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A gestão patrimonial parental e o melhor interesse de crianças e adolescentes: O PL Larissa Manoela e a proposta de atualização do CC - Parte 2

segunda-feira, 22 de dezembro de 2025

Atualizado em 19 de dezembro de 2025 09:57

No primeiro texto desta duologia, apresentamos as alterações propostas pelo PL 3.914/23, conhecido como PL Larissa Manoela, ao ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente. Porém, a referida proposta legislativa, bem como o polêmico PL 4/25, que propõe a atualização do CC, também apresentam modificações aos dispositivos que tratam do usufruto e administração dos bens dos filhos crianças e adolescentes. A rigor, diante da importância da lei civil a respeito da matéria, diante da atual omissão do ECA, torna-se indispensável uma análise mais detida a respeito de suas propostas de alterações.

O PL 3.914/23 inicialmente previu a inclusão de um parágrafo único ao art. 1.689, para fazer constar a obrigação dos pais de "zelar pela preservação do patrimônio dos filhos"1. Acertadamente, a proposta pretende se aliar à reconhecida doutrina2, que entende ser objetivo do art. 1.689 a manutenção dos bens das crianças e dos adolescentes, sendo, em regra, inadmissível que a administração do patrimônio pelos pais implique na sua diminuição. Isso porque assumem apenas o papel de gestores dos bens, visto que os filhos menores de 18 anos são pessoas em desenvolvimento e destinatárias de proteção prioritária constitucionalmente estabelecida no art. 227, que condiciona toda a orientação sobre o tratamento a ser definido sobre a matéria. O PL 4/25, por sua vez, propõe modificações no art. 1.689 somente para retirar a menção ao "poder familiar" e substituí-lo por "autoridade parental", e alterar "menores" para "crianças e adolescentes". Os ajustes desses termos não foi objeto de preocupação do PL 3.914/23.

Já quanto à alteração proposta ao art. 1.6913, ambos os projetos de leis possuem o mesmo objetivo. Foram incluídas as vedações aos pais para (i) renunciar direitos que seus filhos sejam titulares, e (ii) alienar ou gravar de ônus real, além dos imóveis, que já é previsto atualmente, também as cotas e participações em sociedades empresárias, objetos preciosos e valores mobiliários. Manteve-se, no entanto, a possibilidade de esses atos ocorrerem mediante autorização judicial e com demonstração da necessidade ou evidente interesse da prole. Porém, não foi aproveitada a oportunidade para delimitar os parâmetros do que seria essa necessidade ou interesse, termos carregados de subjetivismo. Por um lado, de fato é inviável definir aprioristicamente a multiplicidade de situações concretas, mas, por outro, parece factível definir, ao menos, se necessidade se refere apenas à questão econômica do infante ou da própria família ou se relativo ao bem em si (como, por exemplo, evitar deterioração ou depreciação), bem como se interesse deve ser lido em exclusivo benefício do filho.

O estabelecimento de parâmetros seria, ainda, interessante para auxiliar na compreensão do que são atos de "simples administração" e quais deles requerem uma análise mais detida pelo Poder Judiciário. Isso pois, a gestão patrimonial por meio de holdings, por exemplo, tem se tornado muito comum, inclusive como forma de planejamento sucessório, razão pela qual não somente a alienação ou gravação de ônus real de cotas societárias poderão ser compreendidas enquanto excesso no dever parental, mas outras situações como a própria divisão das cotas também poderão revelar abuso.

Diz-se isso pois na entrevista concedida por Larissa Manoela em 20234, a artista revelou ter descoberto que em uma das empresas que foram abertas para administração da sua carreira, ela detinha apenas 2% das ações, enquanto seus pais possuíam os outros 98%. Além disso, também foi criada uma sociedade individual de responsabilidade limitada, na qual, embora Larissa fosse a única acionista, seus pais eram nomeados como administradores e lhes era concedido amplos poderes para "praticar quaisquer atos sem autorização da titular". Observa-se, portanto, que ambos os projetos de lei perderam a oportunidade de adotar medidas para evitar esse tipo de situação.

Nos casos em que a administração dos pais implicar em perigo ao patrimônio, também foi determinada a adoção de providências para a "segurança e conservação dos bens", mediante a inclusão do § 3º ao art. 1.691, por meio do PL 3.914/235, e do § 2º pelo PL 4/246. Além do pedido judicial poder ser realizado pelo Ministério Público ou pelo próprio filho, o projeto de atualização do CC ainda permite que seja realizado por qualquer parente da criança ou adolescente, o que foi previsto na versão da relatora7 do PL 3.914/23, mas suprimido em sua redação final.

Dentre as medidas passíveis de serem adotadas, ambos os projetos de lei elencam a prestação de caução ou fiança idônea8, provavelmente por inspiração do disposto no parágrafo único do art. 1.7459, que prevê a necessidade de o tutor prestar caução quando o patrimônio do tutelado for de valor considerável. Embora a caução seja uma alternativa válida, uma melhor sugestão foi a realizada pelo PL 4/25, que também incluiu a possibilidade de nomeação de administrador10 como forma de acompanhamento especializado. Apesar disso, uma estratégia ainda mais oportuna seria nomear contador ou administrador profissional, além de determinar a prestação de contas, não somente quando o patrimônio estiver em perigo, mas sempre que for verificado qualquer indício de que os genitores não o estão administrando em função do melhor interesse dos filhos.

O ponto mais crítico das alterações sugeridas consta, por sua vez, na possibilidade de os filhos exigirem contas dos pais sobre a administração que fizeram do seu patrimônio, que também é objeto de ambos os projetos de lei11 e já foi reconhecido pelo STJ no julgamento do REsp 1.623.098/MG12. Nos termos propostos, o pedido poderia ser realizado a partir da cessação da incapacidade civil, que extingue a autoridade parental, seja pela via da emancipação ou do alcance da maioridade civil. Não há óbice, contudo, para que a prestação de contas seja exigida em razão das outras causas de extinção da autoridade parental (art. 1.635 do CC), em benefício do melhor interesse de crianças e adolescentes, especialmente aquelas em que há perda ou suspensão motivada com base nas hipóteses elencadas no art. 1.638 do CC.

No entanto, o prazo previsto em ambas as sugestões de alteração legislativa é de apenas dois anos, não havendo justificativa plausível para lapso tão exíguo. Nem mesmo é possível aplicar a compreensão de que o referido prazo foi inspirado na tutela, pois o art. 206, § 4º do CC13 vigente prevê o prazo prescricional de quatro anos para qualquer pretensão relativa à tutela, contada da data de aprovação das contas prestadas pelo tutor.

Ademais, a própria Larissa Manoela, cujo relato público de sua situação inspirou e mobilizou as propostas legislativas, só conseguiu compreender, ou pelo menos, publicamente assumir os abusos que seus pais estavam realizando, quando estava com 22 anos, ou seja, quatro após a sua maioridade, e seis anos após ter sido emancipada (a artista foi emancipada com 16 anos). Não obstante, atualmente não há fixação de prazo prescricional para a exigência de contas dos genitores ou a anulação dos atos por eles praticados, razão pela qual a doutrina entende pela aplicação do prazo geral de 10 anos14, nos termos do art. 205 do CC. Observa-se, portanto, uma redução significativa do prazo, o que poderá comprometer a eficácia desses mecanismos, uma vez que se está diante de relações familiares que são essencialmente complexas. É difícil pensar que alguém entre 16 e 20 anos teria maturidade suficiente para ingressar com uma ação judicial em face dos pais, considerando toda a situação de desgaste emocional que isso pode ocasionar, bem como o enfraquecimento ou rompimento de vínculos de afeto fundamentais ao pertencimento e desenvolvimento da personalidade. Nesse sentido, melhor seria que as propostas previssem a possibilidade de exigir contas, sem fixar prazo para tanto, de modo a se manter a aplicação do prazo prescricional geral de 10 anos.

Como consequência direta da exigência de contas, ambos os projetos de lei também preveem que os pais responderão pelos prejuízos que causarem aos filhos por dolo ou culpa (culpa grave, no caso do PL 3.914/23). Trata-se de previsão expressa sobre a possibilidade de os genitores responderem civilmente caso a gestão que fizerem dos bens dos filhos ultrapasse os limites da autoridade parental, desvirtuando sua finalidade e prejudicando os filhos. Sem dúvidas, tal disposição reforça a responsabilidade parental e promove o melhor interesse de crianças e adolescentes. Embora essa possibilidade não seja atualmente proibida por lei, por força dos arts. 187 e 927, parágrafo único, do CC15, é de fundamental importância que tal hipótese de responsabilidade civil no direito de família tenha expressa menção legal, de modo a superar os obstáculos à sua recepção que se baseiam na monetarização das relações afetivas e impedem à sua concreta utilização. Cuida-se de natural decorrência da responsabilidade parental, constitucionalmente assegurada, que impõe aos pais o dever de gerir adequadamente e de forma diligente o patrimônio dos filhos sob sua autoridade.

De modo geral, as alterações realizadas pelos PL's 3.914/23 e 4/25 no CC são bastante similares em sua substância, com alguns detalhes pontuais que as diferenciam. A redação proposta merece ajustes, com o objetivo de o Direito não atuar apenas quando o abuso dos pais já for caracterizado, adotando medidas repressivas. No campo da parentalidade responsável, é indispensável a adoção de normas promocionais e preventivas16. É necessário ter mecanismos que evitem ou, ao menos, dificultem que os pais atuem de forma contrária ao interesse dos filhos, preservando o patrimônio por eles adquirido e evitando que qualquer situação de má gestão acabe se transformando em uma briga judicial, procurando manter a vida familiar em prol do melhor interesse da criança e do adolescente.

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1 "Art. 1.689 [...] Parágrafo único. Compete aos pais, enquanto no exercício do poder familiar, zelar pela preservação do patrimônio dos filhos."

2 Cf. TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena; BODIN DE MORAES, Maria Celina. Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República. v. 4. Rio de Janeiro: Renovar, 2014, p. 349-350; COMEL, Denise Damo. Do Poder Familiar. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 142; RETTORE, Anna Cristina de Carvalho; BORGES E SILVA, Beatriz de Almeida. Sobre um dos dilemas patrimoniais da autoridade parental: o usufruto legal previsto pelo art. 1.689, I do Código Civil. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; DADALTO, Luciana (Coords.). Autoridade parental: dilemas e desafios contemporâneos. Indaiatuba: Foco, 2019, p. 297.

3 PL n. 3.914/2023: "Art. 1.691. Não podem os pais renunciar aos direitos de que seus filhos sejam titulares, alienar ou gravar de ônus real os seus bens imóveis, cotas e participações em sociedades empresárias, objetos preciosos e valores mobiliários nem contrair, em nome deles, obrigações que ultrapassem os limites da simples administração, salvo por necessidade ou evidente interesse da prole, mediante prévia autorização do juiz"; PL n. 4/2025: "Art. 1.691. Não podem os pais renunciar aos direitos de que seus filhos sejam titulares nem alienar, ou gravar de ônus real os seus bens imóveis, sociedades empresárias, objetos preciosos e valores mobiliários nem contrair, em nome deles, obrigações que ultrapassem os limites da simples administração, salvo por necessidade ou evidente interesse da prole, mediante prévia autorização do juiz".

4 FANTÁSTICO. Larissa Manoela no Fantástico: veja entrevista completa. G1, 14 ago. 2023. Disponível aqui:  Acesso em: 10 mai. 2025.

5 "Art. 1.691. [...] § 3º Quando a administração dos bens do filho pelos pais acarretar perigo à preservação do patrimônio daquele, o juiz, a pedido do próprio filho ou do Ministério Público, poderá adotar as providências necessárias à segurança e à conservação dos bens do menor".

6 "Art. 1.691. [...] § 2° Quando a administração dos pais puser em perigo o patrimônio do filho, o juiz, a pedido do próprio filho, do Ministério Público ou de qualquer parente, poderá adotar as providências que estime necessárias para a segurança e conservação dos seus bens".

7 "Art. 1.691. [...] § 3º Quando a administração dos bens do filho pelos pais acarretar perigo à preservação do patrimônio daquele, o juiz, a pedido do próprio filho, do Ministério Público ou de qualquer parente, pode adotar as providências necessárias à segurança e conservação dos bens do menor." (Destacou-se).

8 PL n. 3.914/2023: "Art. 1.691. [...] § 4º Entre as providências judiciais de que trata o § 3º deste artigo, incluem-se as destinadas a condicionar a continuação da administração dos bens do filho pelos pais à prestação de caução ou de fiança idônea e a medida de que trata o art. 1.692 deste Código."

9 "Art. 1.745. [...] Parágrafo único. Se o patrimônio do menor for de valor considerável, poderá o juiz condicionar o exercício da tutela à prestação de caução bastante, podendo dispensá-la se o tutor for de reconhecida idoneidade".

10 PL n. 4/2025: "Art. 1.691. [...] § 3° Para a continuação da administração dos bens da criança e do adolescente, o juiz pode exigir caução ou fiança, inclusive nomear um administrador".

11 PL n. 3.914/2023: "Art. 1.691. [...] § 5º O filho, após ser extinto o poder familiar pela cessação da incapacidade civil, poderá exigir dos pais, no prazo de 2 (dois) anos, a prestação das contas relativas à gestão e à administração que eles exerceram sobre os seus bens, e os pais responderão, em razão de suas condutas, pelos danos e prejuízos que hajam causado por dolo ou culpa grave"; PL n. 4/2025: "Art. 1.691. [...] § 4° Ao término da autoridade parental, os filhos podem, no prazo de dois anos, exigir de seus pais a prestação de contas da administração que exerceram sobre os seus bens, respondendo os pais por dolo ou culpa, pelos prejuízos que sofreram".

12 "[...] 6. Partindo-se da premissa de que o poder dos pais, em relação ao usufruto e à administração dos bens de filhos menores, não é absoluto, deve-se permitir, em caráter excepcional, o ajuizamento de ação de prestação de contas pelo filho, sempre que a causa de pedir estiver fundada na suspeita de abuso de direito no exercício desse poder, como ocorrido na espécie" (STJ, Recurso Especial n. 1.623.098/MG, Terceira Turma, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julg. 13 mar. 2018, publ. 23 mar. 2018).

13 "Art. 206. Prescreve: [...] § 4º Em quatro anos, a pretensão relativa à tutela, a contar da data da aprovação das contas".

14 TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena; BODIN DE MORAES, Maria Celina. Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República. v. 4. Rio de Janeiro: Renovar, 2014, p. 354.

15 Cabe destacar que a considerar que tal responsabilização pode igualmente decorrer do abuso do direito previsto no art. 187 do vigente Código Civil. Parece, no entanto, que as propostas legislativas consideram ato ilícito a gestão contrária aos interesses dos filhos crianças e adolescentes.

16 Nesse sentido, vale mencionar a Lei n. 14.623, de 17 de julho de 2023, que institui o dia nacional de conscientização sobre a paternidade responsável, a ser comemorado, anualmente, em 14 de agosto; e, a Lei n. 14.826, de 20 de março de 2024, que instituiu a parentalidade positiva e o direito ao brincar como estratégias intersetoriais de prevenção à violência contra crianças e altera a Lei n. 14.344, de 24 de maio de 2022.