A coerente aplicação da lei nos distratos em loteamentos - 4ª turma do STJ
quinta-feira, 4 de dezembro de 2025
Atualizado em 3 de dezembro de 2025 09:23
Antes da lei da edição da lei 13.786/16 - conhecida como "lei dos distratos", a jurisprudência, com base no CDC, fixava retenções variáveis, o que gerava insegurança e desequilíbrio entre as partes. A lei 13.786/18 surgiu buscando uniformizar as práticas, permitindo a retenção de valores de forma objetiva, de acordo com os critérios fixados na lei e a cobrança de taxa de fruição, inclusive para lotes não edificados.
1. Aplicação da lei do distrato e a possibilidade de retenções contratuais
Importante entender o contexto histórico que originou a lei retro citada. Nos anos de 2015 e 2016, houve uma avalanche de ações de rescisão contratual de compromissos e/ou promessas de venda e compra por conta de um conjunto de fatores econômicos, financeiros, políticos, inclusive desdobramentos da operação "lava-jato". Considerando o fato que a maioria dos empreendimentos se encontravam ainda na fase de obras, o pedido de devolução de parcelas é um momento crítico, pois é justamente nessa fase que todas as parcelas são utilizadas para a implantação das obra de infraestrutura nos loteamentos, já que os loteadores não contam com financiamento de suas obras.
Justamente por essa razão, os pedidos resolução/rescisão contratual da venda de imóveis impactaram diversos empreendimentos, o que levou muitas empresas a entrarem recuperação judicial.
A entrada em vigor da lei 13.786 de 2018, foi uma resposta dada pelo legislador para trazer maior segurança jurídica aos contratos de compra e venda de imóveis ao disciplinar as regras que devem ser observadas para a rescisão por iniciativa do comprador, dentre elas a possibilidade da retenção de valores referentes à multa contratual e à taxa de ocupação ou fruição, mesmo nos casos de lotes não edificados.
Com a edição da lei do distrato, o legislador positivou essa prática ao prever a cláusula penal de 10% sobre o valor atualizado do contrato (art. 26-A da lei 6.766 de 1979), conferindo uniformidade e previsibilidade às relações contratuais imobiliárias. Dessa forma, o equilíbrio entre os direitos do comprador e do vendedor foi consolidado no ordenamento jurídico, reduzindo a insegurança que antes recaía sobre as partes envolvidas.
Outrossim, destacando que a taxa de fruição ou taxa de ocupação foi um dos pontos de maior inovação da lei do distrato. O art. 32-A, inciso I, passou a autorizar a retenção de valores correspondentes à eventual fruição do imóvel, até o equivalente a 0,75% do valor atualizado do contrato (Brasil, 2018). Essa posição reforçou o princípio da autonomia privada e assegurando o equilíbrio entre os direitos e deveres das partes envolvidas na relação contratual.
Decisão recente proferida pela 4ª turma do STJ (2025) confirmou a legalidade dessas retenções, notadamente o REsp 2.104.086, por meio do qual foi mantido o acórdão do TJ/SP, que havia reconhecido a validade das cláusulas de dedução para uma rescisão de compromisso de venda e compra assinado na vigência da lei do distrato.
Em referida demanda judicial, o adquirente que havia celebrado um contrato de promessa de compra e venda de um lote em um empreendimento de lazer na vigência da lei do distrato e, pleiteou a restituição integral dos valores pagos. O TJ/SP declarou a rescisão do contrato, mas entendeu que as retenções contratuais e que estavam em consonância com a lei 13.786/18 eram perfeitamente legais e não haveria nada a ser devolvido ao comprador.
O primeiro ponto crucial trazido no brilhante voto da relatora ministra Maria Isabel Gallotti e que merece aplausos é o reconhecimento expresso do princípio constitucional dos três poderes: não pode o Poder Judiciário alterar uma lei emanada pelo Poder Legislativo, deve sim impingir seu cumprimento, tendo sido invocado a súmula 1 do STF1.
A única ressalva para o Judiciário não cumprir uma lei seria na hipótese de sua legalidade e ou constitucionalidade ter sido questionada judicialmente com sentença reconhecendo sua ilegalidade ou inconstitucionalidade.
Como não houve questionamento de sua legalidade e ou constitucionalidade, tem o Judiciário o dever de zelar pelo seu cumprimento, prezando pela segurança jurídica e estabilidade nas relações contratuais.
O segundo ponto interessante desta decisão diz respeito à taxa de fruição: ela pode ser aplicada tanto para lotes edificados como também para lotes não edificados, contrariando as recentes decisões da 3ª turma do STJ (Resp 2.117.412/SP, Resp 211.681/SP, Resp 2.107.422/SP, Resp 2.106.548), uma vez que a lei não faz qualquer distinção para sua aplicação. Destarte, a cobrança da taxa é admitda desde o momento que o imóvel foi disponibilizado ao compromissário comprador, que poderá usá-lo como bem entender, seja para lazer, construção, para revenda, estacionamento e ou qualquer outro uso. Assim foi decidido: "Ressalte-se que o fato do imóvel em questão se tratar de lote sem qualquer edificação, não afasta a existência dos lucros cessantes, tendo em vista que a ocupação do bem privou a vendedora de utilizar e/ou destinar o imóvel ao que melhor lhe conviesse".
Em relação aos julgados acima citados, da 3ª turma do STJ, Gomide (2025) comenta que a decisão da 3ª turma do STJ no REsp 2.106.548/SP evidencia uma resistência significativa à aplicação plena da lei do distrato (lei 13.786 de 2018), ao preferir argumentos baseados em precedentes e súmulas anteriores à vigência da norma e interpretar o CDC como obstáculo à sua incidência.
Esse entendimento revela certa desconsideração do esforço legislativo que visou justamente estabelecer um marco normativo específico para os contratos imobiliários, com previsibilidade e critérios objetivos de resolução contratual. Ao invocar regras anteriores como se ainda prevalecessem sobre o dispositivo novo e dedicado à matéria, o voto da relatora, ministra Nancy Andrighi, parece subestimar a competência do Legislativo em disciplinar relações que envolvem interesses econômicos e consumidores, o que gera insegurança jurídica e debilita a coerência normativa entre contrato e lei moderna (Gomide, 2025).
Ainda, em relação ao julgado da 4ª turma, foi ponderado que as retenções aplicadas pela Loteadora são lícitas desde que: a) as regras de retenção estejam expressamente previstas no contrato de promessa ou compromisso de venda e compra; b) que essas regras de retenção estejam em perfeita consonância com a lei do distrato; e c) que o comprador tenha sido previamente informado das consequências da desistência, com sua rubrica na cláusula que trata dessas retenções.
Assim, a Corte reafirmou que, desde que o comprador tenha sido previamente informado, é possível aplicar os descontos previstos na lei e no contrato, ainda que o resultado final não gere devolução de valores, nos seguintes termos: "(...) Não se verifica ofensa ao art. 53 do CDC, pois não há previsão no contrato de cláusula que estabeleça a perda total das prestações pagas em benefício do loteador. Na verdade, o contrato expressamente previu a devolução das quantias pagas com descontos permitidos na lei em vigor quando de sua celebração. Se nada há a ser restituído ao adquirente é porque ele pagou quantia muito pequena, que não é capaz de quitar sequer a cláusula penal estabelecida contratualmente dentro dos limites da lei".
Considerações finas
Nesse escopo, a decisão da 4ª turma do STJ, ao reconhecer a legalidade da retenção contratual e da taxa de fruição mesmo em terrenos sem edificação, reforça a importância da previsibilidade e da segurança jurídica nas relações entre loteadores e adquirentes, consolidando a compreensão de que a desistência contratual implica consequências financeiras proporcionais e amparadas pela legislação vigente, valorizando o cumprimento dos compromissos firmados e desestimulando o rompimento injustificado dos contratos.
Tal entendimento demonstra maturidade na interpretação da norma, alinhando-se aos princípios da boa-fé objetiva, da função social do contrato e do equilíbrio econômico das partes.
Ao admitir que a posse do lote, ainda que não edificada, constitui forma de fruição que impede sua comercialização por terceiros, o STJ consolidou uma leitura coerente com a finalidade compensatória da taxa e com a proteção da legítima expectativa do vendedor/loteador.
Assim, a decisão fortalece o ambiente jurídico e econômico do setor imobiliário, conferindo maior estabilidade às negociações e evitando a utilização abusiva do distrato. Em síntese, a posição do STJ deve ser apoiada, pois harmoniza o interesse do consumidor com a necessidade de preservar a confiança e a segurança das relações contratuais no mercado imobiliário contemporâneo.
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Referências
STJ. Superior Tribunal de Justiça. Sob Lei do Distrato, é possível aplicar multa por desistência e taxa de ocupação de lote não edificado. 2025. Disponível aqui. Acesso em: 20 out. 2025
BRASIL. Lei nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979. Dispõe sobre o Parcelamento do Solo Urbano e dá outras Providências. Disponível aqui. Acesso em: 17 out. 2025.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 2104086 - SP (2023/0373911-8). Relatora: Ministra Maria Isabel Gallotti. Recorrente: Anderson Saturnino dos Santos. Recorrido: Momentum Empreendimentos Imobiliários Ltda. Julgamento: 7 de outubro de 2025.
BRASIL. Lei nº 13.786, de 27 de dezembro de 2018. Altera as Leis 4.591, de 16 de dezembro de 1964, e 6.766, de 19 de dezembro de 1979, para disciplinar a resolução do contrato por inadimplemento do adquirente de unidade imobiliária em incorporação imobiliária e em parcelamento de solo urbano. Disponível aqui. Acesso em: 17 out. 2025.
BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível aqui. Acesso em: 17 out. 2025.
GOMIDE, A. J. Lei dos Distratos, insegurança jurídica e a atual jurisprudência do STJ. 2025. Migalhas Edilícias. Disponível aqui. Acesso em: 20 out. 2025.
1 Súmula 1- do STF. "Viola a cláusula de reserva de plenário (CF, artigo 97) a decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, afasta sua incidência no todo ou em parte."

