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Técnica de controle de constitucionalidade das normas dos Conselhos profissionais de saúde

segunda-feira, 29 de maio de 2023

Atualizado às 11:24

As ações de saúde no Brasil são fortemente impactadas pelas normas expedidas pelos Conselhos profissionais de saúde. Não é exagerado concluir que há uma concorrência normativa entre agências reguladoras, como a ANVISA, por exemplo, e os Conselhos profissionais de saúde.

Embora atuem como agentes reguladores da profissão, os Conselhos acabam por regular as próprias ações de saúde no país. Um bom exemplo disso está na recente polêmica para a utilização terapêutica de produtos à base de canabidiol. Já há algum tempo, a ANVISA vem autorizando a distribuição desses medicamentos no Brasil. Diante do grau de risco atrelado à utilização desses medicamentos, a ANVISA determinou a apresentação de receita médica para aquisição. Em 2022, o Conselho Federal de Medicina editou o resolução 2.324, a qual "aprovou o uso do canabidiol para tratamento" de certas doenças. A resolução foi suspensa temporariamente, diante da abertura de consulta pública (vide Resolução CFM 2326/2022).

Independentemente da suspensão, fato é que, caso volte a vigorar a norma, surgirá enorme limitação para a autorização da ANVISA. Ainda que não submetida hierarquicamente ao CFM, há alguma diminuição da eficácia da norma da ANVISA. É que, se a norma do CFM diminui o espaço para profissionais médicos indicarem a medicação a pacientes, e a prescrição médica é condição para acesso ao medicamento, haverá, por consequência, a própria inutilização de parcela da norma da ANVISA, em razão de limitadores postos pela resolução do CFM. Essa limitação irá impactar tanto o sistema público, quanto o privado, já que em ambos a prescrição da medicação caberá ao profissional médico.

Não quero aqui fazer um juízo de valor quanto ao acerto da norma do CFM, mas sim chamar a atenção para um fenômeno pelo qual as normas de Conselhos profissionais têm força para afetar todo o sistema de saúde brasileiro, indo muito além da esfera circunscrita à profissão.

Mas o tema da participação dos Conselhos profissionais no sistema de saúde brasileiro não estava à mesa, quando de sua criação. E isso porque a saúde só passou a ser efetivamente um sistema no Brasil com o advento da Constituição de 88. Os Conselhos profissionais, por sua vez, foram criados muito antes, e por isso, não havia com antever essa relevância estrutural. Sua concepção se voltou a desenhar requisitos mínimos para o exercício das profissões de saúde, especialmente numa época em que a existência de práticos (pessoas sem formação específica, mas que exerciam cuidados de saúde a partir de certo conhecimento empírico) era uma realidade. Assim, esses Conselhos criavam normas que modulam o exercício das profissões e, simultaneamente, julgavam e sancionavam os profissionais que as descumprissem.

Para se ter ideia disso, basta olhar os Conselhos Regionais e Federal de Medicina, criados pela Lei nº 3.268, em 1957. Segundo o artigo 2º da referida Lei, a competência dos Conselhos era a de zelar pela ética profissional, bem como pelo prestígio e bom conceito da profissão. Mesmíssima dicção tem a Lei nº 4.324 de 1964, criadora dos Conselhos Federal e Regionais de Odontologia. A preocupação com a saúde, individual e coletiva, era reflexa aos Conselhos. Afinal, como autarquias, eram parte da estrutura estatal, a qual não tinha como finalidade o atendimento à saúde da população. Em resumo, a saúde não era um direito do cidadão a ser satisfeito pelo Estado, não sendo, à época, de competência normativa dessas entidades profissionais.

Mas isso mudou radicalmente quando do advento da Constituição de 88. A saúde não só se consolidou como um direito, mas de categoria fundamental. Além de previsão expressa como direito social (que é direito fundamental de segunda geração), a Constituição cuidou de direcionar o dever de atendimento a esse direito ao Estado (artigo 196).

Mais do que impor ao Estado o dever de satisfação do direito à saúde do cidadão, a Constituição cuidou de definir como o Estado haveria de atuar para cumprir sua missão. No próprio artigo 196, a Constituição coloca a prestação de serviços voltados à recuperação do indivíduo como última alternativa. À frente estão ações de proteção, promoção e promoção da saúde. Portanto, é dever do Estado criar camadas para que o indivíduo tenha uma vida saudável e que não adoeça. Se tais objetivos não forem alcançados, a assistência integral surge como obrigação prestacional.

Além disso, a Constituição, ainda no artigo 196 (que se vê, de conteúdo riquíssimo), dispõe que é dever do Estado garantir, mediante políticas públicas (sociais e econômicas), aos cidadãos acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde. E aqui está a chave para se compreender os contornos da atuação normativa dos Conselhos profissionais de saúde.

Seguem eles como autarquias integrantes da estrutura estatal. Sua autonomia se limita às esferas administrativa e financeira. Sua função, como integrantes do Estado que o são, também é a satisfação do direito à saúde (a ser exercida dentro de sua função ético-normativa), não estando mais voltados simplesmente a garantir "bom nome e prestígio profissional". A regulação da atividade profissional é agora é meio para o atingimento da finalidade de consagração do direito fundamental à saúde. Ou seja, não existe autonomia ou liberdade normativa aos conselhos de profissões de saúde. Suas normas não mais são "decisões interna coporis".

Os Conselhos profissionais, diante da virada constitucional de consagração da saúde como direito fundamental a ser satisfeito pelo Estado, passam, assim, a ser parte integrante do SUS. Aliás, o inciso II do artigo 200 da Constituição deixa evidente que uma das competências do SUS é a ordenação da formação dos recursos humanos na área da saúde. A ordenação, sinônimo de regulação, tem como parâmetro a construção das profissões para que os desígnios do SUS sejam atendidos. É função a ser exercida tanto no período da graduação (técnica ou profissional), quanto do exercício profissional, moldando sua execução de maneira sinérgica às finalidades do SUS.

Compreendidas as condições constitucionais, que conformam as atividades dos Conselhos profissionais de saúde às normas do SUS, tem-se adequado parâmetro de controle de constitucionalidade das normas editadas pelos Conselhos. Está-se a falar que as normas reguladoras editadas por essas autarquias devem ir ao encontro das finalidades do SUS, em especial: acesso universal e igualitário com prioridade às ações de promoção e prevenção da saúde, sem prejuízo das assistenciais. Dessa forma, normas que limitarem o acesso às ações e serviços de saúde hão de ser consideradas inconstitucionais, ainda que editadas anteriormente à Constituição de 88 (diz-se aqui da não recepção dessas normas pelo ordenamento jurídico vigente). Esse raciocínio, aliás, é aplicável também às leis anteriores à Constituição, não raramente utilizadas como base de legitimidade para a edição de normas reguladoras por parte dos Conselhos.

Uma das formas adequadas para o exercício desse controle de constitucionalidade é a análise da motivação do ato de resolução. Os Conselhos devem explicitar e comprovar as razões pelas quais as normas que editam estão em consonância com os objetivos do SUS. Certamente, não devem ser consideradas inconstitucionais aquelas normas que hoje vigem, mas não estão devidamente motivadas. No entanto, se desafiadas no âmbito do Judiciário, o ônus de demonstrar a compatibilidade com os objetivos do SUS recairá sobre os Conselhos que editaram normas desmotivadas. De outro lado, se devidamente motivadas, caberá a quem entender em contrário, provar em Juízo que a motivação apresentada na norma é inverídica e que, ao invés de colaborar, é obstáculo à missão estatal da satisfação do direito à saúde.