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Os desafios da responsabilidade civil diante do consumo digital

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Atualizado às 08:59

A imersão tecnológica do consumidor é um caminho sem volta, sobretudo após atual crise mundial decorrente da pandemia da Covid-19, que acelerou abruptamente o processo de transição do consumo analógico para o digital.

Seria possível celebrar essa transformação a partir de muitas promessas que sempre acompanharam esse rápido e não menos representativo movimento de mudança: a ampliação da liberdade de escolha do consumidor diante de um espaço virtual tão competitivo; o mito da autorregulação do mercado a partir da participação direta do usuário na avaliação e solução de seus conflitos de consumo nas plataformas digitais; o acesso mais qualificado à informação de produtos e serviços, sobretudo pela análise da experiência anterior de outros consumidores; a necessidade de distanciamento do Estado em relação aos seus compromissos no âmbito da Política Nacional das Relações de Consumo, sob a lógica de que, por ser refratário às transformações sociais, sua excessiva regulação do mercado impediria o desenvolvimento da livre iniciativa e da maior capacidade do consumidor de resolver suas demandas diretamente junto ao empresário; maior espaço para o empreendedorismo no mercado em contraponto ao modelo do emprego formal, estímulo para o pequeno empresário com boas ideias e disposto a trazer inovações no mercado, rompendo o modelo tradicional de interação estática com o cliente; dentre outras.

O objetivo do artigo é justamente criticar essa visão romantizada desse "admirável mundo virtual", propondo algumas reflexões acerca de questões sensíveis decorrentes da utilização excessiva e não consciente das plataformas eletrônicas nas relações de consumo e a necessidade de aperfeiçoamento de sua responsabilidade civil nesse contexto.

A hiperconectividade do consumidor o levou à hiperconfiança, associadas ao pouco controle governamental e às cláusulas exoneratórias de responsabilidade civil nos contratos de adesão das plataformas eletrônicas criaram as condições ideais para o agravamento da vulnerabilidade do consumidor, em razão das promessas não cumpridas no processo de mudança do consumo analógico, agora transformado, quase que compulsivamente, em consumo digital.

Hoje, a inteligência artificial tem um papel determinante da definição das predileções estéticas e comportamentais do consumidor, a partir da apropriação dos seus dados pessoais, obtidos mediante consentimento não adequadamente informado, agravando o risco de danos à sua privacidade e intimidade em um mercado marcado pela supervalorização comercial de dados pessoais e por prematuros marcos regulatórios. É possível reconhecer, inclusive, uma nova espécie de vulnerabilidade: a algorítmica.

Da mesma forma, o processo de inclusão financeira virtual do consumidor deve ser avaliado a partir do fenômeno do superendividamento, representando um verdadeiro desafio regulatório diante da assimetria informacional, disseminação das Fintechs, crescimento do assédio de crédito e da ausência de políticas públicas para a educação financeira do consumidor, em contraste com a proliferação de práticas abusivas dos agentes financeiros. Nesse particular, urge a aprovação do PL 3515/15, que trata justamente da atualização da Lei 8.078/90 (CDC), no sentido de aprimorar a responsabilidade civil das instituições financeiras.

No âmbito da economia de compartilhamento, através dos mais diferentes aplicativos é preciso reforçar a responsabilidade das plataformas virtuais, evitando a transferência do risco da atividade exclusivamente para os usuários, sob a lógica equivocada de que seriam meros intermediários e esse "custo" adicional inviabilizaria o exercício da própria atividade econômica.

O uso da rede mundial de computadores, enquanto um dos principais meios midiáticos de massa da atualidade tem promovido a atividade dos blogueiros, vloggers, youtubers, ou seja, dos influenciadores digitais, os quais seriam contemplados pela lógica do Star System, por meio do vínculo com marcas e pelo fornecimento e produção de informações positivas sobre os produtos, visando o consumo através da centralização do público nas mídias sociais, sem levar em consideração os direitos básicos ao consumidor, sobretudo no âmbito da qualidade e ostensividade da informação publicitária (art.36 do CDC), em franco prejuízo à liberdade de escolha.

Cumpre destacar, ainda, o agravamento da vulnerabilidade pela apropriação dos dados pessoais tanto pelo mercado, quanto pelas próprias autoridades estatais pelo aumento da vigilância estatal sob o pretexto da pandemia. O tema já havia ganhado grande relevância por mecanismos de microtargeting1na sociedade, especialmente no mercado de consumo e em eleições (HAN, 2018).

No Brasil, aprovou-se a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais - lei 13.709/2018 -, que, apesar de oferecer expectativas sobre uma maior proteção dos dados pessoais dos consumidores, precisa de tempo para expor suas virtudes, sobretudo através do diálogo com o CDC, como também suas eventuais lacunas.

O isolamento social, por sua vez, favoreceu o aumento do consumo à distância, através do comércio eletrônico, principalmente, dos aplicativos de entrega em domicílio, como restaurantes, bares, livrarias, lojas de departamentos e etc, o que envolvia não apenas o grande fornecedor, mas também o pequeno comerciante e o empreendedor local.

Muitos se arriscaram no mercado virtual, através das grandes plataformas eletrônicas, abrindo pequenas empresas atraídas pela pseudo democratização da concorrência na internet, mas foram rapidamente expostas à dura realidade das cláusulas abusivas, promoções agressivas, assédio para o pagamento de comissões elevadas, de modo que conseguissem algum destaque publicitário na oferta de seus produtos e serviços dentro da plataforma de entrega.

Outros se expuseram, por necessidade extrema, a realizar a árdua tarefa de entregadores, cujo trabalho excessivo e penoso se agravou durante esse período de confinamento social, expondo-os a riscos muito maiores de contaminação pelo Coronavírus, sobretudo porque não lhe foram disponibilizados materiais e equipamentos de proteção individual.    

Em resumo, o mito do "empreendedor de si mesmo" foi escancarado pela pandemia e reflete as consequências da precarização do trabalho e da falta de regulação estatal no exercício das novas plataformas virtuais, o que repercute no mau atendimento do consumidor. Por exemplo, o indivíduo que esteja dirigindo há mais de 10 (dez) horas através do aplicativo de transporte está muito mais propenso a causar um acidente de trânsito e, como isso diz respeito à segurança do passageiro, tal informação deveria estar disponível para que este decidisse se aceitaria ou não ser transportado naquelas condições, sobretudo quando há cláusula contratual que exclui a responsabilidade da plataforma por eventuais danos ao usuário do serviço. 

Outro aspecto sensível nesse cenário de crise é a desconstrução do já combalido modelo de varejo tradicional, caracterizado por grandes lojas físicas, estoques consideráveis e locação de espaços caros em áreas comerciais e shopping centers. A pandemia trouxe a reboque o isolamento social e o fechamento de muitas empresas no Brasil, principalmente as de pequeno de porte, seja daquelas que não se prepararam para a mudança para o padrão de consumo digital, ou daquelas que não tiveram tempo para se adaptar às novas regras do jogo.

A recente pesquisa do IBGE, intitulada "Pesquisa Pulso Empresa: Impacto da Covid-19 nas Empresas", apontou que a pandemia fechou 39,4% de todas as empresas paralisadas, o que, numericamente, representa 522,7 mil empresas que encerram suas atividades, temporária ou definitivamente, até a primeira quinzena de junho de 2020, tendo sido os setores de serviços e o comércio como os mais afetados. (AGÊNCIA BRASIL, 2020).

Nem mesmo as grandes lojas de departamento ficaram imunes à crise, mesmo aquelas que já possuíam uma razoável experiência com o comércio eletrônico, como foi o caso da Ricardo Eletro, que demitiu 3.500 empregados, fechou todas as lojas físicas e pediu recuperação judicial,  mantendo apenas a plataforma virtual e os departamentos de logística e entrega. (FOLHA DE SÃO PAULO, 2020) 

Grande impacto também sofreram as multinacionais como a Inditex, maior varejista de roupas do mundo e proprietária das marcas  Zara e Massimo Dutti, que sofreu seu primeiro prejuízo trimestral como empresa de capital aberto e anunciou o fechamento de 1.200 (mil e duzentas) lojas físicas, elevando a meta de vendas online que representarão 25% do total de vendas até 2022, contra 14% no ano passado. (FOLHA DE SÃO PAULO, 2020)

As redes que ainda resistem são obrigadas a diversificar suas atividades, investir numa abordagem publicitária mais agressiva. Por exemplo, o  Magazine Luiza comprou o site de notícias de tecnologia Canaltech, objetivando aumentar a distribuição de seus anúncios publicitários na internet, além de já possuir uma ferramenta própria de anúncios online. (FOLHA DE SÃO PAULO, 2020).

Há, portanto, inegável movimento das fábricas e indústrias para criarem suas lojas virtuais, ou seja, expandem o negócio para a venda online direta ao consumidor, em concorrência direta com seus antigos parceiros do varejo. Esse fenômeno se intensificou, inclusive, na venda de eletrodomésticos e móveis, que ainda respondiam por parcela significativa das vendas do varejo presencial.

Em caminho diametralmente oposto, as ações da Amazon atingiram a máxima histórica, tendo a empresa se beneficiado da forte demanda em meio ao isolamento social, elevando o seu valor de mercado para US$ 1,14 trilhão. (INFOMONEY, 2020).

O pequenos negócios foram os primeiros a perecer e, mesmo aqueles que já possuíam algum expertise no comércio eletrônico enfrentam dificuldades, ou se reposicionaram nesse espaço com margens de lucro cada vez menores, logística complexa, desafios tecnológicos, consumidores mais exigentes e crescente risco de irrelevância pela alta competitividade de um mercado virtual global, não mais sujeito a limites geográficos.      

O varejo tradicional foi o mais afetado pela crise econômica e vem cedendo espaço para o comércio eletrônico, sofrendo com a dura concorrência das grandes plataformas virtuais, sobretudo as transnacionais, assim como das fábricas que, depois da pandemia, não querem mais intermediários na venda direta ao consumidor, que tem mudado seus hábitos de consumo e passou confiar mais nas compras online. 

É importante reconhecer o aumento das práticas abusivas e demais formas de violação dos direitos dos consumidores no ambiente virtual, sobretudo durante a pandemia, seja pelo agravamento da vulnerabilidade destes no comércio eletrônico, na apropriação de seus dados pessoais, seja no atraso e eventual descumprimento de obrigações legais e contratuais sob o pretexto da crise econômica, o que desafia o instituto da responsabilidade civil a lidar com esses novos conflitos.

O empoderamento do consumidor digital será, também, uma consequência importante dessa ruptura, fortalecendo as bases de um consumo identitário, analisado sob a ótica do compartilhamento de experiências online no âmbito do comércio eletrônico, assim como suas repercussões no fortalecimento de uma cidadania participativa e na mudança do comportamento empresarial.

O empresário, pós-crise, precisará se reinventar, pois se cada vez mais influenciado pelo valor da marca nesse ambiente tão competitivo deverá assumir uma postura mais responsável,  entregando ao consumidor muito mais que um bom preço ou condição de pagamento, revelando outras habilidades que criem uma relação de identidade com o cliente, de modo a conseguir se manter relevante no mercado e, ao mesmo tempo, fidelizar consumidores cada vez mais seletivos, como no bom exemplo das empresas que se diferenciaram na crise por preservarem os empregos e zelarem pela saúde física e mental de seu colaboradores. 

*Dennis Verbicaro é doutor em Direito do Consumidor pela Universidade de Salamanca (Espanha). Professor da graduação e dos programas de pós-graduação stricto sensu da UFPA e do CESUPA. Procurador do Estado do Pará e advogado. 

Referências

AGÊNCIA BRASIL. Pandemia fecha 39,4% das empresas paralisadas, diz IBGE. Disponível aqui. Acesso em: 14/08/2020.

FOLHA DE SÃO PAULO. Grupo dono da zara anuncia fechamento de 1.200 lojas após vendas caírem 44%. Disponível aqui. Acesso em 14/08/2020.

_____. Ricardo eletro demite 3.500, fecha todas as lojas e pede recuperação judicial. Disponível aqui. Acesso em 14/08/2020.

______.Magazine luiza compra site de notícias de tecnologia para aumentar venda de anúncio. Disponível aqui. Acesso em 14/08/2020.

HAN, Byung Chul. Psicopolítica: O neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Ed: Ayine, 2018.

Infomoney. Amazon cresce com pandemia, mas enfrenta crise interna e preocupações com segurança. Disponível aqui.acesso em 14/08/20.

 

VERBICARO, Dennis; VERBICARO, Loiane; VIEIRA, Janaína (Coord.). Direito do Consumidor Digital. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2020

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1 Direcionamento publicitário realizado pelo uso de dados pessoais. 

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Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil