Justiça consensual, teorema de Coase e a ata notarial como mecanismo alternativo de resolução de conflitos pela via negocial
segunda-feira, 17 de novembro de 2025
Atualizado em 14 de novembro de 2025 09:39
Desde a entrada em vigor do já não tão "novo" CPC, em 2016, ganhou impulso, no âmbito acadêmico e jurisdicional, o debate sobre o chamado "negócio jurídico processual" previsto de forma ampla no art. 190 do CPC, com especificações nos arts. 191 (sobre "calendário para a prática dos atos processuais"), 372, §3º (inversão do ônus da prova por acordo), 357, §2º (delimitação consensual das questões controvertidas para a instrução), entre outros.
Mesmo na Justiça Penal, supostamente mais comprometida com interesses indisponíveis, na qual a atuação jurisdicional não poderia ficar à mercê de negociações entre as partes, se observa, desde o impulso inicial por meio da lei dos juizados especiais em 95, uma progressiva ampliação do âmbito negocial, como nas famosas "colaborações premiadas", hoje especificadas por lei de 2013 e, mais recentemente, os "acordos de não persecução penal", disciplinados em 2019.
Em síntese, parece haver uma tendência processual geral, a acompanhar mesmo a tendência do Estado de forma global, para a progressiva aceitação de formas não tradicionais de concretização do Direito.
Gunther Teubner, aponta que "O foco da formação do Direito está mudando para regimes privados, para contratos entre atores globais, regulação do mercado privado por empresas multinacionais, elaboração de regras internas em organizações internacionais, sistemas de negociação inter-organizacionais, processos de padronização global"1. Nesse contexto, o direito estaria progressivamente deixando o exercício de Poder político estatal para se tornar "mais ligado a formas procedurais e à criação de fóruns que permitam a interação de diferentes racionalidades, o que serviria para possibilitar a geração de conhecimento híbrido e setorial dentro da sociedade global."2
Especificamente em relação aos processos cíveis, há muito se permitiu o total afastamento da própria jurisdição estatal como um todo, nas demandas que versassem sobre direito patrimonial disponível, nas quais as partes capazes poderiam optar então por submeter seus conflitos ao exercício de verdadeira jurisdição privada3. Comparado com esta opção, o negócio jurídico processual surge então como uma restrição, ou um afastamento apenas parcial, da solução pré-pronta totalmente estatal, na medida em que as partes passam a transigir, dentro da própria jurisdição estatal, sobre aspectos específicos que envolvem desde as formas dos atos processuais, seu tempo e modo, até regras de procedimento e julgamento, como o ônus probatório.
Mutatis mutandis, retirando um exemplo do direito material, onde a autonomia privada sempre foi princípio central, se as partes podem convir sobre a própria existência de responsabilidade em seus contratos de direito material, afastando até mesmo os efeitos queridos pela lei nas hipóteses de caso fortuito e força maior4, podem também convir sobre aspectos particulares sobre a demonstração de tal responsabilidade, o que abrange a demonstração probatória, para a qual, como se demonstrou, nos casos de direitos patrimoniais disponíveis de partes capazes, podem inclusive afastar por completo a própria jurisdição - e regras5 - estatais.
Ora, já no âmbito dos próprios negócios processuais, também é possível apontar uma hipótese que medeia entre o total afastamento do controle estatal - por ex., pela indicação das partes da produção de prova por agente privado - e de sua aceitação na forma tradicional judicial, o que poderia se dar por outro instituto também impulsionado pelo "novo" CPC: a ata notarial lavrada por Tabelião de Notas.
Presente em nosso ordenamento jurídico pelo menos desde 946, e na prática notarial desde muito antes, a ata ganhou novo impulso a partir de sua previsão expressa no art. 384 do Diploma Processual, na qual se determinou que "a existência e o modo de existir de algum fato podem ser atestados ou documentados, a requerimento do interessado, mediante ata lavrada por tabelião".
Fato, contudo, que não tem recebido a devida atenção da maioria da doutrina e jurisprudência até o momento é que a ata não foi prevista dentro da seção VII do Código, que cuida da prova documental, mas, antes, encontrou seção própria, entre os outros meios de prova, pelo que, como ensinam os professores Rosa Maria de Andrade Nery e Nelson Nery Júnior, "a ideia do legislador, parece, foi diversa, elencando a ata notarial não como modalidade de prova documental, mas como novo meio de a parte movimentar-se no processo para exercer seu direito de fazer prova: o realce do legislador não está na natureza da prova (se documental, por instrumento público, ou privado, se pericial etc.), mas na extensão teórica que esse novo mecanismo jurídico proporciona às partes, para o exercício do direito de fazer prova."7
Ora, nesse aspecto, a ata deixa de ser vista tão somente enquanto documento escrito, mas é analisada enquanto função de certificação exercida por um terceiro imparcial fora do âmbito jurisdicional. É certo que na grande maioria das vezes a ata, enquanto documento redigido pelo notário, ainda terá que se apresentar como documento legível ao ser humano8.
Contudo, ao se prever a ata como meio prova, não se pretendeu tão somente uma transposição de meios de produção da prova, que deixaria de ser oral, por exemplo, no depoimento de uma testemunha, para documental, uma vez que o depoimento seja transcrito em ata e apresentada no processo, o que levantaria, inclusive, uma possível restrição ao contraditório - vez que a produção do contraditório oral em muito se diferencia daquele exercido sobre documentos pré-formados e apresentados sem participação em sua formação por todas as partes.
Na verdade, o que se quis foi apresentar um terceiro imparcial com fé pública estatal capaz de constatar fatos a serem considerados por ambas as partes do processo como presumidamente verdadeiros. A ata, nesse sentido, embora não necessariamente, é, mesmo fora do âmbito processual, produzida muitas vezes "em contraditório", por exemplo, nos casos de reuniões para a exclusão de sócios de empresas, nas quais todas as partes podem requerer que constem expressamente trechos e fatos da ata a ser lavrada.
O poder de constatação vai muito além daquilo a que de início parece estar restrito nos limites da descrição narrativa. E essa constatação sofrerá o controle imparcial estatal, de modo que "a ata notarial pode ser confeccionada para a captação de existência ou do modo de existir de qualquer fato", sendo "a amplitude do trabalho do oficial imensurável e, por isso, difícil de ser definido, ainda mais diante da novidade de o legislador utilizar-se de dois verbos distintos como pilares dessa atividade: 'atestar' e 'documentar'."9
Esse poder instrumental imparcial, somado ao negócio jurídico processual inicialmente abordado, pode mesmo se tornar um novo mecanismo de resolução de conflitos, presente tanto na Jurisdição estatal, quanto na Jurisdição arbitral.
De fato, nada impede que, tanto perante juízes, quanto perante árbitros, as partes optem por formas específicas de constituição probatória, inclusive para fins de celeridade, pelo que praticamente todos os fatos externos ao processo (judicial ou arbitral) podem ser a ele levados de forma pré-constituída e, como aventado, inclusive com participação em contraditório de ambas as partes em sua produção junto ao terceiro imparcial estatal.
Ainda mais, tendo em vista que o ato notarial tem precipuamente a função "de evitar o conflito ou uso da máquina da jurisdição litigiosa"10, e percebendo-se o caráter pré-constituído da ata, bem como a sua condução por terceiro imparcial com fé pública estatal, nada impede que as próprias partes determinem, por meio de sua autonomia privada, que determinados fatos controvertidos surgidos durante o desenvolvimento da relação negocial sejam sempre previamente constatados por notário, podendo tal cláusula, inclusive, ser estipulada como procedimento negocial obrigatório pré-instauração de qualquer jurisdição.
Retomando alguns aspectos da racionalidade econômica clássica, o famoso "Teorema de Coase"11 teria demonstrado que, partindo de pressupostos de racionalidade econômica12, se a distribuição dos direitos for clara, e não houver custos de transação impeditivos, a negociação entre partes envolvidas em um possível conflito gera sempre um resultado ótimo, independente da prévia situação de distribuição de direitos ex ante, a qual inelutavelmente seria reforçada se provocado o juízo estatal.
No exemplo clássico, um fabricante de bens barulhento e seu vizinho, um médico silencioso, podem chegar a uma solução ótima via negociação, que pode envolver, por exemplo, a mudança de um dos dois para outro local, financiada pela contraparte, sem que a parte que se manteve no local tenha que alterar seu processo de produção, bem como aquela que se mudou tenha qualquer perda de eficiência. Esse tipo de solução negociada passa ao largo das formas tradicionais de concretização do Direito pela via estatal, que aparecem, assim, ao economista, como ineficientes.
Nota-se, contudo, que os dois requisitos para que tal tipo de solução negociada avance nem sempre se farão presentes desde o início, quais sejam, a clareza dos direitos e a ausência de custos de transação. É nesse sentido que a ata notarial produzida em contraditório surge como ferramenta, trazendo ao centro da disputa um terceiro imparcial com a capacidade de tornar transparente os eventuais fatos disputados sobre os quais se contenderá14. O mencionado mecanismo terá, muito provavelmente, um alcance resolutório ainda maior nas hipóteses de conflitos multitudinários, em que mais de duas partes são interessadas, e a produção da ata será tida como verdadeira por todos os possíveis interessados - pode-se pensar, por exemplo, nas constatações que devam ser levadas a cabo em processos de recuperação judicial e falência, em que múltiplos interessados se veem às voltas com a produção probatória concentrada em alguns poucos atores principais.
Nesse sentido, surge a ata como microssistema capaz de arrefecer a complexidade do conflito e a pressão por tomada de decisão sem informações suficientes, de modo a permitir que as partes ganhem tempo e informação relevante no processo de construção de uma alternativa negociada e não estatal para o tema em que se confrontam, gerando, assim, possivelmente14, uma decisão que resultados ótimos em termos de eficiência de alocação de recursos para toda a sociedade.
Numa reconstrução da clássica lição de Carnelutti, segundo o qual, "quanto mais notário, menos juiz"15, a ata pode ser entendida como um mecanismo progressivo de redução da complexidade desestruturada das relações, mediada por um terceiro imparcial, entre o processo judicial e a tomada de decisão açodadas sem informações, numa tentativa ordenada de construir uma verdade consensual possível sobre os fatos relevantes, gerando ganhos de tempo para a tomada de decisão informada por todas as partes de um desacordo. E quanto mais informações, quanto mais tempo, mais possibilidade de negociação, menos conflitos.
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1 Apud CAMPOS, R. Metamorfoses do Direito Global: sobre a interação entre direito, tempo e tecnologia. São Paulo: Contracorrente, 2022. p. 80
2 CAMPOS, R. op. cit. p. 93.
3 V. DINAMARCO, C. R; BADARÓ, G. H. R. I.; LOPES, B. V. C. Teoria Geral do Processo. 34. ed. São Paulo: Malheiros, 2023. p. 270, para quem "são do passado as concepções que negavam a natureza jurisdicional" ao poder exercido pelos árbitros.
4 Art. 393 do CC: devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado. (grifo nosso)
5 Não sem algum controle, é bem verdade, mas ainda de forma ampla, nos termos do art. 2º e parágrafos da Lei da Arbitragem (9.307/96).
6 Art. 7º, inciso III, da Lei 8.935/94.
7 Instituições de Direito Civil. Vol. VIII. Registros, notas e prova documental. São Paulo: RT, 2017. p. 159.
8 Embora não sejam inéditos casos da atividade notarial em que a ata acabou por abarcar o funcionamento adequado de sistemas eletrônicos - "provas de conceito" - que, muito provavelmente, teriam sido melhor documentados se na própria ata simplesmente se inserissem os dados binários constatados. O tema também aventa discussões nas próprias escrituras, através da diferenciação entre "human readable contracts" e "machine readable contracts". V. por exemplo o caso dos "contratos ricardianos".
9 NERY, R. M. de A.; NERY JUNIOR, N. Op. cit. p. 161.
10 LOUREIRO, L. G. Manual de Direito Notarial. Da atividade e dos documentos notariais. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 113.
11 COASE, R. H. The problem of social cost. In Journal of law and economics. Vol. III. Outubro/1960. p. 1-44
12 Nem sempre presentes no mundo real, é bom sempre lembrar.
13 O tema foi objeto de estudo para a Jurisdição estatal em PORTO, A. J. M.; FRANCO, P. F. Uma análise também econômica do direito de propriedade. In LEAL, F. (org.) Direito privado em perspectiva. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 11-46. Assim, declaram os autores que "quando o Judiciário retira, através de uma decisão judicial, os custos endógenos do direito, os entraves à cooperação desaparecem e as partes podem chegar ao resultado mais eficiente." (34)
14 Desde que presentes, como já frisado, os pressupostos de uma racionalidade econômica.
15 CARNELUTTI, F. La figura juridica del notario. Conferência na Academia Madrilenha do Notariado. Maio de 1950. In: Teoría del Derecho Notarial. Lima: Gaveta Notarial, 2021.

