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Estado vigilante e regulação das fake news

sexta-feira, 30 de abril de 2021

Atualizado às 07:54

Introdução

Atualmente, graças à web 2.0, o mundo vive um período onde há uma enorme circulação de fake news online, especialmente, nas redes sociais, com o objetivo de moldar a opinião pública e, por conseguinte, influenciar nos resultados das eleições.

O Brasil também tem sentido os efeitos desse fenômeno. Nesse sentido, o presente artigo se propõe a discorrer sobre qual a melhor forma de combate às fake news na área política, e sobre o porquê da intervenção direta do Estado como "guardião da verdade" deve ser evitada.

Das fake news

A mentira sempre existiu. Até mesmo os animais são capazes de mentir para benefício próprio. Carl Safina verificou que os macacos africanos, objetos de seu estudo, se utilizavam de chamados específicos para enganar os demais macacos de sua espécie.

Em sua pesquisa, Safina concluiu que os macacos "gritavam" os chamados utilizados para alertar a presença de predadores com o objetivo de enganar os outros macacos, possibilitando alguma chance de fuga em um combate tido como perdido ou mesmo para conseguir eliminar a competição por frutos da mesma árvore.

Se esses animais já se utilizam da divulgação de notícias falsas para benefício próprio, o que dirá dos humanos, a espécie animal mais sofisticada em comunicação e raciocínio.

Dessa forma, constata-se que o fenômeno das fake news não é recente. Apesar de situarem seu início com o surgimento da política e da retórica, ou seja, na Antiguidade Clássica, especula-se que o ser humano se utiliza da mentira para beneficiar-se desde quando começou a se comunicar.

Assim, percebe-se que as notícias falsas sempre permearam o cenário político. A novidade é que, atualmente, o avanço tecnológico ampliou o poder de propagação das fake news. Segundo estudo do MIT, com base no conteúdo que circulou no Twitter de 2006 a 2017, as notícias falsas têm 70% mais chances de serem "retuitadas".

A chamada web 2.0, nesse sentido, atrelada ao período da pós-verdade, criou um terreno fértil para a propagação desse tipo de conteúdo, uma vez que, na pós-verdade, as pessoas não procuram a veracidade da informação.

Na ânsia de provarem que estão certas, as pessoas apoiam-se em qualquer material que reforce aquilo que já pensavam. Assim, em especial na era da pós-verdade, basta que a notícia confirme a opinião da pessoa para que ela seja vista como verdadeira.

E, disso se valem as fake news. Elas se alimentam das "certezas" existentes no homem da pós-verdade para poluir o debate democrático, fazendo com que ninguém acredite em mais nada.

Percebe-se, dessa forma, que o objetivo das fake news não é fazer com que as pessoas acreditem na mentira, mas sim que elas duvidem da verdade, polarizando as opiniões da sociedade e poluindo o debate democrático, prejudicando a democracia, vez que a saúde da democracia depende da qualidade do diálogo realizado dentro dela.

Ainda, vale aproveitar a oportunidade para levantar a relevante diferença entre fake news e desinformação. Atualmente, entende-se que o uso da expressão "desinformação" é muito melhor para definir o fenômeno que "fake news".

Estudiosos do tema no Brasil e Europa compreendem que o termo "desinformação" é melhor por duas grandes razões.

A primeira é que o uso frequente da expressão "fake news" por políticos, como forma de deslegitimar as notícias que não o beneficiam, acabou banalizando o termo.

A segunda é que o termo "desinformação" não só compreende as notícias falsas (fake news) como também os dados verdadeiros; porém descontextualizados.

Vale dizer ainda que existem autores que entendem por melhor utilizar o termo "notícias fraudulentas" ao invés de "fake news".

Para fins do presente trabalho, que tem por objetivo introduzir o leitor ao tema, os termos "fake news" e "desinformação" serão tratados como sinônimos. No entanto, fique o leitor atento à importante diferenciação entre as expressões.

Impactos na democracia

Percebe-se, com base no que já foi dito, que as redes sociais e aplicativos de troca de mensagens passaram a servir de meios para a difusão de desinformação numa escala e rapidez inéditas, semeando a desconfiança, alimentando as tensões políticas e sociais, prejudicando o espaço público de debates e ferindo a democracia.

Esse fenômeno foi sentido no mundo todo. Destaque para as eleições norte-americanas de 2016 e para as discussões sobre o referendo que decidiu pela saída do Reino Unido da União Europeia.

No Brasil, a situação não foi diferente. De acordo com o Digital News Report, do Instituto Reuters para o Estudo do Jornalismo, cerca de 85% dos usuários de internet do Brasil disseram estar preocupados em discernir o conteúdo digital verdadeiro das fake news.

Além disso, uma pesquisa feita pelo Congresso Nacional aponta que o público jovem dá mais valor a informações veiculadas na internet para definir seu voto.

No mesmo sentido, a pesquisa realizada pela IDEIA Big Data, revela que mais de dois terços das pessoas receberam fake news por WhatsApp durante a campanha eleitoral brasileira de 2018.

Democracia e liberdade de expressão

O fato de que os termos "democracia" e "liberdade de expressão" estão intimamente ligados é sabido por todos. No entanto, o que gera debates é a forma como se dá esse relacionamento.

Alguns indivíduos veem a liberdade de expressão como um instrumento da democracia, outros a veem como um direito individual inviolável, que deve ser garantido pela democracia. Por conseguinte, enquanto uma visão acredita que a liberdade de expressão está em função da democracia, outros defendem que a democracia deve garantir a liberdade de expressão como um valor inviolável.

A visão instrumentalista da liberdade de expressão defende que essa liberdade deve ser protegida apenas na medida em que contribui para um debate saudável, que faça com que o eleitor exerça seu voto de maneira informada.

John Stuart Mill, em sua tese sobre a liberdade e o utilitarismo, também atribui uma função instrumental à liberdade de expressão. MILL vê essa liberdade em função da busca pela verdade e, nesse sentido, defende que é de extrema importância o contato com a falsidade, pois só assim a verdade poderia ter suas razões reforçadas. Para MILL, a propagação da verdade sem a manifestação de suas razões a transforma, ao longo do tempo, em um dogma, podendo inclusive ter seu sentido distorcido.

No entanto, para essa corrente que vê a liberdade de expressão como mero instrumento da democracia, o cenário atual, marcado pela velocidade com que a desinformação circula nos meios digitais, é suficiente para afastar argumentos como os de John Stuart Mill, uma vez que permitir que a falsidade circule na web 2.0 acarretaria prejuízos enormes ao debate público.

Já a outra corrente, aquela que vê a liberdade de expressão como um valor fundamental e inviolável, entende que todos os envolvidos no debate público são cidadãos, independente da qualidade de suas opiniões. Essa corrente entende que exigir um estudo prévio e uma "qualidade mínima" da manifestação de opinião criaria um elitismo no debate público, segregando mais ainda a sociedade.

Dessa forma, para tal corrente, os cidadãos devem ter o direito de opinar reconhecido e garantido, de modo que possam dar a sua contribuição ao debate público, independente de qual seja sua opinião, uma vez que um debate público saudável é um debate público plural. Assim, não há democracia sem uma plena liberdade de expressão garantida a todos. Isso não quer dizer que as pessoas não devam ser o mais bem informadas o possível e nem que a deliberação pública seja a mais racional possível.

A intervenção estatal

Sendo assim, é razoável propor que o Estado e, por conseguinte, o direito, deva atuar de modo a coibir os danos provenientes das fake news, uma vez que elas, comprovadamente, afetam a democracia. No entanto, o que se deve levar em conta é até que ponto a intervenção do Estado é válida e justificável.

O que se quer evitar é a figura do "Big Brother" presente no romance "1984" de autoria de George Orwell. Nesse romance, as pessoas integrantes de uma sociedade fictícia estão sob vigilância constante das autoridades, de modo que o Governo viola e invade a privacidade de seus cidadãos sob a justificativa de que é para o bem e segurança de todos.

Essa preocupação contra a tirania estatal está presente em todo o mundo, é inclusive um dos fundamentos da Segunda Emenda à Constituição dos Estados Unidos. A second amendment da Constituição Americana permite o porte de armas aos cidadãos como forma de garantia da legítima defesa e de combate à tirania estatal.

Guardadas as devidas proporções e deixado o porte de armas de lado, visto que não é o objeto do presente artigo, percebe-se que é mais do que importante a garantia de uma convivência equilibrada entre Estado e sociedade. Nesse sentido, cabe estender essa preocupação também à questão do controle estatal sobre as fake news.

Muitas medidas positivas têm sido adotadas por parte do Estado. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) adotou inúmeras medidas positivas, como o Seminário Internacional de Fake News e Eleições, que foi realizado com o apoio da União Europeia, tendo inclusive o Tribunal Superior Eleitoral colocado em curso várias medidas para dar efetividade às lições aprendidas. Firmou também parcerias com agências de fact-checking, firmou acordos com partidos políticos e inclusive teve seu chatbot como finalista no Bots Brasil Awards.  

No mesmo sentido, o TSE também criou o Programa de Enfrentamento à Desinformação com Foco nas Eleições 2020, que conta inclusive com a participação de Google, Facebook, Twitter e WhatsApp, contendo eixos dedicados à Alfabetização Midiática e Informacional, Contenção à Desinformação, Identificação e Checagem de Desinformação, Aperfeiçoamento do Ordenamento Jurídico e Aperfeiçoamento de Recursos Tecnológicos.

A Justiça Eleitoral, também preocupada em combater as fake news criou o Portal da Justiça Eleitoral. O Portal conta com informações relevantes para os cidadãos, uma linguagem acessível, inúmeros vídeos e atividades interativas, resposta às dúvidas mais frequentes e desmistificação dos mitos que rondam a votação por urna eletrônica.

Por outro lado, medidas de controle repressivo também têm sido adotadas. As resoluções 23608 e 23610 do TSE tratam justamente da remoção de conteúdo da internet após análise judicial.

Apesar desse tipo de medida não gerar um Estado de "Big Brother",  a adoção desse tipo de controle estatal pode significar um grande retrocesso.

Além de significar uma medida extremamente paternalista de controle do que deve ou não ser dito, a retirada de conteúdo após a apreciação do judiciário pode aumentar a desconfiança da população e desacreditar ainda mais as instituições democráticas brasileiras. Pode-se ainda ter o risco da retirada de conteúdo legítimo, mas que é contrário à ideologia do julgador.

Adicionalmente, cumpre salientar que a Resolução n. 23.610 do TSE, ao disciplinar a matéria relativa à propaganda eleitoral, menciona, explicitamente, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) em três instantes: 1) Art. 28, inc.III, da Resolução: define que o consentimento do titular dos dados deve ser disciplinado pela LGPD quando se tratar de propaganda eleitoral por meio de mensagens eletrônicas decorrentes de endereços cadastrados gratuitamente; 2) Art. 31, §4º, Resolução: a utilização, doação e cessão de dados pessoais deve seguir as diretrizes da LGPD e 3) Art. 41 da Resolução: prevê a aplicação da LGPD quando cabível.

Dessa maneira, observa-se que o TSE, ao adotar algumas medidas para a proteção de dados pessoais, visa a proteger os eleitores de receberem fake news que prejudiquem a escolha política a ser realizada no instante das eleições. Ao se estabelecer um obstáculo para a coleta e para o compartilhamento de dados pessoais, a propagação das fake news é prejudicada, favorecendo a realização de eleições democráticas.

Em suma, são diversas as medidas adotadas pela justiça eleitoral para impedir as fake news, já que elas representam uma ameaça ao processo eleitoral democrático, uma vez que interferem na escolha realizada pelos cidadãos. Diante do exposto, a LGPD será muito importante para a criação de obstáculos à disseminação de fake news de conteúdo político.

Conclusão 

Dessa forma, o que se propõe não é a não intervenção estatal na garantia de um processo democrático saudável. Pelo contrário, a participação do Estado é fundamental, mas nem por isso deve ser feita de qualquer jeito.

O Estado deve direcionar seus esforços para medidas de governança que ensinem e fortaleçam os cidadãos, para que eles possam, com seus próprios intelectos, identificar as fake news e alcançar a verdade.

Assim, mais medidas, como a nova Lei Geral de Proteção de Dados, devem ser adotadas, conciliando o aumento da autonomia e da privacidade dos cidadãos com o aumento da segurança pública e da garantia de um espaço público de debates salutar.

Referências

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SAFINA, Carl. Beyond words: what animals think and feel. Nova York: Henry Holt and Company, 2015. p. 261.

*Cristina Godoy Bernardo de Oliveira é professora doutora da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto - USP desde 2011. Academic Visitor da Faculty of Law of the University of Oxford (2015-2016). Pós-doutora pela Université Paris I Panthéon-Sorbonne (2014-2015). Doutora em Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito da USP (2011). Graduada pela Faculdade de Direito da USP (2006). Líder do Grupo de Pesquisa Direito, Ética e Inteligência Artificial da USP - CNPq. Coordenadora do Grupo de Pesquisa "Tech Law" do Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP). Associada fundadora do Instituto Avançado de Proteção de Dados - IAPD.

**Fernando Guimarães é graduando em Direito na Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP. Bolsista PUB pela USP na área de Direito & Internet, sob a orientação da profa. dra. Cristina Godoy Bernardo de Oliveira.