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Reflexões sobre o julgamento do recurso especial 1.988.894/SP. Parte 3: A validade da cláusula de arbitragem

quinta-feira, 19 de outubro de 2023

Atualizado às 07:52

Neste último artigo, fechando a trilogia de análise do acórdão proferido no Recurso Especial 1.988.894/SP, da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, sob a relatoria da ínclita Ministra Isabela Galloti, será abordada a questão quiçá mais controversa nos litígios envolvendo ações de ressarcimentos oriundas de seguros marítimos: a oponibilidade da cláusula de arbitragem às seguradoras.

Inicialmente, é necessário recordar que a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, durante o julgamento, firmou o entendimento no sentido da paridade entre as partes contratantes descaracterizar a natureza de adesão do contrato de transporte, o qual, como é notório e sabido, se traduz no conhecimento de embarque (bill of lading).

Com esteio na concepção de que as partes contratantes não são hipossuficientes, tanto no aspecto econômico quanto técnico, os ínclitos ministros concluíram que embora as cláusulas do bill of lading sejam estabelecidas em formulário, isto não implica na impossibilidade de negociá-las, sobretudo na prestação de serviço transporte marítimo de mercadorias de alto valor, como era o caso dos autos em debate.

Jaz, nesse último ponto, a importância em inaugurar o presente artigo com essa recordação: se todos as partes contratantes se encontram em pé de igualdade no momento pré-contratual, há plena possibilidade de alteração e/ou exclusão de cláusulas de jurisdição, arbitragem ou mesmo limitação do quantum indenizatório por perdas e danos de carga durante a execução do transporte. Extensão a essa conclusão, aliás, deve ser concedida ao próprio contrato de seguro, traduzido em apólice de seguro, acobertando cargas milionárias e/ou operações logísticas milionárias ao custo de alta monta do segurado. 

Nesse aspecto, como abordado no artigo anterior, os eméritos desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo destacaram que cláusulas compromissórias, tal como a arbitral, são praxe do mercado de transporte marítimo não sendo possível presumir desconhecimento da seguradora quanto a sua incidência em eventuais litígios oriundos desse modal.

Bem dizer que, como bem pontuado pelo relator do acórdão originário, há precedentes no Tribunal Paulista reconhecendo de forma pacífica a previsibilidade da cláusula arbitral em litígios envolvendo transporte e seguro marítimo. Especial destaque ao acórdão de relatoria do desembargador Tasso Duarte1 no qual expressamente afirma que "a inserção de cláusula compromissória em conhecimento de transporte internacional é regra. Trata-se de cláusula padrão, sem que haja qualquer surpresa ou novidade para a seguradora". 

É fundamental o reconhecimento da prévia ciência da seguradora, uma vez que acarreta a inarredável conclusão de que a cláusula compromissória arbitral consiste em risco predeterminado, a teor do quanto disposto no artigo 757 do Código Civil.

Ainda sobre a temática da prévia ciência, reprisa-se, pelo brilhantismo da conclusão, a afirmação da Ministra Relatora Isabela Galloti que "(...) afastar a sub-rogação na cláusula arbitral, previamente exposta à aprovação da seguradora e de conhecimento de todos, implicaria submeter as partes do contrato de transporte marítimo ao arbítrio da contraparte na livre escolha da jurisdição aplicável à avença, pois depende única e exclusivamente da seguradora escolhida pelo consignatário da carga." 

Aliás, é cada vez mais comum a inclusão de cláusula de arbitragem nas apólices de seguro de cobertura de altos valores, como era o caso em referência. Dessarte, com o devido respeito àqueles que defendem a não oponibilidade da cláusula de arbitragem à seguradora, quando sub-rogada nos direitos de seu segurado, não há logicidade em atestar apreço à modalidade de solução de conflito apenas quando lhe aprouve.

Uma vez superadas as nulidades extrínsecas da oponibilidade da cláusula de arbitragem, restaria à 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça a análise quanto a higidez da entabulação contratual à luz da Lei n° 9.307/1996 e do Código de Processo Civil. Todavia, compreendeu-se que a análise esbarraria no impedimento contido na Súmula 07, adotando-se, via reflexa, a mesma linha de entendimento exarada pelo egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo de ser incumbência do juízo arbitral. O acórdão traz a lume, nesses termos, precedente nesse sentido em caso análogo que, pela relevância, aqui é transcrito:

PROCESSO CIVIL. AGRAVO INTERNO. RAZÕES QUE NÃO ENFRENTAM O FUNDAMENTO DA DECISÃO AGRAVADA. AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO DE FUNDAMENTOS AUTÔNOMOS. CONTRATO EMPRESARIAL. CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA. CONTRATO DE ADESÃO. REQUISITOS DO ART. 4º, § 2º, DA LEI 9.307/96. ANÁLISE DA NATUREZA JURÍDICA PELAS INSTÂNCIAS DE ORIGEM. NECESSIDADE. COMPETÊNCIA DO JUÍZO ESTATAL. SÚMULAS 5 E 7, DO STJ. RETORNO DOS AUTOS. (...) 4. No caso em debate, o Tribunal estadual entendeu que caberia ao próprio juízo arbitral analisar se o contrato seria de adesão ou não, a fim de verificar a validade da cláusula compromissória, de modo que, em razão dos óbices contidos nas Súmulas n. 5 e 7, do STJ, os autos devem retornar à origem para que se profira novo acórdão, à luz do entendimento desta Corte. 5. Agravo interno a que se nega provimento. (AgInt no AREsp n. 1.672.575/SP, relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, DJe de 30/6/2022.) (grifo nosso)

Em verdade, a jurisprudência do colendo Superior Tribunal de Justiça reconhece, majoritariamente, a competência do árbitro para dirimir conflitos tangendo a higidez da cláusula compromissória arbitral. Ênfase ao ensinamento do Ministro Luis Felipe Salomão por ocasião do julgamento do Recurso Especial n° 1.278.852-MG:

No caso dos autos, desponta inconteste a eleição da CAMARB como tribunal arbitral para dirimir as questões oriundas do acordo celebrado - o que indica forçosamente para a competência exclusiva desse órgão relativamente à análise da validade da cláusula arbitral, impondo-se ao Poder Judiciário a extinção do processo sem resolução de mérito, consoante implementado de forma escorreita pelo magistrado de piso; ressalvando-se, todavia, a possibilidade de abertura da via jurisdicional estatal no momento adequado, ou seja, após a prolatação da sentença arbitral.

É interessante notar, por fim, que após o julgamento do acórdão cujos fundamentos são aqui debatidos, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça se debruçou sobre o tema e, expressamente mencionando o Recurso Especial 1.988.894/SP, afastou a alegação de nulidade da cláusula compromissória arbitral em virtude da natureza de adesão, reconhecendo a sua transmissão quando a seguradora se sub-roga nos direitos da sua segurada. 

Em referido acórdão2, da lavra da Ministra Nancy Andrighi, consignou-se que "em conclusão aos argumentos lançados acima, defende-se que a sub-rogação prevista no art. 786 do CC/02 opera a transferência à seguradora dos direitos e ações que competiam ao segurado, incluindo as cláusulas acessórias e formas de exercício do direito de ação, entre as quais se insere a cláusula compromissória".

Como debatido ao longo desses artigos, o julgamento histórico promovido no Recurso Especial 1.988.894/SP tende a render bons frutos, haja vista a robustez da sua fundamentação. Espera-se, assim, seja utilizado como importante instrumento à pacificação do entendimento sobre a cláusula compromissória ser oponível à seguradora sub-rogada nos direitos da sua segurada.

Afinal, afastar a cláusula de arbitragem contraída pelo segurado sob o argumento de que os seus efeitos não se transferem ao segurador sub-rogado, é afrontar a força cogente que o compromisso arbitral impõe em razão do disposto na Lei de Arbitragem (lei 9.307/1996), bem como ao Protocolo de Genebra de 1923 (decreto 21.187 de 1932) e à Convenção de Nova Iorque de 1958 (decreto 4.311 de 2002).

Referências:

Diniz, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Teoria das Obrigações Contratuais e Extracontratuais. São Paulo: Saraivajur, v. 3.

Peluso, Cesar. Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. 7ª ed. Barueri, SP: Manole, 2013.

Pereira, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil - Teoria Geral das Obrigações. 21ª edição, editada, revista e atualizada por Guilherme Calmon Nogueira de Gama. Forense, 2006.

Venosa, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. São Paulo: Atlas, v. 2.

Lei 9.307, de 23 de setembro de 1996, Poder Executivo.

Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação 1011916-50.2018.8.26.0562.

Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação 9108101-03.2008.8.26.0000.

Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1988894/SP.

Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1424074/SP.

Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1189050/SP.

Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno no AREsp 2214857/CE.

Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno no AREsp n. 1.672.575/SP.

__________

1 TJSP, Processo n° 0149349-88.2011.8.26.0100, Relator Tasso Duarte Melo, Julgado em 11.02.2015.

2 Recurso Especial n° 2.074.780-PR.