Responsabilidade penal do médico e crimes contra a dignidade sexual: Intercâmbio entre Direito Penal, crimes sexuais e Direito Médico - parte I
segunda-feira, 3 de novembro de 2025
Atualizado em 31 de outubro de 2025 15:12
1. Introdução
Atualmente, é possível constatar o aumento do número de denúncias relacionadas a crimes de natureza sexual perpetrados, supostamente, no contexto hospitalar, em unidade de saúde, em clínicas, etc. A enorme repercussão dessas acusações, que nem sempre são legítimas, pode ser compreendida quando se percebe que esse tipo de delito reside justamente no ponto de contato entre Direito Penal, crimes sexuais e Direito Médico, três áreas do conhecimento que, há muito, vêm despertando a atenção, interesse e curiosidade de operadores do direito, da academia e, claro, da comunidade em geral.
Além disso, exatamente por estar situado nessa interseção, acaba por herdar obrigatoriamente importantes características de cada um destes domínios, o que faz do crime sexual praticado por este(a) profissional da saúde um delito sui generis. Há que se conhecer, portanto, sua essência, isto é, seus atributos, suas particularidades e seus elementos constitutivos.
Não por outra razão, no dia 13/8/25, essa temática foi debatida em reunião do IMKN - Instituto Miguel Kfouri Neto. O encontro, intitulado "Responsabilidade penal médica e delitos contra a dignidade sexual", permitiu a elaboração de artigos que buscaram seguir o que foi apresentado e discutido. Este primeiro texto, que inaugura, assim, uma tríade de artigos, apresentará as conexões necessárias que existem - e que por isso precisam ser bem conhecidas - entre Direito Penal, crimes sexuais e Direito Médico. O segundo e o terceiro, que serão publicados na sequência, enfrentarão, respectivamente, este tema sob a perspectiva da acusação e, então, sob a perspectiva dos direitos fundamentais do(a) profissional da saúde.
Para fins ilustrativos, podemos mencionar os seguintes crimes que, de alguma maneira, circunvizinham perigosamente o dia a dia do médico(a): o estupro (art. 213, CP) e o estupro de vulnerável (art. 217-A, CP), a importunação sexual (art. 215-A, CP) e a violação sexual mediante fraude (art. 215, CP) e, ainda, os (não mais) recentes crimes de registro não autorizado de nudez (art. 216-B, CP) e divulgação de cena de nudez (art. 218-C, CP)1. Todos estes crimes, aliás, foram criados para a proteção da liberdade sexual do indivíduo, mais especificamente para a proteção da liberdade que as pessoas têm de escolher, sem qualquer embaraço, seus parceiros(as).
2. O dolo e a necessidade de se considerar também os elementos caracterizadores da boa prática médica
Todos esses crimes são punidos apenas a título de dolo, ou seja, exige-se consciência e vontade de praticar o tipo penal, conforme art. 18, I, do Código Penal. Isso quer dizer que a falta de cuidado e de zelo não pode definir o destino do médico(a). Também não pode ser decisivo o cumprimento (ou não) de normas técnicas já sedimentadas pela Medicina. Precisará importar, aí sim, e antes de tudo, a vontade do médico(a). Em outras palavras, nestes casos, será necessário investigar, discutir e compreender se o profissional agiu com vontade de praticar tudo aquilo2 que estabelece este ou aquele crime contra a dignidade sexual.
É preciso logo destacar, então, que, se o direito médico sempre se preocupou com o "erro médico", este vinculado à boa prática médica, a responsabilização criminal pela prática de um destes crimes retirará o foco da culpa e o deslocará para a vontade de (fazer algo).
Além disso, esse dolo, de difícil percepção e demonstração, ganhará contornos ainda mais problemáticos quando tratamos do dolo de um médico no seu ambiente de trabalho, especialmente porque, não raras vezes, conduta médica e conduta típica podem se confundir. Por exemplo, o toque em um(a) paciente pode ser um exame de rotina e, ao mesmo tempo, a prática de um ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a lascívia do médico(a). Também, a apalpação dos seios de uma paciente pode ser uma medida preventiva e necessária e, ainda, a prática de um ato libidinoso mediante fraude, haja vista que, em tese, o médico poderia induzir a paciente em erro. Nesse enredo, será justamente o dolo que aproximará o profissional da saúde de um crime ou, quem sabe, de uma conduta médica autorizada por lei, isto é, de uma conduta absolutamente lícita.
É dizer, pois, a partir dessas primeiras linhas, que a complexidade deste elemento subjetivo (do dolo) tem o condão de ilustrar a complexidade da investigação de crimes sexuais quando praticados por médicos(as) durante e em seus ambientes de trabalho.
Por outro lado, mesmo que a diligência do médico(a) possa ser pouco relevante para a definição de sua vontade, parece ainda recomendável e necessário recorrermos aos elementos que habitualmente são considerados para a caracterização da boa conduta médica para a apuração do dolo e, desta maneira, para apuração da responsabilidade criminal. São eles: análise da competência e autorização do profissional, intenção curativa, indicação da intervenção e lex artis.
Cabe argumentar que as intervenções no paciente têm eficácia justificante "quando o profissional as regras, os procedimentos e as diretrizes acatados pela ciência médica, já que, de outro modo, não poderíamos falar propriamente no cumprimento de um dever, sobretudo quanto ao seu modo de execução"3. É afirmar, na verdade, que um médico(a) está autorizado(a) a intervir principalmente porque a lex artis4, por si só, guarda consigo uma finalidade curativa intrínseca. Assim, a observância da boa técnica médica, ainda que não possa servir para desenhar a vontade do médico, acaba, certamente, dando sinais indicadores da sua intenção - sobretudo quando esse sinal é dialogado com outros tantos elementos de informação.
Sob outro ângulo, a inobservância destas normas técnicas e de protocolos pode impor - de forma legítima, aliás - um ônus de explicação, isto é, um ônus de o médico esclarecer que, a despeito do uso de procedimentos incomuns, não deixou de querer e buscar bem-estar do(a) paciente. Ora, na medida que um tratamento ou uma intervenção não constitui um procedimento medicamente consolidado, este ou esta não pode(ria) ser objetivamente indicado(a), não podendo, assim, constituir prontamente um tratamento ou intervenção médica curativa5 e, como consequência natural, não pode(ria) servir para sinalizar de imediato a vontade curativa, é dizer, a busca pelo bem-estar do(a) paciente. A conexão estreita entre Direito Penal, crimes contra a dignidade sexual e Direito Médico, todavia, ainda não para por aqui.
3. Entre o Direito Penal e o Direito Médico: Consentimento, dever de esclarecimento e TCLE - termo de consentimento livre e esclarecido
A utilização destes procedimentos não convencionais pelo médico(a) também não pode indicar, de pronto, que este profissional agiu movido por uma vontade delitiva. Há que se ter (muita) cautela. Daqui observamos, então, mais uma aproximação entre esses ramos do direito.
As intervenções médicas que ocorrem em campos ainda não cobertos suficientemente pelos conhecimentos e experiências da Medicina "constituem, é verdade, ofensas aos pacientes, mas, também, constituem ofensas que podem ainda ser justificadas pelo consentimento"6. E este consentimento, bem se sabe, não é só um dos alicerces do Direito Médico como é, igualmente, uma das causas supralegais que excluem a ilicitude da conduta ou até mesmo a tipicidade do ato médico.
Nesse horizonte de troca entre essas distintas áreas, em termos de responsabilidade penal, só poderá ser válido, portanto, o consentimento atual, livre, sério e, sobretudo, dado por paciente capaz e esclarecido, ou seja, um consentimento que terá sua validade dependente diretamente do cumprimento do dever de esclarecimento pelo próprio médico - dever esse, por seu turno, bastante sedimentado pelo Direito Médico.
Por óbvio, este esclarecimento precisa ser anterior à prática da conduta médica, mas, mesmo que assim aconteça, não resolverá, em absoluto, a dificultosa e necessária prova do já citado dolo. Eventual processo ainda carecerá de registros que possam ser considerados e avaliados pelo magistrado(a).
Por isso, o processo comunicacional entre médico e paciente e, ainda, o termo de consentimento livre e esclarecido adentra ao universo criminal para resguardar médico(a) e paciente e, ainda, garantir um julgamento justo. Afinal, a previsão textual de tudo que foi acordado, prometido e realizado certamente qualificará a decisão final. O magistrado, desta maneira, terá condições de confrontar as provas produzidas e as alegações das partes e, ainda, de compreender, com mais objetividade e segurança, a vontade daquele que trabalha para cuidar de vidas, mas que, certa vez, acabou figurando como réu de uma ação penal.
4. Reflexões para debates futuros
Medidas preventivas nunca foram tão relevantes para a definição da existência ou ausência do dolo. Também poucas vezes se mostraram relevantes para, em solo processual, produzirmos uma decisão judicial adequada. Neste panorama, contudo, ainda que essas precauções sejam válidas e necessárias, não podemos perder de vista que estes crimes contra a dignidade sexual continuam sendo dolosos e que o CPP determina - e o faz expressamente - que o ônus da prova ainda é do Ministério Público. É dizer, com isso, que a incerteza - objetiva - nestes casos precisará prevalecer, sempre, em favor do profissional da saúde.
Além do mais, a conexão visceral entre os elementos do Direito Penal e do Direito Médico precisa ficar cada vez mais clara. Trata-se, pois, de uma condição para se compreender adequadamente a responsabilidade criminal de um profissional da saúde. Em suma, se não apreendermos bem os pilares do direito penal e do direito médico, provavelmente as decisões - notadamente as sentenças - se mostrarão precárias em termos de fundamentos, o que se demonstrará divorciado do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.
Também não podemos deixar de lado as singularidades dos crimes contra a dignidade sexual, que da mesma forma precisam se vincular às bases destes direitos. Assim, a título de provocação, a clandestinidade, muito discutida nos processos que julgam a prática destes crimes, pode precisar passar por uma ressignificação ou, melhor, pode precisar ser adaptada a esse cenário distinto. Isso porque a nossa jurisprudência, quando atribui valor especial à palavra da vítima, está considerando, não raras vezes, a mulher inserida em uma sociedade desigual, que coloca homem e mulher em desiguais (e injustas) posições. Entretanto, quando tratamos de crimes sexuais praticados, em tese, por médicos(as), estamos tratando, agora, da relação médico-paciente, que pode, porventura, justificar outras respostas e saídas jurídicas.
Finalmente, precisamos defender que o estudo dessa conexão umbilical entre direito penal, crimes contra a dignidade sexual e direito médico precisa crescer tanto quanto crescem as denúncias - que nem sempre revelam eventos verídicos - contra médicos. Não apenas para proteger esses profissionais, mas, principalmente, para manter sólida todo nosso sistema de saúde - que, como sabemos, já sofre com diversos outros problemas.
1 A título de exemplo, os delitos de registro de cena de nudez e divulgação de cena de nudez podem ser materializados, eventualmente, se e quando consideramos as diversas postagens de pacientes nas redes sociais que fazem médicos e outros profissionais na saúde.
2 O dolo é o conhecimento de todos os elementos que integram o fato típico e a vontade de praticá-lo - ou, pelo menos, de assumir o risco de sua produção (DOTTI, René Ariel. Curso de Direito Penal - Parte Geral. 6 ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2018, p. 466). Neste sentido, no caso, por exemplo, do crime de divulgação de cena de nudez, o médico deverá ter conhecimento do dissenso do(a) paciente, pois esse elemento também deve estar abrangido pela vontade do profissional da saúde. Aliás, equivocando-se o médico, se este imagina que houve o consentimento do(a) paciente, pode incorrer em algum tipo de erro (BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Comentado. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 1749.
3 RODRIGUES, Álvaro da Cunha Gomes. Responsabilidade Médica em Direito Penal - Estudo dos Pressupostos Sistemáticos. Editora Almedina: Coimbra, 2007, p. 316.
4 As lex artis constituem, em suma, um complexo de regras e princípios profissionais, acatados genericamente pela ciência médica, num determinado momento histórico, para casos semelhantes, ajustáveis, todavia, às concretas situações individuais. Trata-se, enfim, das regras do know-how sobre o tratamento médico que devem estar ao alcance de qualquer clínico no âmbito de sua atividade profissional (RODRIGUES, Álvaro da Cunha Gomes. Responsabilidade Médica em Direito Penal - Estudo dos Pressupostos Sistemáticos. Editora Almedina: Coimbra, 2007, p.54)
5 FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. Aspectos jurídicos-penais dos transplantes. Dissertação de Mestrado. Universidade Católica Portuguesa. Editora Porto, 1995, p. 68.
6 DIAS, Jorge Figueiredo; MONTEIRO, Jorge Sinde. Responsabilidade Médica em Portugal. Boletim do Ministério da Justiça, n. 332, Lisboa, 1984 p.68.

