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As funções do Tribunal Marítimo - Parte IV

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

Atualizado em 9 de fevereiro de 2022 11:47

A FUNÇÃO ARBITRAL

Introdução

Dando continuidade à série de artigos sobre as funções do Tribunal Marítimo (TM), hoje abordarei a função arbitral.

Como assim, função arbitral?

É o que o leitor, provavelmente, estará perguntando logo de início.  A arbitragem não é o exercício privado da função estatal de jurisdição, por escolha das partes?  Como um Órgão Público poderia exercê-la? 

Muito pouco conhecida, a função arbitral do TM vem definida o art. 16, f) da lei 2.180/54:

Art . 16. Compete ainda ao Tribunal Marítimo:

f) funcionar, quando nomeado pelos interessados, como juízo arbitral nos litígios patrimoniais consequentes a acidentes ou fatos da navegação;

Apesar dos esforços de pesquisa, não encontrei qualquer registro dos trabalhos legislativos da época, que pudessem indicar alguma motivação do legislador ao estabelecer tal função, tampouco como funcionaria, efetivamente, tal arbitragem no âmbito da Corte do Mar. Mas isso não impede que seja destacado o caráter "visionário" do instituto, quando se tem em mente que a lei é de 1954, numa época em que pouco se falava em arbitragem no Brasil, e antecedendo em mais de 40 anos à lei 9.307/96.

Todavia, o ponto normalmente destacado pelos que escrevem sobre essa função é que o dispositivo jamais foi aplicado, ou seja, jamais ocorreu uma arbitragem no âmbito do TM.  Por isso, na coluna de hoje, em vez de expor ao leitor como determinada função é exercida pelo Tribunal Marítimo, me permitirei um exercício de futurologia, indagando como esta função poderia ser exercida.

Tentando, portanto, ir além dessa constatação mais comuns, a pergunta que se quer responder aqui é:  pode ser despertada essa vocação, ou seja, pode vir a ser aplicado o dispositivo, fazendo do TM, efetivamente, uma câmara arbitral, quando assim escolhida pelos interessados?

Penso que a questão se desdobra em outras três perguntas, bastante simples e diretas:

- É possível?

- É desejável?

- Como fazer?

Evidentemente, este breve ensaio não tem a pretensão de esgotar as possíveis respostas - até porque é um exercício de "futurologia", com os riscos inerentes a essa limitação - mas apenas de levantar algumas ideias para fomentar o debate e o desenvolvimento do tema.

É possível?

Quanto à primeira questão, a resposta passa, essencialmente, por saber se o dispositivo está ainda em vigor e se é compatível com a ordem constitucional.

O dispositivo foi recepcionado pelas sucessivas Constituições que o sucederam (1967, 1969 e 1988), não havendo nenhuma incompatibilidade com as regras e princípios dessas Cartas.  Já está totalmente superada, em particular, a controvérsia sobre a compatibilidade da arbitragem com o princípio da inafastabilidade da jurisdição, presente atualmente no art. 5º, XXXV da Constituição Federal, conforme assentado pelo STF, em 2001, em histórico julgamento que encerrou as resistências que ainda se apresentavam à lei 9.307/96.

O dispositivo é, também, compatível com a legislação posterior.  Observe-se o que dispõem o art. 13 e seu § 3º da lei 9.307/96:

Art. 13. Pode ser árbitro qualquer pessoa capaz e que tenha a confiança das partes.

§ 3º As partes poderão, de comum acordo, estabelecer o processo de escolha dos árbitros, ou adotar as regras de um órgão arbitral institucional ou entidade especializada.

O TM pode ser entendido, sem dificuldades, na abrangência da definição de "órgão arbitral institucional", porque assim designado pela sua própria lei de criação.

Quanto à designação dos árbitros, a reforma promovida pela lei 13.129/15 eliminou o "monopólio" que as câmaras arbitrais antes detinham, para designar apenas os árbitros de suas listas, e aumentou a autonomia das partes neste ponto.  Quanto a isto, também não há qualquer incompatibilidade.

Conclui-se, assim, sob o ponto de vista jurídico, que é possível a arbitragem no âmbito do TM, uma vez que o art. 16, f) da lei 2.180/54 está em vigor, é plenamente válido e não se choca com nenhum outro dispositivo da legislação brasileira.

É desejável?

Passando à segunda questão, isto seria desejável? Em outros termos, colocar em prática essa possibilidade seria favorável à efetividade da jurisdição, ao acesso à justiça e à celeridade processual? Haveria alguma vantagem, em comparação com a arbitragem no âmbito de órgãos privados ou com a solução judicial?

Tenha-se em mente, em primeiro lugar, os litígios contratuais. À primeira vista, não haveria vantagem em tal procedimento, posto que a vocação natural do TM é o julgamento de acidentes e fatos da navegação, que são questões extracontratuais. Todavia, vale lembrar que, entre seus integrantes, o TM possui juízes especialistas em armação de navios e em engenharia naval, matérias que permeiam muitos dos litígios contratuais marítimos. Embora residual, não estaria descartada a opção, pelas partes, pelo TM como órgão arbitral de litígios contratuais.

É, porém, no campo dos litígios extracontratuais que essa vocação melhor se revelaria. Em caso de acidentes ou fatos da navegação, as partes, queiram ou não, já estarão ligadas pela circunstância de serem partícipes (seja obrigatoriamente, como representados, seja por uma imposição lógica, pelo seu interesse jurídico em ingressar facultativamente como assistente da acusação) do processo do TM.

Assim, mesmo que as partes não tenham qualquer relação entre si, ou ainda que sequer se conheçam ou "não se falem", para usar aqui uma expressão popular, ao cabo de alguns meses, terão, independentemente de sua vontade, um processo instruído por órgão imparcial (através do IAFN - inquérito de acidentes e fatos da navegação) e, mais importante, pronto para ser decidido por um colegiado igualmente imparcial, formado por sete juízes de altíssima qualificação.

Neste ponto, pelo menos duas alternativas se apresentariam para as partes: a primeira, simplesmente aguardar a decisão do TM e, depois, iniciar uma disputa civil (sobre os aspectos patrimoniais), em uma câmara arbitral privada ou no próprio Poder Judiciário.  Incorreriam, com isso, em todos os custos - temporais e financeiros - de uma nova instrução, possivelmente com a realização de perícias, todo o custo de honorários do perito e de assistentes técnicos, mais a natural demora desse procedimento e o tempo necessário para formação do tribunal arbitral e para que os árbitros se inteirem de todos os fatos e argumentos.  No âmbito de uma solução judicial, então, desnecessário destacar o custo financeiro, a demora do processo e o possível desconhecimento dos magistrados quanto às especificidades do Direito Marítimo e quanto às peculiaridades da navegação.

A segunda alternativa seria, antes do julgamento (ou seja, em qualquer momento entre o início do processo e a designação da pauta de julgamento), concordarem as partes em usar da faculdade do art. 16, f) da lei 2.180/54, de modo que, após o julgamento do processo administrativo do TM, fosse constituído um tribunal arbitral, que proferiria sentença sobre os aspectos civis dos acidentes ou fatos da navegação, com a força atribuída pelo art. 18 da lei 9.307/961.

As vantagens da segunda alternativa são evidentes.  Já tendo julgado a responsabilidade pelo acidente ou fato da navegação, ainda que para fins administrativos, não haverá maior dificuldade em proceder à atribuição de responsabilidades no âmbito civil, tampouco em liquidar os danos, dado que os fatos são os mesmos e já estarão amplamente conhecidos do tribunal arbitral.

A própria terminologia utilizada pelo Tribunal Marítimo em alguns de seus acórdãos, ao distribuir a culpa em percentuais (decidindo, por exemplo, que um agente teve 70% da culpa pelo acidente, e outro 30%), se assemelha, em alguma medida, ao instituto da regulação de avarias, amplamente conhecido e utilizado no Direito Marítimo.  De modo extremamente simplificado, estes mesmos "percentuais de culpa" poderiam ser replicados quando da liquidação do julgado, para fins de fixação do montante devido de indenização.

Neste passo, merece especial consideração a questão da indicação dos árbitros.  Este é um ponto que, nos últimos anos, vem causando preocupação no meio arbitral, em razão da crescente demora nesta fase do procedimento, trazendo grande atraso aos trabalhos.  Note-se que, no âmbito da arbitragem aqui preconizada, a indicação dos árbitros seria muito facilitada.  Entre outros arranjos possíveis, um bastante prático seria o seguinte: o Juiz relator do processo administrativo seria, automaticamente, o presidente do tribunal arbitral, enquanto as partes designariam, dentre os restantes (cinco, porque excluído o Presidente do TM), os dois que integrariam a fase arbitral do processo.

Uma possível objeção a este procedimento estaria nas diferenças quanto à responsabilização nos âmbitos administrativo e civil, ou seja, a existência de possível responsabilidade objetiva, excludentes, solidariedade legal ou outras particularidades de cada ramo do Direito.  Na verdade, esta objeção já está presente naqueles que negam valor à decisão do TM, quando no exercício da sua função instrutória.  

A objeção não resiste a uma comparação singela: imagine o leitor uma pequena comarca, com um único juiz que acumula funções cíveis e criminais.  Não é estranho ao direito que, julgando os mesmos fatos, o mesmo juiz possa absolver um réu criminalmente, mas condená-lo no âmbito civil, justamente porque no primeiro havia uma excludente de ilicitude.  Poderia ser, por exemplo, a hipótese de uma pessoa que quebra a vitrine de uma loja e furta um extintor, para apagar um incêndio que ocorre na sua casa.  Essa pessoa seria absolvida no âmbito criminal (dadas as excludentes que incidem na hipótese), mas condenada, no âmbito civil, a indenizar o lojista pelos danos à propriedade e pelo furto do extintor, e, talvez, até mesmo por eventuais outros furtos que tenham ocorrido, por terceiros, após a quebra da vitrine.  A hipótese contrária (não responsabilização civil e condenação criminal), embora rara, também não pode ser descartada a priori.

Destarte, se aos magistrados é possível julgar os mesmos fatos, com diferentes conclusões quanto à responsabilização (criminal, civil, administrativa, etc.), porque se negaria idêntica possibilidade aos juízes do TM, quando julgam como tribunal administrativo e, na sequência, como tribunal arbitral?  Se reconhecem alguma excludente, ou fator que deva influir na ponderação de responsabilidades, decorrente de disposição legal específica do âmbito civil, ou ainda de cláusula contratual, podem muito bem considerá-las como árbitros, mesmo não o tendo feito como juízes administrativos. Não vejo dificuldade em tal distinção.

Em suma, sendo ressaltado que a escolha por este procedimento arbitral seria sempre uma faculdade das partes, sua disponibilização, aos jurisdicionados do TM, seria desejável, por oferecer um meio célere e efetivo de resolução de disputas marítimas.

Como fazer?

Por fim, resta analisar qual seria o procedimento necessário para que esse instituto fosse colocado em prática.

Em primeiro lugar, seria necessário regulamentar o disposto no art. 16, f) da lei 2.180/54.  Tal regulamento deveria vir, em primeiro lugar, através de Decreto do Presidente da República, tendo em vista o que dispõe o art. 84, da Constituição Federal2.   Esse Decreto, todavia, não dispensaria atos ulteriores do próprio TM, tratando de aspectos ainda mais específicos ou detalhados.

Alguns aspectos dessa possível regulamentação podem ser desde já comentados. Em primeiro lugar, seria necessária uma definição clara dos possíveis momentos em que as partes poderiam optar por este procedimento.  Segundo já expressado acima, o mais conveniente seria que isto pudesse ocorrer em qualquer momento entre o recebimento da representação e a inclusão em pauta de julgamento. A opção posterior ao julgamento do processo administrativo não seria possível, pois as partes já saberiam o resultado do julgamento e, portanto, a atribuição de responsabilidades efetuada pelo Tribunal.

Aspecto delicado diz respeito à remuneração dos árbitros. Como se sabe, na arbitragem, as partes devem pagar o valor determinado pela entidade arbitral (ou, no caso da arbitragem ad hoc, convencionado pelas partes) a título de honorários que serão recebidos pelos árbitros, especificamente para aquele procedimento.  Não existe, obviamente, um "salário", pois, segundo a já consagrada expressão, "ninguém é árbitro, alguém só pode estar árbitro". Para a ideia aqui exposta, poderia funcionar da mesma maneira, com o pagamento de honorários, aos juízes que funcionassem na "fase arbitral" do processo no TM, especificamente para cada processo. A única diferença é que, sendo uma peculiar câmara arbitral de natureza pública, os valores dos honorários deveriam ser previamente fixados no regulamento, ou escalonados segundo uma tabela (a depender da complexidade ou valor do litígio), até para subsidiar a opção das partes pela arbitragem no TM ou em câmara privada, ou ainda pela solução do litígio no Poder Judiciário.  Aliás, o mesmo regulamento deverá prever valores de honorários e de custas a serem recolhidas para o TM, de modo a custear o trabalho adicional da secretaria com essa fase arbitral do processo. Pode-se cogitar ainda, para que os recursos não sejam "perdidos" no caixa comum da União, a criação de um fundo especial para destinação destas custas, a ser aplicado na modernização e desenvolvimento dos serviços de apoio do Tribunal.

Uma possível objeção quanto aos honorários estaria na vedação, contida na Constituição Federal, quanto ao recebimento, pelos magistrados, de custas, honorários ou qualquer outro auxílio, como previsto na Constituição Federal. Não é difícil afastar esta objeção: o Tribunal Marítimo não integra o Poder Judiciário e seus juízes, apesar da denominação, não são magistrados no sentido específico atribuído pelo art. 95 da Constituição Federal e, portanto, não se sujeitam integralmente ao regime jurídico da magistratura. Não incide, assim, o óbice aqui aludido.

Tampouco haveria alguma irregularidade quanto à cumulação de vencimentos, ou a questões de teto remuneratório, justamente porque os honorários não são "vencimentos", e a fonte de recursos seria de natureza privada (partes litigantes) e facultativa. Não haveria, portanto, qualquer ligação com receita ou despesa públicas.

Quanto aos aspectos procedimentais, propriamente ditos, seria recomendável, ainda, que o regulamento tratasse do sigilo da fase arbitral do processo - se assim convencionado pelas partes - e também da matéria probatória. Neste particular, só faria sentido a produção de provas quanto a matérias não apreciadas na fase administrativa do processo, como aquelas que dizem respeito à liquidação da condenação.

Por fim, como já adiantado acima, seria essencial que o regulamento tratasse da escolha dos árbitros, já que a abreviação desta fase representaria grande vantagem comparativa da arbitragem no TM, sobre aquela efetuada em câmaras privadas.  Além da possibilidade já aventada acima (relator do processo administrativo como presidente nato do tribunal arbitral, com mais dois juízes escolhidos um por cada parte), seria possível ainda que fosse formado um colegiado de sete árbitros, com a composição completa do tribunal. Ainda, numa composição tríplice, em vez da escolha das partes, poderia ser feito um sorteio.

Em suma, várias seriam as possibilidades, e o regulamento poderia, até mesmo, prever todas elas, deixando às partes a escolha do procedimento, em linha com o espírito de autonomia que informa a arbitragem.

A implementação dessa ideia demandaria, ainda, algumas providências administrativas a cargo do TM - de razoável complexidade, reconhece-se - como o treinamento de pessoal e a adaptação de rotinas internas, espaços e gestão documental.

Conclusão

Em conclusão, pode-se dizer que há um grande horizonte aberto para a arbitragem no âmbito do Tribunal Marítimo, tal como prevista na lei 2.180/54, sendo possível sua implementação, somando mais uma porta ao acesso à justiça, com celeridade e eficiência.

_________________

1 Art. 18. O árbitro é juiz de fato e de direito, e a sentença que proferir não fica sujeita a recurso ou a homologação pelo Poder Judiciário.

Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:

IV - sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução;