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A responsabilidade civil do Estado pela morte indigna das vítimas da Covid-19

terça-feira, 16 de março de 2021

Atualizado às 09:11

A calamitosa situação sanitária de diversos países do mundo, inaugurada a partir da profusão da pandemia do novo coronavírus (Covid-19) em escala global, passa a demandar não apenas medidas eficazes a serem adotadas por autoridades constituídas, mas também reflexão aguçada por parte da sociedade civil acerca dos impactos da crise no cotidiano dos indivíduos direta ou indiretamente afetados.

O propósito destas linhas será, em termos jurídicos, o de questionar se caberia imputar responsabilidade civil ao Estado em razão da morte de milhares de indivíduos que, em alguns casos, sequer conseguem ter acesso a cuidados médicos adequados, em razão do quadro de colapso do sistema de saúde de muitos hospitais em todo o Brasil.1

Embora todos os seres humanos compartilhem entre si uma certeza - a finitude de sua existência -, o processo de morrer pode ser significativamente distinto, a depender das condições em que se encontrem os moribundos. Naturalmente, pessoas que tenham melhores condições econômicas, ou acesso facilitado a sistemas públicos de saúde funcionais, se encontrarão em circunstâncias mais favoráveis, no termo final de suas vidas, que aquelas que vivem em situação precária e sequer têm acesso aos medicamentos ou tratamentos mais elementares. É possível afirmar, então, que em algumas circunstâncias a morte não será minimamente digna - e, em tempos de pandemia, nem mesmo o fato de algumas pessoas terem boas condições financeiras ou usufruírem de planos de saúde privados será suficiente para assegurar que haverá leitos hospitalares disponíveis para o tratamento de enfermos em estado mais grave.

Muito se discute, a propósito, sobre o sentido a atribuir à expressão "morte digna". Embora neste espaço não caiba avançar para muito longe neste debate, cabe afirmar que a morte digna se refere ao modo de morrer:2 é inequívoca a ideia de que morre em condições indignas a pessoa que sequer tem acesso a tratamentos médicos basilares. É esta perspectiva que dá abertura para o surgimento do conceito de mistanásia, que terá como vítimas, em particular, os miseráveis, os desvalidos e, no contexto da pandemia, todos aqueles que morrerem à margem dos cuidados sanitários que, à partida, deveriam ser postos ao dispor de todo e qualquer ser humano.

Mistanásia é uma expressão derivada da conjugação dos vocábulos gregos mis (infeliz) e thanatos (morte). Induz a ideia de uma morte miserável, que alcança aqueles que sequer têm acesso aos serviços médicos mais elementares, ou, quando o têm, se tornam vítimas fatais, ora da má qualidade na prestação de tais serviços, ora de condutas deliberadamente voltadas para causar a morte. São vítimas da mistanásia, então, as pessoas que sequer chegam a ser pacientes e não conseguem acesso aos medicamentos ou falecem nas filas de hospitais, à espera de atendimento médico; indivíduos que conseguem ser pacientes, mas são vítimas de atendimento insuficiente ou de erro médico; e os pacientes que simplesmente têm suas vidas ceifadas por razões políticas, econômicas ou sociopolíticas, incluindo-se aí o óbito daqueles que mais sofrem com a ausência do Estado.3 Aquela primeira hipótese - a de indivíduos que perecem sem atendimento adequado - é a que se manifesta, muito particularmente, nestes tristes tempos de pandemia.

Ao tempo em que se registram estas notas, em que adentramos o mês de março de 2021, o Brasil ultrapassa a lastimável marca de mais de 250.000 vítimas fatais da Covid-19. A média de óbitos diária tem constantemente sido superior a 1.000 pessoas, ao passo em que a vacinação está longe de ser suficiente para permitir o arrefecimento significativo destes números. O contingente populacional brasileiro já contemplado com a vacina circunda a marca de meros 3% (e ainda menor é o número de pessoas que receberam a segunda dose da vacina), enquanto o país trava uma dura batalha para obter um quantitativo de doses suficientes para propiciar uma imunização em larga escala. Até o momento, têm acesso à vacinação grupos prioritários, compostos, entre outros, por idosos e profissionais da saúde. O maior espectro da população não pode ainda vislumbrar um cronograma confiável de vacinação, o que tem forçado governos municipais e estaduais a adotarem com frequência medidas de contenção da propagação do coronavírus, o que inclui limitações (ou mesmo a proibição) ao funcionamento de atividades educacionais, recreativas e comerciais, para além da imposição de restrições ao direito de ir e vir, mediante o estabelecimento de horários de livre deslocamento e de toques de recolher.

Não bastasse a dramática situação de colapso de inúmeras unidades de saúde ao largo de todo o território nacional, os moradores de Manaus, em especial, passaram pelo enfrentamento de outra crise, de proporções devastadoras: a escassez de cilindros de oxigênio nas unidades de saúde terminou por provocar a morte por asfixia de diversas pessoas. Não se descarta a perspectiva de que semelhante tragédia se repita em outras cidades e acometa um infindável número de novas vítimas.

Diante desta perspectiva, cabe inquirir se o Estado (aí entendida amplamente a expressão, para abarcar as pessoas jurídicas de direito público, tais como a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios) poderia ser civilmente responsabilizado pela ocorrência de casos de morte indigna, em que indivíduos podem se ver constrangidos a um fim de vida doloroso, sem acesso ao devido acompanhamento médico e hospitalar, a alguma vacina ou mesmo a um bem elementar da vida como o oxigênio.

À partida, não caberia de plano imputar o dever de responder por danos ao Estado, pois a situação de calamidade sanitária decorre de um evento imprevisível e extraordinário, a caracterizar autêntico caso fortuito. Este argumento, em princípio, afastaria a responsabilidade civil do ente público, em razão da inexistência de conduta a ser-lhe imputada e que tenha, de algum modo, contribuído para causar ou agravar os potenciais danos aos enfermos que não conseguirem acesso apropriado a cuidados de saúde.

Este quadro primeiro, todavia, pode ser alterado a depender das circunstâncias em concreto, sobretudo em virtude da possível negligência quanto à adoção de medidas proativas, de cunho preventivo e/ou reativo, que possam ao menos abrandar os efeitos da pandemia na sociedade brasileira. A invocação desta tese, a propósito, poderá vingar caso se demonstre, por exemplo, que a adoção oportuna de medidas profiláticas, como a determinação do fechamento de estabelecimentos comerciais, de escolas e de fronteiras e do cancelamento de voos, sobretudo internacionais, teria sido suficiente para evitar ou ao menos mitigar um quadro drástico de morte indigna de pessoas que não tiverem acesso a tratamentos adequados. Também caberia invocar a responsabilização do ente público, em tese, em razão da falta de oxigênio, de insumos, de leitos hospitalares e mesmo da morosidade na aprovação ou na obtenção das vacinas já disponíveis no mercado: ainda que, naturalmente, centenas de nações estejam em busca de dosagens suficientes para a imunização de seus cidadãos, o que provoca uma delicada e acirrada disputa pelas vacinas, nada obsta que se demonstre que o poder público foi negligente ou ineficiente quanto à adoção de medidas efetivas de aquisição de doses que podem representar uma diminuição sensível no número de casos graves da doença.

A cogitação da responsabilidade civil do Estado demandaria, assim, a comprovação de que houve omissão quanto ao cumprimento de medidas necessárias para minimizar os efeitos devastadores da pandemia. Naturalmente, não apenas a demonstração da conduta omissiva se faria imprescindível, como também a existência de liame causal entre tal comportamento desidioso e o estágio de contaminação em massa e, como decorrência, a superlotação dos hospitais e a morte consequente de pessoas cujas vidas poderiam ter sido preservadas. A eventual prova da correlação entre a negligência estatal e um lastimável contingente de vítimas fatais, alijadas do acesso a cuidados médicos intensivos e indispensáveis à sua sobrevivência e mesmo à vacinação, poderia implicar a verificação do nexo de causalidade necessário para caracterizar a possível responsabilização do ente público.

Para que se dê a potencial caracterização de conduta omissiva do Estado, enfim, será crucial a averiguação do modo como os agentes públicos terão reagido à crise sanitária instaurada em todos os Estados e incontáveis Municípios brasileiros, cumprindo recordar, a propósito, que o Supremo Tribunal Federal afirmou, com suporte no texto constitucional (art. 23, II),  ser concorrente a competência de tais entes federativos para o estabelecimento de regras de combate à pandemia.4 Por falar neste Tribunal, aliás, um de seus Ministros, Luís Roberto Barroso, ao inaugurar a sessão de julgamentos do Tribunal Superior Eleitoral no dia 4 de março de 2021, prestou homenagens às milhares de vítimas da Covid-19 e aventou a tese de que muitas das mortes ocorridas no país seriam "evitáveis", o que traduziria um momento de desvalorização da vida. No dia anterior, 3 de março, 1.840 pessoas haviam falecido em decorrência da doença,5 e há uma tendência de elevação destes números nos dias vindouros.

A análise proposta haverá de ser casuística e extremamente cautelosa, somente sendo viável a aplicação dos remédios próprios da responsabilidade civil quando adequadamente verificados seus pressupostos ensejadores, a saber, a conduta (ativa ou passiva) do Estado, os danos experimentados pelos lesados e, sobretudo, o nexo causal entre os dois elementos precedentes. Caracterizando-se como objetivo o modelo de responsabilidade em questão, eis que o ente público responde pelos atos de seus agentes independentemente de culpa, consoante a inteligência dos arts. 37, § 6º da Constituição da República e 43 do Código Civil, a demonstração dos elementos elencados seria bastante para a imputação de responsabilidade ao Estado.  

Frise-se ser impossível, a priori, definir que os entes públicos federativos devam de fato responder por danos nas circunstâncias descritas. O que se suscita neste breve ensaio é uma hipótese, indiscutivelmente plausível, mas que apenas se provará efetiva mediante a análise dos casos concretos que porventura sejam levados a debate pelas vias próprias.

O tempo, enfim, dará adequadas respostas a este dilema. Tudo passará a exigir a averiguação do modo como terão reagido os entes públicos e seus agentes ao longo do período da pandemia, ainda não superado. A depender das circunstâncias e, em particular, da (difícil, diga-se) demonstração da causalidade existente entre atos do Estado e os danos sofridos pelas vítimas da pandemia e seus familiares, cumprirá ao ente público assumir a responsabilidade de arcar com os inumeráveis reflexos lesivos, não por ter, naturalmente, propiciado a chegada do coronavírus ao Brasil - fato que se tinha por inevitável -, mas por não ter contido adequadamente a propagação de seus nefastos efeitos.

A ser este o caso, surgirá, ainda, um novo e complexo problema: em meio à crise econômica que se instaurou no país, como poderá o ente público reparar as vítimas (ainda que pela via reflexa, como se dará em relação aos familiares de pessoas falecidas) da pandemia, notadamente aquelas que porventura demonstrarem que não foram dignamente tratadas quando mais careciam de cuidados médicos?

Tempos difíceis exigem ponderadas reflexões. Há incontáveis dilemas que podem decorrer do estado atual de crise sanitária, sendo a morte desassistida - e, por isso mesmo, indigna - o mais drástico entre eles. Espera-se que as linhas traçadas sirvam para contribuir com o debate e, sobretudo, que a sociedade brasileira seja capaz de superar esta crise com a máxima brevidade possível - o que não deixa de ser, em última instância, decorrência também do comportamento dos entes públicos no enfrentamento da pandemia.

*Adriano Marteleto Godinho é professor dos cursos de graduação e pós-graduação (mestrado e doutorado) da Universidade Federal da Paraíba. Pós-doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra. Doutor em Ciências Jurídicas pela Universidade de Lisboa. Mestre em Direito Civil pela Universidade Federal de Minas Gerais.

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1 Mais informações sobre a associação entre a pandemia do novo coronavírus e a responsabilidade civil podem ser encontradas na seguinte obra: ROSENVALD, Nelson; MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; DENSA, Roberta (Coord.). "Coronavírus e responsabilidade civil - impactos contratuais e extracontratuais". Indaiatuba: Foco, 2020.

2 BLANCO, Luis Guillermo. Muerte digna: consideraciones bioético-jurídicas. Buenos Aires: Ad-Hoc, 1997, p. 50.

3 SANTORO, Luciano de Freitas. Morte digna: o direito do paciente terminal. Curitiba: Juruá, 2010, p. 127.

4 STF, Ação Direta de Inconstitucionalidade 6341, julgada em 15/04/2020. Disponível aqui.

5 TSE. "Presidente do TSE lamenta número recorde de mortes pela Covid-19". Disponível aqui.

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Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).