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O Poder Judiciário e a eficácia das decisões do tribunal marítimo na visão de um juiz

quinta-feira, 13 de abril de 2023

Atualizado às 07:54

O Tribunal Marítimo, com jurisdição em todo o território nacional, é órgão autônomo da Administração Federal, auxiliar do Poder Judiciário, competente para jugar, no que interessa ao presente artigo, os acidentes e os fatos da navegação.

É formado por Magistrados especialistas em Direito Marítimo, Direito Internacional, Armação e Navegação, mas também por Capitães de Longo Curso, de Mar e Guerra e de Fragata do Corpo de Engenheiros da Marinha, que são responsáveis por afirmar a natureza e a extensão dos acidentes ou fatos da navegação, indicando a causa determinante de cada um deles e, se o caso, impor sanções de caráter meramente administrativo.

Como bem lembrado pelo especialista na matéria, Paulo Henrique Cremoneze (Prática de Direito Marítimo, 3ª edição, São Paulo, Aduaneiras, 2015), a criação do Tribunal Marítimo data de 1931; hoje sua função é apenas administrativa, estando vinculado à União e ao Ministério da Defesa, e cuja competência delimita-se pelos atos e fatos inerentes à navegação. Cabe ao Tribunal Marítimo processar e julgar administrativamente os casos que envolvam sinistros diretamente vinculados à navegação1.

No Tribunal Marítimo os peritos são os próprios Magistrados.

A prova produzida no âmbito do Tribunal Marítimo está sob o crivo do contraditório, tendo a Corte o dever de imparcialidade. 

O Tribunal Marítimo julga os fatos e acidentes da navegação, em processo contencioso, com aplicação de normas técnicas e jurídicas compatíveis à solução do conflito e aplicabilidade subsidiária dos códigos de processo, e adota o mesmo procedimento de qualquer outro tribunal2.

Dois pontos merecem destaque especial quando o tema é estudar a eficácia da decisão do Tribunal Marítimo no processo judicial, a saber: i) a autonomia do Tribunal Marítimo; ii) a composição plural da Corte.

Quanto ao primeiro ponto - autonomia -, a ausência de vinculação no ato de julgar com qualquer órgão da administração, somado ao dever de imparcialidade, faz com que as decisões pronunciadas pela Corte Marítima sejam consideradas isentas e independentes, fundadas em critérios eminentemente técnicos próprios da especialidade da matéria sob a sua competência.

Já no que tange ao segundo ponto - composição plural -, as variadas visões de cada um dos julgadores, especialistas em área específica da navegação, permitem que todos os pontos necessários ao melhor julgamento estejam colocados à mesa quando do debate, produzindo um acórdão representativo da melhor técnica.  

Dito isso, diante de um acidente ou fato da navegação, o Tribunal Marítimo fará o seu julgamento para definição sobre a sua natureza e consequência, revelando a sua causa determinante e identificando os respectivos responsáveis, encaminhando o Acórdão ao Poder Judiciário, na sua função de tribunal auxiliar.

Importante o destaque desde logo de que, ao contrário do Tribunal Marítimo, de composição técnica plural, o Poder Judiciário é formado por Magistrados sem o domínio da técnica da navegação, no que o Acórdão encaminhado por aquela Corte representa subsídio de grande importância na solução judicial da causa.

Avançando no estudo, a primeira controvérsia, nesse processo de interação entre Tribunal Marítimo e Poder Judiciário, diz com a necessidade de se implementar a suspensão do processo judicial até o julgamento pelo Tribunal Marítimo, bem como a existência ou não de limitação temporal.

Sobre esse ponto, dois dispositivos legais devem ser analisados, o artigo 19, da Lei 2180/54 e o artigo 313, inciso VII, do Código de Processo Civil3.

É verdade que, no tocante à necessidade de suspensão do processo judicial, a questão, ao meu sentir, está resolvida com a previsão expressa no Código de Processo Civil4. Porém, ainda remanescem controvertidas duas questões interligadas, quais sejam: i) o momento da juntada do Acórdão do Tribunal Marítimo; e ii) o prazo de suspensão do processo judicial.

Como visto, o artigo 19, da Lei 2180/54, menciona a juntada no processo judicial da decisão definitiva do Tribunal Marítimo sempre que a questão controvertida couber nas suas atribuições técnicas.

Por outro lado, o artigo 313, inciso VII, do Código de Processo Civil, apenas afirma a necessidade de suspensão do processo judicial quando a questão envolver a competência do Tribunal Marítimo, sem qualquer delimitação temporal.

É verdade que, sobre o ponto da limitação temporal, o julgamento no Tribunal Marítimo configura verdadeira prejudicialidade externa, o que faria, em princípio, atrair o prazo e a consequência previstos no artigo 313, inciso V, alínea "b", §§ 4º e 5º, todos do Código de Processo Civil5, no que ter-se-ia a limitação temporal peremptória de 01 (um) ano, devendo o Juiz, após o decurso desse prazo, prosseguir com o curso da ação judicial sem aguardar o Acórdão do Tribunal Marítimo.

Todavia, não se pode desconsiderar o fato de que a lei 2180/54 possui natureza especial em relação ao Código de Processo Civil e, ao estabelecer em seu texto "a juntada definitiva da sua decisão", indica que o processo judicial deverá permanecer suspenso até a conclusão do processo no Tribunal Marítimo, independentemente da limitação temporal de 01 (um) ano.

Ressalto, aqui, que não comungo da tese de que o processo judicial poderia prosseguir e, se o caso, até antes da sua sentença, implementar-se a suspensão para juntada da decisão definitiva do Tribunal Marítimo. Isso porque a decisão da Corte Marítima é de sobremaneira importância para o próprio curso da instrução do processo judicial, trazendo evidente prejuízo às partes caso somente venha a ser juntada ao final da instrução, até antes da sentença, sem mencionar o prejuízo para a economia processual, caso alguma prova tenha de ser refeita a partir da conclusão trazida aos autos pelo julgado do Tribunal Marítimo.

Além disso, ainda sobre a suspensão do processo judicial até decisão definitiva do Tribunal Marítimo, como afirmado alhures, na Corte do Mar os Magistrados são os próprios peritos da causa, sendo de todo salutar que o Juiz do processo judicial, sem o conhecimento técnico a respeito dos acidentes e fatos da navegação, suspenda o processo antes do início da fase de instrução e aguarde a vinda da decisão definitiva daquela Corte, no que estará subsidiado para cumprir o ideal do melhor julgamento de mérito possível.

A segunda questão geradora de controvérsia nessa interação entre Tribunal Marítimo e Poder Judiciário é a que diz respeito à eficácia da decisão pronunciada pela Corte do Mar nos processos judiciais.

Ultrapassada a evolução legislativa histórica, em face da limitação do espaço deste artigo, a questão está disciplinada na atual redação do artigo 18, da lei 2180/54, que lhe foi conferida pela lei 9578/976. 

Cabe, aqui, o destaque de que, no projeto do atual Código de Processo Civil (2015), o Acórdão do Tribunal Marítimo, relativo aos acidentes e fatos da navegação, estava estabelecido como sendo título executivo judicial, conforme previsão do vetado inciso X, do artigo 515.

Constou como razão para o veto o fato de que ao atribuir natureza de título executivo judicial às decisões do Tribunal Marítimo, o controle de suas decisões poderia ser afastado do Poder Judiciário, possibilitando a interpretação de que tal colegiado administrativo passaria a dispor de natureza judicial.

Aliás, não custa dizer, que em países como a França, os julgados do Tribunal Marítimo fazem coisa julgada para o Poder Judiciário. Mas bem se sabe que o sistema de contencioso administrativo na França é bastante diferente do sistema Brasileiro (em cujo ordenamento inexiste), de modo que se entende a distinção. No Brasil, exige-se a revisão das decisões do Tribunal Marítimo pelo Poder Judiciário, também considerando nesta revisão a hipótese de chancela-la para o deslinde da causa7.

A decisão do Tribunal Marítimo, no âmbito do processo judicial, haverá de ser recebida pelo Juiz como prova de elevada técnica, relativamente à conclusão sobre os acidentes e fatos da navegação, estando muito distante de configurar mero parecer técnico sobre a questão controvertida8.

Portanto, da atual redação do artigo 18 da lei 2.180/54, não se pode afastar a ideia de que as conclusões estabelecidas pelo Tribunal Marítimo em seus acórdãos são suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário em toda a sua extensão, mesmo que, quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação, tenham valor probatório, presumindo-se certas por força de lei.

As decisões do Tribunal Marítimo possuem eficácia apenas no âmbito administrativo, razão pela qual suas conclusões podem ser revistas pelo Judiciário. Por conseguinte, ainda que as conclusões técnicas do Tribunal Marítimo devam ser valoradas da mesma forma que a prova judicial, o julgamento realizado no âmbito administrativo não condiciona a análise à lesão de direito realizada no âmbito do Judiciário9.

Não estou entre os que pensam que o Acórdão do Tribunal Marítimo possui o valor probatório de uma prova comum do processo judicial, havendo de ser valorado pelo Juiz com os mesmos critérios dos demais meios de prova.

Nessa trilha, a presunção legal de certeza estabelecida no artigo 18, da lei 2.180/54, impõe ao Juiz esforço argumentativo excepcional, fundado em critério técnico equivalente ao posto no Acórdão da Corte do Mar, capaz de afastar a conclusão do texto legal expresso que afirma "se presumem certas".

E esse esforço argumentativo que se exige do Juiz não é o esforço comumente utilizado para afastar a tese das partes ou mesmo um singelo parecer técnico. Para além da presunção legal estabelecida em favor da decisão do Tribunal Marítimo, é preciso, a partir do conhecimento sobre a formação e funcionamento da Corte, admitir que o Acórdão por ela produzido, pronunciado por um colegiado plural de peritos na matéria, somente poderá ser afastado, no reexame judicial do seu mérito, com critério técnico equivalente, sendo excepcional essa hipótese.

O Acórdão do Tribunal Marítimo não é parecer técnico.

Calha dizer, por oportuno, que o Juiz, por maior expertise que possua na área da navegação, não poderá, por si próprio, afastar a conclusão técnica de mérito do Tribunal Marítimo, presumidamente certa pelo critério legal, porquanto a composição plural de especialistas daquela Corte exige conclusão técnica equivalente, o que não virá de uma só cabeça, ainda que seja aquela a quem caiba decidir o processo judicial.

Por fim, sobre o valor e a extensão como meio de prova, há controvérsia se o reexame pelo Poder Judiciário do Acórdão pronunciado pelo Tribunal Marítimo estaria limitado com aspectos formais, sem possibilidade de revisão quanto ao mérito, ou, ao contrário, o Juiz poderia rever o mérito da sua conclusão, desde que, repita-se, com a devida fundamentação técnica.

A juntada do Acórdão definitivo do Tribunal Marítimo no processo judicial entrega ao Juiz a cognição ampla, sendo lícito ao Magistrado a análise tanto dos seus aspectos formais, quanto do próprio mérito da conclusão. Ao se admitir uma análise restrita, somente dos aspectos formais, estar-se-ia criando uma espécie de coisa julgada formada em tribunal administrativo - Corte do Mar - vinculante em processo judicial, o que não se pode admitir, sob pena de afronta ao artigo 5º, inciso XXV, da Constituição Federal10.

Nunca é demais repetir, como já afirmei em outro ponto deste artigo, que a conclusão do Tribunal Marítimo posta em seu Acórdão não é singelo parecer técnico, porquanto decorre da lei a sua presunção de certeza, impondo ao Juiz do processo judicial, quanto ao mérito, esforço argumentativo excepcional para o seu afastamento, no que somente reputo preenchido esse esforço com prova técnica equivalente àquela que nasce da composição plural da Corte do Mar, não sendo suficiente a conclusão individual do Magistrado, ainda que especialista em navegação e ainda que seja a quem caiba decidir o processo judicial.

Em conclusão, afirmamos que:

1) O Tribunal Marítimo é órgão independente no âmbito da Administração Federal, com competência em todo o território nacional, para julgar os acidentes e fatos da navegação, definindo responsabilidades e causas determinantes;

2) A composição do Tribunal Marítimo é plural, com especialistas em várias áreas da navegação, permitindo-se afirmar que os Magistrados são os próprios peritos, elevando a credibilidade dos seus julgamentos;

3) O processo no Tribunal Marítimo é de natureza contenciosa, com estrita observância dos princípios do devido processo legal;

4) Na interpretação conjunta dos artigos 19, da Lei 2180/54 e 313, inciso VII, do Código de Processo Civil, o Juiz do processo judicial, ante a natureza especial do primeiro dispositivo, deve implementar a suspensão da ação antes do início da instrução - na fase de saneamento -, até a vinda da decisão definitiva do Acórdão do Tribunal Marítimo, permitindo às partes participar da instrução da causa com conhecimento sobre a conclusão técnica da Corte do Mar, bem como evitando a necessidade de repetição de provas, o que poderá vir a ocorrer após o seu conhecimento. Em nenhuma hipótese, o Juiz do processo judicial deverá prosseguir no julgamento da causa sem a juntada nos autos da decisão definitiva do Tribunal Marítimo;

5) O Acórdão do Tribunal Marítimo, relativamente aos acidentes e fatos da navegação, possui valor probatório e presunção de certeza, sujeito ao reexame pelo Poder Judiciário em cognição ampla - forma e mérito -, impondo ao Juiz do processo judicial esforço argumentativo excepcional para o afastamento das suas conclusões, exigindo-se, para isso, prova técnica equivalente àquela que decorre da composição plural e especializada da Corte do Mar;

6) O Juiz, mesmo que especialista em navegação, não poderá, por decisão sua, de natureza individual, afastar a conclusão do Acórdão do Tribunal Marítimo, posto que sua composição plural de especialistas exige critério técnico equivalente, para além da visão individual do julgador, ainda que caiba a este, em última análise, o julgamento do processo judicial. 

A proposta do presente artigo, para longe de esgotar a matéria ou mesmo estabelecer proposições definitivas, é convidar os operadores do direito a, um, conhecer a composição e o funcionamento do Tribunal Marítimo, para, dois,  propor reflexões sobre a eficácia das suas decisões no processo judicial, contribuindo para julgamentos de mérito consentâneos com as melhores técnicas da navegação, dentro da busca pelo ideal da segurança jurídica.

__________

1 TJSP, 14ª Câmara de Direito Privado - Apelação nº 1011453-50.2014.8.26.0562 - Santos - Desembargador Relator CARLOS ABRÃO.

2 Direito Marítimo. Estudos em homenagem aos 500 anos da circum-navegação de Fernão de Magalhães. Marcelo David Gonçalves, O Tribunal Marítimo e a Eficácia dos seus Acórdãos, p. 353.

3 Artigo 19- Sempre que se discutir em juízo uma questão decorrente de matéria da competência do Tribunal Marítimo, cuja parte técnica ou técnico-administrativa couber nas suas atribuições, deverá ser juntada a sua decisão definitiva. Artigo 313- Suspende-se o processo: (...) VII- quando se discutir em juízo questão decorrente de acidentes e fatos da navegação de competência do Tribunal Marítimo.

 

4 "REPARAÇÃO DE DANOS. Acidente marítimo. Produção antecipada de provas. Tribunal Marítimo. Sentença transitada em julgada em 2009. Prescrição afastada. O processo administrativo suspende o processo reparatório. Artigo 20 da Lei nº 2.180/54. RECURSO PROVIDO para anular a sentença, afastando a extinção decretada, e determinar o prosseguimento do feito na Instância de origem." (TJSP. Apel. Cível nº 0044903-40.2010.8.26.0562 j. 30.06.2015, Relator Desembargador Alexandre Marcondes).

 

5 Artigo 313- Suspende-se o processo: V - quando a sentença de mérito: a) depender do julgamento de outra causa ou da declaração de existência ou de inexistência de relação jurídica que constitua o objeto principal de outro processo pendente; b) tiver de ser proferida somente após a verificação de determinado fato ou a produção de certa prova, requisitada a outro juízo; § 4º O prazo de suspensão do processo nunca poderá exceder 1 (um) ano nas hipóteses do inciso V e 6 (seis) meses naquela prevista no inciso II. § 5º O juiz determinará o prosseguimento do processo assim que esgotados os prazos previstos no § 4º.

 

6 Artigo 18- As decisões do Tribunal Marítimo quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação têm valor probatório e se presumem certas, sendo, porém, suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário.

 

7Processo 1028563-18.2021.8.26.0562, TJSP. Foro de Bertioga, 1ª Vara, Juiz Leonardo Grecco.

 

8 STF AI 62811-RJ, Relator Ministro Bilac Pinto. 

 

STJ. CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. TRIBUNAL MARÍTIMO. As decisões do Tribunal Marítimo podem ser revistas pelo Poder Judiciário; quando fundadas em perícia técnica, todavia, elas só não subsistirão se esta for cabalmente contrariada pela prova judicial. Recurso especial conhecido e provido. (REsp 38.082/PR, Rel. Ministro ARI PARGENDLER, TERCEIRA TURMA, julgado em 20/05/1999, DJ 04/10/1999 p. 52).

10 Artigo 5º- XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.