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Responsabilidade penal do médico e os crimes contra a dignidade sexual: Análise à luz dos direitos fundamentais (Parte III)

terça-feira, 18 de novembro de 2025

Atualizado às 13:33

1. Introdução

Os crimes contra a dignidade sexual praticados por profissionais da saúde têm, nos últimos anos, obtido bastante espaço midiático, havendo diversas notícias envolvendo vítimas em estado de vulnerabilidade no âmbito médico-hospitalar. Tais delitos, previstos no Título VI da Parte Especial do CP, cuja análise já foi iniciada nas partes I e II da edição especial desta coluna, ensejaram, em 2022, a propositura do PL 1998, de autoria do senador Jorge Kajuru, que se encontra em tramitação na Câmara dos Deputados.

O projeto visa a alterar o art. 226 do CP para prever aumento de pena, de metade, no momento da dosimetria, "com o fim de aumentar a intimidação e prevenção social, propomos aumento de pena para o caso de o crime contra a dignidade sexual ser praticado por médico ou profissional da saúde em situação de atendimento médico ou hospitalar, o que configura clara ofensa ao dever de cuidado e respeito".

Na atualidade, há previsão, no inciso II do aludido artigo, para o aumento de pena de metade, se o agente é ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tiver autoridade sobre ela, incluindo-se, no referido projeto, se o agente é médico ou profissional da saúde em situação de atendimento médico ou hospitalar.

A fragilidade e a vulnerabilidade dos pacientes não podem ser ignoradas, tampouco a necessidade de investigação criminal nos casos em que há indícios mínimos de autoria e materialidade delitiva. Todavia, o Direito Penal é a ultima ratio, de modo que a liberdade do médico, bem jurídico1 fundamental, pode ser privada caso haja sua condenação. 

Nos crimes contra a dignidade sexual, a palavra da vítima tem importante relevância, sendo, muitas vezes, a única prova que, embora isolada, é suficiente para essa privação de liberdade e para a condenação do profissional da saúde. Isso se dá devido ao fato de tais delitos acontecerem na clandestinidade ou às ocultas, sem testemunhas oculares.

Por conseguinte, é de suma importância analisar a palavra da vítima à luz do contraditório, do devido processo legal e da ampla defesa, que são garantias fundamentais do médico e demais profissionais da saúde que eventualmente venham a ser investigados e/ou processados. No mesmo sentido, deve ser analisado todo o conjunto probatório para fins de que sejam impedidas condenações injustas.

2. Breves considerações acerca dos sistemas inquisitorial e acusatório e garantias processuais do médico

O sistema inquisitorial, diferentemente do sistema acusatório atual, objetivava extrair a confissão do acusado, valendo-se, inúmeras vezes, de técnicas de torturas, conforme se extrai do livro intitulado Malleus Maleficarum, publicado em 1486 por Heinrich Kraemer e por Jakob Sprenger. O livro, traduzido para o português como "Martelo das Bruxas" ou "Martelo das Feiticeiras", conhecido como manual inquisitorial, retrata esse momento histórico.

Além disso, no sistema inquisitorial, as figuras do acusador e do julgador confundiam-se, não havendo que se falar em imparcialidade do julgador. Assim, independentemente de ser o acusado inocente ou culpado, a sua confissão - após horas, quiçá dias de tortura - era suficiente para a sua condenação definitiva. Basicamente, a confissão era considerada a "rainha das provas", no sentido de que outros elementos probatórios não eram considerados para análise da imputação.

Por outro lado, no sistema acusatório, o juiz é uma figura imparcial, não se confundindo com o acusador, que, nos casos dos crimes contra a dignidade sexual, é o Ministério Público. Há, neste sistema, paridade de armas entre a defesa e a acusação, o que encontra fundamento no princípio do devido processo legal, garantia fundamental do ordenamento jurídico brasileiro, prevista no art. 5º, LIV, da Constituição Federal de 1988. A clara separação entre as funções de acusar, defender e julgar perfazem esse sistema.

Ademais, a presunção de inocência, a partir do in dubio pro reo, deve governar todo o processo penal, com o direito ao contraditório e à ampla defesa, sob pena de incorrermos em insanáveis injustiças.

Desse modo, não há a "rainha das provas", como era a confissão do acusado no sistema inquisitorial, mas, sim, o devido processo legal, no qual a existência de conjunto probatório robusto deve fundamentar a decisão do julgador, pois vigora o sistema da persuasão racional do magistrado, conforme art. 93, IX, da CF/88 c/c art. 155 do CPP.

Contudo, quando a condenação do médico ou demais profissionais da saúde ocorre, única e exclusivamente com base na palavra da vítima, será que o sistema não é falho ao buscar, novamente, a "bala de prata"? Será que privar o médico de sua liberdade com fulcro em uma única prova não colocaria em xeque fundamentos básicos do sistema acusatório e de um processo penal democrático?

3. As falsas memórias e a palavra isolada da vítima

A título de contribuição para os questionamentos anteriormente expostos, é importante apresentar a reflexão no tocante às falsas memórias. A memória é totalmente maleável, podendo ser modificada ou distorcida. Nessa senda, Lourrana Larissa Gonçalves de Andrade e Cíntia Marques Alves2 reforçam:

As falsas memórias podem ser definidas como o fato de as pessoas lembrarem-se de eventos e situações que não aconteceram, que nunca foram antes presenciadas, ou então de lembrarem-se de algum evento de maneira pouco distorcida do que realmente ocorreu.

[...]

Elas podem ser elaboradas pela junção de lembranças verdadeiras e de sugestões advindas de outras pessoas, sendo que durante este processo fica suscetível esquecer a fonte da informação ou ainda pode se originar quando os indivíduos são interrogados de maneira direta e sugestiva. A pessoa sinceramente acredita que viveu aquele fato e tem a sensação de que consegue recordar de detalhes concretos e vívidos sobre o evento sem nunca o ter vivido antes. (grifado)

A vulnerabilidade intrínseca aos pacientes que procuram um médico, sobretudo daqueles que estão sedados, pode ensejar memórias confusas no que concerne à realidade. O paciente não sabe, com exatidão, se o fato ocorreu ou se é sonho.

Na parte II, foi abordada a evolução do papel da vítima no processo penal, sendo de suma importância, citando-se que "atualmente, embora ainda haja vieses informais na investigação policial e no judiciário (como a análise da vestimenta ou da postura da mulher), houve um avanço significativo, sobretudo porque é necessário analisar a conduta do agente e não atribuir a culpa do delito à vítima".

Importante mencionar, ainda, a lei 14.737, de 27 de novembro de 2023, a qual ampliou o direito da mulher de ter acompanhante nos atendimentos realizados em serviços de saúde públicos e privados, a partir da alteração da lei 8.080, de 19 de setembro de 1990 (lei orgânica da saúde). Tal avanço legislativo trará mais segurança à mulher em consultas, exames e procedimentos no ambiente médico-hospitalar.

Conforme já referido, bem como em sintonia à parte II, nos crimes contra a dignidade sexual, a palavra da vítima tem especial relevância. Entretanto, nos crimes contra a dignidade sexual praticados por médicos e demais profissionais da saúde, há a peculiaridade do estado de vulnerabilidade extrema dessas vítimas.

Dessa maneira, as falsas memórias devem ser consideradas em relação à palavra da vítima, especialmente no contexto de delitos cometidos no âmbito da relação médico-paciente.

Ressalte-se que, em nenhum momento o objetivo da presente reflexão é diminuir a palavra da vítima, tampouco revitimizá-la. Pelo contrário, o que se busca é que a vítima seja ouvida de maneira interdisciplinar, a partir de equipes que tenham a sensibilidade de analisar e distinguir a realidade da fantasia, sobretudo quando se tratar de vítimas menores de idade e/ou que estavam sedadas quando do abuso, respeitando os avanços antes destacados.

Da mesma forma como se entende que os termos de consentimento voltados às crianças e aos adolescentes devem considerar as suas particularidades ao serem confeccionados, a vítima menor de idade deve ser ouvida com cuidado, em ambiente adequado e seguro.

Por óbvio, tal tarefa torna-se ainda mais desafiadora nas comarcas pequenas e sem estrutura suficiente, mas o papel dos operadores do Direito é mostrar a necessidade de implementação dessas escutas especializadas.

4. Julgado envolvendo o delito de violação sexual mediante fraude: Absolvição

Ao analisar os delitos contra a dignidade sexual a partir da jurisprudência, fica evidente o protagonismo da palavra da vítima, inclusive nos casos envolvendo médicos e demais profissionais da saúde.

Contudo, com o objetivo de apresentar um viés provocativo, será exposto um caso no qual o médico foi absolvido com fulcro no princípio do in dubio pro reo, referido anteriormente, ficando a palavra da vítima isolada do restante do conjunto probatório.

Há diversos delitos contra a dignidade sexual, conforme mencionado, disciplinados no Título VI da Parte Especial do CP. Dentre eles, há o crime de violação sexual mediante fraude, previsto no art. 215 do CP, cuja conduta típica é: "ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima:  Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos."

O caso eleito3 versa acerca do crime de violação sexual mediante fraude. Em linhas gerais, julgou-se que a prova produzida não esclareceu, com certeza, o que ocorreu na data do fato. A denúncia narrou que a paciente, em consulta com o denunciado, médico gastroenterologista, foi tocada de maneira imprópria e sexualizada.

Em primeiro grau, o médico foi condenado à pena de 04 anos e 06 meses de reclusão, a ser cumprida em regime inicial semiaberto. Nota-se que, caso o projeto de lei citado anteriormente estivesse em vigência, a pena do médico poderia ser aumentada da metade, impedindo, muito provavelmente, o regime inicial semiaberto, conforme art. 44 et. seq. do CP, demonstrando a importância de se debater tanto o projeto, quanto a palavra da vítima de maneira isolada.

No caso em testilha, foi crucial o fato de que, embora as esferas administrativa, cível e criminal sejam independentes, a sindicância instaurada pelo CREMERS - Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul a esse respeito resultou arquivada. Outrossim, houve, segundo o voto do desembargador relator, "parecer técnico do Serviço Biomédico do Ministério Público abonando correção do diagnóstico de fibromialgia, sintomas de depressão, anormalidades psicológicas e, inclusive, dores estomacais, todos eles consonantes com o quadro clínico apresentado pela suposta vítima à época dos fatos".

Há, ainda, depoimento da recepcionista, no sentido de ter a suposta vítima saído bem da sala de consulta, a qual esteve com a porta aberta por todo período, corroborando o exposto pelo médico denunciado, que negou ter deixado o seio da paciente à mostra.

Assim, o médico foi absolvido, uma vez que, ao ter suspeitas de fibromialgia, apalpou os chamados "tender points" da vítima, sendo necessário encostar no seio apenas para afastá-lo. O parecer técnico foi de suma importância para afirmar que o médico seguiu as lex artis e a boa prática médica, aprofundadas na parte I, de modo que as suas condutas estavam ancoradas na necessidade de exames para investigar o quadro de saúde da paciente, não havendo que se falar em satisfação de lascívia, tampouco abuso de paciente após o médico valer-se de fraude.

5. Considerações finais e inquietações

A palavra da vítima tem importante relevância dos crimes contra a dignidade sexual, sendo imprescindível para a análise do caso concreto. Porém, no tocante aos delitos dessa natureza envolvendo médicos e demais profissionais da saúde, há particularidades que devem ser consideradas, tais como a vulnerabilidade dos pacientes ao procurarem ajuda médica, além de situações nas quais não há testemunhas, como é o caso de algumas consultas médicas.

A busca pelo devido processo legal deve nortear todo o processo penal, avaliando-se, cuidadosamente, o conjunto probatório existente. A vítima, para tanto, deve ser ouvida por equipe multidisciplinar apta a atestar a veracidade dos fatos, que devem, idealmente, ser corroborados por demais provas.

Não existe rainha das provas no sistema acusatório, de modo que, da mesma forma que a confissão não pode ser considerada como tal, tampouco deve a palavra da vítima ser eleita ao posto de prova mais relevante, sob pena de um processo penal divorciado das garantias fundamentais dos averiguados.

A relação médico-paciente deve ser norteada pela transparência e informação, de modo que o(a) paciente possa se sentir seguro(a), informando-se, quando razoável, os métodos que serão utilizados, bem como quando for necessário tocá-lo(a), por exemplo e, sempre que possível, estar acompanhado(a) de enfermeiros e/ou técnicos de enfermagem que possam trazer segurança e afastar qualquer ambiguidade. Por conseguinte, o respeito aos direitos fundamentais dos médicos e demais profissionais da saúde não podem ser ignorados, sob pena de retrocesso ao sistema inquisitorial. A verdade deve ser buscada, a partir de provas robustas e não isoladas e únicas, uma vez que a liberdade pode ser equivocadamente privada.

_______

1 De acordo com Figueiredo Dias, bem jurídico seria "a expressão de um interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção ou integridade de um certo estado, objeto ou bem em si socialmente relevante e por isso juridicamente reconhecido como valioso". DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal. Parte Geral. Tomo I.  2. ed. Coimbra: Revista dos Tribunais, 2007. p. 114.

2 ANDRADE, Lourrana Larissa Gonçalves de.; ALVES, Cíntia Marques. A Implantação de falsas memórias no processo de alienação parental e suas possíveis consequências para as crianças. Revista Perquirere, 2014. pp. 182-197. Disponível aqui. Acesso em: 20 de ago. 2025.

3 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS). Apelação-Crime, Nº 70053878591, Sexta Câmara Criminal, Relator: Des. Aymoré Roque Pottes de Mello, Julgado em: 19 dez. 2013. Publicado em: 21 jan. 2014.