco e no debate técnico, essa coluna se propõe a trazer reflexões plurais amplas e imbuídas do espírito cooperativo pleno. Sejam todos e todas muito bem-vindos às Migalhas das Civilistas! __________ 1 PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Trad. Viviane Ribeiro. Bauru, SP: EDUSP, 2005, p.16-20.