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A gestão patrimonial parental e o melhor interesse de crianças e adolescentes: O PL Larissa Manoela e a proposta de atualização do Estatuto da Criança e do Adolescente - Parte 1

segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

Atualizado em 12 de dezembro de 2025 11:11

Em agosto de 2023, a atriz, cantora e influenciadora digital Larissa Manoela revelou, em uma entrevista ao Fantástico1, que vinha enfrentando problemas com os pais devido à gestão que eles fizeram da sua carreira, iniciada com apenas quatro anos de idade. Dentre os relatos da artista, que à época já tinha 22 anos, estavam (i) o recebimento de apenas uma mesada e a necessidade de solicitar dinheiro aos pais para compras adicionais como passagens aéreas e idas à praia; (ii) a constituição de pessoas jurídicas para gerir a carreira de Larissa, cuja administração era feita quase que exclusivamente pelos genitores; e (iii) a dificuldade de retirar os pais do controle das suas finanças.

A partir da repercussão do caso, surgiram alguns PLs com o objetivo de alterar o ECA ou o CC, para impedir a ocorrência de abusos por parte dos genitores na administração dos bens dos filhos. Dentre eles, estão os PLs 3.914/23, 3.916/23, 3.917/23, 3.919/23, 3.929/23 e 3.997/23. Em março de 2025, o PL 3.914/23 - conhecido como "Projeto de Lei Larissa Manoela" - foi aprovado na Câmara dos Deputados e seguiu para avaliação do Senado, onde aguarda apreciação.

Em razão disso, bem como de todas as discussões envolvendo a exposição de crianças e adolescentes na internet - conforme amplamente divulgado em denúncia realizada pelo youtuber Felca em agosto de 20252 -, torna-se necessário avaliar não só os limites e desafios envolvidas nessa exposição, de acordo com o que prevê a lei 15.211/25 (apelidada de ECA Digital)3. É preciso, ainda, traçar parâmetros para a proteção do patrimônio das crianças e adolescentes que se tornam famosos, como pretende o PL Larissa Manoela, com vistas a dar efetividade à proteção integral e prioritária desses sujeitos, nos termos do art. 227 da Constituição da República.4

Atualmente, os pais devem atuar como representantes ou assistentes dos filhos menores de 18 anos na celebração de negócios jurídicos, conforme determinado pelos arts. 1.634, VIIe 1.690 do CC6. Além disso, os arts. 1.689 a 1.693 versam especificamente sobre o usufruto e a administração concedidos aos pais sobre os bens dos filhos. De modo geral, a regra é que os pais, enquanto estiverem no exercício da autoridade parental, deverão atuar em nome dos filhos e serão responsáveis por administrar o patrimônio por eles adquirido. Quanto a qualquer eventual conflito entre eles, a única disposição existente é a do art. 1.6927, que determina a possibilidade de o juiz nomear curador especial aos filhos. O ECA, por sua vez, não possui disposições específicas sobre o tema.

Fato é que os dispositivos do CC foram criados para uma realidade em que era difícil crianças e adolescentes adquirirem patrimônio, a não ser por doações ou heranças deixadas por outros parentes, valores decorrentes do serviço como menor aprendiz, pensões, seguros ou previdências recebidas em razão do falecimento de algum dos genitores ou outro parentes8. Atualmente, no entanto, é comum que eles fiquem popularmente conhecidos por meio de manifestações artísticas e esportivas, como atuação, canto, prática de esportes e, mais recentemente, influência digital e publicidade. A influenciadora Viih Tube, por exemplo, revelou que sua filha, Lua, de apenas dois anos, possui bem mais de R$ 1 milhão em sua conta bancária, e explicou que "[o dinheiro] vem dos trabalhos que ela participa. A minha filha já trabalha com publicidade dentro das minhas redes comigo e ela tem o valor dela, que eu acho que ela merece".9 

Nesse sentido, é possível observar que são grandes as chances de crianças e adolescentes alcançarem patrimônios milionários, razão pela qual a administração desses bens requer maior atenção, principalmente para se evitar abusos tais quais aqueles supostamente cometidos pelos pais de Larissa Manoela. Por essa razão, é preciso avaliar cuidadosamente as sugestões apresentadas pelo legislativo e identificar se elas promovem o melhor interesse dos infantes.

A versão original do PL 3.914/23 propunha apenas o acréscimo do art. 244-C ao ECA10, prevendo pena de detenção e multa para os indivíduos que praticassem atos com o objetivo de obter vantagem econômica em prejuízo dos recursos econômicos de crianças e adolescentes. Porém, durante a tramitação, foram apensados os PLs 3.929/23 e 3.997/23, e a versão aprovada pela Câmara dos Deputados chegou à redação final sem a disposição penal, mas com o acréscimo do art. 69-A ao ECA e mudanças nos arts. 1.689 e 1.691 do CC.

A alteração do ECA prevê o direito à proteção de crianças e adolescentes contra condutas abusivas dos pais ou responsáveis que detenham o poder de gestão do seu patrimônio11. Um primeiro ponto que merece destaque foi a previsão do art. 69-A, caput, de estabelecer que os recursos poderão ser oriundos de atividades "de ordem artística, esportiva, intelectual, científica ou qualquer outra", ampliando justamente a compreensão de que, atualmente, crianças e adolescentes possuem diversas formas de obtenção de renda, diferentes das usuais como doações, heranças, e as demais citadas anteriormente. É previsto expressamente, portanto, que os valores adquiridos por essas pessoas em desenvolvimento por meio do seu trabalho deverão ser protegidos de qualquer forma de abuso.

No § 1º do art. 69-A, do ECA, a conduta abusiva é definida como aquela decorrente de utilização indiscriminada dos recursos econômicos, apropriação indébita ou vedação ao acesso pelas crianças e adolescentes sem justo motivo para tanto12. Apesar de ser um bom dispositivo, é preciso levar em consideração que a melhor interpretação é de que se trata de um rol exemplificativo, uma vez que outras tantas condutas abusivas não foram citadas, como (i) o desvio de finalidade, quando os pais utilizarem o patrimônio para fins que não beneficiam diretamente os filhos; (ii) má administração que ocasione a dilapidação do patrimônio; e (iii) impedimento da participação dos filhos nos negócios quando esses já tiverem maturidade suficiente para tanto, sobretudo no caso de adolescentes relativamente incapazes. Convém sublinhar que o próprio legislador, já cioso dessa possibilidade, excluiu expressamente o usufruto e a administração dos pais dos valores auferidos por filhos maiores de 16 anos no exercício de atividade profissional e os bens com tais recursos adquiridos (art. 1.693, II, CC), o que, inclusive, pode ensejar sua emancipação legal, caso tenham economia própria, nos termos do art. 5º, parágrafo único, inciso V. Isso demonstra a intenção de proteger o patrimônio do adolescente, de forma que, diante desse panorama, restringir apenas às hipóteses citadas no PL seria reduzir o âmbito de proteção das crianças e dos adolescentes, permitindo que outras formas de abusos fiquem sem as devidas consequências jurídicas.

Importante medida protetiva a ser implementada foi prevista no § 2º do art. 69-A13, que pretende estabelecer prestação de contas pelos genitores, que deverá acontecer bienalmente ou no prazo determinado em juízo. Não existem explicações sobre a escolha do prazo de dois anos, de modo que a inspiração parece ser apenas o aproveitamento do lapso temporal determinado no art. 1.757 do CC14, sobre a prestação de contas do tutor. Cabe ressaltar que pode haver certa dificuldade nessa comprovação, já que é improvável que os pais conservem todos os comprovantes e notas fiscais daquilo que adquiriram para os filhos ou para a família como um todo. Assim, embora inafastável a prestação de contas, a depender do contexto, sua apuração poderia ser abrandada, sendo suficientes, por exemplo, evidências dos valores recebidos pelos filhos e os gastos com escola, viagens, eventual contratação de agências e empresários, além do seu envolvimento nos negócios quando já demonstrarem maturidade para tanto. O objetivo do aludido dispositivo deve ser acompanhar a gestão patrimonial parental, garantindo a utilização dos recursos em prol do melhor interesse da criança ou do adolescente, de modo a permitir, uma vez identificados sinais de abuso, a adoção de medidas protetivas.

Finalmente, o § 3º do art. 69-A15 prevê que, se for constatada qualquer conduta abusiva, o juiz poderá determinar medidas de proteção como a restrição de acesso aos recursos financeiros das crianças e adolescentes, a constituição de reserva especial com parcela dos valores adquiridos, ou a realização de auditoria periódica nas contas. Problemático, contudo, é o fato de essas medidas serem determinadas apenas em caso de a conduta abusiva já ter sido identificada. Um grande exemplo disso é a reserva de parcela dos valores adquiridos. A proposta perdeu a chance de se inspirar na lei francesa sobre influenciadores mirins16, que prevê a obrigatoriedade de 90% dos valores adquiridos pelos trabalhos das crianças e adolescentes serem depositados em conta bancária e ficarem bloqueados até a maioridade. Essa medida é importante, e deveria ser aproveitada na experiência brasileira, uma vez que o patrimônio é da criança ou do adolescente, e não dos pais, que são meros gestores, em razão da situação de os filhos serem considerados pessoas em desenvolvimento. Desse modo, a eles deveria ser garantido o direito de ter os seus bens preservados durante a infância e juventude para que lhe sejam entregues quando da maioridade.

Observa-se, diante das propostas de alteração ao ECA, que há uma preocupação com a abusividade da conduta dos genitores no âmbito da gestão dos bens dos filhos. Porém, a referida proposta legislativa deveria dar mais atenção à necessidade de preservação desses bens, com o objetivo de garantir a participação das crianças e dos adolescentes na administração do seu patrimônio, uma vez que, alcançada a maioridade, essa gestão será por eles exercida. Trata-se, em linhas gerais, de uma boa iniciativa, que deverá, no entanto, ser aprimorada no âmbito do Senado Federal de modo a adquirir maior efetividade na garantia dos direitos da criança e do adolescente.

Finalizadas as discussões sugeridas pelo PL 3.914/23 no Estatuto da Criança e do Adolescente, necessário avaliar também as alterações propostas para o CC pelo mesmo projeto, bem como aquelas previstas no PL 4/25, que tem por objetivo profunda e açodada atualização da vigente lei civil. Este tema será abordado no próximo texto desta coluna.

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1 FANTÁSTICO. Larissa Manoela no Fantástico: veja entrevista completa. G1, 14 ago. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 10 mai. 2025.

2 FELCA. Adultização. 49min56s. Youtube, 06 ago. 2025. Disponível aqui. Acesso em: 08 ago. 2025.

3 O ECA Digital, além de dispor sobre as obrigações de aplicativos e empresas de tecnologia na proteção de crianças e adolescentes no ambiente virtual, também prevê, em seu art. 6, §1º, ser de responsabilidade dos pais e demais "pessoas que se beneficiam financeiramente da produção ou distribuição pública de qualquer representação visual de criança ou adolescente" atuarem para evitar que elas tenham contato com exploração sexual, pornografia, promoção de jogos de azar e outros conteúdos inadequados para os sujeitos em desenvolvimento.

4 "Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão."

5 "Art. 1.634.  Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos: [...] VII - representá-los judicial e extrajudicialmente até os 16 (dezesseis) anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento".

6 "Art. 1.690. Compete aos pais, e na falta de um deles ao outro, com exclusividade, representar os filhos menores de dezesseis anos, bem como assisti-los até completarem a maioridade ou serem emancipados".

7 "Art. 1.692. Sempre que no exercício do poder familiar colidir o interesse dos pais com o do filho, a requerimento deste ou do Ministério Público o juiz lhe dará curador especial".

8 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: família e sucessões. 25. ed., rev., atual. e reform. Barueri: Atlas, 2025, p. 269.

9 AYA, Giullyana. Viih Tube diz que Lua, filha de 1 ano, é mais rica do que ela; entenda. CNN, 14 jan. 2025. Disponível aqui. Acesso em: 04 abr. 2025.

10 "Art. 244-C: Praticar ato que vise obter vantagem econômica em prejuízo de criança ou adolescente, aproveitando-se de sua deficiência de julgamento e experiência, que configure dano a seus bens, valores, direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades enquanto pessoa em desenvolvimento: Pena - detenção de seis meses a dois anos e multa, além do bloqueio de bens e valores fruto da prática criminosa, em favor da vítima, ressalvado o direito de terceiro de boa-fé".

11 "Art. 69-A. As crianças e os adolescentes têm direito à proteção contra condutas abusivas dos pais, dos responsáveis legais ou de outras pessoas que detenham poder de gestão patrimonial, financeira e econômica dos recursos oriundos de suas atividades, de ordem artística, esportiva, intelectual, científica ou qualquer outra".

12 "[...] § 1º Consideram-se conduta abusiva na gestão patrimonial, financeira e econômica dos recursos oriundos das atividades da criança ou do adolescente a utilização indiscriminada e a apropriação indébita desses recursos, bem como a vedação do acesso, sem justo motivo, ao proveito econômico obtido pela criança ou pelo adolescente".

13 "Art. 69-A. [...] § 2º A gestão patrimonial, financeira e econômica dos recursos oriundos das atividades da criança ou do adolescente deve ser realizada de forma responsável, com vistas ao pleno atendimento de seus interesses, à sua formação e ao seu bem-estar, observados os princípios da legalidade e da transparência, com a devida a prestação de contas, no mínimo, bienalmente, ou nos termos de decisão judicial".

14 "Art. 1.757. Os tutores prestarão contas de dois em dois anos, e também quando, por qualquer motivo, deixarem o exercício da tutela ou toda vez que o juiz achar conveniente. Parágrafo único. As contas serão prestadas em juízo, e julgadas depois da audiência dos interessados, recolhendo o tutor imediatamente a estabelecimento bancário oficial os saldos, ou adquirindo bens imóveis, ou títulos, obrigações ou letras, na forma do § 1º do art. 1.753".

15 "Art. 69-A. [...] § 3º Constatada conduta abusiva na gestão patrimonial, financeira e econômica dos recursos oriundos das atividades da criança ou do adolescente, poderá o juiz determinar, além de outras medidas de proteção previstas nesta Lei e em outros diplomas legais: I - restrição de acesso aos recursos financeiros oriundos das atividades da criança ou do adolescente, com vistas a garantir a utilização desses recursos em seu benefício; II - constituição de reserva especial de parcela dos recursos financeiros oriundos das atividades da criança ou do adolescente, com vistas a garantir a preservação de seu patrimônio; III - realização de auditoria periódica nas contas, bens e investimentos relacionados a recursos oriundos das atividades da criança ou do adolescente".

16 Em 2020, foi aprovada na França a Lei n. 2020/1266 que equipara o trabalho de crianças e adolescentes influenciadores digitais aquele realizado por atores e atrizes mirins e modelos, e prevê regras sobre os contratos pactuados e os limites e restrições nessa atuação (MOYSÉS, Adriana. Atividade de influenciadores mirins nas redes sociais tem regras definidas na França. RFI, 21 fev. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 22 mar. 2025.