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Concessão de crédito e superendividamento: responsabilidade civil por informação inadequada

terça-feira, 31 de agosto de 2021

Atualizado às 08:36

A lei 14.181/2021 entrou em vigor com o objetivo de aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento. Esse fenômeno socioeconômico - definido por Claudia Lima Marques como a "impossibilidade global do devedor-pessoa física, consumidor, leigo e de boa-fé, de pagar todas as suas dívidas atuais e futuras de consumo, excluídas as dívidas com o fisco, oriundas de delitos e de alimentos"1 - está diretamente ligado à oferta irrestrita de crédito. A nova lei trouxe um série de deveres que devem ser cumpridos pelas instituições financeiras que oferecem crédito, voltados principalmente à informação.

Embora viva na chamada "sociedade da informação", o homem nunca se viu tão desinformado. O acesso à informação é muito fácil. Entretanto, o acesso a uma informação de qualidade, esclarecedora, confiável e qualificada como adequada, jamais foi tão difícil. Especialmente, a informação decisiva para a celebração e a execução adequadas do contrato. A exigência de lealdade e transparência na contratação impõe, portanto, uma forma de controle da adequação da informação. O exercício não abusivo da liberdade de contratar demanda, dessa forma, um procedimento de consentimento informado, tanto substancial como instrumental, baseado na conjugação da vedação ao abuso do direito, com a incidência do princípio da boa-fé, no que tange à informação adequada.

A informação é direito fundamental.2 Um dos objetivos da Política Nacional de Relações de Consumo é a "educação e informação de fornecedores e consumidores, quanto aos seus direitos e deveres, com vistas à melhoria do mercado de consumo". O art. 54-B da lei 8.078/90 traz informações que devem, junto às do art. 52, ser apresentadas de forma prévia e adequada no momento da oferta ao consumidor no fornecimento de crédito.

O direito fundamental à informação corresponde a um dever de informar. Sob a ótica da boa-fé objetiva, o dever de informar é indicado como dever anexo ou lateral do contrato, pois é inviável o estabelecimento de confiança sem a adequada informação. O fornecimento da informação, na formação do contrato, é requisito para a lealdade na relação, pois viabiliza a formação da vontade, na medida em que oferece os elementos básicos para a decisão racional de contratar ou não contratar. Não basta, contudo, apresentar as informações em formulários ou folhetos sem que estejam em linguagem acessível e sem que exista uma conversa simples e honesta por parte do fornecedor de crédito com o futuro tomador. Como diz o adágio: o excesso de informação mata a própria informação. Daí a necessidade de que a informação seja adequada.

E se a instituição financeira não presta a informação de forma adequada? O efeito do abuso da liberdade de contratar ou a violação de dever anexo por informação inadequada na concessão de crédito pode ensejar uma variedade de efeitos previstos na lei 14.181/2021, entre os quais se costuma destacar a responsabilidade civil. Em caso de descumprimento, há a previsão de várias sanções, dentre elas, a redução dos juros, dos encargos ou de qualquer acréscimo ao principal e a dilação do prazo de pagamento previsto no contrato original, conforme a gravidade da conduta do fornecedor e as possibilidades financeiras do consumidor, sem prejuízo de outras sanções e de indenização por perdas e danos, patrimoniais e morais, ao consumidor.

A informação inadequada para a celebração do contrato atingiria, tradicionalmente sua validade. A invalidade do contrato de concessão de crédito por informação inadequada, como um todo, contudo, não parece ser a melhor saída para todos os casos. A depender dos meandros da questão sob exame, deve ser utilizado o brocardo "utile per inutile non vitiatur", previsto no art. 184 do Código Civil3 e consubstanciado no instituto da redução e no princípio da conservação dos negócios jurídicos para, se possível, invalidar somente a cláusula ou as cláusulas que deram origem ao vício. Por exemplo: se o ato abusivo se deu pela violação do dever de informar no que concerne aos juros moratórios, a cláusula referente a esses juros merece ser invalidada, mantendo-se tão somente a cobrança dos juros legais. Se a violação do dever de informar ocorreu em relação ao instrumento contratual ser, também, um título de crédito, como ocorre nos casos de concessão de crédito e cédula de crédito bancário, tal documento perderia a eficácia cambiária, eis que ausente a informação para que ocorra a confiança.

Operada a declaração de invalidade da cláusula, abre-se ao tomador do crédito a pretensão restitutória relativa à devolução dos valores pagos àquele título, que se funda, como definido em jurisprudência, na vedação geral ao enriquecimento sem causa.4 A despeito das críticas, consolidou-se ainda o entendimento jurisprudencial de que, nesses casos, a devolução se daria de forma simples, cabível a devolução em dobro somente em caso de comprovada má-fé do concedente do crédito.5 Ela não se confunde, nem afasta, todavia, a possibilidade de responsabilização civil. A violação do dever de informar ocorre em período anterior à formação do contrato, por isso desafia responsabilidade pré-contratual. A responsabilidade pré-contratual, em geral, teve berço na chamada "culpa in contrahendo". A teoria da culpa in contrahendo foi formulada por Rudolph von Jhering no ano de 1881, a partir de uma inquietação que surgia sempre que ministrava suas aulas e não encontrava respostas que lhe parecessem suficientes sobre "se a parte que culposamente errou na formação do contrato deveria responder pelos danos que causou à parte contrária".6

No direito brasileiro, Pontes de Miranda estudou a culpa in contrahendo tanto nos casos de nulidade por ilicitude ou impossibilidade da prestação, quanto nas hipóteses de não conclusão do contrato. Para o autor, "por existir o dever de verdade, ou dever de esclarecimento, cria-se entre os figurantes relação jurídica, que impõe a quem negocia proceder como as pessoas honestas procedem".7 Da mesma forma, José de Aguiar Dias concebia deveres anteriores ao contrato, classificando como delitual a responsabilidade que deriva da contrariedade à boa-fé.8 Em suas palavras, "Há um limite que não pode ser ultrapassado nos esforços que uma parte desenvolve para induzir a outra a contratar".

Posteriormente, os estudos iniciais da culpa in contrahendo foram ampliados, passando por revisões doutrinárias, concebendo-se novos casos e contemplando novas hipóteses que não se restringem à questão da invalidade.9 Com efeito, a doutrina da responsabilidade pré-contratual passa a conceber, além da hipótese da culpa em contrahendo - e consequentemente a questão da invalidade, outras questões, como a sistematização apresentada por Judith Martins-Costa: o injusto rompimento das tratativas; os danos causados à pessoa ou ao patrimônio durante as negociações; a conclusão de contrato nulo, anulável ou ineficaz; a ausência ou defeituosidade de informações que seriam devidas e pela falta culposa de veracidade de informações prestadas; falsas representações na fase de tratativas, desde que não recaindo no dolo, que é abrangido por figura específica e danos culposamente causados por atos ocorridos na fase das negociações, quando tenha sido validamente constituído o contrato.10

Esse é o cenário em que se insere a responsabilidade decorrente da concessão abusiva de crédito por informação inadequada. Se a informação inadequada na concessão de crédito importar dano ao tomador, seja ele patrimonial, na modalidade de dano emergente ou lucros cessantes ou extrapatrimonial, estando presentes os elementos da responsabilidade civil, a instituição financeira deverá reparar o dano.11 Esses efeitos civis não afastam sanções de outras naturezas, desde medidas administrativas, como cassação de licença, suspensão da atividade e interdição12, impostas pelos órgãos reguladores, a penas na seara criminal, como detenção e pagamento de multa, a destacar a controversa questão sobre a função da reparação civil.13

A inovação legislativa demandará da jurisprudência um trabalho significativo para a aferição, sempre à luz do caso concreto, da existência e extensão de eventual dever de reparar, o qual dependerá de ponderação dos interesses em jogo para a caracterização de um dano injusto, de modo a não recair, como já se alertou em doutrina, "nem no esvanecimento nem na hipertrofia do dever de informar".14

*Cintia Muniz de Souza Konder é doutora em Direito Civil pela UERJ, mestre em Direito e Sociologia pela UFF. Professora de Direito Civil da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ). Professora dos cursos de pós-graduação lato sensu da UERJ e da PUC-Rio. Sócia da Konder Sociedade de Advogados.

__________

1 MARQUES, Claudia Lima. Sugestões para uma lei sobre o tratamento do superendividamento de pessoas físicas em contratos de crédito ao consumo: proposições com base em pesquisa empírica de 100 casos no Rio Grande do Sul. In: MARQUES, Claudia Lima; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli (coord.). Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito. São Paulo: Ed. RT, 2006. p. 255.

2 Constituição da República Federativa do Brasil, art. 5º, incisos XIV, XXXIII e LXXII.

3 Art. 184. Respeitada a intenção das partes, a invalidade parcial de um negócio jurídico não o prejudicará na parte válida, se esta for separável; a invalidade da obrigação principal implica a das obrigações acessórias, mas a destas não induz a da obrigação principal.

4 BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 2ª Seção. REsp 1360969/RS. Rel. Min. Marco Buzzi, Rel. p/ Acórdão Min. Marco Aurélio Bellizze. Julg. 10 ago. 2016. Publ. DJe 19 set. 2016. Sobre a relação entre a vedação ao enriquecimento sem causa e a teoria das nulidades, v. SOUZA, Eduardo Nunes de. Teoria geral das invalidades do negócio jurídico: nulidade e anulabilidade no direito civil contemporâneo. São Paulo: Almedina, 2017, p. 343.

5 BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 4ª turma. AgRg no AgRg no AREsp 625561, Rel. Min. Marco Buzzi.. Publ. DJe 04 jun. 2021.

6 PEREIRA, Regis Fichtner. A Responsabilidade civil pré-contratual: Teoria geral e responsabilidade pela ruptura das negociações contratuais. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 114-115.

7 MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. Tomo XXXVIII. 2ª ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1962, p. 320.

8 DIAS, José de Aguiar. Da Responsabilidade Civil. 11ª ed. revista, atualizada de acordo com o Código Civil de 2002 e aumentada por Rui Berford Dias. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 176.

9 Neste sentido, Karina Fritz: "A culpa in contrahendo pela celebração de contrato nulo é considerada atualmente apenas uma das hipóteses da ampla figura da responsabilidade pré-contratual, assim como o rompimento injustificado das tratativas. De fato, a responsabilidade pré-contratual é figura bem mais ampla e não se limita a esses dois casos, mas surge sempre que durante a fase de preparação do negócio jurídico uma das partes causa dano à outra em função da violação de um dever decorrente da boa-fé objetiva - princípio consagrado no art. 422 do CC/2002 - do qual resultam os denominados deveres de laterais (Nebenpflichten) ou deveres de consideração (Rücksichtnahmepflichten), conforme terminologia adotada pelo BGB após a Reforma de Modernização do Direito das Obrigações, realizada em 2001. Pode-se dizer, então, conceituar a responsabilidade pré-contratual como aquela decorrente da violação dos deveres da boa-fé objetiva durante o amplo período de preparação do negócio jurídico. Essa afirmação põe em relevo que o fundamento teórico da responsabilidade repousa na boa-fé objetiva, correspondente à Treu und Glauben do direito alemão, posto que a categoria geral dos deveres de consideração decorre substancialmente do mandamento da lealdade, ínsito ao princípio". (FRITZ, Karina Nunes. A responsabilidade pré-contratual por ruptura injustificada das negociações. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 1, n. 2, jul.-dez./2012. Disponível aqui. Acesso em 14 out. 2017.

10 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p. 418.

11 A reparação do dano tem começado a fugir à glosa da patrimonialidade, no que Anderson Schreiber elaborou com o a "quarta tendência da responsabilidade civil brasileira". (SCHREIBER, Anderson. Novas tendências da responsabilidade civil brasileira. SCHREIBER, Anderson. Direito Civil e Constituição. São Paulo: Atlas, 2013, p. 168).

12 BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos e. Das práticas comerciais. GRINOVER, Ada Pelegrini [et al.] Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p. 321.

13 Cf: ROSENVALD. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo: saraiva, 2017.

14 TEPEDINO, Gustavo; GUIA, Rodrigo da. Dever de informar e ônus de se informar: A boa-fé objetiva como via de mão dupla. Migalhas. Disponível aqui. Acesso em 30 ago 2021.