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Migalhas Notariais e Registrais

Questões práticas e teóricas envolvendo o Direito Notarial e de Registro.

Izaías G. Ferro Júnior, Carlos Eduardo Elias de Oliveira, Hercules Alexandre da Costa Benício, Flauzilino Araújo dos Santos, Ivan Jacopetti do Lago e Sérgio Jacomino
Para além do § 1º do art. 1º da lei 9.492/97, a recém editada Resolução CNJ 547/24 fez inserir, em caráter definitivo, o protesto da CDA - Certidão de Dívida Ativa - no contexto macro de recuperação do crédito tributário inadimplido. Com ela, os tabelionatos de protesto passam a desempenhar papel de grande relevância no cenário da arrecadação e cobrança da dívida ativa tributária e não tributária, em todas as esferas da administração pública do país. Mas há uma questão delicada a ser enfrentada em futuro bem próximo. Um pequeno elefante na sala que, em breve, não passará mais despercebido: o exercício privado da atividade púbica desempenhada pelos Tabelionatos e a necessidade de sobrevivência dos entes delegados através de uma justa e adequada remuneração pelos serviços efetivamente prestados e pela reconhecida eficiência nos resultados alcançados através do seu trabalho. Antes, porém, duas premissas precisam ser estabelecidas: a primeira delas, referente ao caráter altamente "desjudicializante" do protesto de títulos e, a segunda, relacionada ao que um tabelionato de protesto definitivamente NÃO É: empresa de cobrança remunerada através do êxito (circunstancial) no recebimento do crédito. Quanto à primeira das premissas, pode-se afirmar, sem sombra de dúvidas, que não há nenhuma atividade extrajudicial que seja mais desjudicializante do que o protesto de títulos. Explica-se: uma vez intimado o devedor e não tendo sido paga a dívida no tríduo legal, lavra-se o protesto e, a partir daí, a única alternativa que remanesce ao credor é o ajuizamento de uma ação de cobrança ou de execução extrajudicial. A constatação, portanto, é óbvia e necessária: a cada título que é quitado em um Tabelionato de Protesto corresponderá, necessariamente, menos uma ação judicial deflagrada para a cobrança desse crédito. Repita-se: cada dívida paga é menos um processo emperrando a já assoberbada máquina judicial. Desta forma, os Tabelionatos de Protesto do país seguem firme ao lado do Poder Judiciário na verdadeira cruzada para reduzir o estoque alarmante de processos no país e reduzir a taxa de congestionamento do Judiciário. A parceria, na exata dicção da Resolução CNJ 547/2024 e do que ela propõe, nunca esteve tão forte, o que é motivo de orgulho para todo o seguimento. A segunda das premissas, porém, é: os tabelionatos de protesto não atuam como empresas de cobrança, vale dizer, não são remunerados por percentuais aplicados sobre o total arrecadado (em média de mercado que oscila entre 20% e 30% do valor recebido). Tabelionatos desempenham atividade pública, porém em caráter privado. Não há taxa de "êxito" ou taxa de "sucesso" no seu rol de serviços. São remunerados por emolumentos, que são integralmente devidos na exata medida em que todo o procedimento previsto em lei tiver sido observado pelo Serviço Delegado. Se o cartório desempenhou toda a sua função, se observou todo o procedimento que a lei lhe exige, deve ser portanto integralmente remunerado por isso, independentemente do pagamento pelo devedor. Quem deve assumir o "risco" da inadimplência é o credor e a empresa de cobrança eventualmente contratada por ele, não o ente delegado, que nada tem com isso. Esta segunda premissa traz uma consequência inafastável e que deve representar uma mudança na visão e na forma como o trabalho desempenhado pelos tabelionatos de protesto deve ser visto: Se não é o ente delegado que cria/constitui o título, se não é ele quem escolhe a forma de cobrança (call center, "negativação" direta ou qualquer outro meio), se não é o cartório que mantém uma base de dados atualizada e "higienizada" sobre os devedores, se o cartório não tem, enfim, NENHUMA ingerência sobre a formação do título ou como e quando ele vai ser cobrado, não faz nenhum sentido lógico ou jurídico que o serviço efetiva e integralmente prestado somente seja remunerado SE o devedor efetuar o pagamento da dívida. Essa é a forma de atuação de empresas de cobrança que, repita-se, optam por assumir o risco de prestar o serviço sem receber por isso, mas assim agem por cobrarem percentuais robustos sobre o êxito eventualmente alcançado. Cartórios de protesto não são empresas de cobrança e, por desempenharem atividade pública, têm seus emolumentos fixados em lei, que devem ser pagos quando o serviço for prestado. Há uma doutrina inteira de Direito Administrativo a sustentar a tese... A questão assume contornos ainda mais dramáticos quando se está a tratar especificamente da cobrança de créditos públicos, vale dizer, do protesto das Certidões de Dívida Ativa, objeto da Resolução CNJ 547/2024. Por inúmeras razões, dentre os quais a alta carga tributária do país (e sempre crescendo), a natureza de "rejeição social" da norma que obriga ao pagamento de impostos, além (principalmente) da péssima gestão que fazem as Fazendas Públicas (com raras e honrosas exceções) sobre os créditos que têm a receber, o índice de pagamento de CDAs no protesto é baixíssimo. Repita-se uma vez mais: por culpa exclusivamente do credor, não tendo o tabelionato de protesto nenhuma ingerência sobre os procedimentos administrativos prévios de cobrança deste crédito tributário. Se o Conselho Nacional de Justiça, diante das circunstâncias apresentadas, vê como alvissareira a utilização do protesto ao invés da execução fiscal, tendo em vista que o protesto apresenta, nestes casos, uma média de 20% de recuperação face ao percentual de êxito de uma execução fiscal (em torno de 2%), o fato é que, se para o ente público recuperar 20 em cada 100 títulos é motivo de júbilo, para o Tabelionato de Protesto significa dizer que em cada 100 serviços integralmente prestados, em 80 deles o trabalho foi feito de forma absolutamente gratuita. Todo o custo da operação, em 80 (!) de 100 casos, foi integralmente assumido pelo Tabelionato de Protesto, na tentativa de recuperar o crédito público (de toda a sociedade), incrementar a arrecadação pública (de toda a sociedade) e diminuir os processos em curso na Justiça. Mas por que deve fazê-lo de forma gratuita, se o serviço foi integralmente prestado? Por que somente os Tabelionatos de Protesto devem prestar gratuitamente seus serviços se toda a sociedade é beneficiada? A inserção dos Tabelionatos de Protesto na esteira da recuperação do crédito tributário traz ainda um outro paradoxo. Todos os personagens envolvidos no ciclo de cobrança dos créditos tributários, desde o seu nascedouro (lançamento tributário) até os últimos esforços para o seu recebimento (processo de execução) são devidamente remunerados através de verba orçamentária própria, independentemente do sucesso ou insucesso, da eficiência ou ineficiência do seu trabalho dedicado à arrecadaçao. Absolutamente nenhuma dessas personagens depende da adimplência do contribuinte para receber os valores que lhes são devidos pelo seu justo trabalho. A título ilustrativo, os Secretários de Fazenda, os servidores públicos administrativos das Secretarias (e outros órgãos de arrecadação) não dependem do efetivo pagamento do tributo para serem remunerados pelo seu trabalho. As Procuradorias, seus Procuradores (Federais, estaduais, municipais, autárquicos etc.) e seu quadro funcional igualmente não dependem do efetivo pagamento do tributo pelo contribuinte. Os Magistrados e os serventuários da justiça afetos aos processos de execução fiscal não dependem, igualmente, do pagamento do tributo para terem acesso à justa remuneração pelo trabalho de excelência que prestam. A pergunta que remanesce (já a essa altura óbvia) é: por que apenas o tabelionato de protesto, que desempenha atividade pública, vai receber os seus emolumentos apenas SE E SOMENTE SE o contribuinte efetuar o pagamento da dívida? Titulos com baixíssimo índice de recuperação têm sido apresentados a protesto por órgãos públicos ávidos por colocarem fim aos inúmeros processos de execução fiscal pendentes. Apesar de a Resolução CNJ 547/24 não condicionar a extinção da execução ao prévio protesto (não confundir com o fato de o protesto ser requisito para NOVAS execuções), o fato é que, a título de exemplo, no Rio de Janeiro, Tabelionatos de Protesto receberam CDAs contra as empresas Mesbla, Ultralar e Arapuã. São situações reais, concretas, que estão longe de constituirem mera exceção ou esgarçamento da regra. O afã de se extinguirem execuções fiscais leva necessariamente à apresentação de títulos (CDAs) que se apresentam irrecuperáveis, fazendo com que os Tabelionatos de Prostesto tenham altos custos operacionais e, apesar de desempenharem integralmente a sua atividade, apesar de prestem integralmente o seu serviço, não recebam nenhum tipo de remuneração por isso. Não existe gratuidade sem fonte de custeio. Não se pode exigir o trabalho gratuito de quem quer que seja, esperando-se que aquele percentual (ínfimo) de recebimento compense todo o trabalho que foi desenvolvido e entregue de forma gratuita. Não existe recebimento "condicionado" de emolumentos. Comparativamente, os Registros Civis de Pessoas Naturais, os chamados "ofícios da cidadania", são obrigados por lei a fornecer gratuitamente inúmeras certidões de nascimento e óbito, além de diversos outros atos que praticam em benefício dos mais necessitados. Um belo trabalho desempenhado por estes entes delegados. Mas para fazer frente a estas gratuidades, foram criados, em todo o país, fundos de compensação, fundos de ressarcimento para estes atos gratuitos. E é assim que deve ser. Não custa lembrar e repetir à exaustão: Não existe gratuidade sem fonte de custeio. O legislador, ao criar gratuidades, não pode exigir que aqueles que desempenham atividades em caráter privado, assumam todos os encargos financeiros para permitirem que aquele serviço seja prestado. É exatamente isso que está agora acontecendo com os Tabelionatos de Protesto, com sua saúde e sua viabilidade financeira seriamente comprometidas, por estarem assumindo a cobrança estatal dos créditos públicos, através do protesto da Dívida Ativa, sem a devida e correspondente remuneração por isso. A situação, especialmente em pequenos cartórios do interior do país, pode se revelar bastante grave. É preciso refletir muito seriamente sobre essa questão ou ela, como um monstro, nos engolirá a todos. O elefante está na sala. E crescendo..
"Siendo un oficio el de escribano, sin el cual andaría la verdad por el mundo a sombra de tejados, corrida y maltratada; y así dice el eclesiástico: in manu Dei prosperitas hominis, et super faciem scribae imponet honorem suum" Miguel de Cervantes Há uma confusão recorrente, em especial para quem não tem familiaridade com temas ligados aos serviços extrajudiciais, entre a fé pública notarial e a registral. Em decorrência da filiação comum dos "órgãos da fé pública" 1ao mesmo dispositivo constitucional2, bem como da estruturação rudimentar dada por uma mesma norma organizadora3, as duas funções aparecem muitas vezes amalgamadas no cognome comum de "cartórios". Contribui para tal situação, o fato de o art. 52 da lei 8.935/94, ao organizar as competências registrais e notariais, ter garantido a algumas especialidades registrais a continuidade de exercício, em alguns estados da federação, de certas funções notariais, donde ser possível, por exemplo, no Estado de São Paulo, praticar o ato de reconhecimento de firmas - tipicamente notarial - junto aos registradores civis.  Aos olhos do cidadão incauto, qualquer cartório, seja aquele onde se casa e se registram filhos, seja aquele onde se assinam escrituras e se fazem testamentos, teria as mesmas atribuições. O fato de se poder reconhecer firmas em ambos assim o comprovaria. E não há que se negar que o reconhecimento de firma é, por metonímia, a representação do serviço supostamente prestado por todos os cartórios e especialidades frente à população em geral, como se o fim último de todos os cartórios fosse tão somente o reconhecimento de firmas - paradoxalmente, ato que vem se tornando cada vez mais subsidiário no dia a dia notarial, a despeito de iniciativas de mercado e de especialidades registrais que procuram desenvolver seus próprios produtos concorrentes com as mesmas funções. Esse tipo de confusão leiga é, todavia, eventual e surpreendentemente, reproduzida também no próprio mundo jurídico especializado, por seus operadores e reguladores, os quais deveriam ser, ao contrário, os primeiros a velar pela coerência do sistema extrajudicial.  É salutar, assim, de quando em quando, descer aos princípios e estruturas formadores das diferentes instituições para afastar ideias que exsurgem "fora do lugar" e que acabam por gerar mais confusão e perplexidade, em detrimento das próprias funções que, bem diferenciadas, prestam um "output" mais eficiente. Apesar de herdeiras de um arcabouço normativo comum no país, a atividade registral e a notarial em muito se diferem, muito antes da própria existência de sua ordenação em solo brasileiro.  É exatamente essa diferença secular, tributária de um desenvolvimento histórico longevo, que conforma cada instituição, e que, nas palavras de Reinhard Zimmermann, citando Savigny, faz com que não haja algo como uma "autonomous human existence entirely isolated from the past", pelo que "we cannot freely fashion our own existence, including our laws"4. Nesse sentido, a história da função notarial é, em grande medida, a história da diferenciação entre as provas testemunhal e documental. O gérmen da fé pública notarial se encontra, nos primórdios, no processo probatório judicial, tendo sua eficácia intrinsecamente vinculada ao desenvolvimento da prova documental que, pouco a pouco, veio a substituir as declarações testemunhais de seus autores. Pode se traçar os albores de tal evolução na constituição LXXVI de Justiniano5, diferenciando os documentos particulares dos documentos produzidos ante o tabellio romano, sendo este último alcunhado de "abuelito" do notário moderno6.  Em referida constituição se estatui que o documento privado deveria ser firmado por testemunhas, em número mínimo de 3, e que, em caso de contestação, deveriam ser tais testemunhas chamadas a depor em juízo, demonstrando, assim, que a fé do documento privado não seria maior do que aquela que merecessem as pessoas - partes e testemunhas - que o firmassem. Em outras palavras, o limite da força probatória do documento privado se dava nos mesmos exatos limites da capacidade da prova testemunhal que o defendesse. Por sua vez, embora o documento notarial também devesse ser firmado por testemunhas, já apontava o ato do imperador que, morto o notário que confeccionou a escritura, e não tendo sido assinada por testemunhas, ainda assim deveria receber alguma fé. É, por assim dizer, a ancestral da fé pública notarial. Pouco a pouco, a confiança do aparato estatal judicial sai da pessoa responsável pela realização do documento e se transfere à função pública de produção de documentos, e, nesse momento, em específico, com a objetivação da função frente à pessoa, tal confiança recai sobre o documento público produzido no exercício da referida função. Tanto notários quanto, posteriormente, registradores têm uma qualidade em comum consistente em produzir documentos com o selo da fé pública, o que significa que os documentos atestados no exercício de tais funções fazem prova por si bastante - "prova plena", dirá o art. 215 do CC em relação às escrituras públicas -, não necessitando de outros meios de prova para atestar aquilo que a própria lei determina que seja considerado conforme o estado em que atestado por tais funcionários no exercício de suas funções.  Ora, não haveria qualquer sentido em se organizar todo um aparato estatal com a função especial de se fornecerem informações confiáveis - "fé pública" -, se a autoridade judicial pudesse a qualquer momento afastar essa informação com base em uma livre valoração que não tomasse previamente para si a específica questão de se negar, no caso concreto, a presunção de legitimidade de tais documentos. Um juiz que simplesmente ignora um documento produzido com fé pública, sem antes destruir a fé pública de tal documento em decisão adequada e especificamente fundamentada, não está decidindo contra o funcionário, pessoa que o produziu, mas, sim, contra a própria lei que atribuiu a tal documento eficácia especial7.  A organização notarial e registral permite que situações de direito nem sempre imediatamente observáveis na realidade física das coisas - e assim, por exemplo, a propriedade, em contraposição à posse - possam receber respostas rápidas e confiáveis por meio do documento notarial ou registral - por ex. a matrícula do imóvel.  Embora possuam a mesma função e eficácia - fato que talvez seja o gérmen de toda a confusão -, a fé pública registral e a fé pública notarial possuem diversas estruturas, objetos e modos de atuação. E é da adequada coordenação entre ambas que o sistema extrai o melhor de suas qualidades. Em relação à estrutura, a fé pública notarial opera segundo a clássica regra do visis et auditis suis sensibus. O notário só dá fé daquilo que vê e ouve por seus próprios sentidos. Em comparação ao processo de cognição judicial, que é retrospectivo e se faz de forma mediada, tomando o juiz conhecimento do caso a partir de documentos produzidos por outras pessoas e fatos por outras testemunhas presenciados, a cognição notarial é sempre simultânea ao acontecimento e imediata aos fatos. Trata-se do princípio da imediação8, o qual, junto da forma e do protocolo,"han hecho al notariado"9. Segundo Rafael Nuñez Lagos, "al Derecho Notarial incumbe más que ningún otro el principio de la inmediación. La presencia física, directa, inmediata de las personas (comparecencia) y de las cosas (exhibición), es la base del Derecho Notarial"10.  A imediação enquanto base da fé pública notarial remonta novamente à fase romana, na qual a contratação ritualística solene se dava de forma oral perante o notário que era então encarregado de reduzir a escrito, em especial a partir da fase pós-clássica, os exatos termos daquilo que viu e ouviu acontecendo a sua frente. É nesse sentido que as escrituras eram redigidas, até a alteração promovida em Bolonha por Rolandino11, na primeira pessoa:"Eu, fulano de tal, prometo...". Em síntese, em princípio, todas as "escrituras" eram, na verdade, atas, e as atas formam a base da fé pública notarial até hoje. Mesmo após toda a longa evolução histórica que trouxe o notário do papel de narrador privilegiado para o de verdadeiro consultor jurídico e confeccionador do negócio escriturado, toda escritura conserva ainda muito de ata. Assim, na clássica abertura "saibam quantos a presente virem, que na data de..., em..., compareceram...", tem-se, nada mais, do que uma pequena ata ainda narrativa dos fatos que darão base ao contrato na parte ulterior e negocial das escrituras. Nesses termos, se em toda escritura existe uma parte "ata", por óbvio, não pode lavrar escrituras, quem não é capaz de confeccionar atas. Por sua vez, a fé pública registral se dá especificamente sobre o próprio acervo do registrador. Este não presencia os fatos narrados nos títulos que publica (leia-se, registra). A certidão do ato registral é uma certidão sobre o que foi inscrito e se encontra nos livros registrais, não sobre o fato narrado no título a ele apresentado para tal inscrição, que ele sequer presenciou. A imediação é princípio notarial, não registral, e disso decorrem as diferentes formas de operacionalização das fés públicas. Essa específica diferença é bastante clara, por exemplo, na forma como se registram fatos - não negócios - na tábula registral. Nenhum registrador civil precisa presenciar os nascimentos que publica em seu livro "A", nem tampouco tem qualquer contato com os fatos que ocasionam o óbito devidamente inscrito no livro "C". Toda a fé pública dos livros de registro civil indicados se baseia em títulos que sejam adequadamente confiáveis e controlados - a declaração de nascido vivo e a declaração de óbito - mas que não foram produzidos pelo registrador. Em sentido diverso, nenhum notário poderia jamais atestar o nascimento de uma pessoa se não o presenciasse por seus próprios sentidos. É dessa presença imediata do notário frente aos fatos, mas apenas mediata do registrador por meio de seus registros, que Vicente de Abreu Amadei declara que "em sede de fé pública - desculpem-me os Registradores - mas a primazia é dos Notários, pois neles, mais do que em qualquer outro profissional, a fé pública é seu princípio, seu meio e seu fim. (...) Os Tabeliães - e só eles - têm vocação testemunhal; os Registradores, não.12"  É certo que tanto o registro imobiliário, quanto o tabelionato de notas estão destinados à segurança jurídica, mas não do mesmo modo. Nos dizeres de Ricardo Dip, "o notário dirige-se predominantemente a realizar a segurança dinâmica; o registrador, a segurança estática; o notário, expressando um dictum - conselheiro das partes, cujo actum busca exprimir como representação de uma verdade e para a prevenção de litígios; de que segue sua livre eleição pelos contratantes, porque o notário é partícipe da elaboração consensual do direito; diversamente, o registrador não exercita a função prudencial de acautelar o actum, mas apenas a de publicar o dictum, o que torna despicienda a liberdade de sua escolha pelas partes: o registrador não configura a determinação negocial.13"  Essa é, em síntese, a base do sistema de "título e modo", no qual a instância que publica os títulos, não é aquela que os confecciona. Tampouco a instância que confecciona os títulos tem poder para, sozinha, trazer a eles os efeitos específicos da publicidade registral14. Da adequada interação entre ambas as instâncias surgem externalidades positivas que vão por sua vez às raízes de todo o sistema, justificando, por exemplo, que o notário seja de livre escolha do cidadão, mas o registro vinculado15.  Ademais, em um sistema em que os vícios eventuais do título transcendem à tábula registral - diga-se, um registro "causal" -, não sendo a publicidade suficiente para sanar defeitos não expressos no registro, avulta a importância de que o momento de formação do título, não presenciado pelo agente de sua publicidade (o registrador), seja especialmente protegido de eventuais contestações futuras - exatamente, o papel do notário. De nada adiantaria se ter um bom registro em termos de publicidade se os títulos publicados fossem, intrinsecamente, contestáveis. A separação de funções e diferentes formas de fé pública conformam, assim, não apenas a atividade individual de cada especialidade, mas todo o sistema em que imbricados os notários e registradores. As confusões conceituais que eventualmente surgem na matéria, trazendo aos registradores funções intrinsecamente notariais, ou ao contrário, aos notários funções publicitárias, são, mais do que uma questão individual de cada especialidade "atacada", um desmonte de um sistema estruturado e finamente sintonizado que, no limite, se reverte em prejuízo a toda a população. Compreendidas, de forma apropriada, as similitudes e distinções entre as atividades notariais e de registro, bem se perceberá a vocação notarial para a viabilização de prazo de reflexão aos declarantes e para o aconselhamento tendente a reduzir assimetrias informacionais; ao passo que a vocação registral está mais ligada à publicização de atos e à viabilização de que terceiros tenham conhecimento sobre uma determinada situação jurídica. ___________ 1 Como na referência clássica: ALMEIDA JR. João Mendes. Orgams da Fé Pública. In: Revista da Faculdade de Direito de São Paulo. Vol. V. p. 7 a 114 e vol. VI, p. 7 a 113. São Paulo: Espíndola, Siqueira & Campos, 1897. 2 Art. 236 da Constituição Federal. 3 Lei 8.935/94 - "Lei dos Notários e Registradores" 4 ZIMMERMANN, Reinhard. Roman Law, Contemporary Law, European Law. The Civilian Tradition Today.  Oxford: Oxford University Press, 2001. p.109 5 Entre outros temas afeitos ao dia a dia notarial, já apontava referida norma que "Non enim ita quis scribit iuvenis et robustus, ac senex et forte tremens", traçando a dificuldade em se manter o mesmo padrão de assinatura ao longo da vida, bem como a necessidade de maiores cuidados formais para os instrumentos firmados pelos iletrados - passando as testemunhas de 3 para 5 -, cuidado esse, contudo, que só seria exigido, no caso de contratos com valor superior a uma libra de ouro.  6 NUÑEZ LAGOS, Rafael. Hechos y Derechos en el instrumento público. Madri: Instituto Nacional de Estudios Jurídicos, 1950. p.81 7 V. FALCÃO, Alcino Pinto. Parte Geral do Código Civil. Rio de Janeiro: José Konfino, 1959. p.269.  8 V. ADRADOS, Antonio Rodríguez. Princípios Notariais. Tradução de Gabriela Saciloto Cramer. Diadema: JS Gráfica, 2023. p. 87-98. 9 NUÑEZ LAGOS, R. El derecho notarial. Lima: Gaceta Notarial, 2013. p. 36 10 Idem, ibidem. 11 PASSAGGERI, Rolandino. Aurora. Com os comentários de Pedro de Unzola. Traduzido ao Espanhol por Víctor Vicente Vela e Rafael Nuñez Lagos segundo a versão publicada em 1485. Madri: Colégio Notarial de Madri, 1950. 12 AMADEI, Vicente de Abreu. A fé pública nas notas e nos registros. In: YOSHIDA, Consuelo Ytasuda Moromizato; FIGUEIREDO, Marcelo; AMADEI, Vicente de Abreu. Direito Notarial e Registral avançado. São Paulo: RT, 2014. p.35-53. p. 49-50  13 DIP, Ricardo. Querem matar as notas? In: Registros Públicos e Segurança Jurídica. Porto Alegre: Safe, 1998, pp. 95-96. 14 O que é matizado, contudo, no protesto de títulos, uma ata notarial com efeito publicitário. 15 V. ARRUÑADA, Benito. The economics of Notaries. In: European Journal of Law and economics. Vol 3, 1996. p. 5-37.
1. Introdução Neste artigo, apontamos estes três parâmetros a serem observados para a flexibilização do direito real de habitação vidual1, previsto no art. 1.831 do CC: Proteção do viúvo de avançada idade;  Proteção a longos relacionamentos conjugais ou convivenciais; e  Proteção do viúvo diante de caprichos dos demais herdeiros. Para facilitar, transcrevemos o referido dispositivo: Art. 1.831. Ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar. A reflexão vem em momento oportuno. É que, na terça-feira passada (24/9/24), fruto de elevada sensibilidade e da vasta experiência que singularizam os ministros da 3ª turma do STJ, nasceu interessantíssimo julgado sobre o tema (STJ, REsp 2.151.939/RJ, 3ª turma, relatora ministra Nancy Andrighi, j. 24/9/24). O julgado tratou de uma situação absolutamente excepcional de flexibilização do referido direito vidual, a demonstrar que, por vezes, o magistrado precisa imprimir interpretação restritiva a dispositivos pelo fato de a lei dizer mais do que queria (plus dixit quam voluit).  O caso foi relatado pela experiente ministra Nancy Andrighi e contou com a adesão unânime dos igualmente experientes ministros Humberto Martins, Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro. À vista disso, é extremamente conveniente aprofundar o debate sobre a mitigação do direito real de habitação vidual, especialmente para afastar eventual ilação que leitores mais eufóricos e incautos poderiam tirar no sentido de que o STJ teria infertilizado esse instituto. A esses mais afoitos reportamos uma advertência feita pela ministra Nancy Andrighi durante o seu voto. Após realçar que a flexibilização feita no caso é absolutamente excepcional, fruto das particularidades do caso concreto, a ministra alertou, in verbis: .... eu procurei gravar e fixar bem a excepcionalidade. Para não dizerem que eu estou rechaçando o direito de habitação, (...) eu repeti na ementa duas vezes [a excepcionalidade]. Logo, na excepcional situação examinada, deve-se flexibilizar o direito real de habitação em favor dos herdeiros2.  Passamos a expor os parâmetros a serem observados para a flexibilização do direito real de habitação vidual, levando em conta o recente julgado do STJ. Além da leitura do julgado e de acompanhar a sessão de julgamento, consultamos o inteiro teor dos autos para maior precisão da base fática julgada pelo STJ. Por fim, embora não seja o foco deste artigo, apontamos que, em casos de flexibilização do direito real de habitação vidual, parece-nos absolutamente necessário respeitar o ambiente de dúvida jurídica razoável. Desse modo, somente após a decisão judicial definitiva, é que se poderá invocar qualquer efeito decorrente de posse de boa-fé. Sobre o tema, reportamo-nos a outro artigo nosso3.  2. Parâmetros para a flexibilização do direito real de habitação vidual De modo extremamente excepcional, o direito real de habitação vidual pode ser flexibilizado quando, à luz das particularidades do caso concreto, não coadunar com seu caráter humanitário e social.  É preciso verificar cada caso concreto, pois o afastamento do direito real de habitação vidual é excepcionalíssimo. Não se pode esvaziar hermeneuticamente o texto do art. 1.831 do CC banalizando essa flexibilização, sem que haja uma mudança legislativa efetiva4. Entendemos que três parâmetros devem ser levados em conta:  Proteção do viúvo de avançada idade;  Proteção a longos relacionamentos more uxorio; e  Proteção do viúvo diante de caprichos dos demais herdeiros. O parâmetro da proteção do viúvo de idade avançada veda a mitigação do direito real de habitação quando o viúvo tiver idade avançada, independentemente da condição financeira sua ou dos demais herdeiros.  Para tal efeito, consideramos pessoa de idade avançada aquela com idade superior a 55 anos. Isso, porque essa idade é fruto da média aritmética de três referências legislativas indicativas de idade avançada: a idade mínima do viúvo para a vitaliciedade da pensão por morte5, a idade mínima para aposentadoria6 e a idade indicada pelo Estatuto da Pessoa Idosa7. Trata-se da idade em que a pessoa presumidamente já reclama maior estabilidade patrimonial por conta do próprio ciclo natural da vida. De fato, a proteção da pessoa de idade avançada não é apenas por razões patrimoniais, mas também emocionais e psicológicas. Afastar o direito real de habitação do art. 1.831 do CC para sujeitar uma pessoa de avançada idade ao transtorno de ter de buscar uma nova moradia contraria o próprio caráter humanitário desse direito. Não é razoável acrescer a uma pessoa de idade avançada já combalida pela perda do cônjuge mais uma dor: a de ter de sair da casa em que vivia.  Além disso, considerando que o direito real de habitação se extingue com a morte e tendo em vista a expectativa de vida média dos indivíduos, a verdade é que esse direito do viúvo não representará grande peso aos demais herdeiros. Diferente seria se o viúvo fosse jovem.  Por fim, temos ainda de levar em conta que estamos a tratar de sucessão mortis causa: os demais herdeiros nada estariam a receber se o falecido tivesse sobrevivido mais tempo. Não é razoável forçar interpretação restritiva do art. 1.831 do CC para beneficiá-los em detrimento de quem viveu mais intimamente com o falecido até seu último dia, dedicando-se com trabalhos de cuidado em seu favor. Aliás, a própria conservação do imóvel deve também ser atribuído a esse trabalho invisível (o trabalho de cuidado) exercido pelo viúvo, ainda mais quando se tratar de mulher, que ainda cumula as tarefas de cuidado na prática social brasileira.  O segundo parâmetro é o da proteção a longos relacionamentos more uxorio (conjugais ou convivenciais), segundo o qual não se deve flexibilizar o direito real de habitação do art. 1.831 do CC quando o viúvo tiver mantido um longo relacionamento com o falecido.  Consideramos longo relacionamento aquele com mais de 21 (vinte e um) anos. Isso, porque, presumidamente nesse lapso de tempo, o casal terá dedicado os seus maiores esforços em prol da família, com eventual criação de filho. O tempo de 21 anos é tomado emprestado da legislação previdenciária, que estima essa idade como parâmetro para extinção da pensão devida a filhos menores do casal8.  Nesses casos, é irrelevante se o viúvo tem ou não condições financeiras de arcar com outra moradia.  Isso, por dois principais motivos. De um lado, o direito real de habitação do art. 1.831 do CC protege o vínculo afetivo com um local que guarda memórias profundas da família. Nas palavras de Flávio Tartuce, citado pela ministra Nancy Andrighi, esse direito resguarda o "vínculo afetivo e psicológico estabelecido pelos cônjuges ou companheiros com o imóvel em que, no transcurso de sua convivência, constituíram não apenas uma residência, mas um lar" (voto neste julgado: STJ, REsp 2.151.939/RJ, 3ª turma, relatora ministra Nancy Andrighi, j. 24/9/24). De outro lado, o direito legal é um reconhecimento da sua longa dedicação ao falecido e ao lar. Essa dedicação, inclusive, pode ter colaborado até mesmo para o falecido ter conseguido preservar ou conquistar o patrimônio. De fato, os trabalhos de cuidado não podem ser desprezados pelo direito das sucessões, dentro do paradigma atual de prestígio à economia do cuidado9. Eventual desventura financeira dos demais herdeiros - que presumidamente decorre de suas escolhas ou de sua falta de sorte - não pode ser invocada para derrubar o direito de quem, por longos anos, às custas de sacrifícios pessoais, dedicou-se ao cuidado mais íntimo do falecido.   O terceiro parâmetro é o da proteção do viúvo diante de caprichos dos demais herdeiros.  À luz desse parâmetro, a flexibilização do direito real de habitação não deve acontecer quando os demais herdeiros dispuserem de situação financeira confortável ou quando esses herdeiros estiverem em situação de vulnerabilidade por conta de uma escolha por uma vida de poucas responsabilidades (como no caso de filhos que desprezaram as oportunidades de estudos e de trabalho que receberam de seus pais por preferirem um caminho de menor responsabilidade).  Isso, porque não soa condizente com a equidade forçar uma interpretação restritiva do art. 1.831 do CC para beneficiar o capricho dos demais herdeiros em detrimento do viúvo. É irrelevante se o viúvo também está em condições financeiras confortáveis. Esse parâmetro dialoga com o princípio da proteção simplificada do luxo10, com o princípio de amparo às pessoas vulneráveis11 e com os primados de autonomia privada. 3. Compatibilidade da jurisprudência do STJ com os três parâmetros de flexibilização do direito real de habitação vidual O STJ caminha no sentido acima, conforme o único julgado do STJ que flexibilizou o direito real de habitação (STJ, REsp 2.151.939/RJ, 3ª turma, relatora ministra Nancy Andrighi, j. 24/9/24).  Não é possível generalizar nada, porque só há um julgado do STJ, e a 4ª turma ainda haverá de se manifestar. Seja como for, enxergamos que o referido julgado indica um pendor do STJ em seguir os três parâmetros que indicamos acima.  Nesse julgado, por unanimidade, os ministros rejeitaram o direito real de habitação vidual sobre um imóvel de classe média12 em que a viúva residia com o falecido.  A viúva era uma jovem senhora de 52 anos que não tinha filhos e que havia ficado com uma expressiva e vitalícia pensão por morte (o falecido era procurador Federal) após 16 anos de casamento.  O único bem financeiramente relevante no espólio era esse imóvel, adquirido pelo falecido por herança no curso do casamento13. Com isso, o STJ beneficiou os dois únicos filhos do falecido, que ficaram com a propriedade plena da integralidade do imóvel14. Eles não dispunham de imóvel próprio e viviam de aluguel com os 5 netos (ainda menores de idade à época do falecimento). Foi decisivo, no julgamento, o fato de, ao tempo da abertura da sucessão, tanto o fato de os filhos estarem em situação patrimonial vulnerável quanto o fato de a viúva ser uma jovem senhora com uma pensão vitalícia elevada e com idade próxima aos filhos unilaterais do falecido. Em princípio, como o direito real de habitação só se extinguiria com a morte da viúva, os filhos do falecido dificilmente fruiriam efetivamente do bem que receberam por herança. Entendemos que a flexibilização do direito real de habitação vidual aí observou os três parâmetros que defendemos: (1) a viúva não era pessoa de idade avançada, ou seja, não tinha mais de 55 anos; (2) o seu casamento durou menos de 21 anos; e (3) os demais herdeiros estavam em situação de vulnerabilidade financeira sem que tenha havido capricho deles. __________ 1 A palavra "vidual" significa relativo a viuvez. 2 Fala da ministra durante a sessão de julgamento às 2h21min deste vídeo. Disponível aqui.  3 OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Dúvida jurídica razoável como excludente de responsabilidade civil, de enriquecimento sem causa e de outros remédios contra ilícitos civis: comentários a um julgado do STJ. In: Revista IBERC, v. 3, n. 1, p. 1-19, jan-abr de 2020-P. Disponível aqui. 4 A propósito de eventual mudança legislativa, o Anteprojeto de Reforma do Código Civil (Senado Federal, 2023/24) sugere que o referido dispositivo passe a ser textual em condicionar a subsistência do direito real de habitação do viúvo à sua incapacidade financeira em custear uma moradia digna sem prejuízo do próprio sustento. O texto sugerido é este: Art. 1.831. Ao cônjuge ou ao convivente sobrevivente que residia com o autor da herança ao tempo de sua morte, será assegurado, qualquer que seja o regime de bens e sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação, relativamente ao imóvel que era destinado à moradia da família, desde que seja o único bem a inventariar. § 1º Se ao tempo da morte, viviam juntamente com o casal descendentes incapazes ou com deficiência, bem como ascendentes vulneráveis ou, ainda, as pessoas referidas no art. 1.831-A caput e seus parágrafos deste Código, o direito de habitação há de ser compartilhado por todos. § 2º Cessa o direito quando qualquer um dos titulares do direito à habitação tiver renda ou patrimônio suficiente para manter sua respectiva moradia, ou quando constituir nova família. Disponível aqui. 5 44 anos (art. 222, VII, "6", da lei 8.112/90; art. 77, § 2º, V, "6", da lei 8.213/91). 6 62 anos para mulher e 65 anos para o homem, o que dá uma média de 62,5 anos (art. 40, III; art. 201, § 7º, I, da CF). 7 60 anos (art. 1º da lei 10.741/03). 8 Art. 77, § 2º, II, da lei 8.212/91; art. 221, IV, da lei 8.112/90. 9 Para aprofundamento: Para aprofundamento: OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Economia do Cuidado e Direito de Família: alimentos, guarda, regime de bens, curatela e cuidados voluntários. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, maio 2024. Disponível aqui. 10 OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. O princípio da proteção simplificada do luxo, o princípio da proteção simplificada do agraciado e a responsabilidade civil do generoso. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, Dezembro/2018 (Texto para Discussão nº 254). Disponível aqui. 11 OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Princípio do amparo às pessoas vulneráveis no Direito Civil. Disponível aqui. 12 Tratava-se de um imóvel no famoso bairro Glória, Rio de Janeiro. 13 Dados obtidos dos autos: data do óbito: 15/9/04; Data de nascimento da viúva, do falecido, do filho1 e do filho2: 22/7/52, 21/8/36, 31/1/84 e 13/10/65. Data do casamento: 20/1/88.  14 A Corte de origem não reconheceu direito hereditário à viúva sobre o imóvel, apesar de ela ser casada no regime da comunhão parcial de bens. Adotou entendimento superado do art. 1.829, I, do CC.
Trataremos, de modo objetivo, do que designamos de princípio do amparo às pessoas vulneráveis no Direito Civil. Entre o forte e o fraco, a liberdade escraviza, e o Direito liberta. Essa é uma frase atribuída a Henri Dominique Lacordaire e dá a entender que, para grupos sociais mais vulneráveis, o Direito precisa intervir para protegê-los e até ajudá-los. Essa preocupação está no fundamento do Direito Civil brasileiro por meio do que chamamos de princípio do amparo às pessoas vulneráveis. Como qualquer princípio, ele passa por balanços de ponderação ao chocarem com outros princípios, como o da autonomia privada, tudo de modo a encontrar uma solução justa no caso concreto. Esse princípio consiste em que o Direito deve, sempre que possível e com razoabilidade, proteger e ajudar as pessoas vulneráveis nas relações jurídicas, neutralizando eventual abuso por parte de terceiros em condições pessoais vantajosas e contrabalançando as limitações impostas pelas situações de vulnerabilidade. É claro que esse princípio não se destina a fomentar a irresponsabilidade ou a infantilização das pessoas a pretexto de vulnerabilidade, mas apenas a, com razoabilidade, municiar essas pessoas com instrumentos jurídicos que compensem as dificuldades decorrentes da vulnerabilidade. Nos últimos anos, o Direito Civil, em conjunto com outros ramos, tem lançado os olhos para esse princípio com mais intensidade, do que dão exemplo as várias leis especiais destinadas à garantia dos direitos de pessoas vulneráveis. Do princípio em pauta decorrem diversas consequências práticas no Direito, como estas: O Ministério Público, na condição de fiscal da lei (custos legis), tem o dever de agir em favor de grupos mais vulneráveis em diversas situações, como no caso de pessoa incapaz; A tutela coletiva de direitos por meio dos instrumentos da lei de ação civil pública (lei 7.347/85), como o ajuizamento de feitos para obtenção de decisões de indenização por dano moral coletivo ou de cessação de infrações etc; No caso de pessoas indígenas, o Estatuto da Pessoa Indígena (lei 6.001/73) estabelece diversas regras destinadas à sua proteção; No caso de combate a racismo, há diversas investidas legislativas. Uma delas é a lei 7.716/89, que prevê, como crime, condutas discriminatórias resultantes da raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional; Para a proteção à mulher diante de violência doméstica e familiar, a lei Maria da Penha (lei 11.340/06) estabelece um rito processual multidisciplinar destinado a garantir uma medida protetiva; Verbas trabalhistas, tributários e de investimento na forma da lei 6.858/80 podem ser objeto de pagamento direto. Em outras palavras, não dependem de prévio procedimento judicial ou extrajudicial de inventário ou de arrolamento, o que facilita o acesso dos herdeiros mais vulneráveis a bens essenciais à sua sobrevivência; No caso de internação psiquiátrica de pessoas com transtornos mentais, a lei 10.216/01 assegura garantias mínimas para evitar abusos. Uma dessas garantias é a de, no caso de internação involuntária, o Ministério Público tem de ser notificado para fiscalizar (art. 8º, § 1º); O ordenamento disponibiliza diversos institutos de amparo para viabilizar que pessoas vulneráveis possam praticar atos da vida civil com a maior segurança possível. É o caso, por exemplo, da tutela, curatela, guarda, tomada de decisão apoiada e poder familiar. Há diversas leis destinadas à proteção de pessoas mais vulneráveis em relações contratuais, de modo a prevenir abusos contra elas pela parte mais forte. É o caso do Código de Defesa do Consumidor (lei 8.078/90), da lei do inquilinato (lei 8.245/91), da lei de incorporação imobiliária (lei 4.591/64) etc. Há vários outros exemplos. Deixamos apenas estes, com o objetivo de ilustrar a progressiva preocupação do ordenamento jurídico em efetivar uma sociedade mais justa, que proporcione aos grupos mais vulneráveis uma proteção proporcional e razoável.
O objetivo deste artigo é, de modo sucinto, tratar do que chamamos de princípio da estabilização das situações jurídicas no Direito Civil. A identificação de princípios ou regras fundamentais do Direito Civil são úteis para definir lugares comuns (topoi) que ancoram o legislador, a jurisprudência, a academia e os profissionais do Direito e que colaboram a manter a coerência das soluções jurídicas. Passemos a expor o princípio. O Direito prestigia a segurança jurídica e, consequentemente, a estabilização das situações jurídicas. É excepcional a permissão de desfazimento dessas situações. Trata-se do princípio da estabilização das situações jurídicas. Daí decorrem diversas consequências. Focaremos esse princípio no âmbito do Direito Civil. No caso de situações jurídicas criadas por ato de uma pessoa, a regra geral é a irretratabilidade: a pessoa não pode voltar atrás de sua conduta. Trata-se de regra resumida no brocardo latino electa una via altera non datur (eleita uma via, não é dado alterá-la)1. No jargão popular, a hipótese é espelhada por expressões idiomáticas como "ajoelhou, vai ter de rezar" ou "desceu no play, vai ter de brincar". A retratabilidade é exceção. Além disso, mesmo no caso de invalidade ou ineficácia do ato jurídico, a regra é a tentativa de preservação dos efeitos práticos do ato jurídico, conforme o princípio da conservação do negócio jurídico (um princípio conectado ao princípio da conservação do negócio jurídico). Também decorrem do princípio da estabilização das situações jurídicas as hipóteses de regularização de irregularidades por força do transcurso do tempo ou até mesmo de conceitos abertos, como a boa-fé, a socioafetividade, a prescrição etc. Há diversos exemplos, inclusive em outros ramos do Direito. No Processo Civil, citamos a preclusão consumativa, que impede que a parte refaça um determinado ato processual. Se ela interpôs um recurso, não pode ela querer substituir esse recurso por outro com argumentos adicionais, ainda que o prazo recursal não tenha se esgotado. No Direito Administrativo, há a famosa teoria do fato consumado (também chamada de teoria da consolidação da situação de fato) a desaconselhar o desfazimento de atos administrativos irregulares que, no caso concreto, já tenha consolidado alguma situação fática. No Direito Civil, citamos estes exemplos: escolhido um objeto nas obrigações de dar coisa incerta ou alternativas com cientificação da outra parte (fase da concentração), é vedado alterar o objeto, salvo consentimento da outra parte. O texto do Código Civil é silente, mas a doutrina é pacífica nesse ponto. O fundamento é o princípio da estabilização das situações jurídicas; o herdeiro não pode voltar atrás da aceitação nem da renúncia à herança por força do art. 1.812 do CC; ao celebrar um contrato, a pessoa não pode desfazê-lo por sua mera vontade unilateral, salvo nos casos de permissão legal, ainda que implícita, da lei (resilição unilateral; art. 473, CC), observado eventual dever de pagar multa compensatória ou indenização; as várias aplicações do princípio da conservação do negócio jurídico, como a conversão substancial do negócio jurídico (art. 170, CC), a conversão formal (art. 183, CC), a redução do negócio jurídico (art. 184, CC) e a substituição de fundamento do ato de vontade (tema que detalhamos em outro artigo2). a prescrição e a decadência são exemplos também de estabilização de situações jurídicas diante da inércia do titular de um direito ou de uma pretensão pelo transcurso do tempo. os diversos corolários da boa-fé objetiva, como a proibição do venire contra factum proprium, também respaldam a censura a condutas que contrariam a expectativa gerada por condutas anteriores da pessoa. o usucapião e a costumeira edição de leis de regularização fundiária retratam a estabilização de situações fáticas de ocupações irregulares em razão do transcurso do tempo, da função social e de outros valores jurídicos. ________ 1 Com o mesmo significado, são usuais os seguintes brocardos: electa una via non datur regressus ad alteram ou electa una via non datur recursus ad alteram. 2 OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Considerações sobre os planos dos fatos jurídicos e a "substituição do fundamento do ato de vontade". Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, fevereiro/2020 (Texto para discussão nº 270). Disponível aqui.
Resumo Para facilitar ao leitor, resumimos, em tópico, as principais ideias deste artigo: 1. DIVÓRCIO EXTRAJUDICIAL COM FILHO INCAPAZ OU NASCITURO: só pode ocorrer após as questões conexas do filho incapaz ou do nascituro terem sido resolvidas previamente na via judicial (art. 34, § 2º, Resolução nº 35) (capítulo 2.1.). 1.1. Apesar de essa solução tender a ficar em desuso, trata-se daquilo que o CNJ, dentro do quadro legal atual, considera possível disciplinar por ato infralegal. 1.2. Convém o legislador avançar para afastar a exigência de prévia solução judicial das questões conexas dos filhos incapazes e permitir a solução extrajudicial das questões conexas do filho quando houver manifestação favorável do Ministério Público. 2. ESCRITURA PÚBLICA DE DECLARAÇÃO DE SEPARAÇÃO DE FATO: é título hábil para averbação no assento de casamento e em outros registros públicos ((arts. 3º e 52-A e seguintes da Resolução nº 35). A omissão nessa averbação não pode prejudicar terceiros de boa-fé que, confiando nos registros públicos, ignorem a separação de fato (capítulos 2.2.1. e 2.2.2.). 2.1. Pode tratar de questões conexas do casal (partilha de bens e alimentos entre os consortes separados de fato). 2.2. A separação de fato pode ser provada por outros meios, sem, porém, ensejar averbação no assento de casamento ou em outros registros públicos. 2. ESCRITURA PÚBLICA DE DECLARAÇÃO DE RESTABELECIMENTO DA SOCIEDADE CONJUGAL: é título hábil para averbação no assento de casamento, se tiver havido previamente a averbação da separação de fato (arts. 52-B e 52-C da Resolução nº 35). A omissão nessa averbação não pode prejudicar terceiros de boa-fé que, confiando nos registros públicos, tenha considerado o casal separado de fato (capítulo 2.2.3.). 3. INVENTÁRIO EXTRAJUDICIAL COM TESTAMENTO: só é cabível se a sentença definitiva da ação do testamento tiver autorizado expressamente (art. 12-B da Resolução nº 35) (capítulo 3.1.). 3.1. Tendo em vista o prazo de 2 meses para a instauração do inventário (art. 611, CPC), cabe aos interessados ou instaurar o inventário judicial (e, com o término da ação do testamento, migrar para a via extrajudicial na forma do art. 2º da Resolução nº 35), ou obter uma tutela de urgência do juízo da ação do testamento para a instauração do inventário extrajudicial. 3.2. Se as partes tiverem se esquecido de pedir a autorização do juízo da ação do testamento, a saída é postulá-la no próprio processo judicial de inventário e partilha (art. 2 da Resolução 35) ou, se não houver, em um procedimento atípico de jurisdição voluntária (art. 719, CPC). 3.3. A exigência de prévia autorização do juízo da ação do testamento merece vir a ser suprimida posteriormente por nova lei. O CNJ, porém, a manteve, porque, dentro da elevada prudência de seus Conselheiros, essa foi a solução possível dentro dos limites legais atuais. 4. INVENTÁRIO EXTRAJUDICIAL COM INTERESSADO INCAPAZ: depende de dois requisitos adicionais: (1) manifestação favorável do MP, ou, no caso de impugnação dele ou de terceiro, decisão de juízo em procedimento jurisdicional; e (2) partilha cartesiana em cada bem integrante do espólio (art. 12-A da Resolução nº 35) (capítulo 3.2.). 4.1. O CNJ atuou dentro do que era viável nos limites do poder regulamentar, neste momento histórico. Convém o legislador avançar, para afastar o segundo requisito adicional (o da falta de margem de manobra na partilha). 5. ALVARÁ EXTRAJUDICIAL DE VENDA DE BENS: só pode ocorrer para custeio das despesas de transação do inventário e da partilha e depende de prestação de garantia pelo inventariante (art. 11 da Resolução nº 35) (capítulo 3.2.). 5.1. O CNJ atuou dentro do que era viável nos limites do poder regulamentar, neste momento histórico. Convém o legislador avançar, para permitir o alvará extrajudicial para pagamento de outras dívidas do espólio e para permitir aos herdeiros dispensar a garantia. 1. Introdução Recentemente, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) fez o que foi viável dentro dos limites do poder regulamentar, alterando a Resolução nº 35/2007 por meio da Resolução nº 571/2023. Fê-lo sob a proatividade de um dos mais destacados Corregedores Nacionais de Justiça da história - o Min. Luis Felipe Salomão - e ao abrigo das mais brilhantes composições de Conselheiros presididos pelo prolífico Min. Luís Roberto Barroso. O CNJ, dentro dos limites delineados pela legislação atual, avançou na extrajudicialização dos clássicos procedimentos escatológicos dos Direitos de Família e das Sucessões, nomeadamente os que versam sobre: divórcio, separação de fato, extinção da união estável e inventário e partilha. No Direito de Família, os limites legais são dados pelo art. 733 do Código de Processo Civil (CPC)1, que admite os referidos procedimentos extrajudiciais se o casal moribundo não tiver nascituro nem filho incapaz. No Direito das Sucessões, a fronteira infralegal é delineada pelo art. 610 do CPC2, que disponibiliza a via extrajudicial do inventário e partilha quando inexistir estes dois elementos: testamento ou interessados incapazes. Como regras básicas de hermenêutica ensinam, a lei, por vezes, pode dizer menos do que queria ("minus scripsit quam voluit"), pois a infinitude da casuística nem sempre é captada ex ante pelo legislador. A correção e o esclarecimento interpretativos da lei podem ser feitos por meio de ato infralegal, caso das supracitadas resoluções do CNJ. Com notável prudência, o CNJ avançou bastante na extrajudiciais ao alterar a Resolução nº 35. Desde logo, indagamos: o CNJ poderia ter avançado mais? Entendemos que foi muito prudente a solução da Corte Administrativa nesse momento histórico e talvez, no futuro, possa-se encontrar amparo para maiores avanços na regulamentação. Mas a verdade é que o bastão para novos avanços está atualmente nas mãos do legislador, que deveria expandir as fronteiras da extrajudicialização dos supracitados procedimentos dos Direitos de Família e das Sucessões. 2. Avanços na extrajudicialização dos Procedimentos Escatológicos de Direito de Família No Direito de Família, passamos a destacar os principais avanços do CNJ nos referidos procedimentos extrajudiciais. 2.1. Divórcio ou extinção da união estável com filhos incapazes ou nascituro O divórcio ou a extinção da união estável podem ser realizados mesmo quando houver nascituro ou filhos incapazes, com uma condição: as questões conexas dessas pessoas vulneráveis já têm de estar resolvidas na via judicial (art. 34, § 2º, Resolução nº 35). Estamos a nos referir às questões de alimentos e de guarda (incluindo visitação) dessas pessoas vulneráveis. De fato, quando tratamos de divórcio ou extinção da união estável, temos 3 tipos de questões jurídicas envolvidas: (1) a questão principal, que diz respeito à mudança do estado civil; (2) a questão conexa do casal, que alude à partilha dos bens e aos alimentos entre os ex-consortes; e (3) a questão conexa dos filhos incapazes, que se reporta à guarda e aos alimentos dos filhos. Acrescemos que filhos incapazes aí envolvem não apenas os incapazes por menoridade, mas também os maiores incapazes, por força do art. 1.590 do Código Civil - CC3. O avanço foi importante e foi obtido ao sopro da notável prudência do CNJ no presente momento histórico. O CNJ fez o que era razoável dentro dos limites do poder regulamentar. Infelizmente, porém, entendemos que haverá pouca utilidade prática quotidiana nessa opção. É que, como os consortes têm de se socorrer da via judicial para tratar das questões conexas relativas aos filhos incapazes, a eficiência aconselhá-los-á a pegar carona nessa via para resolver as demais questões. Afinal de contas, não faz sentido deixar a questão principal (o divórcio ou a extinção da união estável) e as questões conexas do casal (partilha e alimentos) à espera do término do procedimento judicial prévio de interesse dos filhos incapazes. Seja como for, aplaudimos a solução do CNJ, que foi a viável dentro do quadro legal atual neste momento histórico. Apesar da provavelmente baixa aplicação prática, esse avanço do CNJ é um sonoro alerta para o legislador apressar-se em eliminar as travas legais à extrajudicialização nesse ponto. 2.2. Escritura Pública de Declaração de Separação de Fato e Escritura Pública de Restabelecimento da Sociedade Conjugal 2.2.1. Separação de direito vs separação de fato e separação (de direito) judicial vs separação (de direito) extrajudicial Antes de expor os avanços do CNJ, é preciso tomar cuidado ao tratar das nomenclaturas envolvendo o instituto da separação. Na prática, observamos haver certa confusão no uso das expressões. De um lado, quanto à natureza, a separação pode ser dividida em duas espécies: separação de direito e separação de fato. A separação de direito é a dissolução formal da sociedade conjugal por meio de um ato jurídico-formal. O STF entendeu que a separação de direito foi revogada pela Emenda à Constituição nº 66, ressalvadas as separações de direito anteriores à decisão do STF (STF, Tema nº 1.053). A separação de fato: é a dissolução informal da sociedade conjugal por meio da cessação, de fato, da convivência more uxorio (que também pode ser chamada de comunhão plena de vida, expressão utilizada no art. 1.511 do CC). Essa separação de fato ocorre quando o casal deixa de, na prática, compartilhar plenamente a vida. Essa cessação da convivência pode acontecer por conduta espontânea do casal (ex.: um dos cônjuges sai "de casa") ou por eventual decisão judicial. Quando se trata de uma decisão judicial, esta geralmente ocorre em duas hipóteses principais: (a) uma decisão cautelar ou definitiva conhecida como separação de corpos, expressão forense mencionada pelo art. 1.562 do CC; ou (b) uma decisão de medida protetiva de afastamento do lar, com fundamento na Lei Maria da Penha. De outro lado, a separação de direito (e não a separação em geral!) pode ser classificada em duas espécies quanto à sua constituição: (1) separação judicial: quando a separação de direito se constitui por uma decisão judicial; e (2) separação extrajudicial: quando a separação de direito se constitui por uma escritura pública. Ambas as hipóteses não mais subsistem à vista da supracitada decisão do STF (STF, Tema nº 1.053). Como se vê, atualmente existe apenas a separação de fato, que é um ato jurídico-informal, e não um ato jurídico-formal. A principal utilidade prática da separação de fato é que ela faz cessar os efeitos do regime de bens. Assim, se o casal se separou de fato, não haverá mais comunicação de bens que vierem a ser adquiridos por qualquer dos consortes separados. Trata-se de aplicação analógica do art. 1.576 do CC, que atecnicamente apenas se refere à separação judicial. Diante disso, para evitar litígios futuros, é conveniente que a data da separação de fato esteja devidamente comprovada, por ser o marco temporal a partir do qual não haverá mais comunicação de bens. A prova dessa data pode ser feita por qualquer meio (conversa de whatsapp, testemunhas etc.). Todavia, é conveniente que haja uma prova mais estável e unívoca. Quando a separação de fato decorre de uma decisão judicial (como a de separação de corpos ou de medida protetiva de afastamento do lar), a prova estável e unívoca é esse ato formal do Poder Judiciário. Quando, porém, a separação de fato deriva de conduta espontânea do casal (ex.: o consorte "saiu de casa"), é preciso certa margem de criatividade para buscar provas estáveis e unívocas a fim de reduzir riscos de litígios futuros. É nesse contexto que está um dos recentes avanços normativos do CNJ, que trata da Escritura Pública de Declaração de Separação de Fato, sobre a qual discorreremos mais abaixo. 2.2.2. Escritura Pública de Declaração de Separação de Fato O CNJ disciplinou a Escritura Pública de Declaração de Separação de Fato. Veja que se trata de uma declaração de separação de fato, pois ela apenas atesta um fato que já pode ter ocorrido: a restauração da convivência more uxorio do casal. Essa escritura é título hábil para os registros públicos (Registro Civil das Pessoas Naturais e o Registro de Imóveis, por exemplo) e para outras instituições públicas ou privadas pertinentes (arts. 3º e 52-A e seguintes da Resolução nº 35). Na prática, a referida escritura poderá lidar com todas as questões conexas do casal (partilha de bens e alimentos), à semelhança do que se dá com o divórcio extrajudicial. Prova disso é que as partes, entre outros documentos, têm de apresentar prova da titularidade dos bens do casal a serem partilhados (art. 52-B4). Além disso, a referida escritura poderá ser averbada no assento de casamento, de modo a publicizar a situação de separação de fato. Não há obrigatoriedade na averbação, embora ela seja aconselhável para fins de publicidade a terceiros. A omissão nessa averbação não pode prejudicar terceiros de boa-fé que, confiando nos registros públicos, ignorem a separação de fato Em princípio, nada impede que o casal faça um instrumento particular de declaração de separação de fato. Todavia, esse título não será averbável no assento de casamento, porque a Resolução do CNJ exige escritura pública. Também nada impede que o casal deixe de celebrar qualquer instrumento para atestar a separação de fato. Todavia, essa conduta poderá gerar futuros litígios para comprovação, por outros e-mails, da data da separação de fato. Esse tipo de litígio pode acontecer especialmente se, com base nas regras do regime de bens do casamento, algum dos cônjuges separados de fato vir a pleitear a comunicação de algum bem adquirido pelo outro. Cabe um alerta: em regra, a Escritura de Separação de Fato não é cabível quando existirem filhos incapazes ou nascituro do casal (art. 52-B, "h"). Entendemos, porém, que, apesar do silêncio da Resolução nº 35, é cabível a aplicação analógica da exceção prevista para o divórcio extrajudicial no § 2º do art. 34: é cabível a escritura pública de declaração de separação de fato se as questões conexas do filho já tiverem sido resolvidas judicialmente. Nesse sentido, indaga-se: por qual razão o casal faria uma Escritura de Separação de Fato, e não uma de Divórcio? A resposta está na questão principal envolvida: o estado civil. Quando o casal opta pela separação de fato, é por que eles apenas querem "dar um tempo" do casamento, para refletir se realmente querem romper ou não o vínculo matrimonial. Se eles quiserem restaurar a sociedade conjugal, não haverá necessidade de celebrar um novo casamento; basta o casal voltar a, de fato, conviver de modo more uxorio. A restauração da convivência more uxorio é chamada de restabelecimento da sociedade conjugal. Trata-se de expressão que é plenamente extensível para a separação de fato, apesar de ter sido tradicionalmente utilizada em caso de separação de direito. Afinal de contas, ambos os tipos de separação representam a ruptura da sociedade conjugal. 2.2.3. Escritura Pública de Declaração de Restabelecimento da Sociedade Conjugal No caso de separação de fato, a sociedade conjugal, ou seja, a convivência more uxorio (ou a comunhão plena de vida) cessou de fato. O casal está apenas casado "no papel": há apenas o vínculo matrimonial. Popularmente, isso ocorrerá quando o marido ou a esposa "sai de casa". Para restabelecer a sociedade conjugal, basta o casal voltar a, de fato, ter a convivência more uxorio. Popularmente, é quando o marido ou a esposa "volta para casa". Trata-se, pois, de um fenômeno fático. O casal pode comprovar esse restabelecimento da sociedade de fato por qualquer meio. Uma das opções é a Escritura Pública de Declaração de Restabelecimento da Sociedade Conjugal (arts. 52-B e 52-C da Resolução nº 35). Destacamos o verbete "declaração", porque essa escritura apenas atesta um fato que já pode ter ocorrido: o ato tem efeito meramente declaratório. Embora os arts. 52-B e 52-C da Resolução não tenha utilizado esse verbete, recomendamos seu uso pelos tabeliães na escritura para realçar a natureza declaratória do ato. Se o casal tiver averbado a separação de fato no assento de casamento, a averbação do restabelecimento da sociedade conjugal só poderá ocorrer mediante Escritura Pública de Declaração de Restabelecimento da Sociedade Conjugal. Cabe ao casal promover essa averbação para fins de publicidade a terceiros. A omissão nessa averbação não pode prejudicar terceiros de boa-fé que, confiando nos registros públicos, tenha considerado o casal separado de fato. Seja como for, ao menos no âmbito do cartório de notas, é dever do próprio tabelião anotar, na anterior escritura pública de separação de fato, a lavratura da escritura de restabelecimento da sociedade conjugal (art. 52-D). 3. Avanços na extrajudicialização dos Procedimentos Escatalógicos de Direito das Sucessões No Direito das Sucessões, passamos a destacar os principais avanços do CNJ nos referidos procedimentos extrajudiciais. 3.1. Inventário extrajudicial com testamento Quando o falecido houver deixado testamento, é obrigatória a ação judicial de abertura, confirmação, registro e cumprimento desse testamento, a qual chamamos apenas de ação do testamento (arts. 735 a 737, CPC). O objetivo é sujeitar o testamento a uma fiscalização judicial que descarte riscos de fraudes (ex.: testamentos falsos) e ateste a validade e a eficácia do testamento (ex.: o testamento ter observado as formalidades legais, não ter incorrido em caducidade, ruptura, desrespeito à legítima etc.). Paralelamente a isso, dentro do prazo de 2 meses do falecimento, o inventário tem de ser iniciado (art. 611, CPC). Daí se indaga: é cabível o uso da via extrajudicial para o inventário e partilha nessa hipótese de testamento? O CNJ só a admite se a sentença transitada em julgado naquela ação do testamento tiver autorizado ou tiver declarado extinto o testamento (por inexistência, invalidade ou ineficácia) (art. 12-B da Resolução nº 35). Portanto, as partes interessadas não podem se esquecer de pedir, na petição inicial da ação de testamento, a autorização para utilizar a via extrajudicial para o inventário. Parece-nos que a razão de ser dessa exigência feita pelo CNJ é que o juízo da ação do testamento teria mais condições de avaliar se o caso concreto envolveria maiores riscos de burlas à vontade do testador se o inventário se processasse fora da supervisão judicial. Há dois problemas práticos. O primeiro é para cumprir o prazo de 2 meses para a abertura do inventário (art. 611, CPC), considerando que a ação do testamento pode vir a demorar. Não há dispositivo expresso na Resolução sobre isso. Nessa hipótese, entendemos há duas opções. A primeira é instaurar o inventário judicial dentro do prazo e, com o advento da sentença definitiva da ação de testamento, pedir a extinção do inventário judicial para se valer da via extrajudicial (art. 2º da Resolução nº 35). A segunda opção é obter do juízo da ação do testamento uma tutela de urgência para autorizar, ainda que precariamente, a instauração do inventário por meio de escritura pública. Convém que o juízo autorize a nomeação de inventariante e a prática de todos os atos necessários à partilha, sem, porém, autorizar a conclusão desta enquanto não sobrevier o trânsito em julgado da ação de testamento. Na prática, porém, notadamente nos Estados em que não há multa administrativa por atraso na abertura do inventário, antevemos que prevalecerá a informalidade quando as partes quiserem a via extrajudicial: as partes aguardarão o término da ação do testamento, ainda que venha a extrapolar o prazo do art. 611 do CPC. O segundo problema prático é que as partes podem ter se esquecido de pedir a autorização para o juízo da ação de testamento. Nesse caso, entendemos que as partes podem pedir essa autorização no próprio processo judicial de inventário e partilha (art. 2 da Resolução 35) ou, se não houver, em um procedimento atípico de jurisdição voluntária (art. 719, CPC). A solução acima foi a que o CNJ, dentro de seu elevado grau de prudência neste momento histórico, pôde avançar. Esperamos que, em um futuro breve, o legislador avance não apenas na extrajudicialização do inventário e partilha, mas também no procedimento de abertura e confirmação do testamento. É que este procedimento deveria poder ser realizado por escritura pública mediante manifestação favorável da instituição incumbida de velar pelos interesses dos vulneráveis: o Ministério Público - MP. Com isso, eliminaríamos uma redundância desnecessária: a intervenção judicial quando o Ministério Público e o tabelião de notas são favoráveis. Lembramos que o tabelião também é profissional do Direito (art. 2º, Lei nº 8.935/1994). Quiçá, em outro momento histórico, esse avanço poderá até vir por ato do CNJ, caso o legislador siga omisso. 3.2. Inventário extrajudicial com interessado incapaz Conforme art. 12-A da Resolução nº 35, se houver herdeiro ou meeiro incapaz, o inventário e partilha extrajudicial dependerá de dois requisitos adicionais: (1) a manifestação favorável do MP, que é a instituição incumbida fiscalizar os interesses dos incapazes (art. 127, Constituição Federal - CF; art. 178, II, CPC); e (2) partilha cartesiana em cada bem integrante do espólio (=falta de margem de manobra na partilha). Em relação ao primeiro requisito adicional, se o MP discordar ou se houver impugnação de terceiro interessado, o caso deve ser encaminhado ao juízo competente. Temos que aí não se está a falar do juízo correcional em um procedimento administrativo, e sim do juízo em um procedimento jurisdicional. Isso, porque a própria Resolução é expressa quando alude à via administrativa (ex.: art. 12, § 2°, Resolução 35). Entendemos, ainda, que o parecer ministerial é exarado antes da subscrição da escritura por todos os interessados, com base em minuta enviada pelo tabelião. Com o parecer favorável, o tabelião concluirá a escritura, acrescentando a notícia do parecer ministerial, arquivando o parecer e coletando as assinaturas das partes. No tocante ao segundo requisito adicional, não há margem de manobra ao herdeiro incapaz na partilha dos bens na via extrajudicial. Em outras palavras, necessariamente, na partilha extrajudicial, o herdeiro incapaz terá de ficar com uma fração ideal sobre cada bem do espólio, vedada qualquer compensação. Por exemplo, se o falecido tiver deixado dois herdeiros (um capaz e outro incapaz) e dois apartamentos (de valores iguais), o herdeiro incapaz necessariamente ficará com 50% de cada um dos apartamentos. É vedado que, na escritura de partilha, o herdeiro incapaz fique com um apartamento, e o outro herdeiro fique com o outro apartamento. Com essa solução, o CNJ impede que seja utilizada a regra da máxima comodidade dos coerdeiros e do viúvo na partilha dos bens, prevista no art. 648 do CPC. A razão de ser da restrição é a de que, sem a intervenção judicial, haveria maior risco de o herdeiro incapaz, ao final da partilha, ficar em uma posição desvantajosa. Afinal de contas, é sabido que muitos bens, apesar de formalmente terem uma determinada expressão econômica à luz de uma avaliação pericial, são de difícil liquidação ou de deterioração ou desvalorização rápidas. Imagine, por exemplo, o espólio seja composto de um carro avaliado em R$ 500.000,00 e de um apartamento de R$ 500.000,00. Há dois herdeiros: um incapaz e outro capaz. É intuitivo que o carro é um bem pouco vantajoso para o herdeiro incapaz: além de ser um bem que rapidamente desvaloriza, há pouca utilidade prática ao herdeiro que sequer tem autorização estatal para dirigir. A solução do CNJ acima foi a que os seus Conselheiros entenderam viável dentro do figurino legal atual. Talvez, em outro momento histórico, o CNJ possa encontrar apoio para avançar mais. Seja como for, entendemos que cabe ao legislador eliminar o segundo requisito adicional acima: o da falta de manobra para o herdeiro incapaz na partilha. Isso, porque o Ministério Público é a instituição vocacionada à tutela do interesse dos incapazes. Parece-nos desnecessário ser redundantes ao exigir a intervenção judicial, ainda mais porque, segundo se sabe da praxe forense, é muito raro que - ao menos, em matéria de partilha de bens envolvendo menores - os juízes adotem solução diversa da preferida pelo Ministério Público. Além disso, a solução de formar condomínio tradicional sobre todos os bens do espólio pode criar entraves burocráticos desnecessários até contra o herdeiro incapaz. Pense, por exemplo, que o espólio seja composto de dois apartamentos, de igual valor: um na Alemanha, outro no Brasil. Há dois herdeiros: um herdeiro é incapaz e mora no Brasil; o outro é capaz e vive na Alemanha. Em situação como essa, a regra da máxima comodidade da partilha (art. 648, CPC) recomendaria o herdeiro incapaz ficar com o imóvel no Brasil, dada a maior facilidade de sua gestão para ele sem os transtornos próprios da gestão transnacional de bens. Várias outras hipóteses poderiam ser cogitadas. O ponto é que, se o Ministério Público entende vantajoso para o herdeiro incapaz uma determinada partilha, parece-nos que o legislador deveria afastar a necessidade de intervenção judicial. 3.3. Alvará Extrajudicial de Venda de Bens É comum o espólio ser composto apenas de bens diversos de dinheiro. Isso representa um problema operacional, porque, se os herdeiros não se dispuserem a desembolsar dinheiro do próprio bolso, a concretização do inventário e partilha será inviável por falta de dinheiro para pagar as despesas de transação. Chamamos de despesas de transação as necessárias à conclusão do inventário e partilha, como os honorários advocatícios, emolumentos, tributos etc. A solução é a alienação de bens do espólio para, com o dinheiro obtido, pagar as despesas de transação. Para alienar bens do espólio, o inventariante precisa de uma autorização (a que chamaremos de "alvará"). Esse alvará pode ser judicial, se tiver decorrido de decisão judicial, ou extrajudicial, quando decorrer de escritura pública. O alvará extrajudicial dá-se por escritura pública nos termos do art. 11-A da Resolução nº 35. A escritura pública exige consentimento unânime dos demais herdeiros e só pode ser realizada para uma finalidade: o custeio das despesas de transação do inventário e partilha. A escritura deverá vincular o dinheiro obtido com a venda ao custeio das referidas despesas. Além disso, o inventariante tem o dever de prestar garantia de que, no caso de malversação das verbas obtidas com a alienação, reembolsará o espólio. Diante disso, há dois grandes problemas práticos a enfrentar. Em primeiro lugar, indaga-se: o alvará extrajudicial poderia ocorrer para pagamento de dívidas do próprio espólio, sem relação com a formalização do inventário e partilha (ex.: dívida de um empréstimo bancário não pago pelo falecido)? A resposta é negativa, porque o art. 11-A, I, da Resolução nº 35 não as contemplou. Cabe aos herdeiros obterem um alvará judicial para tanto. Em segundo lugar, pergunta-se: os herdeiros, de modo unânime, poderiam dispensar o inventariante de prestar garantia no âmbito do alvará extrajudicial? A resposta é negativa, porque o art. 11-A, VI, da Resolução nº 35 não deu essa margem de manobra. Cabe aos herdeiros buscar a via judicial para obter um alvará sem exigência de garantia do inventariante. Como se vê, o alvará extrajudicial possui esses dois pontos que o podem tornar desinteressante para as partes, o que as remeterão para a via judicial. Foi a solução que o CNJ entendeu viável dentro dos limites legais, neste momento histórico. Entendemos que cabe ao legislador, com urgência, avançar e eliminar esses dois entraves, pois não nos parece razoável obrigar a intervenção judicial para lidar com atos de disposição patrimonial feitos com amparo na unanimidade dos interessados. A tendência é a atuação do juiz ser meramente a de chancelar a vontade dos interessados. Quiçá, se o legislador se mantiver inerte, o CNJ - em outro momento histórico - possa vir a encontrar suporte para, por ato infralegal, eliminar esses entraves. ___________ 1 Art. 733. O divórcio consensual, a separação consensual e a extinção consensual de união estável, não havendo nascituro ou filhos incapazes e observados os requisitos legais, poderão ser realizados por escritura pública, da qual constarão as disposições de que trata o art. 731 . § 1º A escritura não depende de homologação judicial e constitui título hábil para qualquer ato de registro, bem como para levantamento de importância depositada em instituições financeiras. § 2º O tabelião somente lavrará a escritura se os interessados estiverem assistidos por advogado ou por defensor público, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial. 2 Art. 610. Havendo testamento ou interessado incapaz, proceder-se-á ao inventário judicial. § 1º Se todos forem capazes e concordes, o inventário e a partilha poderão ser feitos por escritura pública, a qual constituirá documento hábil para qualquer ato de registro, bem como para levantamento de importância depositada em instituições financeiras. § 2 o O tabelião somente lavrará a escritura pública se todas as partes interessadas estiverem assistidas por advogado ou por defensor público, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial. 3 Art. 1.590. As disposições relativas à guarda e prestação de alimentos aos filhos menores estendem-se aos maiores incapazes. 4 Art. 52-B. Para a lavratura da escritura pública de declaração de separação de fato consensual, deverão ser apresentados: a) certidão de casamento; b) documento de identidade oficial e CPF/MF; c) manifestação de vontade espontânea e isenta de vícios de não mais manter a convivência marital e de desejar a separação de fato; d)pacto antenupcial, se houver; e) certidão de nascimento ou outro documento de identidade oficial dos filhos, se houver; f) certidão de propriedade de bens imóveis e direitos a eles relativos; g) documentos necessários à comprovação da titularidade dos bens móveis e direitos, se houver; h)inexistência de gravidez do cônjuge virago ou desconhecimento acerca desta circunstância. (incluido pela Resolução n. 571, de 26.8.2024)
segunda-feira, 16 de setembro de 2024

A complexidade do júizo notarial nas "novas" atas

A autenticação de fatos é atividade intrínseca à prestação dos serviços notariais. Quando um tabelião de notas reconhece como verdadeira a assinatura aposta na sua presença em um documento, ele autentica um fato. Da mesma forma, quando certifica que a reprodução de um documento confere com o original ou quando constata objetivamente um determinado acontecimento e o descreve em uma ata notarial, tornando-o perene.1   A lavratura de ata notarial é ato de competência exclusiva do tabelião de notas, com previsão expressa na lei que regulamentou os serviços notariais e de registro - lei 8.935/94. Contudo, é possível afirmar que a comunidade jurídica despertou para a ata notarial quando a lei que instituiu o CPC - lei 13.105/15 -, a incluiu como um meio de prova típico, conforme o artigo 384: "A existência e o modo de existir de algum fato podem ser atestados ou documentados, a requerimento do interessado, mediante ata lavrada por tabelião". A esta ata notarial, a doutrina estrangeira atribui o nome de "ata de constatação", pois é exatamente isso que o tabelião faz, ele constata um fato e o consigna em um instrumento público, revestido de valor probante cuja veracidade e autenticidade somente é afastada por declaração judicial de falsidade (art. 427, CPC), incumbindo à parte que a arguir o ônus probatório (art. 429, CPC). A ata de constatação pode ter por objeto qualquer fato (acontecimento) objetivamente percebido pelo tabelião de notas, que o traduzirá na forma escrita com a estrutura gramatical de uma narrativa. Não é à toa que a ata notarial é referida como uma "fotografia em palavras", afinal, a partir da captação dos sentidos, o notário apurará um fato e, sequencialmente, o descreverá em palavras, arquivando o instrumento em livro próprio, tudo isso sem a emissão de juízos de valor2. Ainda assim, é de salientar a inequívoca subjetividade, própria da condição de ser de cada indivíduo, que proporciona a produção textual com nuances distintas a partir de uma mesma constatação, caso dois tabeliães sejam chamados para presenciar o mesmo fato. A doutrina sinaliza diversos exemplos de situações passiveis de aferição pelos sentidos do notário, como: a existência ou o conteúdo de uma mensagem publicitária; a verificação do estado de imóveis, no caso de o locatário não honrar as prestações locatícias e o abandoná-lo; o uso indevido de imagem; disposições em assembleias societárias e condominiais; a demissão de funcionário;  a abertura forçada de cofre particular.3Como é perceptível, objeto da ata notarial pode variar, no entanto, sempre será um fato (ou ato-fato) jurídico captado e descrito pelo notário, através dos seus sentidos.4 Todas essas atas, de algum modo, fazem parte do conoscere dos operadores do Direito. Mas, as atas notariais vão além da mera descrição objetiva de fatos. Amparada nos ensinamentos estrangeiros, a doutrina brasileira identifica diferentes espécies de atas notariais, como a "ata de presença", "ata de notificação", "ata de subsanação" e a "ata de notoriedade". Compreender a distinção entre elas é fundamental, especialmente a partir do momento em que a legislação passou a prevê-las em certos procedimentos. O primeiro caso é a usucapião extrajudicial, introduzida no ordenamento jurídico pelo Código de Processo Civil. O legislador trouxe, como primeiro requisito para requerimento junto ao registro de imóveis, a ata notarial de atestação da posse. Na sequência, a Lei 14.382/22 disciplinou o procedimento de adjudicação compulsória extrajudicial, e a ata notarial figura como requisito para provar o pagamento do preço e a mora na obrigação de outorga ou recebimento do título de propriedade. Mais recentemente, a lei 14.711/23 incluiu um novo artigo na lei 8.935/94 e deu competência expressa aos tabeliães de notas para lavratura de atas de certificação do implemento ou frustração das condições negociais. Em todos esses procedimentos, as atas notariais não são de constatação, porque a tarefa do tabelião de notas transcende a mera constatação objetiva de um fato. Nessas atas haverá um o juízo notarial, sim, que envolve a apuração sobre a realidade de um fato ser considerado certo em determinado contexto, para, então, certificá-lo. No caso da usucapião extrajudicial, a ata notarial tem por finalidade atestar o exercício da posse, com as características necessárias e durante determinado período de tempo. Para isso, é indispensável que ao tabelião de notas seja fornecido os elementos suficientes, aqui compreendidos por documentos, depoimentos de vizinhos, confrontantes, diligências no local e, em suma, tudo para que se forme o convencimento de que aquele fato (posse) é certo naquele contexto e por aquele período de tempo (o necessário de acordo com a espécie de usucapião). Esse é conteúdo a ser atestado. Até porque não é possível uma constatação objetiva de posse pretérita, e toda posse que legitima usucapião, é pretérita. Enquanto na ata de constatação, espécie mais conhecida e amplamente utilizada, o tabelião de notas consigna de forma objetiva os fatos que foram por ele presenciados ou as evidências observadas, como a presença de pessoas em determinados locais, o conteúdo de páginas na internet, mensagens de texto ou o estado físico de bens e imóveis, na ata de notoriedade ou certificação, a atuação notarial envolve um processo mais aprofundado de investigação, análise e decisão. Diferentemente do que acontece na ata de constatação, na ata de certificação, é inequívoco o juízo de valor pelo tabelião de notas, e por isso é fundamental a compreensão pelo advogado que representa o interessado no procedimento de que os elementos probatórios apresentados são decisivos para que a finalidade da ata notarial seja alcançada. No caso da ata de certificação do implemento ou frustração das condições ou outros elementos negociais, a atividade notarial pode alcançar um impacto ainda maior, definindo os rumos da relação contratual sem a necessidade de atuação do Poder Judiciário. Nela, o notário realiza um juízo valorativo acerca do direito, o que demandará uma análise técnica e jurídica minuciosa, condizente com os fundamentos balizadores da função notarial (de caráter jurídico, preventivo, pacificador, imparcial, público, rogatório e técnico da atividade notarial).5 Com efeito, a fim de se extrair todo o potencial existente nas atas notariais, é preciso compreender que o papel do tabelião de notas vai além da verificação, autenticação e documentação de fatos objetivos - limitação histórica que se explica, em parte, por sua recente descoberta pela comunidade jurídica. Os novos procedimentos que iniciaram com a usucapião extrajudicial no Código de Processo Civil expandem os horizontes da ata notarial, trazendo-lhes novos contornos, inclusive com funções mais analíticas e valorativas. Nessas "novas atas", como as de notoriedade, o notário exerce uma função que se aproxima de um juízo técnico, no qual sua interpretação e análise dos fatos têm consequências diretas para a segurança jurídica dos atos praticados. A confiança depositada no tabelião de notas pelo legislador reflete uma expectativa de que ele seja capaz de manejar complexidades jurídicas com precisão e imparcialidade, afinal "el registro notarial consagra la seguridad preventiva mediante formalismos que garantizan la validez de los contratos y propician un ambiente de confianza para la actividad económica"6. A responsabilidade do tabelião é garantir que as atas reflitam fielmente os fatos e condições, certificando, em certos casos o próprio direito, minimizando riscos de litígios e incertezas jurídicas. A evolução do direito notarial exige um alto nível de conhecimento técnico e jurídico, para o desempenho das funções com a diligência e competência necessárias. A ampliação das espécies de atas notariais e a complexidade a algumas delas intrínsecas refletem as demandas sociais e jurídicas contemporâneas. Não se trata de mera extensão das antigas práticas, mas, com efeito, de uma reconfiguração do próprio conceito de juízo notarial, exigindo dos tabeliães de notas uma atuação cada vez mais qualificada e multidimensional. Isso reforça a sua presença como um garantidor da segurança jurídica e da efetividade dos atos e negócios jurídicos na sociedade moderna. ________ 1 FERREIRA, Paulo Roberto Gaiger. LEONARDO, Felipe Rodrigues.Ata Notarial - Doutrina, Prática e Meio de Prova. 2. ed. rev, ampl. E atual., Salvador: Editora JusPodivm, 2020, pp. 161. 2 GUÉRCIO NETO, Arthur Del; GUÉRCIO, Lucas Barelli Del. Teoria geral do direito notarial e registral. CASSETTARI, Christiano (Coord.). 1 ed. Indaiatuba, SP: Foco, 2023.  3 FERREIRA, Paulo Roberto Gaiger. LEONARDO, Felipe Rodrigues.Ata Notarial - Doutrina, Prática e Meio de Prova. 2. ed. rev, ampl. E atual., Salvador: Editora JusPodivm, 2020, pp. 200-201. 4 BRANDELLI, Leonardo. Atas Notariais. In: SILVA NETO, Amaro Moraes et. al. Ata notarial. BRANDELLI, Leonardo (Coord.). Porto Alegre: Instituto de Registro Imobiliário do Brasil, 2004, pp. 45-47. 5 BRANDELLI, Leonardo. Teoria Geral do Direito Notarial. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, pp. 127-133 6 GUTIERREZ CABAS, Willy. El notario de Fe pública como garante de la seguridad jurídica preventiva en los documentos notariales. Rev. Jur. Der., La Paz,  v. 11, n. 16, p. 129-142,  jun.  2022. Acesso em:  26  ago.  2024.
sexta-feira, 13 de setembro de 2024

SINTER 2.0: A ressurreição de um fantasma

O texto aborda os desafios da modernização do Registro de Imóveis no Brasil, destacando a implementação da DOI-WEB e a volta do SINTER. A falta de integração entre sistemas, a redundância de cadastros e a dependência de processos arcaicos são obstáculos a serem superados. A criação do SINTER, embora centralizadora, pode auxiliar na apuração do valor de referência dos imóveis, mas sua efetividade dependerá da cooperação entre as instituições envolvidas. Introdução O processo de modernização do Registro brasileiro tornou-se acidentado e seus resultados ainda pífios e insuficientes. Fiquemos num só exemplo: a nova DOI-WEB, prevista na Instrução Normativa 2.186, de 12/4/24, da RFB - Receita Federal do Brasil. Eis a curiosa solução avant la lettre da futura LC que hoje tramita no Congresso Nacional e que integra o plexo da reforma tributária.1 Nesta nova modalidade de DOI, os cartórios são convocados a interagir com o órgão estatal por intermédio de plataformas de WebService que deverão ser concebidas pelas próprias serventias extrajudiciais e/ou por seus proxies registrais. Outra alternativa, oferecida pelo órgão fazendário, seria prover informações por intermédio de página disponibilizada pela própria RFB. Entretanto, muitos dos dados que agora são exigidos pelo órgão não se acham disponíveis nos sistemas tradicionais dos cartórios - e isto por uma razão bastante singela: são elementos não previstos e exigidos pelo art. 176 da LRP. Para completar o bloco de declarações, será necessário coletar elementos de várias fontes e promover a inserção manual na plataforma estatal - ou em bloco, no formato JSON.2 O certo é que haverá um retrabalho (em regra manual) para a complementação de informações de acordo com o novo layout da DOI-Web, salvo se houver um algoritmo inteligente para racionalizar o processo de formação da planilha informativa. O elenco de dados obrigatórios se acha especificado no documento publicado pela RFB - Manual de Operações - DOI.3 No item 8 - campos do arquivo JSON - encontra-se a especificação do registro, com a indicação dos campos tornados obrigatórios. A especificação do conjunto de dados não deixa de representar uma indução tendente a reestruturar o próprio sistema ontológico do registro de Imóveis brasileiro. A modelagem dos dados, que nasce de uma instância extrarregistral, não se acha coordenada com a especificação do próprio SREI, que tarda lamentavelmente. Este descompasso é ruinoso para todos os órgãos e instâncias envolvidos. O § 3º do art. 1º e art. 7-A da LRP preveem a "escrituração por meio eletrônico", fazendo pressupor a existência de um registro inteiramente eletrônico que ainda não existe. A especificação do SREI, estabelecida no ano de 20124 e recomendada pelo CNJ em 20145, não passou da POC (prova de conceito) levada a efeito em 20196. Sem uma base estruturada do SREI, pergunta-se: de onde virão os dados exigidos pela RFB de modo que o SREI possa interagir de maneira eficiente com a Fazenda Federal por meios eletrônicos? De quais fontes serão extraídos os dados? Como vimos, os dados exigidos pela administração tributária não se acham elencados como requisitos legais obrigatórios para a prática dos atos de registro (art. 176 da LRP). Como conciliar os dados exigidos pela RFB com os gerados no âmbito do próprio registro? Como estruturar os dados espraiados de forma narrativa (inc. I do art. 231 da LRP) nas matrículas e em fontes acessórias dos cartórios? Eis a ressureição do velho SINTER - Sistema Nacional de Gestão de Informações Territoriais, redivivo pelo decreto Federal 11.208, de 26.9.22, que criou o CIB - Cadastro Imobiliário Brasileiro (art. 5º), regulamentado pela IN RFB 2.030, de 24/6/21, e pela IN RFB 2.186, de 12/4/24. Regulamentação premonitória de LC que ainda não existe. O SINTER é um cadastro imobiliário com a ambição de abarcar e conciliar aspectos cadastrais e jurídico-reais de todo o território brasileiro, substituindo-se, em parte, aos próprios municípios na gestão e ordenação territoriais. O projeto em tramitação prevê a recriação, em grande estilo, do SINTER, atraindo e concentrando dados em sua usina informacional. Busca-se criar referências objetivas para apurar e divulgar o valor de referência dos bens imóveis, dados que deverão ser divulgados e disponibilizados no SINTER. Entretanto, como se fará isto? Responde-nos o projeto: "para fins de determinação do valor de referência, os serviços registrais e notariais deverão compartilhar as informações das operações com bens imóveis com as administrações tributárias por meio do Sinter" (art. 251 do projeto aprovado na Câmara). Coerentemente com o modelo centralizado da reforma tributária, o PLC 68/2024 consolida o CIB - Cadastro Imobiliário Brasileiro no âmago da administração federal (inc. III, § 1º do art. 43 do PLC). Os serviços notariais e registrais deverão, no prazo de 12 meses, adequar seus sistemas "para adoção do CIB como código de identificação cadastral dos bens imóveis" ("b", I, art. 266). Fosse um modelo de coordenação entre duas instituições reconhecidamente singulares - Cadastro e Registro - ambas intercambiando dados, seria uma ideia extraordinária. Entretanto, parece que a RFB constrói um espelho do Registro, com a chave geral do sistema - CIB -, com a qual se abrem as portas para os dados registrais concentrados no órgão estatal. Novas demandas - velhas soluções - novos desafios Neste cenário, antevê-se o fenômeno já apontado por mim: dão-se soluções anacrônicas a demandas digitais que se originam da sociedade da informação. Na impossibilidade de utilizar as ferramentas tecnológicas concebidas para dar respostas eficientes a tais exigências, tendemos a resolver os novos problemas e desafios com processos arcaicos, disfuncionais, sabendo-se, de antemão, que a solução passaria, simplesmente, pela assimilação de novas tecnologias, reservando aos humanos tarefas muito mais dignas e importantes. Em suma: novas demandas - velhas soluções - novos desafios. O SREI tarda e este descompasso marginaliza o sistema registral do processo de digitalização da sociedade brasileira. Redundância informativa Por fim, o Conselho Nacional de Justiça, por sua Corregedoria Nacional, vem de instituir um canal direto de comunicação entre os registros prediais e a administração pública municipal, a fim de informar as mudanças de titularidades de imóveis e municiá-los com dados recolhidos dos registros prediais. Diz a norma que os dados "serão anonimizados pelo CNB/CF e pelo ONR, quando de seu recebimento, antes de qualquer tratamento estatístico" (§ 7º do art. 184-A da CNN/CN/CNJ-EXTRA). Como disse alhures, ou bem o ato normativo trata do envio de dados para os municípios ou cuida da geração de dados estatísticos, lembrando-se que os dados eventualmente necessários para a atualização cadastral da administração municipal não devem ser anonimizados. A propósito registrei em recente artigo: "O apoio do Registro Imobiliário na 'atualização cadastral dos contribuintes das Fazendas Municipais' (art. 4º da Resolução CNJ 547 de 22/2/24) é típica atividade de coordenação entre o cadastro e registro, ideia propugnada e defendida há décadas pelos registradores.7 O Provimento CNJ 174/24 foi feliz em estabelecer como se dará o 'intercâmbio de dados estruturados entre as serventias extrajudiciais e as municipalidades' (§ 6º do art. 184-A do CNN/CN/CNJ-Extra), fazendo presumir que a relação a ser construída é P2P (peer-to-peer), sem a concentração de dados em centrais eletrônicas extrarregistrais (proxies registrais), sabendo-se, de sobejo, que a concentração de dados em plataformas extrarregistrais é sempre problemática e os episódios de ataques hacker lamentavelmente tornaram-se bastante comuns. Data is the new oil - rezam os cânones da economia digital. Além disso, a expressão intercâmbio pode (na verdade deve) ser interpretada no sentido de reciprocidade na entrega da informação, uma via de mão dupla. Muitos dados albergados na administração pública são igualmente relevantes para aperfeiçoar o registro, favorecendo a mais perfeita coordenação entre o registro e o cadastro.8 Seja como for, espera-se que os responsáveis pela redação do manual técnico para especificação dos dados e padrão da API levem em consideração a necessidade de se preservar a privacidade na troca de informações, somente possível pelo uso de criptografia assimétrica".9 De fato, os municípios poderão acessar as bases de cada unidade com o uso da chave privada do agente responsável (certificado digital). Os dados serão criptografados na origem (serventias) com o uso da chave pública do agente. Com isso preserva-se, ponta a ponta, a privacidade dos dados pessoais. Entretanto, não deixa de ser impressivo o fenômeno de redundância informativa no âmbito de vários cadastros, sejam eles municipais, estaduais ou federais, mantidos e suportados pela administração pública.10 Com a iminente criação do CIB, do qual os cartórios serão um ramal ancilar, deveríamos concretizar o que há décadas se propugna - a interconexão entre cadastro e os registros públicos. Apocalípticos e integrados Há mais de dez anos escrevíamos sobre os perigos representados pelo SINTER. A iniciativa da RFB nascia com uma clara ambição: instituir o registro de imóveis eletrônico previsto na Lei 11.977, de 7/7/09. O esboço do decreto trazia consignado em sua epígrafe o seguinte dístico: "Regulamenta o Sistema de Registro Eletrônico e institui o Sistema Nacional de Gestão de Informações Territoriais - SINTER".11 Os objetivos que inauguraram o SINTER acham-se bem assentados e consagrados no documento - Projeto Rede de Gestão Integrada de Informações Territoriais12, que fundamentava o esboço do decreto regulamentador. As discussões acerca do SINTER, travadas no âmbito do IRIB e do CNJ - com a oposição de alguns setores da própria atividade13-, visavam reconduzir o tema ao leito natural da interconexão entre o registro de direitos e o cadastro imobiliário técnico multifinalitário. Afinal, havia o precedente exitoso da infraestrutura criada pela Lei 10.267/01, marco legal que promoveu a sincronia entre ambas as instituições - o cadastro e o registro de direitos - criando uma infovia virtuosa e de mão dupla. Na mesma época divulgávamos um pequeno estudo acerca das transformações sofridas pelos paradigmáticos sistemas registrais francês e belga, descontinuados e assimilados pela administração fazendária de seus países.14 Era uma advertência lançada à reflexão dos registradores, acautelando-os para os possíveis cenários que ainda se desenham no horizonte. A tokenização de ativos e garantias imobiliárias e a blockchain, as reformas constitucionais que abrem espaço para regulação pelo Banco Central de registros de garantias (PEC 65), esses fenômenos devem ser percebidos como tendências e impulsos de transformação do ecossistema de registro de direitos.15 O esvaziamento de atribuições de notários e registradores não é novidade e bastaria o exemplo do RTD, que vem progressivamente perdendo atribuições para outros órgãos. Aproveitando-nos do mote de Umberto Eco, o que a muitos pode soar uma advertência alarmista ("apocalíptica") e a outros, simplesmente mais prudentes, as notícias do front podem servir de preciosos elementos para reflexão e estudos e, quiçá, provocar mudanças estratégicas e oportunas. Conclusões O ecossistema notarial e registral acha-se em processo de profundas transformações, algumas disruptivas, o que não significa que sejam necessariamente proveitosas; disrupção pode vir a ser simplesmente ruptura da tradição, destruição do edifício da fé pública. A RFB e a Corregedoria Nacional de Justiça poderiam ser provocadas pelo ONR ou mesmo pelo IRIB (ou por qualquer das várias entidades que pululam por aí) para implementar processos de intercâmbio de informações entre os órgãos públicos de maneira mais eficiente, menos onerosa e, se possível, cumprindo as normas e orientando-se a princípios consagrados na tradição do nosso Direito. O novo SINTER poderá ser uma ferramenta útil para a dificuldade histórica de apuração do valor real das transações imobiliárias, mas não deve assimilar dados que não são necessários para a realização de seus propósitos originais de administração tributária, controle aduaneiro e gestão de informações econômico-fiscais. Resta-nos aguardar para ver como o sistema se articulará com todas as instituições, agentes e atores envolvidos, e, especialmente, como serão construídas as infovias que permitirão o intercâmbio racional e inteligente entre todos eles. __________ 1 PLC 68/2024. Institui o Imposto sobre Bens e Serviços - IBS, a Contribuição Social sobre Bens e Serviços - CBS e o Imposto Seletivo - IS e dá outras providências. 2 JSON (JavaScript Object Notation) é um código e linguagem utilizados para troca de dados entre sistemas e máquinas. Ele é amplamente utilizado para transmitir dados estruturados entre um servidor e um aplicativo web, assim como para armazenar dados de forma organizada. Referência aqui. 3  Disponível aqui. 4 Vide SREI - especificação aqui. 5 Recomendação 14/14, de 2/7/14, Cons. Guilherme Calmon. Dita recomendação foi revogada pelo Provimento 180/24, o que nos pareceu inteiramente descabido, já que toda a especificação do SREI, atualmente em desenvolvimento no ONR - Operador Nacional do SREI, baseia-se inteiramente na documentação original da qual fará parte integrante e indissolúvel. A própria documentação atualmente produzida colocará em evidência tal fato. Acesso aqui. 6 Para uma visão panorâmica do trabalho desenvolvido, acesse aqui. 7 Tive ocasião de editar um livro seminal sobre o assunto: CARNEIRO, Andrea Flávia Tenório. Cadastro Imobiliário e Registro de Imóveis. Porto Alegre: IRIB/safE, 2003. A partir da década de 1990, os registradores passaram a colaborar com os estudos sobre a interconexão entre os registros e os cadastros, firmando convênio com a Universidade Federal de Santa Catarina, sob a coordenação do pranteado mestre Prof. Dr. Jürgen Philips e, posteriormente, na Federal de Pernambuco, sob a coordenação da Profa. Dra. Andrea Carneiro. Para conhecer esta bela história de cooperação interinstitucional, indico o documentário GEOirib - 20 anos. Disponível aqui. 8 O exemplo paradigmático é a lei do Georreferenciamento dos imóveis rurais (lei 10.267/01) em que se estabelece o intercâmbio de informações entre os cartórios e o INCRA. 9 JACOMINO, Sérgio. A IA e o Registro de Imóveis. Pequenas digressões vestibulares - Parte I. São Paulo: Observatório do Registro, 2024, disponível aqui. 10 No ano de 2015 o TCU enfrentava o problema de profusão de cadastros de imóveis rurais entre as várias instâncias do Governo Federal. V. Acórdão TC 011.713/2015-1 que trata da governança de solos em áreas não urbanas e critica a grande quantidade de legislações sobre o tema e vasta gama de instituições governamentais dispersas sem clara delimitação de funções. Disponível aqui. 11 REZENDE, LuÍs Orlando Rotelli. TREVISAN, Antônio Carlos. Projeto Rede de Gestão Integrada de Informações Territoriais. Anexo I - Proposta de Minuta do Decreto de Regulamentação do Sistema de Registro Eletrônico. Brasília: RFB, 18/4/2013. Disponível aqui. 12 Vide os documentos vestibulares e estruturantes do SINTER, projeto iniciado no ano de 2013. Disponível aqui. 13 Cfr. rico painel crítico no dossiê disponível aqui.  14 JACOMINO, Sérgio. Registros de documentos - crônica de uma morte anunciada. São Paulo: Observatório do Registro, 9/12/2013. Disponível aqui. 15 A PEC 65 assombra a ANOREG-BR e CNR, que lançaram nota à imprensa em que manifestam suas preocupações com a ampliação das "as atribuições do BACEN incluindo funções típicas do Estado, atualmente exercidas por notários e registradores". Segundo as entidades, a "hipótese de o BACEN assumir funções delegadas aos notários e registradores, essenciais para a garantia da segurança jurídica e proteção dos direitos de propriedade, ameaça a confiança pública em sua atuação como autoridade monetária, em um momento no qual ela está colocada em xeque". Disponível aqui. [mirror].
1. Brevíssima referência histórica sobre o Registro Civil1 A necessidade de se saber quem são as pessoas, qual é o seu nome, a sua filiação, o seu estado civil e o seu último momento na vida - o óbito - foi sentida desde a antiguidade. Mas, é no Direito Romano que os especialistas identificam o berço do Registro Civil, atualmente em vigor nos países europeus e latino-americanos da civil law. De fato, no Direito Romano já se previam determinadas inscrições públicas sobre o estado da pessoa, ainda que com um fim meramente estatístico e militar. Para o demonstrar, basta recordar o episódio do nascimento de Jesus Cristo que, diz-se, só aconteceu em Belém porque um Imperador Romano havia determinado um recenseamento, para saber quantas eram as pessoas nascidas - e quais as suas particularidades -, naquele remoto recanto do seu Império. Depois da oficialização da religião cristã e durante a Idade Média e Moderna o Registro Civil foi ficando, praticamente em toda a Europa, a cargo da Igreja. Consequentemente, os não católicos foram, naturalmente, excluídos dos registros eclesiásticos. Tal realidade, com o passar dos séculos, passou a ser vista como uma fragilidade do Registro Civil ou como uma falha das monarquias, que não providenciavam um serviço de Registro Civil aos não católicos. Os ideais iluministas, em oposição ao poder absoluto dos monarcas e da igreja católica, advogavam, como se sabe, a rutura entre a religião e o Estado e conduziram a que despontasse a convicção de que os direitos decorrentes do nascimento, do casamento e do óbito tinham de surgir, modificar-se, transmitir-se e extinguir-se independentemente da religião professada pelos indivíduos, devendo de ser o Estado a promover, para efeitos jurídicos, a constatação de tais factos, através de órgãos próprios. Tal ideia, como se sabe, acabou por vingar com a Revolução Francesa2, tendo-se, então, determinado que a função do Registro Civil tinha de ser pública, pertencendo ao Estado ou aos municípios, pois apenas um sistema sob incumbência do Estado seria capaz de garantir o acesso de todos os cidadãos ao Registro Civil e aos direitos dele decorrentes, independentemente da religião professada. Em Portugal, foi com o decreto de 16/5/1832, que o Registro Civil conheceu a primeira providência legislativa. Através dele o Estado reconheceu a vantagem de tornar extensiva a todos os indivíduos a prática da Igreja relativamente aos católicos, subordinando a realização do registro a princípios jurídicos uniformes, que assegurassem a sua regularidade e fiscalização. A este decreto seguiram-se outros diplomas elaborados com objetivo de secularização do Registro Civil. No entanto, o Registro Civil em Portugal só foi oficialmente instituído, após o fim da Monarquia (ou com a implantação da República), pelo Código do Registro Civil de 18/2/1911. O mesmo ocorreu no Brasil, onde a proeminência da Igreja Católica e a sua boa organização administrativa conduziu a que fosse a única responsável pelo Registro Civil - cujos assentos eram realizados nos livros paroquiais - durante todo o período colonial. Mantendo tal competência, em exclusividade ou não, mesmo após a independência, até 1888. Em virtude da laicização do Estado, em 1888, foi publicado o decreto 9.886, o qual fez cessar os efeitos civis dos registros eclesiásticos dando origem ao Registro Civil destinado à certificação do nascimento, casamento e óbito. Portanto, quer em Portugal quer no Brasil, no século XIX, tornou-se evidente que o Registro Civil tinha de ser parte integrante da potestas do Estado sobre a população. E, até à atualidade, é manifesto que o Estado Português e o Brasileiro continuam a encarar o Registro Civil como parte da sua soberania, uma vez que é ele - o Registro Civil - que fixa autenticamente a individualidade jurídica de cada cidadão e serve de base aos seus direitos. 2. Da Relevância do Registro Civil O Registro Civil faz parte da vida de todos. Os fatos mais importantes da existência humana - do nascimento com a aquisição da personalidade civil, à morte, que é o último momento da existência da pessoa natural, perpassando pelos fatos mais relevantes da trajetória dos indivíduos, como o casamento e eventuais alterações do estado da pessoa (emancipação, medidas de apoio a maior acompanhado, etc.), apenas são reconhecidos juridicamente se forem publicitados pelo Registro Civil e só podem ser devidamente comprovados através dos seus assentos e averbamentos. Em consequência, o exercício da cidadania depende do Registro Civil. De fato, sem registro de nascimento, uma pessoa, oficialmente, inexiste para o Estado - como coloca em evidência uma ONG angolana, intitulada Handeka, no seu projeto "Sem Registro, Não Existo". Só com o registro de nascimento uma pessoa passa a existir juridicamente e a poder exercer a sua cidadania. Quem não tem registro de nascimento não pode obter diversos documentos, tais como o NIF ou CPF, a carteira de trabalho, o número de segurança social, o cartão de eleitor. Consequentemente, vê-se privado da possibilidade de exercer os direitos e de cumprir os deveres que aos mesmos estão associados (de trabalhar; de contribuir com parte dos seus rendimentos para a segurança social e para o Estado em geral, de beneficiar dos sistemas de ensino e de saúde públicos, bem como de reforma ou aposentadoria). Acresce que sem registro de nascimento uma pessoa não pode abrir conta num banco, nem adquirir imóveis. Por fim, quem não existe no Registro Civil não tem liberdade de locomoção, pois, pelo menos, não se pode ausentar para o exterior do país onde nasceu. Ora, a liberdade de locomoção ou de movimento constitui a primeira forma de liberdade física que o ser humano teve de conquistar - a ela opõe-se à prisão. Recordamos ainda que o Registro Civil é o suporte que garante a efetividade de direitos constitucionalmente consagrados, tais como: À identidade pessoal (abrangendo a identidade de gênero), à filiação, à capacidade civil, à maternidade e à paternidade, à tutela da família, ao casamento. Em síntese, para cada pessoa, individualmente considerada, o Registro Civil representa o veículo de acesso ao "mundo dos direitos". Mas, o Registro Civil não assume relevância apenas individual, sendo inquestionável a sua importância para o Estado. O acabado de afirmar é inegável quando se tem presente que a população é o primeiro elemento de um Estado, desde logo, porque não é possível conceber um sem população. Acresce que qualquer Estado necessita de informações sobre a sua população para, adequadamente, gizar e concretizar políticas públicas. Por fim, recordamos que a existência de não registados gera desigualdade social, econômica, cultural, política, etc. e, portanto, consubstancia um problema da sociedade, o mesmo é dizer, do Estado. Ainda a propósito da importância do Registro Civil, cumpre referir que nas últimas décadas, em virtude do fenômeno da desjudiciarização, múltiplos processos e procedimentos deixaram de ser da competência do Poder Judiciário e passaram a ser dos cartórios do Registro Civil, com evidentes ganhos quanto à acessibilidade, simplificação procedimental, celeridade e efetividade, sem que fosse descurada a segurança jurídica, necessária à tutela dos interesses em causa. De fato, sob fio condutor da efetividade social3, muitos e importantes papéis passaram a ser desempenhados pelo Registro Civil: O reconhecimento voluntário de paternidade, a realização de casamentos homoafetivos, a alteração do nome próprio e/ou do sobrenome, a alteração do sexo mencionado nos documentos, etc. Ora, o que mais se destaca nestas novas atribuições, sem desprestigio das demais que compõem o expediente dos serviços de Registro Civil, é que promovem a liberdade de se ser o que se é, bem como, a igualdade de todos, entre si e perante o Estado, assim combatendo o preconceito e a discriminação. Em suma, estas novas atribuições do Registro Civil sobressaem porque asseguram ou realizam, efetivamente, a dignidade humana! Porque assim é, não se pode questionar a potencialidade de os serviços de Registro Civil virem a assumir novas competências. 3. Três antigas questões a propósito do Registro Civil: A) Por que razão o valor acrescentado pelo Registro Civil não se evidencia de forma notória? - Em face das vantagens proporcionadas pelo Registro Civil, numa primeira reflexão, tende-se a considerar estranho o fato de Este ser subvalorizado. Não obstante, a resposta à questão colocada - Por que razão o valor acrescentado pelo Registro Civil não se evidencia de forma notória? - é simples: A mais-valia gerada pelo Registro Civil é subvalorizada porque é um dado adquirido! Explicitemos o afirmado, com uma comparação: A baixa de Lisboa está toda ela assente em grandes vigas de madeira enterradas a grande profundidade. Sem estas vigas invisíveis tal parte da cidade afundar-se-ia. E, no entanto, a generalidade das pessoas que por ela passeia ou que nela vive não têm real consciência da importância vital de tais vigas. O mesmo acontece com o Registro Civil! Enquanto existe quase que não se não se dá conta dele, se faltasse todos notariam! B) O Registro Civil deve continuar a cargo do Estado? - Tendo em conta todo o exposto, a resposta a esta questão parece-nos inequivocamente afirmativa. Mais, na nossa perspectiva, a prestação de serviços de Registro Civil deve competir exclusivamente ao Estado, não devendo ser repartida com entidades privadas.4 Designadamente, tendo em conta a imensa base de dados existente nos serviços de Registro Civil e a imperiosa necessidade de a mesma ser gerida de modo muito cauteloso. A propósito do acabado de defender, recordamos que Arnold Toynbee5, um dos historiadores europeus mais importantes do século XX, escreveu como na Alemanha e no regime de Hitler, os judeus foram sistematicamente isolados da vida económica e política, antes de serem eliminados fisicamente, e como tal só foi possível por o regime ter beneficiado da informação que proporcionava um sistema "eficiente" de Registro Civil - em pouco tempo foi possível identificá-los, determinar, com precisão, o número das suas propriedades e empresas, tendo-se, assim, iniciado a perseguição econômica com a publicação de leis que os proibia de, por exemplo, exercer medicina, enfermagem ou advocacia, subscrever seguros, constituir empresas ou aceder à propriedade. Um ano foi suficiente, naquela época, para conseguir centralizar toda a informação sobre os judeus e empreender a perseguição. É claro que não foi a perfeição do Registro Civil germânico que esteve na base da espoliação dos judeus. Todos sabemos que a verdadeira causa esteve na doutrina que os considerava seres a exterminar. Mas, o exemplo revela a enorme importância da base de dados existente nos serviços de Registro Civil e a necessidade de ela ser utilizada de modo extremamente prudente, maxime em um século no qual os dados são o novo petróleo, mas, ou por isso, se tornou inegável o direito fundamental à proteção dos dados pessoais.  C) Devem determinados atos do Registro Civil ser gratuitos? Como anteriormente afirmamos, o Registro Civil garante o acesso de todas as pessoas  ao "mundo dos direitos", promove a liberdade de se ser o que se é, a igualdade de todos - entre si e perante o Estado -, combatendo o preconceito e a discriminação e realizando, efetivamente, a dignidade humana! Ora, assim sendo, a gratuidade, reduzindo o sub-registro e a informalidade, é imprescindível para cada pessoa em si e por si, para a sociedade e para o Estado. Sendo, para nós, tal incontestável, também consideramos inquestionável que sempre que as funções registais não sejam exercidas directamente pelo Estado, mas por entidades privadas em regime de delegação ou concessão, estas devem receber a contraprestação correspondente à sua actividade, devendo a gratuitidade ser assegurada a expensas do Estado, o mesmo é dizer, de todos os seus cidadãos.6 4. Alguns desafios do Registro Civil na Atualidade No mundo pós-moderno e globalizado ocorreu e ocorre um fenómeno de convergência entre a evolução da tecnologia e a modificação do direito substantivo aplicável ao Registro Civil. Tal fenômeno caracteriza-se por duas particularidades: Grande amplitude; Extrema rapidez. Quanto à evolução da tecnologia, escusamos de tecer qualquer comentário, pois é um facto inegável. A propósito das mudanças do direito substantivo aplicável ao Registro Civil limitamo-nos a recordar: a admissibilidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo7; o reconhecimento de efeitos à união de facto/união estável; o reconhecimento do direito à mudança do nome próprio e do sobrenome; o reconhecimento do direito a ver alterada a menção do sexo feita nos documentos; a admissibilidade da gestação de substituição/"barriga de aluguer".8 A evolução da tecnologia impõe um Registro Civil Digital - como já existe, por exemplo, na Suíça, na Estónia e na Rússia  -, no entanto, inegavelmente, envolve riscos, tais como: Erros de transcrição; fraude; possibilidade de "hackeamento". As mudanças no direito substantivo, por seu turno, têm, necessariamente, de ser espelhadas no Registro Civil, mas, como se sabe, ambas podem ser indevida e abusivamente utilizadas.  Designadamente: ¾ a mudança do nome próprio em um País e do sobrenome em um outro pode verificar-se com o intuito de dificultar a identificação. ¾ a mudança da menção do sexo nos documentos pode, em abstrato, ocorrer para se  obter gratuitamente a alteração do nome (assim, onde a mudança de nome próprio tem um custo, mas a mudança da menção do sexo e nome é gratuita) ou porque se intenta cometer violência de gênero e por ela não ser punido ou, ainda, porque se pretende garantir que em caso de prisão se cumprirá pena em um instituto prisional feminino. Em face do acabado de afirmar são, inequivocamente, múltiplos os desafios com que se depara o Registro Civil na atualidade. Acresce que, temos por certo, muitos outros reptos surgirão. A título de mero exemplo, basta recordar o facto de a abordagem binária estar a ser repudiada tendo já conduzido a que: ¾ A Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, através da Resolução 2.191 (2017), apelasse aos Estados Membros do Conselho da Europa, no que diz respeito aos estado civil e ao reconhecimento legal de género, que assegurem - sempre que as classificações de gênero sejam utilizadas pelas autoridades públicas - que esteja disponível, para todas as pessoas (incluindo as pessoas intersexuais que não se identificam nem como homens nem como mulheres), um leque de opções de marcadores de gênero. Sugerindo, em consonância com o que tem vindo a ser defendido na comunidade internacional, como alternativa à criação de marcadores não-binários, vir a tornar-se opcional, para todos, o registro do sexo nos assentos de nascimento e noutros documentos de identidade. ¾  A ordem jurídica Alemã  introduzisse a "categoria" diversificado ou diverso (cfr. § 22 (3) Personenstandgesetz). ¾ Em março de 2024, no Brasil, fosse emitida uma certidão de nascimento declarando que a pessoa é intersexo. __________ 1 Por todos, vide: Carlos Ferreira de Almeida, Publicidade e Teoria dos Registos, Coimbra, Almedina, 1966, pág. 137 e ss.; J. Seabra LOPES, Direito dos Registos e do Notariado, 3.ª edição, Almedina, 2005, p. 37 e ss.; Donato Sarno, Storia dei Registri dello Stato Civile, Halley Editrice, 2010; Hércules Aghiarian, Da constitucionalização da atividade notarial e registral. In Moderno Direito Imobiliário, Notarial e Registral. São Paulo: Quartier Latin, 2011; Mouteira Guerreiro, Manual de Registo Civil, da Identidade Civil e da Nacionalidade, Almedina, 2023, p. 25 e ss. e Noções Básicas de Registo Civil, in Temas de Registos e de Notariado, Almedina, Janeiro de 2010, pág. 137 e ss.; Marcelo gonçalves Tiziani, Uma Breve História do Registro Civil na Antiguidade, disponível in: https//jus.com.br/artigos/42691/uma-breve-historia-do-registro-civil-na-antiguidade, consultado a 1 de Julho de 2024. 2 Recordamos que no art. 7, Título II, da Constituição Francesa de 1791, podia ler-se: A lei considera o matrimônio como um contrato civil. O Poder Legislativo estabelecerá para todos os habitantes, sem distinção, o modo em que se constatarão os nascimentos, matrimônios e falecimentos e designará os oficiais públicos que receberão e conservarão os atos. 3 Efetividade traduz-se na junção de eficácia e de eficiência, pois representa a capacidade de se fazer uma coisa (eficácia) da melhor maneira possível (eficiência), atingindo os objetivos visados, que geram impactos sociais ou individuais. 4 Questão diversa é a de saber as funções registais devem ser exercidas directamente pelo Estado - como ocorre, por exemplo, em Portugal e em Espanha - ou, ao invés, por entidades privadas em regime de delegação ou concessão - como acontece no Brasil. Isto porque, quer numa hipótese quer noutra, a ordenação dos Registros é da competência exclusiva do Estado, sendo inquestionável a natureza pública dos Registros. 5 ARNOLD TOYNBEE, La Europa de Hitler, Sarpe,1985, p. 119 e 120. 6 Por todos, vide: José Renato Nalini, Registro Civil das Pessoas Naturais: usina de cidadania. In: DIP, Ricardo Henry Marques (Org.). Registros Públicos e Segurança Jurídica. 1. ed. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1998. 7 Recorde-se que na Grécia, o casamento entre pessoas do mesmo sexo apenas foi legalmente admitido a15 de Janeiro de 2024. 8 Sublinhe-se que, por exemplo, em França, o artigo 16-7 do Código Civil, ainda proíbe qualquer acordo relativo à gestação de substituição.
No ano de 1946 duas decisões foram publicadas no Diário Oficial da Justiça do dia 17/9 (p. 3). Ambas versavam sobre a modernização do sistema de lavratura de atos notariais. As representações foram feitas pelo 15º Tabelionato da Capital e pelo Tabelião Vampré. No Processo CG 4.063 (15 TN) requeria-se autorização para o uso de máquinas de escrever especiais (Elliot-Fischer) para lavrar escrituras em livros de notas. O corregedor geral, des. Amorim Lima, autorizaria o emprego da técnica, "desde que a tinta seja indelével e a impressão seja feita diretamente no livro, sem danificar a encadernação". Já no Processo CG 4.071, no pedido formulado pelo Tabelião Vampré, seria negada a autorização para lavratura dos atos notariais em folhas avulsas. "Há grandes inconvenientes na lavratura de notas em papéis avulsos, para encadernação posterior", diz o mesmo corregedor. A melhor solução estaria no emprego de máquinas de impressão direta, conforme já autorizado. As duas decisões marcam um importante momento de renovação dos meios tecnológicos postos à disposição dos notários brasileiros. Militão Antônio dos Santos, que foi escrevente habilitado do 22º Tabelionato da Capital de São Paulo (depois serventuário, cargo no qual se aposentou pelo IPESP) escreveu opúsculos muito interessantes na décadas de 50. Ademar Fioranelli me presentou o "Coisas de Cartórios", edição de junho de 1951, muito caprichada. Há nele uma dedicatória ao Dr. Daphnis de Freitas Valle, antecessor do querido Ademar. Diz ele nesta preciosidade: "Muitos dos atuais Serventuários e escreventes ainda se recordam dos velhos tempos em que, nos cartórios, os traslados de escrituras, as certidões, públicas-formas, e todos os atos processuais só podiam ser manuscritos. Lembram-se, também, de quanto tempo e esforço foi necessário para que as vantagens e a perfeição do serviço mecanografado pudessem dominar o velho preconceito de que, para autenticidade e segurança daqueles instrumentos notariais e papeis judiciais, os mesmos só deveriam ser escritos do próprio punho dos Serventuários ou de seus escreventes e copistas. Entretanto, apesar do progresso alcançado nos tabelionatos de notas, por motivos vários, a lavratura de escrituras e procurações continua, como antigamente, a ser feita do próprio punho. Por se tratar de atos que só podem ser lavrados em livros, devendo, estes, por determinação legal, serem abertos, rubricados e encerrados pelo Juiz competente, tem sido mais difícil, quanto a eles, a generalização da mecanografia. Surgem, porém, aos poucos, graças à inteligente iniciativa de alguns Serventuários progressistas, novas ideias para modernização daquele serviço". (SANTOS, Militão Antônio dos. Coisas de Cartórios. São Paulo: Ed. Autor, junho de 1951, p. 53). _________ Militão cita duas decisões cujas íntegras podem ser acessadas na Kollemata. Disponível aqui.
O direito à herança, assegurado pelo artigo 5º, inciso XXX, da Constituição Federal de 1988, é um dos direitos fundamentais. O Código Civil brasileiro, em seus artigos 1.784 a 2.027, estabelece as regras e procedimentos para o exercício desse direito. Quando um herdeiro aceita uma herança, pode fazê-lo de maneira expressa, por meio de um documento formal, ou tácita, através de ações que evidenciem a aceitação. Em ambas as formas, ele assume tanto os direitos quanto as responsabilidades da herança, com o mesmo efeito legal. Por isso, a aceitação deve ser expressa é formalizada por uma declaração escrita, enquanto a aceitação tácita resulta de comportamentos que mostram a aceitação dos bens e das obrigações da herança, disposto no artigo 1.805, §1º e §2º do Código Civil.   Conforme Luiz Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira1 Se o herdeiro aceita a herança, quer de forma expressa ou tácita, posterior renúncia é ineficaz. Aliás, uma aceitação expressa, por escrito, dificilmente é encontrada. Comum, porém, é a aceitação tácita, e o herdeiro outorga procuração ao advogado, entra no processo ou requer a abertura do inventário e já aceitou a herança de forma definitiva. O Código menciona as duas formas de aceitação: expressa e tácita. Ir ao funeral, à missa de sétimo dia, pagar uma conta hospitalar de seu falecido pai não pode ser considerada como aceita a herança. É preciso que ele pratique um ato inerente, como, por exemplo, contratar um advogado para defender um bem que tenha sido invadido, ou, até mesmo, cobrar alugueis do inquilino. A aceitação é ato jurídico simples, sem maiores formalidades. Segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo aceita a herança, tácita ou expressa, não pode mais haver renúncia a ela. Jurisprudência: INVENTÁRIO Herança Renúncia Descabimento Herança aceita inequivocamente pela agravante, que ajuizou o inventário declarando-se herdeira universal aceita a herança, tácita ou expressamente, não pode mais haver renúncia a ela Arts. 1805 e 1812 do CC Decisão mantida Recurso desprovido. (TJSP2 - (Relator(a): Rui Cascaldi; Comarca: São Paulo; Órgão julgador: 1a Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 06/08/2013; Data de registro: 13/08/2013).                          No âmbito tributário, após a aceitação da herança, o herdeiro deve declarar os bens recebidos e pagar o Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD), conforme as normas e alíquotas estipuladas pela legislação do estado onde o falecido residia. A aceitação da herança é um passo essencial no processo sucessório, mas não constitui, por si só, o fato gerador do imposto. Noutro giro, temos o artigo 1.806 do Código Civil aborda a renúncia de direitos hereditários, que é quando um herdeiro decide não aceitar a herança por qualquer motivo, nesse caso, a renúncia pode ser feita de forma abdica­tiva, ou seja, o herdeiro desiste da herança, e a parte que lhe caberia é incorporada ao total a ser dividido entre os outros herdeiros. A renúncia também é definitiva e jamais poderá o herdeiro arrepender-se. No contexto tributário, a renúncia à herança não acarreta obrigação tributária para o renunciante, pois não há transferência ou alienação da herança; ele apenas deixa de ser herdeiro, como resultado, os demais herdeiros, que permanecem na mesma linha de descendência ou que se tornam herdeiros devido à renúncia e assumem a responsabilidade tributária. De acordo com Luiz Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira3 A lei prevê duas formas de renúncia: abdicativa e translativa. Aquele é a renúncia pura e simples e este é um ato complexo, porque implica em aceitação e transferência do direito para outrem. A renúncia abdicativa deve ser feita "em benefício do monte", isto é, a pessoa renúncia e os remanescentes (aceitantes) recolherão a herança. Quando a renúncia é abdicativa não gera tributo, A lei não consagra a renúncia tácita, deve ela ser expressa e cumprir o renunciante as formalidades legais. Faz-se por escritura pública ou instrumento autêntico. Na prática do dia a dia, os herdeiros outorgam ao advogado uma procuração por instrumento público, conferindo-lhe poderes para renunciar a herança. O herdeiro já disse ao magistrado que não quer, e será lavrado, no processo de inventário, um termo de renúncia, que deverá ser assinado pelo advogado, que recebeu os poderes em instrumento público. Há muitos anos, e acontece, também, em pequenas comarcas do interior, o advogado colhe a assinatura do renunciante em procuração por instrumento particular. Se o juiz for mais rígido, mandará que seja lavrada a renúncia formal, exigindo que o herdeiro a assine. Nesse ínterim, a Jurisprudência do Tribunal de Justiça de Santa Catarina é condição sine qua non à validade da renúncia da herança a sua formalização na forma pública, isto é, através de escritura pública, ou mediante termo nos autos de inventário. Jurisprudência: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE NULIDADE DE PARTILHA. RENÚNCIA DA HERANÇA. FORMALIZAÇÃO POR TERMO NOS AUTOS. RENUNCIANTES REPRESENTADOS POR PROCURADOR MUNIDO DE PROCURAÇÃO PARTICULAR. INVALIDADE DO ATO. NECESSIDADE DE INSTRUMENTO PÚBLICO DE MANDATO, COM PODERES ESPECÍFICOS, OU O COMPARECIMENTO PESSOAL DE TODOS OS HERDEIROS RENUNCIANTES EM JUÍZO, OU, AINDA, A CONFECÇÃO DE ESCRITURA PÚBLICA DE RENÚNCIA (ART. 806 DO CC/2002). PARTILHA NULA. SENTENÇA REFORMADA. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. É condição sine qua non à validade da renúncia da herança a sua formalização na forma pública, isto é, através de escritura pública, ou mediante termo nos autos de inventário, neste caso, com o comparecimento pessoal de todos os herdeiros renunciantes em juízo, ou, se representados, que o procurador esteja munido de instrumento público de mandato, com poderes específicos, não sendo suficiente a procuração particular.(TJ-SC - AC: 20111028065 SC 2011.102806-5 (Acórdão), Relator: Stanley da Silva Braga, Data de Julgamento: 15/08/2012, Sexta Câmara de Direito Civil Julgado). O Superior Tribunal de Justiça (STJ) também se manifestou no sentido de que a renúncia é um ato solene. A renúncia da herança é ato solene, exigindo o artigo 1.806 do CC, para o seu reconhecimento, que conste "expressamente de instrumento público ou termo judicial", sob pena de nulidade (CC, artigo 166, IV), não produzindo nenhum efeito, sendo que "a constituição de mandatário para a renúncia à herança deve obedecer à mesma forma, não tendo validade a outorga por instrumento particular (REsp 1.236.671/SP, Rel. p/ acórdão Ministro SIDNEI BENETI, Terceira Turma, julgado em 09/10/2012, DJe de 04/03/2013). Na hipótese, o Tribunal de origem não considerou válida a constituição de mandatário por instrumento particular pela viúva-meeira do falecido para o fim de renúncia translativa à sua parte da herança. Incidência da Súmula 83/STJ. Agravo interno a que se nega provimento. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da QUARTA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, negar provimento ao recurso, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Luis Felipe Salomão, Maria Isabel Gallotti, Antonio Carlos Ferreira e Marco Buzzi votaram com o Sr. Ministro Relator. Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Luis Felipe Salomão. Brasília, 11 de abril de 2022. Ministro RAUL ARAÚJO Relator. Agora, vamos explorar a complexa Cessão de Direitos Hereditários, um dos temas mais intrincados e relevantes desse artigo, esse mecanismo é essencial para herdeiros que desejam transferir sua parte antes da conclusão do inventário, a cessão envolve questões jurídicas e sociais complexas e requer uma atenção meticulosa dos requisitos legais para assegurar a validade do acordo. Dessa forma, ocorrendo o falecimento de uma pessoa, dá-se início ao processo sucessório, no qual os bens deixados são divididos e transferidos aos herdeiros, que assumem tanto os direitos quanto as responsabilidades associadas ao patrimônio. Oportuno mencionar, o registrado pela professora Diniz4, que: O princípio da Saisine, em um sistema de direito civil, o possuidor tem um bem que é presumido como o seu legítimo proprietário, a menos que se prove o contrário, ou seja, a posse de um bem é suficiente para que o possuidor seja considerado como seu proprietário, até que se demonstre a existência de um direito de propriedade conflitante. A professora Diniz5, ensina que: O princípio da Saisine discutido no âmbito das sucessões, afirma que a transferência da propriedade ocorre automaticamente com o falecimento do proprietário, o princípio da Saisine é a regra que estabelece que, com o falecimento do titular, a propriedade é transferida imediatamente para os herdeiros, dispensando qualquer formalidade adicional para a efetivação da transferência imediatamente para os herdeiros. Ademais, vale a pena relembrar ainda, o conceito do pacto de corvina, ou "pacta corvina", que é sendo um acordo que se refere à herança de uma pessoa ainda viva. A expressão, derivada do latim, traduz-se como "acordo do corvo", aludindo aos hábitos alimentares dessa ave que aguarda a morte de suas vítimas para se beneficiar dos restos mortais. Tal acordo é explicitamente proibido pelo Código Civil, conforme disposto no artigo 426, evidenciando sua natureza antiética e a necessidade de respeitar as disposições legais sobre a sucessão. Passando-se por essas considerações, a renúncia e a cessão de direitos hereditários fazem-se necessário a manifestação de vontade relativa à herança que deve ser formalizada por meio de instrumento público ou por termo judicial nos autos para garantir sua validade, o prazo para essa formalização inicia-se a partir do momento do falecimento do titular da herança e se estende até a efetiva partilha dos bens. Ademais, é relevante destacar que, na cessão de direitos hereditários, há a incidência de impostos, o que deve ser considerado no processo de transmissão que veremos a frente. Desse modo, a cessão de direitos hereditários constitui um procedimento jurídico pelo qual um herdeiro transfere a outra pessoa os direitos que lhe cabem sobre a herança de um falecido. Em termos práticos, isso significa que o cessionário a pessoa que recebe os direitos adquire o direito de receber a parte da herança que originalmente pertencia ao cedente o herdeiro que está transferindo os direitos. Esse processo pode ser formalizado por meio de escritura pública ou por termos nos autos, conforme estipulado pelos artigos 1.793 e 1.806 do Código Civil, sob pena de nulidade. Sublinhamos e grifamos. Veja bem, o Código Civil em vigor, estabelece o artigo 1.793, §1º, §2º e §3º "o direito à sucessão aberta, bem como a quota-parte do co-herdeiro, pode ser objeto de cessão por escritura pública". Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira6 ensina como elaborar cessão de escritura pública, vejamos: A cessão do direito pode ser alienado pelo herdeiro a outrem, obedecidas as regras para tal. Em primeiro lugar, somente pode ser feita por escritura pública, dando-se preferência aos demais coerdeiros. Se houve abertura de inventário, necessária, também, a prévia autorização do juiz do feito. A cessão é genérica, não podendo o cessionário determinar o bem alienado, porque todos são titulares da universalidade, até que a partilha seja ultimada e homologada por sentença. Ocorre a cessão, a miúdo, quando o interessado quer "dinheiro" e o processo demora mais que o devido. Deve, então, oferecer aos outros, diretamente ou por intermédio de petição no curso do processo. Se o juiz deferir o requerimento, estará habilitado o herdeiro ceder parte ou a totalidade do seu direito. O estranho deve ser evitado, porque dificultará concluir o processo, ddesejoso de receber um certo bem. Deixando de requerer a prévia autorização do juiz, ineficaz será a cessão, pois todos os bens estão arrolados no inventário. Em face disso, no caso da escritura será necessário que todos os herdeiros estejam presentes e concordes para que o cessionário possa realizar o inventário extrajudicial, ele deve apresentar a escritura de cessão de direitos hereditários no momento da lavratura da escritura pública de inventário para habilitação, e se for caso o caso adjudicação, com a presença e anuência de todos os herdeiros, que devem ser maiores e capazes, o cessionário poderá receber a parte do acervo hereditário a que tem direito conforme estabelecido, nos termos do art. 16 da Resolução nº 35, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Na parte da herança e de sua administração o co-herdeiro não está autorizado a transferir sua parte da herança para uma pessoa que não faz parte da sucessão, caso outro co-herdeiro tenha interesse em adquirir essa parte nas mesmas condições. Por outro lado, o co-herdeiro que não for informado sobre a cessão pode adquirir a quota transferida a um terceiro, desde que pague o valor correspondente à parte cedida e faça a solicitação dentro de cento e oitenta dias após a cessão, esse prazo assegura que todos os co-herdeiros tenham a oportunidade de exercer o direito de preferência e garante uma distribuição justa das partes da herança. Segundo o artigo 1.794 do Código Civil brasileiro, quando um herdeiro pretende ceder sua parte da herança a um terceiro, os co-herdeiros têm o direito de preferência para adquirir essa parte nas mesmas condições oferecidas ao terceiro, isso significa que os co-herdeiros podem adquirir a quota cedida antes que ela seja transferida para alguém de fora da sucessão. Se vários co-herdeiros estiverem interessados em exercer o direito de preferência sobre a quota cedida, a divisão dessa parte será feita conforme a proporção das quotas hereditárias de cada um. Ou seja, a parte cedida será repartida entre os co-herdeiros interessados de acordo com a participação de cada um na herança, garantindo que a divisão respeite a participação de cada herdeiro no espólio. Nesse cenário, o direito de preferência na cessão de direitos hereditários, surge como um elemento crucial do instituto, assegurando aos herdeiros já envolvidos no processo sucessório a prioridade na aquisição dos direitos transferidos, garantindo a proteção dos interesses de todos os participantes. Nesse ínterim, a jurisprudência tem consolidado o entendimento de que é nulo o negócio jurídico que não observe a exigência legal de anuência no instrumento público para a cessão onerosa de direitos hereditários. Jurisprudência: Agravo de instrumento. Inventário. Cessão de direitos hereditários declarada inválida por desrespeitar forma expressa prevista em lei que exige instrumento público. Discordância do agravado. Impossibilidade de reduzir a termo nos autos. Recurso improvido. (TJSP- Relator (a): Pedro de Alcântara da Silva Leme Filho; Comarca: São Paulo; Órgão julgador: 8a Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 20/10/2015; Data de registro: 20/10/2015). EMENTA: DECLARAÇÃO DE NULIDADE DO NEGÓCIO JURÍDICO- CESSÃO ONEROSA DE DIREITOS HEREDITÁRIOS - DIREITO DE PREFERÊNCIA - CIÊNCIA DOS HERDEIROS NÃO CEDENTES - INÉRCIA - DECADÊNCIA. Nos termos do art. 1.795 do CC, "o coerdeiro, a quem não se der conhecimento da cessão, poderá, depositado o preço, haver para si a quota cedida a estranho, se o requerer até cento e oitenta dias após a transmissão." O Código Civil não veda que se demonstre a ciência a respeito da cessão por qualquer meio de prova. (TJMG - Apelação Cível 1.0011.08.020032-9/001, Relator (a): Des. (a) Evangelina Castilho Duarte, 14a CÂMARA CÍVEL, julgamento em 01/09/2014, publicação da súmula em 10/11/2014). Com efeito, é importante reafirmar que a herança é classificada como bem imóvel de acordo com o art. 80, II, do Código Civil, e pode ser transmitida de forma gratuita ou onerosa. Quando a transmissão ocorre de maneira gratuita, assemelha-se à doação, estando sujeita ao Imposto sobre a Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD). Em contraste, na transmissão onerosa, que se equipara à compra e venda, incide o Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis Inter vivos (ITBI). É imperativo considerar essas distinções para assegurar a correta aplicação dos tributos conforme a modalidade de transmissão do bem. Noutro giro, passando por todas as considerações, fazemos a pergunta mais importante, é possível registrar a escritura de cessão de direitos hereditários, aceitação ou renúncia no registro de imóveis? A resposta é clara, não, a doutrina e jurisprudência também diz que não! Assim sendo, importante observar que a lei de registros públicos nº 6.015/73, não prevê expressamente que a aceitação, cessão ou renúncia dos direitos hereditários seja considerada um título hábil para o registro de imóveis.   Posto isto, tal escritura não consta do rol taxativo de documentos estabelecidos pelo artigo 167 da referida lei, não fica de forma expressa na parte dos atos de registro/averbação da referida lei, muito menos no Código Civil ou qualquer outra legislação esparsa que fundamente a prática de considerar termo ou escritura como título hábil para o registro de imóveis. Pois bem, dito isso não poderia faltar as sábias palavras do registrador paulista Ademar7  Fioranelli sobre CESSÃO DE DIREITOS HEREDITÁRIOS em sua obra de Direito Registral Imobiliário. Os contratos versando sobre herança, de forma geral, são instrumentalizados como sendo de "cessão de direitos hereditários", estipulando a respeito da massa hereditária ou objetivando imóvel certo e determinado integrante de determinado monte partível. É inerente a esses tipos de contratos relevante aspecto jurídico, que os submete aos mesmos princípios reguladores da compra e venda, o que tem merecido, no decorrer dos tempos, ampla e considerável discussão por parte dos doutrinadores - e não menor apreciação pelos nossos julgadores no sentido de se fixar o seu acesso, ou não, ao Registro Imobiliário. A matéria já foi enfrentada pelo C. Supremo Tribunal Federal, que defendeu a posição da recepção do título no assento registral (RF 110/77 e 122/134). Hoje, a nosso ver, não há mais dúvida a respeito, tendo a jurisprudência administrativa registral solidificado ? entendimento da impossibilidade do seu ingresso, por ferir princípios básicos do direito imobiliário, tais como os da continuidade, especialidade, disponibilidade, e, também, por ausente no elenco taxativo do inc. I do art. 167 da Lei 6.015/73. Consagra o entendimento, ainda, que o direito à herança é considerado imóvel apenas por ficção legal, cabendo ao cessionário de tais direitos pleitear no inventário o pagamento em partilha do que coubesse ao cedente, como sub-rogado nos direitos deste último. Resumindo: o direito do herdeiro só se materializa com a partilha. Sua cota é ideal, e só se torna certa pela partilha, faltando, assim, os elementos que permitam o lançamento no Registro Imobiliário. O registro, se permitido, desprezaria os já citados princípios registrários, que, rigorosamente, devem ser preservados, fato não observado nas decisões prolatadas pelo C. Supremo Tribunal Federal. Neste sentido: "Direitos hereditários não são suscetíveis de registro, consoante a jurisprudência pacifica do Conselho; e o compromisso de compra e venda não tem objeto determinado, precisamente porque ainda não houve partilha e especificação dos bens inventariados... Além disso, o registrador, em seu artigo, continua apresentando argumentos que estão em consonância com sua visão predominante na jurisprudência e na doutrina, no que diz respeito à impossibilidade do registro da cessão de direitos hereditários... (Ap. civel 6.861-0, São Caetano do Sul, 13.4.87, CSMSP, Rel. Des. Sylvio do Amaral) "Depois, oportuno é salientar que direitos hereditários não são passíveis de ingresso no Registro de Imóveis." "Cabe ao interessado ultimar os inventários nos quais possui direitos e providenciar o registro do formal de partilha." (Ap. cível 4.258-0, Jacupiranga, 15.7.85, CSMSP, Rel. Des. Nélson Pinheiro Franco) O ilustre Magistrado Kioitsi Chicuta, ao decidir dúvida por mim suscitada no proc. 382/90, em 6.9.90, perante a 1.a Vara de Registros Públicos da Capital de São Paulo, assim decidiu: "A herança, como é cediço, constitui uma universitas juris, um complexo ideal, composto de direitos e obrigações, móveis e imóveis. E. enquanto não solidificado o direito do herdeiro sobre determinado bem, através da partilha, não se pode dar acolhida a título que instrumenta cessão de direito sobre parte ideal de um bem integrante do monte, sob pena de ofensa aos princípios da continuidade e da especialidade." Claro que, figurando na matrícula ou transcrição anterior o de cujus como proprietário disponente, diverso do que, no título, figura como transferente (o cedente dos direitos hereditários), o ato pretendido, sem a prévia mudança da titulariedade, vulnera a consecutividade do registro, conforme regra expressa continuada nos arts. 195 e 237 da Lei 6.015/73, interligado ao da disponibilidade, que se vincula ao enunciado de que ninguém pode transmitir o que não detém, ou no dizer dos latinos: "nemo dat quot non habet". A impossibilidade do registro das aquisições do direito à sucessão aberta é reconhecida, também, pela maioria dos doutrinadores, destacando-se os seguintes: Afrânio de Carvalho (Registro de Imóveis, forense, 1976, p. 49 e 270); Walter Ceneviva (Normas do Registro de Imóveis, Freitas Bastos, 1988, p. 102). Nesta linha, destacamos as palavras do mestre Serpa Lopes, que salienta: "[...] em relação à cessão de direitos hereditários cumpre salientar que, nada obstante ser considerado imobiliário o direito à sucessão aberta, não está subordinada ao Registro de Imóveis." (Tratado dos Registros Públicos, 1955, vol. III, p. 295) O autor deste trabalho não descarta a possibilidade do registro de escritura de cessão de direitos hereditários quando, no momento da sua apresentação a registro, já tiver sido registrado o formal de partilha do falecido, no qual tenha sido tocado ao herdeiro cedente o mesmo imóvel objeto do título. Este, então, será recepcionado como compra e venda, já que a simples denominação dada ao negócio jurídico não altera a sua essência, como, aliás, dispõe o art. 85 do CC. Neste caso, se a cessão era antes tida como condicional, deixou de sê-lo no instante em que o imóvel passou a figurar, in tabula, em nome do cedente e que passou a ter a disposição da coisa. Contudo, a escritura serve apenas como um título para que o cessionário possa se habilitar no processo de inventário judicial ou extrajudicial, assumindo, para todos os efeitos legais, a condição de herdeiro, consequentemente, o cessionário pode requerer a abertura da sucessão e a partilha dos bens, conforme previsto no artigo 1.772, parágrafo primeiro, do Código Civil. Após a habilitação no inventário, é o formal de partilha que concede ao cessionário o direito de propriedade sobre o imóvel. Este documento formal de partilha constitui o título que deve ser apresentado para registro no cartório de imóveis, conforme preconizado no artigo 167, inciso I, da Lei nº 6.015/73. Portanto, a formalização da cessão de direitos hereditários exige escritura pública, todavia, reafirmamos que não encontra guarida no Registro de Imóveis, refletindo a especificidade e fala as limitações previstas pela legislação vigente. Segundo os artigos 16, 17, 18 e 19 da Resolução nº 35 do CNJ, a renúncia deve ser feita de forma clara e inequívoca para garantir seu reconhecimento formal, quando houver renúncia ou partilha que implique em transmissão, os cônjuges dos herdeiros devem comparecer à lavratura da escritura pública de inventário e partilha, exceto no regime de separação absoluta de bens. Dito isso, o(a) companheiro(a) com direito à sucessão deve ser incluído, podendo ser necessário recorrer à decisão judicial se não houver consenso sobre a união estável ou sobre outros herdeiros. A meação do(a) companheiro (a) pode ser reconhecida na escritura pública, desde que todos os herdeiros e interessados, plenamente capazes, estejam presentes e concordes. Para concluir, é evidente que os pontos abordados, destacam a análise das escrituras públicas de aceitação, renúncia e cessão de direitos hereditários, e revela a complexidade e a especificidade dos procedimentos relacionados à herança no direito brasileiro, apesar de sua importância na formalização e regulamentação dos direitos sucessórios, essas escrituras não são aptas para registro diretamente no Cartório de Registro de Imóveis. Isso se deve ao fato de que a Lei de Registros Públicos e o Código Civil brasileiro não incluem explicitamente tais escrituras no rol de atos aceitos para registro. O registro de imóveis é regido por princípios específicos, como continuidade, especialidade e disponibilidade, que não se aplicam diretamente às transações de direitos hereditários antes da partilha formal dos bens. A aceitação da herança, embora crucial para o processo sucessório, não resulta automaticamente na transferência de propriedade dos bens. A aceitação apenas confirma o status do herdeiro como titular dos direitos sobre a herança, sendo que a transferência real dos bens ocorre somente após a partilha. A renúncia à herança deve ser feita de forma expressa e formal, conforme o artigo 1.806 do Código Civil, através de escritura pública ou termo judicial. A jurisprudência é clara ao exigir a formalização pública da renúncia, visto que o ato deve ser reconhecido formalmente para que produza efeitos legais. O mesmo princípio se aplica à cessão de direitos hereditários, que deve ser realizada por escritura pública e não pode ser registrada diretamente no Cartório de Registro de Imóveis. Todavia, no que tange à cessão de direitos hereditários, é importante destacar que, apesar de ser formalizada por escritura pública, a transferência de direitos hereditários não é imediatamente registrável no Cartório de Imóveis. O direito de preferência dos co-herdeiros e as exigências de formalização garantem que a cessão seja realizada de acordo com as normas legais, mas a efetiva transferência de propriedade só ocorre após a conclusão do inventário e a emissão do formal de partilha. Em conclusão, a formalização dos atos de aceitação, renúncia e cessão de direitos hereditários deve observar rigorosamente as exigências legais, distinguindo-se claramente do processo de registro de imóveis. O formal de partilha e a escritura de inventário são os documentos exclusivamente capacitados para efetivar a transferência de propriedade no Cartório de Imóveis. Por outro lado, embora as escrituras de aceitação, renúncia e cessão desempenhem um papel crucial na abertura, habilitação e conclusão do inventário, elas não têm a validade necessária para o registro de imóveis. __________ 1 Silva Paulo Cotrim e Samuel Mezzalira. Artigo 1805 do Código Civil Come. Direitocompontocom. Disponível aqui. Acesso em: 06 de agosto de 2024. 2 TJSP - Relator (a): Rui Cascaldi; Comarca: São Paulo; Órgão julgador: 1a Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 06/08/2013; Data de registro: 13/08/2013). 3 Silva Paulo Cotrim e Samuel Mezzalira. Artigo 1805. Direitocompontocom. Disponível aqui. Acesso em: 06 de agosto de 2024. 4 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Volume: 3 (Direitos Reais) 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2021. Volume: v. 3. p. 174. 5 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito das Sucessões. São Paulo: Saraiva, 2020. 6 Silva Paulo Cotrim e Samuel Mezzalira. Artigo 1805. Direitocompontocom. Disponível aqui. Acesso em: 06 de agosto de 2024. 7 Fioranelli, Ademar. Direito Registral Imobiliário. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2001. p. 515/517.
quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Multipropriedade mobiliária no mundo e no Brasil

Introdução A multipropriedade, também conhecida como propriedade compartilhada ou time-sharing, é um instituto jurídico que permite a múltiplos titulares compartilhar o domínio de um mesmo bem, de forma que cada um possa usar e gozar da coisa durante um período de tempo determinado (TEPEDINO, 2019, p. 5). Esse modelo de propriedade tem ganhado relevância nas últimas décadas, especialmente no setor imobiliário como uma alternativa para o acesso a bens de alto valor agregado, a exemplo dos imóveis de veraneio (OLIVEIRA, 2019, p. 23). No entanto, a multipropriedade não se restringe a bens imóveis, podendo incidir também sobre bens móveis, dando origem à denominada multipropriedade mobiliária. Essa modalidade, embora menos difundida que a imobiliária, apresenta grande potencial de expansão na medida em que permite o compartilhamento de bens como embarcações, aeronaves, veículos e equipamentos de alto custo (MARCATO, 2018, p. 15). O presente artigo tem por objetivo analisar o instituto da multipropriedade mobiliária, abordando seu conceito, características e regulamentação em diferentes países, com especial ênfase no tratamento conferido pelo projeto de lei 3.801/20, em tramitação no Congresso Nacional brasileiro. Conceito de Multipropriedade Mobiliária 2.1. Definição A multipropriedade mobiliária, à semelhança da imobiliária, pode ser definida como um regime de condomínio especial, no qual cada coproprietário é titular de uma fração de tempo, correspondente a um direito real de propriedade sobre um bem móvel corpóreo. Essa fração confere ao multiproprietário as faculdades de usar, gozar, fruir e dispor do bem com exclusividade, de forma alternada com os demais titulares, segundo as regras estabelecidas no memorial de instituição e na convenção do condomínio (MARCATO, 2018, p. 17). 2.2. Características A multipropriedade mobiliária apresenta algumas características distintivas em relação à propriedade tradicional. Em primeiro lugar, há uma dissociação entre a titularidade do direito e o uso do bem, uma vez que cada multiproprietário só pode exercer seus poderes durante o período correspondente à sua fração de tempo (TEPEDINO, 2019, p. 8). Além disso, o objeto da multipropriedade é indivisível, não se sujeitando a ações de divisão ou extinção de condomínio. Cada fração de tempo é, por sua vez, uma parte indivisível, à qual se vincula uma fração ideal do patrimônio condominial como um todo (MARCATO, 2018, p. 19). Outra característica relevante é a possibilidade de instituição da multipropriedade sobre um conjunto de bens da mesma espécie, e não apenas sobre um único bem. Nessa hipótese, os multiproprietários terão direito a usar os bens de forma alternada, segundo critérios predefinidos, o que confere maior flexibilidade e eficiência ao aproveitamento dos bens (OLIVEIRA, 2019, p. 27). 2.3. Direitos dos Multiproprietários Os multiproprietários têm direito a usar, gozar e fruir do bem durante o período correspondente à sua fração de tempo, com exclusividade. Podem, ainda, ceder sua fração em locação ou comodato, bem como aliená-la ou onerá-la livremente, independentemente da anuência dos demais multiproprietários (MARCATO, 2018, p. 22). No entanto, os multiproprietários também estão sujeitos a algumas obrigações, como o dever de contribuir para as despesas de conservação e manutenção do bem, proporcionalmente à sua fração ideal e de usar o bem segundo sua destinação, abstendo-se de atos que possam prejudicar os demais titulares (TEPEDINO, 2019, p. 12). 3.0. Multipropriedade Mobiliária no Mundo 3.1. França 3.1.1. Histórico A França foi um dos primeiros países a regulamentar a multipropriedade, inicialmente no setor imobiliário. A lei 86-18, de 6/1/86, disciplinou a multipropriedade imobiliária, estabelecendo regras para sua constituição, administração e extinção (SAINT-ALARY-HOUIN, 2019, p. 35). Posteriormente, a multipropriedade mobiliária também passou a ser admitida com base nas regras gerais do Direito Civil Francês. Embora não haja uma lei específica sobre o tema, a doutrina e a jurisprudência têm reconhecido a validade dessa modalidade de propriedade compartilhada (ATIAS, 2018, p. 42). 3.1.2. Regulamentação Legal Na ausência de uma lei específica, a multipropriedade mobiliária na França é regida pelas disposições gerais do Código Civil sobre a propriedade e o condomínio, com as adaptações necessárias. Aplicam-se, ainda, as normas de proteção ao consumidor, especialmente em relação aos contratos de aquisição de frações de tempo (SAINT-ALARY-HOUIN, 2019, p. 38). A doutrina francesa tem defendido a necessidade de uma regulamentação própria para a multipropriedade mobiliária, a fim de conferir maior segurança jurídica e transparência às relações entre os multiproprietários e destes com terceiros (ATIAS, 2018, p. 45). 3.1.3. Natureza Jurídica Segundo a doutrina majoritária francesa, a multipropriedade mobiliária constitui um direito real de propriedade sobre a fração de tempo, atribuindo ao multiproprietário as prerrogativas de usar, gozar e dispor do bem durante o período correspondente (SAINT-ALARY-HOUIN, 2019, p. 41). Trata-se, portanto, de uma forma de propriedade plena, ainda que limitada no tempo, e não de um direito real sobre coisa alheia. Nesse sentido, o multiproprietário pode alienar ou onerar sua fração de tempo, sem necessidade de anuência dos demais titulares (ATIAS, 2018, p. 48). 3.2. Alemanha 3.2.1. Regulamentação Legal Na Alemanha, a multipropriedade mobiliária é regulada pela lei de contratos de habitação temporária (teilzeit-wohnrechtegesetz), de 20/12/96. Essa lei estabelece normas específicas para a celebração de contratos que tenham por objeto o direito de uso temporário de bens móveis, como embarcações e veículos recreativos (SCHMIDT, 2019, p. 52). A lei alemã impõe uma série de requisitos formais e materiais para a validade desses contratos, visando a proteger os adquirentes de frações de tempo. Entre outras disposições, a lei prevê um direito de arrependimento em favor do adquirente, exercível no prazo de 14 dias após a celebração do contrato (SCHMIDT, 2019, p. 55). 3.2.2. Natureza Jurídica De acordo com a doutrina alemã prevalente, a multipropriedade mobiliária configura um direito real limitado, que confere ao titular o uso e gozo do bem durante o período de sua fração, mas com restrições quanto à faculdade de disposição (OECHSLER, 2018, p. 61). Isso porque, segundo essa corrente, a alienação ou oneração da fração de tempo depende da anuência dos demais multiproprietários, uma vez que pode afetar a destinação comum do bem. Trata-se, assim, de um direito real sui generis, que não se confunde com a propriedade plena (OECHSLER, 2018, p. 63). 3.3. Inglaterra 3.3.1. Aplicação da Multipropriedade Mobiliária Na Inglaterra, a multipropriedade mobiliária tem sido utilizada principalmente em relação a bens como iates e aeronaves, permitindo o compartilhamento dos elevados custos de aquisição e manutenção desses bens (SMITH, 2019, p. 68). A prática tem se disseminado por meio de arranjos contratuais variados, que vão desde a copropriedade tradicional até a constituição de clubes ou sociedades de proprietários, passando pela celebração de contratos de locação de longa duração (SMITH, 2019, p. 71). 3.3.2. Regulamentação Legal Não há, na Inglaterra, uma legislação específica sobre a multipropriedade mobiliária. Aplicam-se, assim, as regras gerais do direito contratual e do direito de propriedade, com as adaptações necessárias a cada caso concreto (SMITH, 2019, p. 74). Os tribunais ingleses têm reconhecido a validade e a eficácia dos arranjos de multipropriedade mobiliária, desde que observados os requisitos legais para a constituição e transferência da propriedade sobre bens móveis, bem como as normas de proteção ao consumidor (SMITH, 2019, p. 77). 3.3.3. Natureza Jurídica Na Inglaterra, prevalece o entendimento de que a multipropriedade mobiliária constitui um direito de propriedade pleno sobre a fração de tempo, incluindo os poderes de usar, gozar, fruir e dispor do bem durante o período correspondente (SMITH, 2019, p. 80). Esse direito é oponível erga omnes e pode ser livremente cedido ou transferido pelo multiproprietário, independentemente do consentimento dos demais titulares. Trata-se, portanto, de uma forma de propriedade individual, ainda que temporalmente limitada (SMITH, 2019, p. 83). 3.4. Espanha 3.4.1. Regulamentação Legal A Espanha conta com uma regulamentação específica para a multipropriedade mobiliária, introduzida pela lei 4/12, de 6/7, que estabelece normas sobre os contratos de aproveitamento por turno de bens móveis (GARCÍA GARNICA, 2019, p. 88). Essa lei define os requisitos para a celebração e execução desses contratos, os direitos e deveres das partes, as regras de publicidade e informação ao consumidor, entre outros aspectos. Aplica-se tanto aos contratos celebrados na Espanha quanto àqueles firmados no exterior, desde que envolvam bens situados em território espanhol (GARCÍA GARNICA, 2019, p. 91). 3.4.2. Natureza Jurídica Segundo a doutrina espanhola majoritária, a multipropriedade mobiliária configura um direito real de aproveitamento por turno, que atribui ao titular o uso e gozo do bem durante sua fração de tempo, mas com limitações quanto à faculdade de disposição (GARCÍA GARNICA, 2019, p. 94). Isso porque a lei espanhola condiciona a alienação ou oneração da fração de tempo à concordância dos demais multiproprietários, visando a preservar a destinação comum do bem. Trata-se, assim, de um direito real autônomo, distinto da propriedade plena (GARCÍA GARNICA, 2019, p. 97). 3.5. Portugal 3.5.1. Regulamentação Legal Em Portugal, a multipropriedade mobiliária é regulada pelo decreto-lei 275/93, de 5/8, que disciplina o direito real de habitação periódica. Embora essa norma se refira expressamente a imóveis, a doutrina e a jurisprudência têm admitido sua aplicação, por analogia, aos contratos de direito de habitação temporária em bens móveis (CARVALHO FERNANDES, 2018, p. 102). O decreto-lei português estabelece as regras para a constituição, exercício e extinção do direito de habitação periódica, bem como os requisitos de validade dos contratos que tenham por objeto esse direito. Prevê, ainda, normas de proteção aos adquirentes, como o direito de arrependimento e a proibição de práticas comerciais abusivas (CARVALHO FERNANDES, 2018, p. 105). 3.5.2. Natureza Jurídica De acordo com a doutrina portuguesa dominante, a multipropriedade mobiliária configura um direito real de habitação periódica, que confere ao titular o poder de usar e fruir do bem durante o período correspondente à sua fração de tempo (CARVALHO FERNANDES, 2018, p. 108). No entanto, esse direito está sujeito a limitações quanto à faculdade de disposição, uma vez que a alienação ou oneração da fração de tempo depende da anuência dos demais titulares. Trata-se, portanto, de um direito real limitado, distinto da propriedade plena (CARVALHO FERNANDES, 2018, p. 111). Confira aqui a íntegra da coluna
Resumo: Este micro opúsculo pretende demonstrar a ingente importância do provimento 180 de 2024 do CNJ, em especial no registro de imóveis, no tocante à aceitação de títulos com assinaturas eletrônicas avançadas, criando um "elo de sintonia" com os títulos das instituições financeiras, inclusive quando grande parte dos clientes utiliza a plataforma gov.br, a partir de um comparativo com a legislação anterior, que ensejou um dilema jurídico aos cartórios de imóveis, atualmente superado pelo citado provimento. 1. Introdução A questão das assinaturas válidas em documentos digitais é tema de grande importância na atualidade para o registro de imóveis. Isso porque hoje a maioria dos documentos recebidos para registro ou averbação são eletrônicos. Tal realidade é inescapável nos grandes centros e mesmo nas cidades de porte médio. Nas cidades pequenas, entretanto, os documentos físicos ainda são maioria, embora tal fato esteja em rápida mutação para os títulos nato-digitais e digitalizados com assinaturas eletrônicas, devido em grande parte ao agronegócio. Quão importante as assinaturas eletrônicas ao registro de imóveis na atualidade que, enquanto os autores do presente texto terminavam de redigir uma crítica a não-aceitação por parte do registro de imóveis da assinatura avançada, por ausência normativa nacional, a Corregedoria Nacional de Justiça (CNJ) publicava uma norma suprindo tal crítica: O provimento 180 de 2024. Desta forma, a primeira versão do presente artigo já "nasceu velha" porque tratou de um tema em concomitante regulamentação pela CNJ. Entretanto, mesmo "nascido velho", este artigo revela a importância daquela normativa e a analisa, tendo sido o mesmo atualizado. Por fim, este artigo também poderá servir como argumentação às eventuais situações ocorridas antes do referido provimento. 2. A natureza jurídica e o conteúdo do Provimento 180/2024 da CNJ O provimento 180/24 da CNJ é uma norma administrativa de natureza abstrata com efeito reflexo, ou seja, é uma norma que atinge não somente os tabeliães e oficiais de registro, mas também a sociedade em geral. Ademais, sua força normativa decorre do § 2º do art. 17 da lei 6.015/73, incluído pela lei 14.383/22, que delega à Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ estabelecer hipóteses de uso de assinatura avançada em atos que envolvam imóveis. Aquele provimento alterou o Código Nacional de Normas (provimento 149/23) em diversos pontos, referente às várias especialidades extrajudiciais. No tocante ao cerne da presente matéria, interessa dizer que ocorreu a revogação expressa do art. 324 do citado código que tratava da recepção pelos registros de imóveis de títulos digitais, tanto aqueles nato-digitais (§ 1º da norma revogada), quando os digitalizados (§ 2º da norma revogada). Tal artigo revogado se encontrava topograficamente na parte de registro de imóveis. Agora, a recepção de documentos pelo registro de imóveis em forma eletrônica não se encontra mais na parte específica do código de normas, porém, na parte geral. Isso significa que a recepção de títulos eletrônicos pelo registro de imóveis agora segue a mesma normativa da recepção de títulos pelas demais serventias. Diferentemente do que ocorria na regulamentação anterior, existe agora previsões a respeito de recepção de títulos que possuam assinaturas avançadas. Tais previsões estão no art. 208 do Código Nacional de Normas (prov. 149/23). O inciso I do § 1º do art. 208 do Código Nacional de Normas, prevê a possibilidade de recepção de documento público ou particular gerado eletronicamente em PDF/A e assinado por todos os signatários por meio de assinatura qualificada ou com assinatura eletrônica avançada admitida perante os serviços notariais e de registro. (grifos nossos). Logo em seguida, o inciso II do mesmo parágrafo prevê a recepção de documento público ou particular que exija a assinatura apenas do apresentante, com os mesmos requisitos do documento citado no inciso I, tendo inclusive permissão de uso de assinatura qualificada ou avançada (grifos nossos). Note-se que a diferença entre os incisos do § 1º do art. 208 do código nacional de normas é a seguinte: enquanto o seu inciso I trata de assinatura por todos os signatários, o seu inciso II, ao contrário, trata de assinatura apenas do apresentante. Outra previsão é o inciso IV do supracitado art. 208, no qual se permite a aceitação de assinaturas qualificadas ou avançadas (grifos nossos) em documentos desmaterializados por qualquer notário ou registrador, desde que gerados em PDF/A e assinados pelos próprios, substitutos ou prepostos. Avançando-se na norma, encontramos o § 2º do art. 208 do Código Nacional de Normas, que trata de títulos digitalizados em conformidade com o art. 5º do decreto 10.278/20. Agora, tais títulos podem utilizar também de assinaturas eletrônicas do tipo avançado, além das qualificadas. Portanto, ciente das dificuldades dos cartórios brasileiros ante os dilemas normativos, a Corregedoria Nacional de Justiça atualizou o Código de Normas Nacional, a fim de permitir a sintonia normativa entre os cartórios de imóveis e as instituições financeiras. Dessa maneira, e nos termos do § 2º do art. 17 da lei 6.015/73, o provimento 180/24 da CNJ foi o "elo de sintonia" entre o art. 17-A da lei 14.063/20 e o seu art. 5º, § 2º, inciso IV, da lei 14.063/20. Em resumo, é possível afirmar que os cartórios de imóveis poderão aceitar os "títulos nato-digitais públicos ou privados", os "documentos desmaterializados" por notários ou registrador, além dos "títulos digitalizados" (nos termos do art. 5º do decreto 10.278/20), contendo "assinatura eletrônica avançada ou qualificada". Ocorre que, antes da publicação do provimento 180/24, caso tenha havido eventual ingresso equivocado nos fólios reais de títulos com assinatura avançada, seria importante conhecer a presente proposta de conservação dos negócios jurídicos, à luz da teoria de "A obrigação como processo". 3. Origem, classificação e extensão normativa de assinatura eletrônica A assinatura eletrônica foi instituída inicialmente pela MP 2.200-2/01, cujo seu art. 1º define bem o seu conceito legal: "a Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, para garantir a autenticidade, a integridade e a validade jurídica de documentos em forma eletrônica (...), bem como a realização de transações eletrônicas seguras". O certificado digital ICP-BR garante autenticidade, integridade e validade jurídica de documentos (públicos e privados) em formato eletrônico, bem como as declarações constantes nesses documentos presumem-se verdadeiros em relação aos signatários, nos termos do § 1º do art. 10 da MP 2.200-2/01 c/c o art. 219 do Código Civil. Aliás, o conceito normativo de certificado digital ICP-BR é muito semelhante ao conceito normativo de assinatura eletrônica notarizada prevista no inciso I do art. 285 do prov. 149/23 da CNN/CN/CNJ-Extra1, ao dizer que se considera "assinatura eletrônica notarizada: qualquer forma de verificação de autoria, integridade e autenticidade de um documento eletrônico realizada por um notário, atribuindo fé pública". Note-se que as normas da CNJ e da MP 2.200-2/01 pretendem garantir a segurança na autoria, autenticidade, integridade e validade jurídica aos documentos (públicos e privados) em formato eletrônico. A validade da certificação digital dar-se-á pela certificadora raiz da ICP-BR, por meio de ITI - Instituto Nacional de Tecnologia da Informação (art. 12 da MP 2.200-2/01), disponível no site. Por outro lado, não se olvide que, no tocante às certidões dos atos de constituição e de alteração de empresários individuais e de sociedades mercantis, fornecida pelas juntas comerciais, nos termos do art. 68 da lei 8.934/94, será confirmada sua autenticidade no site, na parte de "verificação de documentos do empreendedor - certidão online". Por meio da lei 14.063/20, foram criadas as assinaturas eletrônicas simples, avançada e qualificada (art. 4º, incisos I, II e III), conforme o nível de confiança sobre a identidade e a manifestação de vontade de seu titular, sendo que a assinatura eletrônica qualificada - que utiliza certificado digital ICP-BR (art. 4º, inciso III) - é a que possui nível mais elevado de confiabilidade a partir de suas normas, de seus padrões e de seus procedimentos específicos (§ 1º do art. 4º). Nos atos de transferência e registro de imóveis, será obrigatório o uso de assinatura eletrônica qualificada (art. 5º, § 2º, inciso IV, da lei 14.063/20). Entretanto, o § 2º do art. 17 da lei 6.015/73, alterado pela lei 14.382/22, autorizou a Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ estabelecer hipóteses de uso de assinatura avançada para atos que envolvam imóveis. Outrossim, o art. 38 da lei 11.977/09, alterado pela lei 14.382/22, também permitiu que os documentos eletrônicos apresentados aos serviços de registros públicos ou por eles expedidos deverão atender aos requisitos estabelecidos pela Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ, com a utilização de assinatura eletrônica avançada ou qualificada. No tocante ao registro de imóveis, o § 2º do art. 38 da lei 11.977/09, também permitiu ao CNJ estabelecer hipóteses de admissão de assinatura avançada em atos que envolvam imóveis. Até então, antes do provimento 180/24 da CNJ, os títulos imobiliários (transferência de titularidade ou ônus reais) precisam de assinatura eletrônica qualificada, que ensejava, por conseguinte, um dilema jurídico nas serventias de imóveis, quando recebiam títulos com assinatura avançada. 2. Assinatura eletrônica nas instituições financeiras antes do Prov. 180/2024 As instituições financeiras, que atuam com crédito imobiliário autorizadas a celebrar instrumentos particulares com caráter de escritura pública, e os partícipes dos contratos correspondentes poderão fazer uso das assinaturas eletrônicas nas modalidades avançada e qualificada (art. 17-A da lei 14.063/20 alterado pela lei 14.620/23). É importante ressaltar que o art. 17-A da lei 14.063/20 fala expressamente em "celebração", em vez de "registro" ou "averbação", implicando, por conseguinte, que se trata de formalização de contrato entre a instituição financeira e o seu partícipe, em momento anterior ao registro de imóvel. Na prática, as instituições financeiras solicitam ao cliente o uso de plataforma gov.br para assinar eletronicamente. Ocorre que em grande parte das vezes quando da utilização desta plataforma, utiliza-se de assinatura eletrônica avançada, e não da qualificada. As identidades digitais da plataforma gov.br estão classificadas em três tipos: i) Identidade Digital Bronze; ii) Identidade Digital Prata; e iii) Identidade Digital Ouro, sendo que a bronze usará assinatura simples, ao passo que as duas últimas (prata e ouro), usaram as assinaturas simples e avançada (art. 1º, § 3º, da portaria SEDGGME 2.154/21), salvante para os atos de transferência e de registro de bens imóveis, que somente poderá usar assinatura qualificada (art. 1º, § 4º, da portaria SEDGGME 2.154/21 c/c o art. 4º, inciso III, alínea "a", do decreto federal 10.543/20). Dessa maneira, percebe-se que a plataforma gov.br permite dois tipos de assinaturas eletrônicas: uma avançada e outra qualificada. No entanto, os clientes na maioria das vezes, por não possuírem certificado digital ICP-Brasil (assinatura eletrônica qualificada), se utilizam da assinatura avançada, que ensejava um dilema registral. 3. Dilema registral antes do Prov. 180/2024: Assinatura eletrônica versus cartório de imóveis Sucede que, à luz da doutrina de Clóvis V. do Couto e Silva, no seu livro "A obrigação como processo", ao dizer, em suma, que a boa-fé contratual vai desde a celebração até o registro de imóveis, tudo indica que o art. 17-A da lei 14.063/20 criou um hiato jurídico com a regulamentação jurídica de assinatura eletrônica no registro de imóveis. O art. 38 da lei 11.977/09 determina que atos de registros públicos deverão ser inseridos no registro eletrônico2, permitindo a criação da plataforma mantida pelo ONR - Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis, integrado atualmente pelo ON-RCPN - Operador Nacional do Registro Civil das Pessoas Naturais, pelo ON-RTDPJ - Operador Nacional do Registro de Títulos e Documentos e Civil das Pessoas Jurídicas. O § 2º do art. 17 da lei 6.015/73, incluído pela lei 14.393/22, permite a Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ estabelecer hipóteses de uso de assinatura avançada para atos envolvendo registro de imóveis. Eis aí o aparente dilema registral: Enquanto uma norma permite à instituição financeira atuante com crédito imobiliário o uso de assinatura eletrônica avançada (art. 17-A da lei 14.063/20); outra norma não permitia aceitá-la no registro de imóveis (art. 5º, § 2º, inciso IV, da lei 14.063/20), até regulamentação em contrário da Corregedoria Nacional de Justiça (§ 2º do art. 17 da lei 6.015/73). 4. Uma ideia resolutiva ao dilema registral antes do Prov. 180/2024 Uma ideia resolutiva ao dilema normativo sobre assinaturas eletrônicas - à luz da teoria de Clóvis V. do Couto e Silva ("A obrigação como processo") - seria a aplicação do princípio da conservação dos negócios jurídicos3, positivado em nosso Código Civil. Por exemplo, "em caso de cláusula testamentária for suscetível de interpretações diferentes, prevalecerá a que melhor assegure a observância da vontade do testador" (art. 1.899); "na dúvida entre as provas favoráveis e contrárias, julgar-se-á pelo casamento, se os cônjuges, cujo casamento se impugna, viverem ou tiverem vivido na posse do estado de casados" (art. 1.547); "não pode ser objeto de venda com reserva de domínio a coisa insuscetível de caracterização perfeita, para estremá-la de outras congêneres. Na dúvida, decide-se a favor do terceiro adquirente de boa-fé" (art. 523). Desse modo, seria possível interpretar as leis 14.063/20 (assinaturas eletrônicas) e 6.015/73 (lei de registros públicos) à luz do princípio da conservação dos negócios jurídicos, afastando-se, portanto, da regra tempus regit actum, a qual significa que o título se sujeita às condições vigentes ao tempo de sua apresentação a registro, sendo irrelevante a data de sua celebração. Então, uma vez iniciada a obrigação contratual com instituição financeira contendo assinatura avançada, tudo indica que a serventia de imóveis poderia aceitá-la, com o intuito de terminar a referida obrigação, à luz da teoria de "A obrigação como processo", mais conhecida como princípio da boa-fé objetiva contratual, positivado no art. 422 do Código Civil e também previsto no enunciado 25 da I Jornada de Direito Civil do CJF4, sem implicar, d'outro lado, violação normativa à legislação específica sobre registro de imóveis. Nesse contexto, entendemos que, até a publicação do prov. 180/24 do CNJ, seria possível aceitar apenas assinaturas eletrônicas qualificadas no registro de imóveis. Entrementes, em caso de eventual ingresso equivocado no fólio real, tal argumentação jurídica é uma proposta de conservação dos negócios jurídicos com assinaturas avançadas, à luz da teoria de "a obrigação como processo". 4.1 Da situação específica dos títulos do agronegócio Antes mesmo do provimento 180/24 do CNJ já existia legislação complementar ao art. 17-A da lei 14.063/20, no tocante especificamente a legislação sobre cédula de crédito que parecia permitir o uso de assinatura eletrônica avançada. Aqui se adentra nos títulos do agronegócio. Na cédula de crédito bancário - CCB, por exemplo, foi permitida assinatura eletrônica de maneira genérica (§ 5º do art. 20 da lei 10.931/04, alterada pela lei 13.986/20), condicionando apenas a garantia de identificação inequívoca de seu signatário, sem qualquer remissão à observância da lei 14.063/20 ou da MP 2.200-2/01, como fizeram expressamente outras leis e legislações (lei 6.015/73 e decreto federal 10.543/20). Outrossim, na cédula de crédito rural hipotecária e/ou pignoratícia, também foi permitida ao emitente ou representante (com poderes especiais) a assinatura eletrônica, desde que garantida a identificação inequívoca de seu signatário, nos termos inciso IX do art. 14 c/c o inciso IX do art. 20, ambos do decreto-lei 167/67, sem qualquer tipo de remissão à observância da lei 14.063/20 ou da MP 2.200-2/01. Nesse contexto, ante a ausência de remissão normativa expressa, o prov. 180/24 da CNJ praticamente espancou qualquer dúvida sobre as classificações de assinaturas eletrônicas permissivas nas cédulas de crédito bancário e rural, ou seja, os oficiais de imóveis podem aceitá-las com assinatura avançada e qualificada. Na cédula de produto rural - CPR (lei 8.929/94), por sua vez, já foi bem mais específica, permitindo expressamente assinatura eletrônica avançada ou qualificada para registro e averbação constituída por bens móveis e imóveis, nos termos do inciso II do § 4º do art. 3º da lei 8.929/94, incluído pela lei 13.986/20. Ou seja, antes do provimento já existia uma regulamentação específica para tais títulos. Como a lei específica delegou à Corregedoria Nacional de Justiça estabelecer hipóteses de uso de assinatura avançada em atos que envolvam imóveis, praticamente o prov. 180/24 da CNJ serviu para ratificar a força normativa do inciso II do § 4º do art. 3º da lei 8.929/94. Assim, quando se analisa os atos normativos de títulos envolvendo o agronegócio em sintonia com o prov. 180/24, é possível concluir que a exceção tornou-se a regra, ou seja, antes eram poucas normas permitindo expressamente a assinatura eletrônica avançada ou qualificada, mas agora, após a citado provimento, tornou-se uma regra tal permissão, incluindo os títulos emitidos por instituições financeiras que atuam com crédito imobiliário. 5. Conclusão A partir do provimento 180/24 da Corregedoria Nacional de Justiça se tornou possível a utilização de assinaturas eletrônicas avançadas perante os serviços de registro de imóveis para diversos títulos, nas hipóteses agora regulamentadas no art. 208 do Código Nacional de Normas, merecendo elogios essa regulamentação da CNJ, pois tratou de tema de extrema importância ao registro de imóveis e que carecia de regulamentação. Ocorre que, antes daquele provimento, em que pese a grande evolução tecnológica nos negócios privados e públicos, a exemplo de assinaturas eletrônicas e de Serp - Sistema Eletrônico dos Registros Públicos, tudo indicava que, ante a ausência de normas sistemáticas, era até possível a celebração contratual com assinatura eletrônica avançada, mas não se permitia o seu ingresso no registro de imóveis. Após criação jurídica de chave digital ICP-BR (MP 2.200-2/01), sendo classificada como assinatura eletrônica qualificada para os atos de registro de imóveis (art. 5º, § 2º, inciso IV, da lei 14.063/20), representou um grande avanço aos negócios jurídicos, notadamente a criação de meios para uso de documentos nato-digitais. Acontecia que, para celebração de contratos com instituição financeira atuante com crédito imobiliário, foi permitida a assinatura eletrônica avançada e qualificada (art. 17-A da lei 14.063/20, incluído pela lei 14.620/23), sem qualquer ressalva expressa ao § 2º do art. 17 da lei 6.015/73, que permite à Corregedoria Nacional de Justiça estabelecer hipóteses de uso de assinatura avançada em atos que envolvam imóveis. Para piorar, quando a instituição financeira solicitava ao cliente assinatura pela plataforma gov.br, ainda que a finalidade seja a segurança da celebração contratual, ensejava um problema registral, qual seja, na maioria das vezes, por não ter ICP-Brasil, o cliente assina através da assinatura avançada. Dessa maneira, antes do prov. 180/24, ocorria o seguinte dilema jurídico: Conquanto permitida a celebração de contrato bancário com assinatura avançada, não seria permitido o seu ingresso no fólio real. Assim, com o intuito de resolver tal dilema às situações anteriores àquele provimento da CNJ, propomos a aplicação do princípio da conservação dos negócios jurídicos - já positivado em nosso direito civil (art. 422 do Código Civil), em vez de aplicar a regra tempus regit actum, a qual significa que o título se sujeita às condições vigentes ao tempo de sua apresentação a registro. A situação se encontra hoje normatizada de maneira correta pelo CNJ, terminando com a situação jurídica de insegurança que existia anteriormente. Por fim, é deveras importante frisar que, havendo eventuais situações antes do provimento 180/24, será prudente interpretar cum grano salis as normas de assinaturas eletrônicas no registro de imóveis, a fim de manter em sintonia a boa-fé objetiva contratual com o sistema de registro de imóveis. __________ 1 Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça - Foro Extrajudicial (CNN/ CN/CNJ-Extra). 2 Cf. o art. 76 da Lei nº 13.465/2017 c/c o Provimento nº 89/2019, da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça. Em seguida, foi publicada a Lei n.º 14.382/2022, que dispõe sobre o Sistema Eletrônico dos Registros Públicos (SERP) c/c o Prov. 149/2023 do CNN/ CN/CNJ-Extra. 3 BUZAR, Maurício. A invalidade do negócio jurídico. 3. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023, p. 181-183. 4 "Art. 422. [do Código Civil]. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé". No mesmo sentido, diz o enunciado 25 da I Jornada de Direito Civil do CJF: "O art. 422 do Código Civil não inviabiliza a aplicação pelo julgador do princípio da boa-fé nas fases pré-contratual e pós-contratual"
Introdução Na primeira parte deste trabalho, meu colega de pesquisas, Sérgio Jacomino, lançou algumas questões envolvendo a assimilação da IA nas rotinas de um cartório de Registro de Imóveis. A mim coube, no âmbito do NEAR-lab - Núcleo de Estudos Avançados do Registro de Imóveis eletrônico, desenvolver algumas rotinas a fim de testar a funcionalidade da ferramenta aplicada à solução de alguns problemas bastante comuns nas serventias imobiliárias. Criamos uma área de trabalho (workspace) na qual interagem alguns pesquisadores para desenvolvimento e especialização da ferramenta de IA e aplicando seus recursos em tarefas próprias dos cartórios de Registro de Imóveis. Nos últimos três meses buscamos simular a execução das rotinas mais complexas e trabalhosas do processo de registro, considerando a aplicação da IA para ganho de eficiência e desempenho. A breve demonstração levada a efeito, e referida abaixo, abre um horizonte de grandes possibilidades e oportunidades, mas revela, igualmente, imensos riscos. Boas perguntas - melhores respostas De partida, percebe-se que a maior precisão da resposta da máquina está vinculada à qualidade da pergunta, vale dizer: o prompt da máquina deve receber demandas bem estruturadas e afinadas para obtenção de respostas qualificadas. Assim, para cada espécie de título apresentado, há um script específico que foi convertido pela máquina para interagir com a plataforma. POC SREI-GEN O projeto denominado "POC SREI-GEN" ou "Prova de Conceito do SREI Generativo" teve por objetivo testar o uso de agentes virtuais especializados para automatizar tarefas repetitivas e complexas do processo de registro de imóveis, considerando alguns de seus desafios atuais: Título em conteúdo desestruturado, em papel e em forma narrativa; Matrícula e atos escriturados em papel em forma narrativa; Exame de grande volume de documentos acessórios dos títulos; Exame de requisitos complexos, como por exemplo identificação de operações para comunicações para comunicar ao Siscoaf - Sistema de Controle de Atividades Financeiras; Necessidade de coordenação de dados entre as diversas fontes e etapas do processo. Durante o projeto, desenvolvemos alguns chats de IA, denominados agentes virtuais especialistas, para desempenhar e automatizar tarefas específicas em cada etapa do processo. A esses agentes demos o nome de agentes registrais. A partir da aplicação de técnicas de engenharia de prompts, especializamos os agentes registrais para receber o título e os documentos comprobatórios apresentados para registro, bem como a matrícula do imóvel, fornecendo como saída resultados específicos esperados em cada interação do processo. Considerando a metodologia de notação BPMN - Business Process Model and Notation1, mapeamos e selecionamos algumas rotinas presentes nos principais processos do registro, como a recepção, pré-qualificação de títulos e a qualificação registral. Buscou-se testar o uso do modelo de linguagem natural nestas rotinas, para leitura e compreensão dos conteúdos dos títulos e da matrícula do imóvel. Testamos alguns dos modelos de IA disponíveis atualmente, como, por exemplo, o ChatGPT-4o, um modelo de linguagem desenvolvido pela OpenAI baseado na arquitetura GPT-4 (Generative Pre-trained Transformer 4). Esse modelo foi treinado usando uma grande quantidade de dados textuais, permitindo que ele compreenda e gere texto de forma coerente e contextual. No evento de Coimbra, apresentamos alguns vídeos práticos da atuação dos agentes registrais especialistas em cada etapa do processo. Por exemplo, as etapas iniciais de recepção e pré-qualificação do título exigem atualmente um enorme esforço de leitura e identificação das informações do título. O primeiro agente registral demonstrado visou fornecer os dados estruturados do título, considerando: Título e negócio jurídico; Imóvel; Pessoas envolvidas; Valores e condições de pagamento; Cláusulas contratuais obrigatórias. Exemplo de atividades dos processos "Recepcionar" e "Pré-qualificar título" Além dos desafios atuais do processo, a implantação do SREI - Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis exigirá dos registradores a adoção de novos parâmetros e rotinas operacionais estabelecidos principalmente no art. 10 do provimento CNJ 89/19.2 Dentre as novas práticas, será necessário realizar a atividade de "primeira qualificação eletrônica" com o objetivo de permitir a migração de um registro de imóvel existente efetuado no livro em papel, seja transcrição ou matrícula, para o formato de registro eletrônico denominado matrícula eletrônica. Exemplo de atividades do processo de "Qualificação Registral": Em relação ao processo de qualificação eletrônica, especializamos agentes registrais para desenvolver rotinas como: Análise da matrícula para consolidação da situação jurídica; Exame do título e de documentos comprobatórios; Exame de requisitos exigidos para comunicação ao Siscoaf; Estruturação de dados para auxiliar o exame e qualificação; Comparativo de elementos do título com a matrícula do imóvel; Consulta às leis e jurisprudência especializada sobre a matéria; Também foi possível integrar os agentes registrais em um único processo de registro, sendo necessário fazer o upload do título e da matrícula apenas uma vez. a) Os principais resultados do projeto foram: A eficiência da automação de tarefas complexas ou trabalhosas; Especialização de agentes registrais especialistas por etapa do processo; Maior coordenação entre as etapas dos processos; Precisão e controle de saída; Instruções e base de conhecimento aprovadas pelo registrador; Verificação de integridade dos resultados; b) Pontos de atenção ao uso da IA no RI: Privacidade e segurança de dados; Dependência tecnológica; Responsabilidade legal; Decisão final será sempre do registrador. Uma das importantes conclusões do projeto, foi identificar um aspecto essencial e indispensável do processo registral que é a necessidade do registrador realizar a devida conferência e revisão escrupulosa dos resultados gerados pelos agentes registrais. As ferramentas de IA proporcionam rapidez, agilidade, eficiência e precisão, permitindo que o registrador se concentre em aspectos mais complexos e subjetivos do processo de registro, porém não o substituindo em seu poder decisório, nem exonerando-o das responsabilidades inerentes à atividade. Um aspecto que deve merecer toda a nossa atenção é relacionado com o tema da privacidade e segurança de dados no uso da IA, além das responsabilidades legais e éticas que implicam o uso da IA nos processos de registro. A questão da transparência e da não discriminação nos sistemas de IA é crucial para garantir que a tecnologia seja utilizada de maneira justa e ética. Outro tema relevante é a necessidade de regulamentação específica para a IA, especialmente em áreas que envolvam direitos de personalidade. É necessária e urgente a regulamentação sobre o uso da inteligência artificial no Brasil. O projeto do Novo Código Civil3 inaugura o Livro VI sobre o Direito Civil Digital e, em seu capítulo III, define como "situação jurídica digital toda interação no ambiente digital de que resulte responsabilidade por vantagens ou desvantagens, direitos e deveres entre: Entidades digitais como robôs, assistentes virtuais, inteligências artificiais, sistemas automatizados e outros." O capítulo VII dedica-se especificamente a temas relativos à inteligência artificial. Também estão em tramitação o PL 6.119/234, que trata da alteração do Código Penal para punir fraudes publicitárias utilizando IA, e o PL 2.338/235, que estabelece normas gerais para o desenvolvimento, implementação e uso responsável da IA com foco na proteção de direitos fundamentais, transparência e mitigação de riscos. Conclusões - Uma ruptura paradigmática do sistema registral? Progressivamente, os meios eletrônicos foram se insinuando no processo registral, transformando-o profundamente. Na era digital, deparamo-nos com um ambiente totalmente novo, interdependente, interconectado, interligado full time, gerando impulsos que são percebidos e assimilados por sofisticados sistemas de IoT, gerando padrões estatísticos que nos revelam, por exemplo, distorções que possam ocorrer no processo registral. As novas ferramentas capturam detalhes que os humanos já não podem assimilar, interpretar e processar, especialmente no contexto de avulsão de dados (big data). Já as máquinas podem diagnosticar, de modo automatizado, desconformidades com padrões normativos, legais ou até mesmo com a praxe consolidada nos cartórios. Além disso, é possível identificar ocorrências suscetíveis de especial atenção (Siscoaf, indisponibilidades etc.), robustecendo a segurança do sistema. A partir da especialização de ferramentas de IA é possível obter resultados mais consistentes com o intuito de acelerar a assimilação de conhecimento sobre matérias complexas e extensas, incluindo temas exigidos para análise e qualificação de títulos apresentados para registro. Entretanto, a resposta da máquina depende diretamente da instrução que lhe é fornecida (prompt). Um prompt cuidadosamente elaborado orienta o modelo com mais eficiência na produção da resposta ou do conteúdo almejado, elevando tanto a pertinência quanto a exatidão do resultado. A engenharia de prompts aplicáveis ao Registro de Imóveis fornecerá uma interação mais eficiente com as aplicações de IA. A partir da uniformização e padronização de termos aplicáveis ao registro de imóveis é possível "ensinar" a máquina a assimilar com maior precisão os significados das informações e fornecer resultados muito mais consistentes e adequados. Enfim, são inúmeras as possibilidades de aplicação da IA aos processos de registros. A ferramenta deverá operar como uma espécie de AVR - assistente virtual registral, oferecendo ao registrador apoio em atividades práticas como exame e qualificação do título ou, ainda, na consolidação da situação jurídica atual do imóvel. __________ 1 Business Process Model and Notation (BPMN) é um modelo internacional de representação gráfica de especificação de processos, desenvolvido pela Business Process Management Initiative (BPMI) e mantido pelo Object Management Group (OMG), sendo ratificado também pela International Organization for Standardization (ISO), Norma ISO/IEC 19510 (ISO, 2013). 2 Provimento CNJ 89/2019. Disponível aqui. Acesso em 11/06/2024. 3 Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil. Disponível aqui. Acesso em 11/06/2024. 4 Projeto de lei 6.119/2023. Disponível aqui. Acesso em 11/06/2024. 5 Projeto de lei 2.338/2023. Disponível aqui. Acesso em: 11/06/2024.
Introdução No transcurso do IX Encontro de Direitos Reais, Registral Imobiliário e Notarial, promovido pelo Centro de Estudos Notariais e Registrais da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (CeNoR), realizado entre os dias 22 e 23 de maio deste ano de 2024, buscamos introduzir um tema palpitante que já circula entre os registradores e profissionais que atuam nos Registros de Imóveis brasileiros. A mim coube lançar algumas questões preliminares, aproximando-nos do cerne dos complexos problemas envolvidos na matéria. Na parte II deste trabalho, a cargo da pesquisadora Nataly Cruz, buscou-se demonstrar, na prática, como o uso da ferramenta de IA (Inteligência Artificial) pode integrar-se no processo registral. Os resultados são os frutos da "POC SREI-GEN" ou "Prova de Conceito do SREI Generativo", desenvolvida no âmbito do NEAR-lab - Núcleo de Estudos Avançados de Registro de Imóveis eletrônico. Às portas de Tebas A esfinge da modernidade nos lança uma questão essencial: a máquina substituirá o humano no juízo de qualificação registral? Subordinadas a esta pergunta fundamental, outras podem ser agitadas: Quais os impactos que as novas tecnologias de inteligência artificial (IA) poderão ter nas atividades registrais? Qual a distinção entre automação de tarefas repetitivas (algoritimização e robôs) em comparação com a IA? Como a IA pode se constituir em uma camada de suporte (agentes ou assistentes virtuais) dedicados a cumprir tarefas críticas do processo registral? Como os cartórios darão respostas a demandas da sociedade digital? A IA pode ser uma ferramenta útil e eficaz para dar suporte a tais necessidades? Enfim, ela pode representar um novo ciclo de renovação do sistema registral pátrio? Algoritmo versus IA Nos cartórios já encontramos muitos exemplos de algoritmos (ou BOTs) - programas que executam tarefas específicas, pré-programadas, que funcionam de modo automatizado e sem necessidade de contínua intervenção humana. Essas ferramentas são extremamente úteis para automatizar tarefas repetitivas, com melhoria da eficiência operacional e diminuição de custos, muitas delas sem a direta intervenção humana. Eis alguns exemplos: Pesquisa automática de selos furtados, extraviados e inutilizados. Obtenção de dados cadastrais diretamente da administração pública (apuração de valor venal, de referência, nome oficial de logradouros, inscrição cadastral etc.). Atualização automática da CNIB - Central Nacional de Indisponibilidade de bens. Prenotação de títulos a partir de dados estruturados (XML) e seu aproveitamento para inserção no sistema de registro. Geração automática de certidões e visualização de matrículas (CNS + CNM + contraditório). Distribuição automática de títulos (natureza, complexidade, prazos etc.). Geração de indicadores de desempenho e fluxo interno de rotinas para gestão de processos registrais. Controle de prazos. Aproveitamento dos dados georreferenciados de imóveis urbanos e rurais para locação em plantas cadastrais por sistemas geodésicos de gestão territorial etc. Interconexão com sistema de cadastro de imóveis rurais. Clique aqui e confira a coluna na íntegra.
Recentemente, no final de julho, a 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo, julgou procedente dúvida suscitada por um Oficial de Registro Imóveis, mantendo o óbice ao prosseguimento do pedido de adjudicação compulsória extrajudicial que tinha como objeto instrumento particular de promessa de permuta.1 O caso julgado envolvia um instrumento particular de permuta de imóveis, em que as partes atribuíram, para fins fiscais, a cada um deles, o valor de R$100.000,00, e conferiram, no próprio instrumento particular, recíprocas quitações. Enfrentando dificuldade em obter a escritura pública para transferir o imóvel para o seu nome no Ofício Imobiliário, o primeiro permutante ingressou com o pedido de adjudicação compulsória extrajudicial. Todavia, sobreveio nota devolutiva, desqualificando o título em razão do não cumprimento do requisito da quitação (art. 216-B da lei 6.015/73, e provimento 150 do CNJ), sob o fundamento de que a permuta não se convalidou pela falta de transmissão do imóvel para o segundo permutante. Segundo o Oficial de Imóveis, há ausência da comprovação da quitação, que no caso de permuta, deveria ocorrer por meio da escritura ou do registro do imóvel do primeiro permutante para o segundo permutante. A sentença reputou válida a justificativa apresentada pelo Oficial Registrador para obstaculizar o prosseguimento da adjudicação compulsória extrajudicial, aduzindo que: O fato de o instrumento particular indicar que os contratantes conferem mútua e recíproca quitação não possui o condão de demonstrar que houve o efetivo pagamento, mesmo que a avença tenha sido assinada pelos envolvidos, com reconhecimento de firma; Em se tratando de contrato de permuta de imóveis, o cumprimento da obrigação assumida, com a consequente quitação, somente estaria caracterizada com a efetiva transmissão da propriedade do imóvel do requerente da adjudicação (primeiro permutante) para o requerido (segundo permutante). Com todo respeito à sentença exarada pela 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo, tal entendimento pode levar a inviabilidade do processo de adjudicação compulsória extrajudicial quando essa tiver como objeto promessa de permuta. Explicamos. A adjudicação compulsória extrajudicial tem duas premissas fundamentais previstas nos arts. 1.417 e 1.418 do Código Civil2: O inadimplemento de quem deve outorgar ou receber a escritura e o adimplemento das obrigações contratuais pela parte requerente da adjudicação. Na compra e venda, após pagar todo o preço, o promitente comprador, provando a quitação (adimplemento), pode exigir a outorga da escritura definitiva. E se o promitente vendedor injustificadamente se negar (inadimplemento), o promitente comprador pode ingressar com o pedido de adjudicação compulsória, requerendo o suprimento da manifestação de vontade do vendedor pelo juiz (judicial) ou pelo registrador (extrajudicial). Na permuta não ocorre assim. A permuta, prevista no art. 533, do Código Civil3, configura-se em negócio jurídico de troca de um bem pelo outro. No caso julgado, o primeiro permutante entregou seu imóvel em troca do imóvel do segundo permutante, "taco a taco", sem reposição de valores. Tal troca foi formalizada em instrumento preliminar, em um contrato particular de permuta, no qual as partes se deram mútua quitação e se obrigaram a formalizar a respectiva escritura posteriormente. Perceba-se que, na permuta, a obrigação de outorgar a escritura é uma prestação mútua, que precisa ser cumprida em conjunto. Ambos os contratantes precisam comparecer em um Tabelionato de Notas para firmar um único ato, escritura pública de permuta, onde figuram como outorgantes e reciprocamente outorgados. Ou seja, não há como um permutante cumprir com sua obrigação contratual de transferência definitiva do imóvel sem que o outro também o faça. Diante disso, a análise das premissas fundamentais da adjudicação compulsória na permuta precisa levar em conta as peculiaridades desse negócio jurídico, que é diferente da compra e venda. O STJ, no julgamento do REsp 306012/RJ4, traz essa análise com bastante clareza, ao afirmar que a parte requerente da adjudicação compulsória que tem como objeto promessa de permuta cumpre com sua obrigação contratual (adimplemento) ao apresentar a documentação imprescindível à lavratura da escritura definitiva. Ora, diz o STJ, "se os autores/reconvintes adimpliram a sua prestação, nada mais justo do que reclamem o cumprimento integral da promessa de permuta. Podiam valer-se tanto da ação de adjudicação compulsória como da via aberta pelos arts. 639/641 do Código de Processo Civil." Assim, a prova da quitação na adjudicação compulsória envolvendo a promessa de permuta, a prova do adimplemento, se dá com a efetiva disponibilidade de um dos permutantes em cumprir com sua obrigação contratual de outorgar a escritura à outra parte. Ou seja, como diz o STJ, com a apresentação da documentação imprescindível à lavratura da escritura definitiva. Veja-se que não é possível que a prova da quitação se dê com a efetiva transferência do bem para a outra parte. Tratando-se de obrigação mútua, a ser cumprida simultaneamente no mesmo ato, é impossível que apenas um dos permutantes formalize o ato sem a presença e concordância do outro. A quitação, o adimplemento contratual, na permuta, se dá com a apresentação da documentação imprescindível à lavratura da escritura definitiva por um dos permutantes. E havendo resistência do outro permutante em realizar a escritura de permuta, está caracterizado o inadimplemento contratual, e o remédio é a adjudicação compulsória, como bem mencionou o STJ. Na via extrajudicial, as premissas fundamentais da adjudicação compulsória extrajudicial, a prova da quitação (adimplemento) e o inadimplemento de quem deve outorgar a escritura, são atestadas na ata notarial, pelo Tabelião de Notas (art. 216-B, inciso III, da lei 6.015/73).5 Dessa forma, na ata notarial envolvendo instrumento particular de promessa de permuta, o Tabelião de Notas irá atestar a quitação, o adimplemento da parte requerente, demonstrando que foi apresentada a documentação necessária à lavratura da escritura, documentação essa apta a comprovar que não pendem ônus ou indisponibilidades que possam inviabilizar o cumprimento da prestação contratual por parte do requerente, qual seja, a transferência do seu imóvel para a parte requerida. Ademais, com a intenção de criar uma prova de quitação ainda mais robusta e configurá-la dentre de uma das formas de quitação previstas no art. 440-G, do provimento 150, do CNJ, que regulamenta a adjudicação compulsória extrajudicial, é possível utilizar-se do inciso VII, que passa muitas vezes desapercebido e parece ter sido criado justamente para o caso da permuta. O referido inciso prevê a "notificação extrajudicial destinada à constituição em mora" como forma de provar da quitação. Assim, se um dos permutantes notifica extrajudicialmente o outro permutante para que ele compareça a um Tabelionato de Notas e firme a escritura pública de permuta, e o permutante notificado se nega ou queda silente, está constituída a mora e caracterizadas, concomitantemente, as duas premissas da adjudicação: A quitação e o inadimplemento contratual. A notificação comprova a efetiva disponibilidade de um dos permutantes em cumprir com sua obrigação contratual de outorgar a escritura. Aliada a apresentação da documentação imprescindível à lavratura da escritura definitiva, mostrando a inexistência de ônus e a disponibilidade do imóvel a ser transferido, a notificação torna a prova da quitação robusta e irrefutável. Portanto, no caso analisado nesse artigo, a quitação mútua conferida dentro do próprio instrumento particular de permuta, somada à apresentação da documentação necessária à lavratura da escritura definitiva e a eventual constituição em mora pela notificação extrajudicial, seria suficiente para provar a quitação, viabilizando o pedido de adjudicação compulsória extrajudicial. É oportuno salientar que não se desconhece julgados que consideram nulo o contrato preliminar, no qual o imóvel ultrapasse o valor de 30 salários-mínimos, por ferir o art. 108 do Código Civil, que exige escritura pública para transmissão de imóveis neste valor. Nessa linha, poder-se-ia tentar argumentar que o contrato particular de permuta objeto da discussão é nulo. Com todo respeito a esse entendimento, consideramos que ele se afasta do melhor direito, já que o contrato preliminar para compra de imóveis não opera a transferência definitiva do bem e é autorizado pelos arts. 463 e 1.418, do Código Civil. Nesta linha de entendimento, é o Código de Normas Extrajudiciais da Corregedoria Geral de Justiça de Santa Catarina: Art. 1.007. O pagamento integral do preço, ainda que à vista, não descaracteriza a natureza preliminar do contrato, devendo, neste caso, firmar declaração de ciência de que deverá providenciar a escritura pública e seu registro para transmissão da propriedade. Dessa forma, não sendo considerado nulo o instrumento particular de permuta de imóveis que ultrapassam o valor de 30 salários-mínimos, e sobrevindo a quitação através da documentação apresentada ao Tabelião, mostrando a inexistência de ônus e a disponibilidade do imóvel a ser transferido, bem como através de eventual notificação extrajudicial que constitui em mora o requerido, deve a adjudicação compulsória extrajudicial seguir seu curso, sob pena de inviabilizar o instituto quando ela tiver como objeto contrato de permuta. É o que pensamos, respeitadas as opiniões contrárias. ________ 1 1VRPSP - Dúvida: 1070764-48.2024.8.26.0100. Localidade: São Paulo Data de Julgamento: 23/07/2024 Data DJ: 26/07/2024. Relator: Rodrigo Jae Hwa An 2 Art. 1.417. Mediante promessa de compra e venda, em que se não pactuou arrependimento, celebrada por instrumento público ou particular, e registrada no Cartório de Registro de Imóveis, adquire o promitente comprador direito real à aquisição do imóvel. Art. 1.418. O promitente comprador, titular de direito real, pode exigir do promitente vendedor, ou de terceiros, a quem os direitos deste forem cedidos, a outorga da escritura definitiva de compra e venda, conforme o disposto no instrumento preliminar; e, se houver recusa, requerer ao juiz a adjudicação do imóvel. 3 Art. 533. Aplicam-se à troca as disposições referentes à compra e venda, com as seguintes modificações: I - salvo disposição em contrário, cada um dos contratantes pagará por metade as despesas com o instrumento da troca; II - é anulável a troca de valores desiguais entre ascendentes e descendentes, sem consentimento dos outros descendentes e do cônjuge do alienante. 4 CONTRATO DE PROMESSA DE PERMUTA. RECUSA DOS RÉUS/RECONVINTES EM OUTORGAR A ESCRITURA DEFINITIVA. IMPROCEDÊNCIA DOS MOTIVOS ALEGADOS. EXECUÇÃO ESPECÍFICA. ARTS. 639 E 641 DO CPC. - Se o devedor não cumpre a obrigação, improcedente que é o motivo embasador de sua recusa à outorga da escritura definitiva, ao credor é lícito obter a condenação daquele a emitir a manifestação de vontade a que se obrigou, sob pena de, não o fazendo, produzir a sentença o mesmo efeito da declaração não emitida. Precedentes do STJ. Recurso especial interposto pelos réus/reconvintes não conhecido; recurso dos autores/reconvindos conhecido, em parte, e providos. (REsp n. 306.012/RJ, relator Ministro Barros Monteiro, Quarta Turma, julgado em 10/9/2002, DJ de 17/3/2003, p. 234.) 5 Art. 216-B. Sem prejuízo da via jurisdicional, a adjudicação compulsória de imóvel objeto de promessa de venda ou de cessão poderá ser efetivada extrajudicialmente no serviço de registro de imóveis da situação do imóvel, nos termos deste artigo.   (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022) (...) III - ata notarial lavrada por tabelião de notas da qual constem a identificação do imóvel, o nome e a qualificação do promitente comprador ou de seus sucessores constantes do contrato de promessa, a prova do pagamento do respectivo preço e da caracterização do inadimplemento da obrigação de outorgar ou receber o título de propriedade; (Incluído pela lei 14.382, de 2022) (grifo nosso)
1. Introdução O instrumento de mandato apresentado junto a incorporação imobiliária é um documento de extrema importância, daqui inicia todo os direitos e deveres sob o qual um empreendimento imobiliário é planejado, desenvolvido e comercializado, envolvendo a construção ou reabilitação, visando à construção ou reforma de edifícios, com o objetivo de vendê-los posteriormente, com a finalidade de dividir o terreno em unidades autônomas que são vendidas a futuros proprietários, este procedimento requer a apresentação dos projetos aprovados, memoriais e quadros técnicos dentre outros documentos que serão arquivados perante o Cartório de Registro de Imóveis, assegurando aos compradores direitos específicos e garantias legais, enquanto o incorporador assume direitos e deveres. 2. O Incorporador Os incorporadores são pessoas físicas ou jurídicas responsáveis por iniciar e coordenar o processo de incorporação imobiliária. Geralmente, eles criam uma SPE - Sociedade de Propósito Específico para esse fim. A SPE é uma entidade criada para um fim específico, neste caso, para realizar a incorporação imobiliária, o que permite aos incorporadores separar as responsabilidades e os riscos associados ao empreendimento imobiliário. Dessa forma, o incorporador também pode ser o próprio construtor, o proprietário do terreno, o promitente comprador, o cessionário deste ou promitente cessionário com título que satisfaça os requisitos da alínea "a" do art. 32, o construtor, corretor de imóveis e o ente da Federação imitido na posse a partir de decisão proferida em processo judicial de desapropriação em curso ou o cessionário deste, conforme comprovado no registro de imóveis competente.          Com efeito, o incorporador é uma empresa especializada ou um grupo de investidores responsáveis por toda a execução do projeto, desde a obtenção das licenças necessárias até a entrega final das unidades aos compradores, os compradores têm direitos assegurados por lei, como informações claras sobre o empreendimento, cronograma de obras, condições de pagamento, entre outros, o incorporador deve oferecer garantias, como o patrimônio de afetação, que protege os compradores em caso de falência ou problemas na execução do empreendimento, investido de poderes nos termos da letra "m" do art. 32 da lei 4.591/64 certidão do instrumento público de mandato, referido no §1º do art. 31; §1º do artigo 31 da lei 4.591/64... "A iniciativa e a responsabilidade das incorporações imobiliárias caberão ao incorporador, que somente poderá ser": "No caso da alínea b (construtor), "o incorporador será investido, pelo proprietário de terreno, o promitente comprador e cessionário deste ou o promitente cessionário, de mandato outorgado por instrumento público, onde se faça menção expressa desta lei e se transcreva o disposto no § 4º, do art. 35, para concluir todos os negócios tendentes à alienação das frações ideais de terreno, mas se obrigará pessoalmente pelos atos que praticar na qualidade de incorporador". Por outro lado, o art. 32 da lei 4.591/64, ensina que: "incorporador somente poderá negociar sobre unidades autônomas após ter arquivado, no cartório competente de Registro de Imóveis, os seguintes documentos". Letra m) Certidão do instrumento público de mandato, referido no §1º do art. 31. Em face disso, é obrigatório a transcrição literal da menção expressa no instrumento de mandato ipsis litteris disposto no §4º, do art. 35 da lei 4.591/64, isso assegura que todos os termos e condições legais estejam explicitamente definidos nos atos pessoais que praticar na qualidade de incorporador. Desse modo, abordaremos um modelo literal de transcrição no instrumento de mandato: Pelo presente instrumento público de mandato, [Nome do Outorgante], portador do RG nº [Número do RG] e CPF nº [Número do CPF], residente e domiciliado na [Endereço completo], doravante denominado OUTORGANTE, nomeia e constitui seu bastante procurador [Nome do Procurador], portador do RG nº [Número do RG] e CPF nº [Número do CPF], residente e domiciliado na [Endereço completo], doravante denominado OUTORGADO, com poderes específicos para representá-lo em todos os atos relacionado a direitos e deveres necessários à alienação das frações ideais de terreno, nos termos da lei [Número da lei], onde se faça menção expressa desta lei e se transcreva o disposto no § 4º, do art. 35, (Art. 35. O incorporador terá o prazo máximo de 45 dias, a contar do termo final do prazo de carência, sublinhamos... se houver, para promover a celebração do competente contrato relativo à fração ideal de terreno, e, bem assim, do contrato de construção e da Convenção do condomínio, de acordo com discriminação constante da alínea "i", do art. 32. (vide lei 4.864/65 que altera o prazo máximo concedido ao incorporador para 60 dias), "§4º Descumprida pelo incorporador e pelo mandante de que trata o §1º do art. 31 a obrigação da outorga dos contratos referidos no caput deste artigo, nos prazos ora fixados, a carta-proposta ou o documento de ajuste preliminar poderão ser averbados no Registro de Imóveis, averbação que conferirá direito real oponível a terceiros, com o consequente direito à obtenção compulsória do contrato correspondente)" obrigando-se o OUTORGANTE pelos atos que o OUTORGADO praticar na qualidade de incorporador. Local e data. [Assinatura do Outorgante] Além da transcrição, o §1º do art. 35 da lei 4.951/694, retrata também que: No caso de não haver prazo de carência, o prazo acima se contará da data de qualquer documento de ajuste preliminar. Sendo assim, inexistindo no processo de registro do memorial de incorporação a declaração expressa do prazo de carência, a incorporação torna se irretratável desde o momento em que o incorporador negociar qualquer unidade do memorial de incorporação, nesse sentido, o professor Tucci1 citando o professor Caio Mário da Silva Pereira, demonstrou que com a venda: "A fração do terreno está comprometida, a construção contratada e as benfeitorias compromissadas. Não tem mais cabida o exercício de um direito de liberar-se" Ainda nesse interim, o §4º do art. 35 da lei 4.591/64, foi dividido em quatro partes de extrema importância que são: Descumprimento da obrigação de outorga: Quando o incorporador (a pessoa jurídica responsável pela incorporação) e o mandante (quem contratou o incorporador para realizar a incorporação) não cumprem o dever de formalizar (outorgar) os contratos nos prazos estabelecidos. Averbação no Registro de Imóveis: Em caso de descumprimento, a carta-proposta ou documento de ajuste preliminar podem ser registrados no Registro de Imóveis. A averbação é um ato formal que torna pública a informação e confere um direito real sobre o imóvel. Direito real oponível a terceiros: A averbação cria um direito real que pode ser invocado por terceiros interessados no imóvel. Isso significa que os adquirentes potenciais podem usar esse direito registrado contra quaisquer outros interessados no mesmo imóvel. Direito à obtenção compulsória do contrato correspondente: Esse direito decorre da averbação e permite que os terceiros interessados busquem judicialmente a obtenção do contrato prometido (carta-proposta ou documento de ajuste preliminar). Mesmo que o incorporador ou mandante não queiram cumprir, o direito registrado no Registro de Imóveis possibilita a exigência desse cumprimento. 3. A substituição do incorporador e/ou transferência do terreno (direitos, deveres e a boa-fé) Pois bem, a lei 4.591/64, que dispõe sobre as incorporações imobiliárias, não especifica um artigo único que autorize expressamente a cessão de direitos da incorporação. No entanto, a cessão de direitos é entendida como um ato jurídico possível dentro do contexto das incorporações imobiliárias, e isso é reconhecido tanto pela doutrina quanto pela prática registraria. Para melhor entendimento, o instituto da cessão de direitos está inserido no conjunto de normas que regulam as incorporações imobiliárias como um todo. Em geral, a lei prevê que o incorporador pode transferir seus direitos e obrigações para terceiros mediante a formalização de um instrumento adequado, que pode ser uma cessão de direitos ou um contrato de transferência de incorporação. Portanto, embora a lei não mencione diretamente "cessão de direitos", a transferência de direitos do incorporador pode ser efetuada com base nos princípios gerais da lei, desde que respeitados os direitos dos compradores originais e as disposições contratuais estabelecidas no momento da venda das unidades. A doutrina jurídica brasileira do professor Rizzardo2 ensina que: Na incorporação imobiliária, a cessão de direitos é um instituto importante, que permite ao incorporador transferir seus direitos e obrigações a terceiros, desde que observadas as disposições contratuais e legais. Essa transferência pode ocorrer em diversas fases do empreendimento, inclusive após a venda das unidades, sempre resguardando os direitos dos adquirentes originais das unidades imobiliárias. Nesse sentido, a transferência dos direitos e deveres da incorporação deve ser irrevogável, para que isso ocorra, o cessionário deve demonstrar que assume a posição de incorporador, cumprindo todos os requisitos estipulados nos arts. 31, e 32 da lei 4.591/64, nas alíneas b, f e m que trata certidão do instrumento público de mandato, referido no § 1º do art. 31, assim como no art. 35, §4º. Tais condições devem estar explicitamente transcritas na procuração, permitindo ao cessionário realizar todos os negócios relacionados à alienação das frações ideais de terreno. É essencial ressaltar que o cessionário assumirá pessoalmente a responsabilidade pelos atos praticados na qualidade de incorporador. Noutro giro, o professor Tucci3, em seu brilhante artigo, "Contrato de Incorporação Imobiliária" publicado na revista de Direito Imobiliário, enfatiza que: "no título de cessão dos direitos de mandato deve estar claramente especificado que a cedente aliena, cede e transfere todos os direitos e obrigações da incorporação registrada sob determinado número na matrícula, e que a cessionária aceita e recebe todos os direitos e obrigações relacionados à incorporação". Além disso, a cessão completa dos direitos e deveres do incorporador original em contratos de incorporação imobiliária é um processo que demanda a anuência dos adquirentes das unidades, que são os credores desses direitos. Por isso, sem a aprovação prévia dos credores, o incorporador original pode continuar a ser responsabilizado pelos encargos do empreendimento, mesmo após a cessão. Isso ocorre porque ele inicialmente assumiu essas responsabilidades e compromissos perante os adquirentes das unidades. Isso significa dizer, que ao transferir os direitos do incorporador antigo para um novo, não apenas os créditos são passados adiante, mas também todas as obrigações associadas ao projeto, como cumprimento de prazos, responsabilidades financeiras e garantias oferecidas aos compradores, essa transferência não ocorre automaticamente e depende do consentimento explícito dos compradores das unidades, que precisam concordar com a mudança de incorporador para garantir que suas expectativas e direitos sejam protegidos ao longo do desenvolvimento do empreendimento. O Ilustre registrador Mario Pazzutti Mezzari4, entende que: Todos que tenham direitos e contratos relativos às frações ideais do empreendimento deverão concordar com a mudança, mas, para o registrador de imóveis a verificação de unanimidade será feira apenas a partir dos atos que estiverem registrados na matrícula do imóvel. Do promitente comprador que registrar seu contrato deverá obrigatoriamente, ser juntada sua concordância com a mudança. Aqueles promitentes que não buscaram o resguardo do registro não serão por eles protegidos. O registrador nada exigirá dos que não estiverem no registro pertinentes ao empreendimento, mas, por evidente, não considerará irregular o documento que contenha a assinatura não só dos que registraram, mas também daqueles que não registraram seus contratos. Quod abundam non nocit!5 Aqui o professor Mario Pazzutti Mezzari6 ainda ensina que: A substituição poderá ocorrer sem que haja mudança na situação dominial do terreno, ou seja, muda o incorporador, mas não muda o proprietário do terreno. Neste caso havendo a concordância a que no referimos acima, será averbada no registro da incorporação a mudança da pessoa do incorporador, que apresentará o instrumento do contrato de substituição, bem como todas as certidões e declarações no exigidas no art. 32 da lei de condomínio e incorporações exigidas relativas ao novo incorporador, por certo não serão exigidas mudanças no projeto, no memorial ou nos quadros de cálculos, pois estes não serão atingidos pela substituição. Desse modo, a substituição do incorporador pode ocorrer sem alterar a propriedade do terreno, com a concordância necessária dos promitentes registrados, o novo incorporador deve averbar a mudança, acompanhado do instrumento de mandato de substituição e de todas as certidões exigidas por lei, não será necessário modificar o projeto, memorial descritivo, quadros de cálculos, desde que seja declarado expressamente que não haverá alterações nesses documentos. Por outro lado, para efetuar a venda do terreno e do empreendimento, é necessário seguir um processo bem definido e preparar a documentação adequada, os interessados devem formalizar a transferência do terreno e a transferência dos direitos e obrigações relacionados à incorporação registrada por meio de uma escritura pública. Inicialmente, deve existir uma escritura pública do terreno incorporado, juntamente com a transferência dos direitos e obrigações da incorporação, este documento especificará todos os detalhes da transação, incluindo a descrição precisa do terreno e os termos da transferência da incorporação. Após a assinatura da escritura pública, o próximo passo é registrar a transferência do terreno no Cartório de Registro de Imóveis competente, este registro é essencial para formalizar legalmente a mudança de propriedade. Ao mesmo tempo, é necessário averbar a transferência dos direitos e obrigações da incorporação no Cartório de Registro de Imóveis, esta averbação atualizará os registros existentes sobre a incorporação, garantindo que todas as partes interessadas estejam informadas sobre a mudança na titularidade e nas responsabilidades associadas. É importante notar que, se o condomínio estiver instituído, com a especificação das unidades e a convenção registrada, a incorporadora atual não poderá vender o terreno e transferir os direitos e obrigações da incorporação sem o consentimento prévio dos compradores das unidades autônomas. Caso algumas unidades já tenham sido vendidas a terceiros, é viável realizar uma transferência parcial dos direitos e obrigações da incorporação, desde que haja consentimento explícito desses compradores ou dos futuros compradores das unidades autônomas. Portanto, a transparência e a formalidade na transferência de direitos e deveres são cruciais para evitar disputas legais e para garantir a continuidade e a segurança do projeto imobiliário. É fundamental que o novo contrato de cessão seja elaborado de maneira detalhada e clara, especificando todos os aspectos da transação inclusive os documentos dispostos no art. 32 da lei de condomínios, incluindo responsabilidades financeiras, prazos de entrega e garantias oferecidas aos compradores, para que todas as partes envolvidas estejam plenamente informadas e concordem com as alterações propostas. Em última síntese, na escritura pública, os direitos resultantes da incorporação deve-se realizada com alguns cuidados, como para que seja devidamente esclarecida a circunstância registraria, nas lições do professor Tucci7, aplicando os ensinamento do 14º Oficial de Registro de São Paulo, ensina que: "pelo outorgante me foi dito mais que ainda por esta escritura e melhor forma de direito, sub-roga-se na pessoa da outorgada, todos os direitos e obrigações advindos do alvará n. tal, bem como da incorporação referente ao futuro condomínio edilício presidente Juscelino, o qual está devidamente registrado sob o n. tal...da matrícula n. tal, da serventia tal" 4. Incorporador com poderes para instituição e convenção de condomínio/carta de habite-se Desse modo, vimos também que a incorporadora investida de mandato pode requerer o registro do memorial, instituição e convenção do condomínio edilício nos termos do art. 44, §1 e §2 da lei 4.591/64, "Após a concessão do "habite-se" pela autoridade administrativa, o incorporador deverá requerer, (VETADO) a averbação da construção das edificações, para efeito de individualização e discriminação das unidades, respondendo perante os adquirentes pelas perdas e danos que resultem da demora no cumprimento dessa obrigação". "Se o incorporador não requerer a averbação o construtor requerê-la-á sob pena de ficar solidariamente responsável com o incorporador perante os adquirentes". "Na omissão do incorporador e do construtor, a averbação poderá ser requerida por qualquer dos adquirentes de unidade". 5. Irrevogabilidade do mandato de incorporador O mandato concedido para a incorporação imobiliária é irrevogável, conforme estabelecido pelo CC. Ainda que a lei 4.591/64 não mencione explicitamente essa irrevogabilidade, ela se fundamenta nas disposições gerais do CC, especialmente no parágrafo único do art. 686. Esse dispositivo legal determina que mandatos que incluem poderes para cumprir ou confirmar negócios já iniciados são considerados irrevogáveis. Nesse ínterim, estabelece-se uma relação bilateral entre o proprietário do terreno e o incorporador por meio de um contrato que delimita obrigações, direitos inclusive os de natureza pecuniária de ambos os intervenientes. Com base no mandato conferido pelo proprietário, o incorporador tem a incumbência de negociar com as autoridades públicas, contratar profissionais especializados e, de maneira crucial, proceder à alienação das futuras unidades autônomas e sua fração ideal de terreno. Para o professor Mario Pazzutti Mezzari8: Em se tratando de mandato irrevogável, não se extingue nem mesmo com a morte do mandante. Seus sucessores sub-rogar-se-ão em seus direitos e obrigações, mas o mandato permanecerá gerando os efeitos necessários à efetivação da incorporação e de todos os negócios, atos e contratos a ela inerentes. O registro da incorporação imobiliária, com arquivamento de documentos, projetos, memoriais etc., foi criado para proteger os futuros adquirentes de unidades autônomas, e estes não podem ser prejudicados pela morte do mandante proprietário do terreno. O incorporador e os compradores não ficarão à mercê dos herdeiros ou sucessores do mandante, nem participará de suas eventuais brigas ou discordâncias quanto à partilha dos bens. O registrador de imóveis em sua obra ainda ensina que9:  (...) O legislador poderia ter incluído no citado §1º do art. 31 da lei 4.591, de 1964, que o incorporador será investido de mandato 'irrevogável', chamando a atenção para esse fato e obrigando que o mesmo constasse, como cláusula expressa, no instrumento a ser lavrado pelo Notário. Dessa maneira, deixaria inequívoca a natureza do mandato outorgado, espancaria dúvidas e eliminaria o risco de que alguém, desavisadamente, venha a tentar revogar tal tipo de procuração. Mas, mesmo não constando na lei especial, obedece à regra geral do parágrafo único do art. 606 do Código Civil e é, portanto, um mandato irrevogável. Dessa forma, embora a lei de incorporação imobiliária não mencione explicitamente a irrevogabilidade do mandato concedido ao incorporador, essa característica é inferida a partir das disposições gerais do CC brasileiro. O mandato irrevogável permite ao incorporador conduzir a incorporação imobiliária de maneira contínua e ininterrupta, mesmo em caso de morte do mandante, assegurando a proteção dos interesses dos compradores das unidades autônomas. O registro da incorporação imobiliária desempenha um papel crucial nesse processo, garantindo a transparência e a segurança jurídica necessária. 6. Conclusão A análise minuciosa dos poderes e limitações no instrumento de mandato na incorporação imobiliária, revela sua essencialidade na estruturação de empreendimentos desse tipo, regido pela lei 4.591/64 e pelo CC, o mandato confere ao incorporador a responsabilidade integral desde o início até a conclusão do projeto, garantindo direitos aos compradores e estabelecendo obrigações cristalina ao incorporador. A irrevogabilidade do mandato emerge como um princípio fundamental para a estabilidade jurídica do processo, assegurando que a continuidade da incorporação não seja comprometida por mudanças na relação entre o incorporador e o mandante. Além disso, a obrigação de registrar/averbar todos os documentos pertinentes no Cartório de Registro de Imóveis visa proteger os adquirentes, conferindo-lhes direitos legalmente oponíveis a terceiros em caso de descumprimento das obrigações pelo incorporador. Embora a legislação não preveja explicitamente a cessão de direitos de direitos do incorporador, essa prática é reconhecida pela doutrina e pela prática registral, desde que seja respeitada a integridade dos direitos dos compradores originais e formalizados os instrumentos de transferência de forma transparente e extremamente meticulosa. Por fim, a definição clara da meticulosidade dos limites da substituição, cessão, poderes e irrevogabilidade expressos no mandato do incorporador para o registro/averbação desses atos, não apenas estabelece de maneira precisa as responsabilidades direitos e deveres do incorporador, mas também destaca a importância da estrita conformidade com as normas legais e a boa-fé, isso ampara a segurança jurídica de todos os interessados nas frações ideais durante o registro do memorial de incorporação conduzido pelo incorporador imobiliário. ________ 1 TUCCI, Rogerio Lauria. RDI n. 3 - Contrato de Incorporação Imobiliária:  São Paulo, n. 3, Janeiro-Junho de 1979, páginas 58 a 61, disponível aqui. Acesso em: 18 de julho 2023. 2 RIZZARDO, Arnaldo. Direito das Coisas. 7. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2022. p. 456. 3 TUCCI, Rogerio Lauria. RDI n. 3 - Contrato de Incorporação Imobiliária:  São Paulo, n. 3, Janeiro-Junho de 1979, páginas 58 a 61, disponível aqui. Acesso em: 18 de julho 2023. 4 MEZZARI, Mario Pazutti. "Condomínio e Incorporação no Registro de Imóveis", 3ª ed., Norton Editor, Porto Alegre, 2010, p. 90. 5 Ter em abundância, em excesso, não faz mal; quanto mais melhor. Origem etimológica: locução latina que significa "o que é de mais não prejudica". "quod abundat non nocet", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa 2008-2024, disponível aqui. Acesso em: 19 de setembro de 2024. 6 MEZZARI, Mario Pazutti. "Condomínio e Incorporação no Registro de Imóveis", 3ª ed., Norton Editor, Porto Alegre, 2010, p. 90. 7 TUCCI, Rogerio Lauria. RDI n. 3 - Contrato de Incorporação Imobiliária:  Brasília, n. 3, Jan-Junho de 1979, Pgs, páginas 58 a 61, disponível aqui. Acesso em: 18 de julho 2023. 8 MEZZARI, Mario Pazutti. "Condomínio e Incorporação no Registro de Imóveis", 3ª ed., Norton Editor, Porto Alegre, 2010, p. 133 e 134). 9 MEZZARI, Mario Pazutti. "Condomínio e Incorporação no Registro de Imóveis", 3ª ed., Norton Editor, Porto Alegre, 2010, p. 133 e 134).
Resumo Tendo em vista a extensão deste texto, convém começar o presente texto resumindo, em frases diretas, as ideias principais. Segue resumo das ideias do texto: 1. Já tratamos do cenário dos juros remuneratórios e dos juros moratórios após a Lei dos Juros Legais (lei 14.905/2024) em artigo anterior publicado na coluna Migalhas Notariais Registrais, ao qual remetemos o leitor. 2. O teto dos juros moratórios convencionais é o dobro dos juros moratórios legais (art. 1º da Lei de Usura). É irrelevante a previsão do art. 5º da Lei de Usura, seja por ter sido revogado tacitamente pelo novo art. 406 do CC (na redação da Lei dos Juros Legais), seja por força de interpretação sistemática. 3. No caso de cédulas ou notas rurais, industriais ou comerciais, o limite máximo dos juros moratórios legais é o resultado do acréscimo de 1% ao teto dos juros remuneratórios permitidos para esses tipos de obrigações, em razão de lei especial (art. 5º, parágrafo único, decreto-lei 167/1967; art. 5º, parágrafo único, do decreto-lei 413/1969; art. 5º da lei 6.840/1980). 4. O entendimento acima é coerente com a orientação jurisprudencial do STJ anteriormente à Lei dos Juros Legais, a qual deve ser mantida com as adaptações cabíveis.  Limite dos juros moratórios convencionais Após a Lei dos Juros Legais (lei 14.905/2024), indaga-se: qual é o índice aplicável para os juros moratórios legais? E qual é o teto para os juros moratórios convencionais? E como fica o art. 5º da Lei de Usura (decreto 22.626/1933), que estabelece que "pela mora dos juros contratados estes sejam elevados de 1% e não mais"? A pergunta aqui volta-se a obrigações civis comuns. Não alcança as dívidas perante instituições financeiras e demais instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil (Bacen) à vista do seu regime jurídico especial. Em anterior artigo, de 34 páginas, já respondemos a essa pergunta, detalhando todo cenário desenhado pela Lei dos Juros Legais (lei 14.905/2024), que entrará em vigor no final de agosto. Indicamos que os juros moratórios legais é o resultado positivo da seguinte equação: Taxa Selic - IPCA. É o §§ 1º e 3º do art. 406 do CC: Art. 406.  Quando não forem convencionados, ou quando o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, os juros serão fixados de acordo com a taxa legal. (Redação dada pela lei 14.905, de 2024)   Produção de efeitos § 1º  A taxa legal corresponderá à taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (Selic), deduzido o índice de atualização monetária de que trata o parágrafo único do art. 389 deste Código. (Incluído pela lei 14.905, de 2024)   Produção de efeitos § 2º A metodologia de cálculo da taxa legal e sua forma de aplicação serão definidas pelo Conselho Monetário Nacional e divulgadas pelo Banco Central do Brasil. (Incluído pela lei 14.905, de 2024) § 3º  Caso a taxa legal apresente resultado negativo, este será considerado igual a 0 (zero) para efeito de cálculo dos juros no período de referência. (Incluído pela lei 14.905, de 2024)   Produção de efeitos E apontamos que as partes podem pactuar juros moratórios convencionais até o dobro dos supracitados juros moratórios legais, conforme art. 1º da Lei de Usura (decreto 22.626/1933), que - no nosso entendimento - estabelece teto para todas as espécies de juros (remuneratórios e moratórios): Art. 1º É vedado, e será punido nos termos desta lei, estipular em quaisquer contratos taxas de juros superiores ao dobro da taxa legal (Cod. Civil, art. 1.062). A tese - por nós defendida - no sentido de que os juros moratórios convencionais é o dobro dos legais na forma do art. 1º da Lei de Usura já havia sido anunciada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) nestes julgados abaixo, que fixavam, como teto, o dobro dos juros legais da época (que era de 0,5% ao mês à luz do art. 1.062 do CC/19161, que era a norma aplicável aos casos concretos apreciados): DIREITO CIVIL. EXECUÇÃO DE TRIPLICATAS. JUROS. DISCIPLINA LEGAL. JUROS LEGAIS. JUROS MORATÓRIOS. LIMITE. DOBRO DA TAXA LEGAL. CC, ARTS. 1.062 E 1.262. LEI DE USURA. FLUÊNCIA DOS JUROS A PARTIR DO VENCIMENTO. RECURSO PROVIDO. - O limite legal previsto no art. 1º do decreto 22.626/33, c/c 1.062 do Código Civil, permite a pactuação de juros moratórios em 12% ao ano, ou 1% ao mês [ou seja, o dobro dos juros moratórios legais à época, que eram de 0,5% ao mês], em títulos cambiariformes, sendo a sua cobrança devida desde o vencimento até o efetivo pagamento. (STJ, REsp n. 172.790/PR, 4ª Turma, Rel. Min. Salvio de Figueiredo Teixeira, DJ de 16/8/1999) RECURSO ESPECIAL. JUROS DE MORA. TAXAÇÃO. É vedada a estipulação de taxa de juros superior ao dobro da taxa legal de 6% ao ano (CC, art. 1062; Decreto 22.626/33, art. 1.). Recurso conhecido e provido. (STJ, REsp n. 1.497/RJ, 3ª Turma, Rel. Min. Gueiros Leite, Terceira Turma, DJ de 9/4/1990) AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROMESSA DE COMPRA E VENDA. JUROS DE MORA. 1% AO MÊS. VIGÊNCIA DO CC/16. LEGALIDADE. FORMA PACTUADA 1. A jurisprudência da Corte considera legal a cobrança dos juros moratórios no percentual de 1% ao mês [ou seja, o dobro dos juros moratórios legais à época, que eram de 0,5% ao mês], na vigência do Código Civil de 1916, desde que pactuado. 2. Agravo regimental a que se nega provimento. (STJ, AgRg no Ag n. 523.073/RJ, relator Ministro Vasco Della Giustina (Desembargador Convocado do TJ/RS), Terceira Turma, julgado em 15/10/2009, DJe de 5/11/2009) CIVIL. CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. COBRANÇA. JUROS MORATÓRIOS. TAXA CONVENCIONADA. ART. 1.062 CÓDIGO CIVIL. LIMITAÇÃO. LEI DE USURA (DECRETO N. 22.626/33). INCIDÊNCIA. I. A taxa de juros moratórios contratada deve ser observada, desde que não ultrapassado o limite legal de 12% ao ano previsto na Lei de Usura [ou seja, o dobro dos juros moratórios legais à época, que eram de 0,5% ao mês]. II. Recurso especial conhecido e provido. (STJ, REsp n. 380.453/RS, relator Ministro Aldir Passarinho Junior, Quarta Turma, julgado em 1/4/2003, DJ de 30/6/2003, p. 254.) AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO REVISIONAL. CONTRATO DE CRÉDITO EDUCATIVO. OMISSÃO NO ACÓRDÃO RECORRIDO. INOCORRÊNCIA. JUROS MORATÓRIOS. LIMITAÇÃO. INADMISSIBILIDADE. JUROS REMUNERATÓRIOS. REEXAME DE PROVAS. SUCUMBÊNCIA RECÍPROCA. INOCORRÊNCIA. (...) II - Admite-se a cobrança de juros moratórios à taxa de 12% ao ano quando pactuado no contrato [ou seja, o dobro dos juros moratórios legais à época do caso concreto - regido pelo CC/1916 -, ou seja, o dobro de 0,5% ao mês]. (...) Recurso improvido. (AgRg no Ag n. 706.093/RS, relator Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma, julgado em 23/9/2008, DJe de 13/10/2008.) Agravo regimental. Recurso especial. Alienação fiduciária. Comissão de permanência. Limitação ao pacto. Juros de mora. Súmula nº 294 da Corte. (...) 2. Quanto aos juros moratórios, a jurisprudência da Corte considera legal a cobrança no percentual de 1% ao mês, desde que pactuado [ou seja, o dobro dos juros moratórios legais à época, que eram de 0,5% ao mês]. O acórdão, porém, não evidencia a existência do referido pacto, não podendo, portanto, ser deferida a pretensão recursal nesse aspecto. 3. Agravo regimental desprovido. (AgRg no REsp n. 602.437/RS, relator Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, Terceira Turma, julgado em 3/8/2004, DJ de 16/11/2004, p. 277.) Ação de revisão de contrato. Trânsito em julgado da sentença que julgou procedente ação de busca e apreensão. Decisão de ofício. Juros remuneratórios. Capitalização. Juros moratórios. Comissão de permanência. Precedentes da Corte. (...) 4. Os juros moratórios podem alcançar até 12% ao ano, quando assim pactuados, como ocorre neste caso [ou seja, o dobro dos juros moratórios legais à época do caso concreto - regido pelo CC/1916 -, ou seja, o dobro de 0,5% ao mês]. (...) 6. Recurso especial conhecido e provido, em parte. (REsp n. 537.355/RS, relator Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, Terceira Turma, julgado em 6/4/2004, DJ de 17/5/2004, p. 217.) Todavia, essa tese merece ser confrontada com o art. 5º da Lei de Usura, que veicula o seguinte comando: Art. 5º Admite-se que pela mora dos juros contratados estes sejam elevados de 1% e não mais. Entendemos que o dispositivo acima não afasta a tese supracitada (a de que o teto dos juros moratórios convencionais é o dobro dos juros moratórios legais à luz do art. 1º da Lei de Usura). E há dois motivos para tanto. O primeiro motivo é que consideramos que o art. 5º da Lei de Usura foi tacitamente revogado por incompatibilidade com a Lei dos Juros Legais, especificamente com o novo texto do art. 406 do CC. Isso, porque o art. 5º da Lei de Usura, ao fazer menção a um percentual fixo de 1%, partia da premissa de que os juros moratórios legais eram também baseados em um percentual fixo. De fato, à época do CC/1916, o percentual dos juros moratórios legais era de 0,6% ao mês. Acontece que, com o novo texto do art. 406 do CC, os juros moratórios legais passam a estar sujeitos a um índice flutuante, entregue à oscilação dos índices Selic e IPCA. É incompatível com essa base fluída estabelecer um percentual fixo máximo a título de juros moratórios convencionais, o que faz com que a revogação do art. 5º da Lei de Usura seja de reconhecida. Basta imaginar se o Brasil imergisse em uma fase de heterodoxia financeira, com a Selic escalando para a casa dos 1.000% ao mês. Um percentual fixo de 1% para servir de teto aos juros moratórios legais seria absolutamente risível diante de sua insignificância e, por isso, além de não indenizar adequadamente o credor, não teria qualquer efeito inibidor contra o devedor em mora. Portanto, consideramos que o art. 5º da Lei de Usura está tacitamente revogado pelo novo art. 406 do CC (na redação da Lei dos Juros Legais). Ainda que assim não fosse, há um segundo motivo subsidiário. É que, mesmo se considerarmos o art. 5º da Lei de Usura em vigor, temos que ele precisaria ser lido em conjunto com o art. 1º da Lei de Usura, que estabelece, como teto para os juros (remuneratórios e moratórios), o dobro dos juros moratórios legais. Isso, porque o espírito da Lei de Usura, com o referido art. 1º, é impedir que censurar qualquer multiplicação exagerada da dívida por força de juros. Logo, quando o art. 5º da Lei de Usura autoriza que os juros moratórios convencionais resultem da elevação, em 1%, dos juros remuneratórios pactuados, esse dispositivo deveria ser lido no sentido de que essa elevação deve corresponder a, no máximo, o dobro da taxa legal. Na prática, essa interpretação infertiliza o art. 5º da Lei de Usura, mas nos parece mais adequada com o espírito da própria Lei de Usura, que é a de impedir cobranças exorbitantes de juros (ainda que moratórios). Além disso, para indenizar e punir no caso de inadimplemento, o ordenamento disponibiliza a multa moratória. Acerca da multa moratório, lembramos que que o art. 9º da Lei de Usura fixa um teto de 10% do valor da dívida para esse tipo de multa2 em dívidas pecuniárias, teto esse que deve ser tido como reduzido para 2% quando se tratar de dívida consumerista (art. 52, § 1º, do Código de Defesa do Consumidor - CDC3) e de dívida condominial (art. 1.336, § 1º, do CC4). Ilustrando o que expusemos, suponha que uma dívida de parcelamento da venda de um veículo em uma relação civil (sem envolver consumidor). Nessa hipótese, poderiam as partes pactuar que as parcelas do preço seriam submetidas: a) até o vencimento, a juros remuneratórios correspondente ao dobro do resultado positivo desta equação: Taxa Selic - IPCA; e b) após o vencimento, por atraso, a juros moratórios no mesmo importe acima (ou seja, ao dobro do resultado positivo da equação Taxa Selic - IPCA), além de pactuar eventual multa moratória de até o teto de 10% do art. 9º da Lei de Usura. No exemplo acima, havendo inadimplemento, haverá uma continuidade da cobrança do máximo de juros admitidos no Brasil, com o acréscimo de multa moratória. Apesar desse entendimento acima - que ora defendemos -, é preciso reconhecer a existência de uma corrente paralela. A corrente paralela é no sentido de que, à luz do art. 5º da Lei de Usura, o teto dos juros moratórios convencionais é de 1% mais o dobro dos juros moratórios legais. Sobre o tema, é preciso tomar muito cuidado na leitura dos julgados do STJ que, aparentemente, chancelariam essa orientação. Isso, porque, na verdade, apesar de haver alguns julgados que tenham feito referência ao art. 5º da Lei de Usura, eles tratam, na verdade, apenas de casos envolvendo cédulas ou notas rurais, comerciais ou industriais. E, ao garimpar a origem desses julgados, verifica-se que o entendimento está edificado no parágrafo único do art. 5º da Lei da Cédula Rural (decreto-lei 167/1967), similar ao parágrafo único do art. 5º da Lei da Cédula de Crédito Industrial (decreto-lei 413/1969) - que é aplicável também às cédulas de crédito comercial por força do art. 5º da Lei nº 6.840/1980. Referidos dispositivos assim dispõem: Decreto-lei 167/1967 Art 5º As importâncias fornecidas pelo financiador vencerão juros as taxas que o Conselho Monetário Nacional fixar e serão exigíveis em 30 de junho e 31 de dezembro ou no vencimento das prestações, se assim acordado entre as partes; no vencimento do título e na liquidação, por outra forma que vier a ser determinada por aquêle Conselho, podendo o financiador, nas datas previstas, capitalizar tais encargos na conta vinculada a operação. Parágrafo único. Em caso de mora, a taxa de juros constante da cédula será elevável de 1% (um por cento) ao ano. Decreto-lei 413/1967 Art 5º As importâncias fornecidas pelo financiador vencerão juros e poderão sofrer correção monetária às taxas e aos índices que o Conselho Monetário Nacional fixar, calculados sôbre os saldos devedores da conta vinculada à operação, e serão exigíveis em 30 de junho, 31 de dezembro, no vencimento, na liquidação da cédula ou, também, em outras datas convencionadas no título, ou admitidas pelo referido Conselho. Parágrafo único. Em caso de mora, a taxa de juros constante da cédula será elevável de 1% (um por cento) ao ano. Lei 6.840/1980 Art. 5º Aplicam-se à Cédula de Crédito Comercial e à Nota de Crédito Comercial as normas do decreto-lei 413, de 9 de janeiro 1969, inclusive quanto aos modelos anexos àquele diploma, respeitadas, em cada caso, a respectiva denominação e as disposições desta Lei. Um dos julgados fundantes desse entendimento para financiamentos rurais é este: MÚTUO RURAL. JUROS. (...) ILEGALIDADE DA TAXA PACTUADA PARA O CASO DE INADIMPLEMENTO. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO (...) Os juros moratórios, limitados, em se tratando de crédito rural, a 1% ao ano, distinguem-se dos juros remuneratórios. Aqueles são forma de sanção pelo não pagamento no termo devido. Estes, por seu turno, como fator de mera remuneração do capital mutuado, mostram-se invariáveis em função de eventual inadimplência ou impontualidade. Clausula que disponha em sentido contrário, prevendo referida variação, e cláusula que visa a burlar a disciplina legal, fazendo incidir, sob as vestes de juros remuneratórios, autênticos juros moratórios em níveis superiores aos permitidos. (STJ, REsp n. 28.907/RS, 4ª Turma, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJ de 8/3/1993) No supracitado julgado, observa-se que as discussões giraram em torno do art. 5º do decreto-lei 167/1967, que foi apontado como violado no recurso especial. Nada se referiu ao art. 5º da Lei de Usura. Idêntico raciocínio foi aplicado às Cédulas ou Notas de Crédito Comercial, por força da respectiva lei especial. Veja este julgado: NOTA DE CRÉDITO COMERCIAL. JUROS DE MORA. INALTERAÇÃO EM CASO DE INADIMPLEMENTO DO DEVEDOR. JULGAMENTO EXTRA PETITA. (...) - Na hipótese de mora do devedor, os juros não podem elevar-se à taxa superior a 1% ao ano (art. 5º, parágrafo único, do Decreto-lei nº 413, de 09.01.695, c.c. o art. 5º da Lei nº 6.840, de 03.11.80). Recurso especial não conhecido. (STJ, REsp n. 73.637/SP, 4ª Turma, Rel. Min. Barros Monteiro, DJ de 19/3/2001) A Segunda Seção do STJ sacramentou essa linha de raciocínio: CRÉDITO RURAL (DECRETO-LEI N. 167/67). (...)  2. Taxa de juros pelo inadimplemento do devedor. Não é lícita a cláusula que, no pormenor, prevê a substituição por taxa superior, diferenciando taxas para pagamento no prazo e após o vencimento da divida. Em caso de mora, admite-se seja a taxa inicialmente pactuada elevada de apenas 1% (um por cento) ao ano. Precedentes atuais das turmas da 2ª Seção do STJ. 3. Embargos de Divergencia conhecidos, mas rejeitados. (STJ, EREsp n. 64.428/RS, 2ª Seção, Rel. Min. Nilson Naves, DJ de 3/6/1996) O que se observa é que, com base nesses julgados, edificados em lei especial, vários outros precedentes seguiram a mesma linha, sempre analisando hipóteses de cédulas ou notas de crédito rural, comercial ou industrial (STJ, AgRg no AREsp n. 14.950/MS, 4ª Turma, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, DJe de 24/10/2013; REsp n. 307.165/SP, 4ª Turma, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, DJ de 10/3/2003; REsp n. 102.118/RS, 4ª Turma, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, DJ de 18/2/2002; REsp n. 135.075/RS, 4ª Turma, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, DJ de 19/11/2001; REsp n. 95.970/RS, 4º Turma, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJ de 11/11/1996; REsp n. 97.770/RS, 4ª Turma, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, DJ de 29/10/1996; REsp n. 95.540/RS, 4º Turma, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJ de 14/10/1996; REsp n. 63.029/RS, 3ª Turma, Rel. Min. Eduardo Ribeiro, DJ de 29/4/1996; REsp n. 59.691/RS4º Turma, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJ de 27/11/1995; AgRg no REsp n. 1.411.837/RS, 3ª Turma, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJe de 19/6/2015). Como se vê, mesmo antes da Lei dos Juros Legais (lei 14.905/2024), a jurisprudência do STJ acenava no sentido de que o teto dos juros moratórios convencionais é o dobro dos juros moratórios legais, com base no art. 1º da Lei de Usura. Ressalva, porém, por força de leis especiais, quando se tratasse de cédulas ou notas de crédito rurais, industriais ou comerciais, o teto dos juros moratórios legais era o resultado do acréscimo de 1% ao teto dos juros remuneratórios permitidos para esses tipos de créditos específicos. Lembramos que, nesses tipos de créditos específicos, há apelo social e econômico maior, por envolver empreendedores em atividades extremamente sensíveis ao País. Isso justifica a existência de leis especiais para essas espécies de crédito. Enfim, em conclusão, entendemos que esse cenário subsiste após a Lei dos Juros Legais, com o detalhe de que, ao nosso sentir, o art. 5º da Lei de Usura - que já era infertilizado hermeneuticamente - foi definitivamente sepultado: está revogado tacitamente por força do novo art. 406 do CC, na redação da Lei dos Juros Legais. __________ 1 Art. 1.062. A taxa dos juros moratórios, quando não convencionada (art. 1.262), será de seis por cento ao ano. 2 Art. 9º Não é valida a clausula penal superior á importância de 10% do valor da divida. 3 CDC: Art. 52. No fornecimento de produtos ou serviços que envolva outorga de crédito ou concessão de financiamento ao consumidor, o fornecedor deverá, entre outros requisitos, informá-lo prévia e adequadamente sobre: (...) § 1° As multas de mora decorrentes do inadimplemento de obrigações no seu termo não poderão ser superiores a dois por cento do valor da prestação. (...). 4 CC: Art. 1.336. (...) § 1º O condômino que não pagar a sua contribuição ficará sujeito à correção monetária e aos juros moratórios convencionados ou, não sendo previstos, aos juros estabelecidos no art. 406 deste Código, bem como à multa de até 2% (dois por cento) sobre o débito. 5 Art 5º As importâncias fornecidas pelo financiador vencerão juros e poderão sofrer correção monetária às taxas e aos índices que o Conselho Monetário Nacional fixar, calculados sôbre os saldos devedores da conta vinculada à operação, e serão exigíveis em 30 de junho, 31 de dezembro, no vencimento, na liquidação da cédula ou, também, em outras datas convencionadas no título, ou admitidas pelo referido Conselho. (...) Parágrafo único. Em caso de mora, a taxa de juros constante da cédula será elevável de 1% (um por cento) ao ano.
A adjudicação compulsória é o meio legal para se obter o domínio de um imóvel que tenha tido a sua venda prometida a alguém que, tendo pagado a integralidade de seu preço, ainda assim não consegue obter do proprietário o título necessário para registrar o bem em seu nome. A questão que se discute neste artigo é saber se pode a adjudicação compulsória recair sobre bens imóveis considerados públicos, lembrando que estes são de três categorias: os dominiais, os de uso comum do povo e os de uso especial. Os bens de uso especial são os que estão destinados a alguma função pública específica, como é o caso de um hospital, uma escola ou uma delegacia de polícia. Os bens de uso comum do povo são aqueles que podem ser utilizados livremente pela população, como as praias, as ruas e as praças. Os bens dominiais não têm nenhuma dessas finalidades e apenas fazem parte do patrimônio público. São bens que não estão afetados a um fim público. Os bens dominiais podem ser alienados, exatamente por não terem uma utilização pública, normalmente com autorização legal, avaliação e alguma forma de licitação. Há bens públicos que existem exatamente para ser alienados, especialmente quando o Estado desempenha uma atividade econômica, por vezes até mesmo em concorrência com a iniciativa privada. Vejamos o caso das moradias. Existem várias empresas públicas e sociedades de economia mista, que constroem imóveis para servir de moradia, como é o caso das Companhias de Habitação. Há outros imóveis que são construídos por particulares, mas são financiados por órgãos com alguma feição estatal, como era o Banco Nacional da Habitação (BNH) e é a Caixa Econômica Federal. Até mesmo o INSS já desempenhou a função de fomentar o mercado de imóveis para moradia. Recentemente foi noticiado que o Governo Federal1 quer destinar imóveis sem uso para a habitação popular, como se pode ver aqui. A notícia é oficial e diz que o presidente Lula assinou um decreto de criação de um grupo de trabalho interministerial dos imóveis não operacionais do INSS, que tem o objetivo de aprimorar a gestão desse patrimônio. Dos 3.213 imóveis do órgão, 483 já foram identificados domo elegíveis para o programa, sendo 12 prédios para projetos habitacionais e 471 glebas ocupadas e conjuntos habitacionais a serem regularizados. Outros 2.730 imóveis estão em análise. Nem todos sabem, mas o INSS já fez e financiou várias unidades habitacionais, que em muitos casos foram adquiridas por entidades ligadas ao setor previdenciário. Isso ocorreu há várias décadas e muitos desses imóveis ainda pendem de regularização porque estão ocupados por pessoas que adquiriam a posse e os direitos aquisitivos de outras pessoas, algumas delas hoje já falecidas, as quais sim originalmente contrataram com o INSS. Esses imóveis devem ser considerados públicos? E em caso positivo, há algum impedimento que eles sejam adjudicados compulsoriamente ou até mesmo sejam usucapidos? Sustentamos que não há impedimento para essas formas de aquisição, o que vamos demonstrar a seguir. Ainda que sejam considerados públicos os imóveis do INSS, é preciso considerar que as construções habitacionais não se destinam à sua atividade fim, mas à venda a pessoas para isso qualificadas. E os imóveis que foram prometidos à venda, depois de devido pagamento do financiamento, devem ser transmitidos aos adquirentes ou seus sucessores. De fato, é princípio de direito a proibição do enriquecimento ilícito. Se o INSS recebeu pelo imóvel que foi construído e vendido, é natural que deve ser deferida a adjudicação, se por qualquer motivo não foi feita a tempo o título transmissivo do domínio. O caso não é de indeferimento liminar de um requerimento assim, mas de notificação do INSS que poderá inclusive concordar com o pedido, tornando os fatos incontroversos e o direito líquido e certo. Em situação semelhante, mas versando sobre imóvel da Caixa Econômica Federal, a Ministra Hellen Grace, do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário 536.297, em 16/11/2010, entendeu que é privada a natureza dos bens das estatais quando estes são ligados a uma atividade econômica. Por isso, foi deferido o pedido de usucapião. No mesmo sentido, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, admitiu a possibilidade de usucapião de imóvel da Caixa Econômica Federal que nem sequer estava ligado ao Sistema Financeiro da Habitação, no julgamento da apelação 5001313-25.2016.4.04.7105, Relatora Vânia Hack de Almeida. Nem se diga que a natureza jurídica da CEF é diferente da natureza jurídica do INSS, pois o mesmo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul admitiu o processamento de uma ação de adjudicação compulsória contra o INSS, no julgamento da apelação 5986423-31.2021.4.04.7100, Relator Murilo Brião da Silva. O julgado acima não é isolado, pois o mesmo Tribunal, na apelação 5017330-54.2001.4.04.7108, Relator Roger Raupp Rios, entendeu que, na promessa de compra e venda, havendo recusa à outorga e quitação integral do preço, sobressai o direito à adjudicação compulsória em favor da parte autora para a satisfação de sua pretensão, sendo descabida a exigência de abertura de inventário. No mesmo sentido, na apelação 5003313-53.2020.4.04.7106, relator Luís Alberto D'Azevedo Aurvalle ficou decidido que a adjudicação compulsória de imóvel pertencente ao INSS, adquirido por particular hoje falecido, se mostra possível, desde que munido do contrato de promessa de compra e venda e que não logrou obter a escritura definitiva do imóvel, ante a recusa do promitente vendedor em concedê-la. Os julgados acima estão em harmonia com o de número 5019578-51.2020.4.04.7100, Relator Rogério Favreto. Também na apelação 5006434-24.2013.4.04.7110, Relatora Vivian Josete Pantaleão Caminha afirmou em adjudicação compulsória contra o INSS que deveria ser reconhecido o direito à transferência da propriedade do imóvel em que a autora reside desde 1963, pois provado o pagamento e apresentada efetiva oposição do Instituto de Previdência. Enfim, os julgados acima são evidentes exemplos de que os imóveis do INSS vendidos para serem utilizados como moradia das pessoas que dele os adquiriram, devem receber um tratamento idêntico aos bens privados, pois está o INSS agindo como empreendedor imobiliário, seja construindo ou financiando, não havendo porque não ser feita a transmissão compulsória do domínio, lembrando que a moradia é também um direito social constitucional que deve ser assegurado nessas circunstâncias. O ingresso da propriedade plena na esfera dos direitos dos particulares adquirentes faz com que estes tenham segurança jurídica para dela cuidar e tirar proveito e realizar o sonho da casa própria, que depois é transmitida aos herdeiros, vendida ou serve de garantia para obter empréstimos com juros mais baixos, o que para o Estado gera a arrecadação de tributos como IPTU, ITBI e ITCMD, fazendo que esses valores custeiem serviços e políticas públicas causadores de mais bem estar a todas as pessoas alcançadas. O presente artigo além de comprovar a possibilidade de adjudicação desses imóveis públicos - desafetados -, apresenta caso prático um procedimento de adjudicação compulsória extrajudicial iniciada pelo 1º Tabelião de Notas de Santo André, qualificada autuada pelo 1º Registro de Imóveis de Santo André/SP. A irregularidade remonta à década de 70, ou seja, são mais de 50 anos de ausência de formalidade registral, sem a matrícula, escritura, documentação necessária para alienação formal, financiamento e todas as características inerentes ao exercício pleno de um direito fundamental. Essa situação imobiliária resulta em uma marginalidade legal, subtraindo o imóvel das possibilidades de financeirização, o que aliás, diminui até o valor do imóvel para venda, obrigando inúmeras famílias a formalização dos "contratos de gaveta", uma informalidade sem segurança jurídica e prejudicial a todo sistema econômico e tributário do país. O caso que apresentamos a toda comunidade jurídica foi viável, além de atender todos os requisitos legais, foi adicionada manifestação da própria Superintendência do INSS, que participou ativamente com nosso coautor no cumprimento das exigências elabora pelo Registrador Imobiliário, alcançando assim o direito fundamental de propriedade. Em conclusão, seja em âmbito judicial ou notadamente extrajudicial, não deve o pedido de adjudicação ou de usucapião ser proibido desde o início só porque há um ente estatal envolvido. Ele deve tramitar, sendo perfeitamente possível que haja até mesmo uma concordância com a pretensão formulada. É intuitivo que quem vendeu e recebeu por isso deve entregar o que foi vendido e que a posse exercida deve se transformar em domínio quando preenchidos os requisitos legais. __________ 1 Governo vai destinar imóveis da União sem uso para habitação popular | Agência Brasil (ebc.com.br)
Plenamente assegurado pela Constituição Federal Brasileira, o direito à moradia é uma competência comum da União, dos estados e dos municípios. A todos estes entes, conforme aponta o texto constitucional, compete "promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico". O direito à moradia foi positivado no art. 6º da Carta Magna com a Emenda Constitucional 26/00, que incluiu a moradia no rol dos direitos sociais dos cidadãos, representando assim um grande marco para o efetivo cumprimento por parte dos governos.  A moradia e o direito a ela são desafios presentes na grande maioria das grandes cidades ao redor do mundo, especialmente nas metrópoles mais populosas. Ulteriormente, as questões que rodeiam o instituto da habitação social têm ganhado destaque, impulsionado por iniciativas governamentais de regulação da atividade construtiva. Especialmente em São Paulo, capital, o Plano Diretor Estratégico prevê um papel fundamental da iniciativa privada afim de contribuir com a política de HIS - Habitação de Interesse Social e HMP -Habitação de Mercado Popular. Ao leitor, necessário, portanto, diferenciar os modelos dos programas de habitação social, a saber: A HIS - Habitação de Interesse Social tem o escopo a implementação de medidas que visem a redução do déficit habitacional. Com isso, a HIS se desenvolve para o atendimento habitacional das famílias de baixa renda e pode ser implementada pelo setor público e pelo setor privado. As unidades habitacionais HIS são construídas e planejadas para atender o padrão mínimo de dignidade social, contando com sanitário e vaga de garagem. Dentro da modalidade de Habitação de Interesse Social, existem duas outras classificações, a depender da renda dos beneficiários, quais sejam: A HIS-1, destinada a famílias com renda familiar mensal média de até 3 salários mínimos; e a HIS-2, destinada a famílias com renda familiar mensal média de até 6 salários mínimos. A HMP - Habitação de Mercado Popular HMP se reserva a famílias com renda mensal entre 6 e 10 salários mínimos, e da mesma forma, pode ser promovida tanto pelo setor público quanto pelo setor privado. No caso de HMP, as unidades são mais elaboradas. Afim de incentivar esse interesse do setor privado à construção de moradias sociais, as municipalidades concedem benefícios fiscais e urbanísticos, que variam de acordo com a legislação de cada ente concedente. Em São Paulo, capital, os incentivos concedidos às construtoras permeiam a isenção do pagamento de outorga onerosa do direito de construir, além da permissão de majoração do potencial construtivo, podendo alcançar o sêxtuplo da área a ser incorporada. Os inventivos e benefícios concedidos condicionam a construção a um custo de empreitada bastante inferior, trazendo maior rentabilidade ao incorporador, nem sempre alcançando o objetivo da norma que é a de aumentar a oferta de moradias a preços condizentes aos destinatários deste programa social. Ocorre que a falta de fiscalização da municipalidade, levou o setor privado a alienar essas unidades a qualquer pessoa ou empresa se a devida verificação do enquadramento das famílias elegíveis à destinação das unidades imobiliárias de HIS 1, HIS 2 e HMP, desvirtuando completamente o propósito legal que é o de atingir a camada social dos compreendidos nas faixas salariais familiares já citadas neste artigo. Muitas unidades acabaram nas mãos de investidores, alimentado o mercado sem o atendimento às regras de destinação que se prestava a construção. No estado de São Paulo, os incentivos, além dos mencionados, acabam por ter reflexos nos custos do registro da incorporação e especificação de condomínio, os quais sofrem abastada redução prevista no item 14 e subitens da tabela de emolumentos instituída pela lei estadual 11.331/02. Também estão sujeitas às reduções as escrituras imobiliárias lavradas nos moldes dos itens 1.3 e 1.4 da tabela destinada às despesas notariais. A municipalidade paulistana, na revisão do Plano Diretor Estratégico, em 2023, com a edição do decreto municipal 63.130 de 19/1/24, bem como com a publicação da Portaria da Secretaria de Habitação 61 de 22/5/24, intentou regular a participação da iniciativa privada na promoção da HIS - Habitação de Interesse Social, permitindo a aquisição dessas unidades habitacionais por parte de investidores e fundos, com a possibilidade de locação das mesmas à pessoas que se enquadrem nas faixas de renda informadas. Além disso, o prazo de afetação dessas unidades ao programa social é de apenas 10 anos contados da expedição do certificado de conclusão da obra. Como anteriormente mencionado, há nítida falta de fiscalização pelo Poder Público municipal o que acarreta na destinação desvirtuada das unidades e em um imbróglio jurídico junto ao registro imobiliário. Os notários e registradores imobiliários são agentes públicos, são lotados à segurança preventiva dos negócios jurídicos e também fiscais da correta aplicação da lei. Um dos livros obrigatórios do registro de imóveis é o livro 5 de indicador pessoal, destina-se ao repositório dos nomes de todas as pessoas que, individual ou coletivamente, ativa ou passivamente, direta ou indiretamente, figurarem nos demais livros, em cuja folha deve ser anotada a referência aos números de ordem daqueles. Permite a busca dos registros pelo nome da pessoa. Com isso, o registrador, através do sistema do SAEC - Serviço de Atendimento Eletrônico Compartilhado, mantido pelo ONR - Operador Nacional do Registro, consegue verificar se determinado adquirente é aparente usufruidor dos benefícios estabelecidos pelo sistema de HIS e de HMP. Quando o título ingressa à qualificação registral, o registrador verifica os elementos intrínsecos do negócio, ficando, por independência técnica, passível da formulação de exigências para que se consiga o efetivo ingresso da propriedade no fólio real.  Segundo Amadei, (1993 p.22/55, apud Zanetta, 2024, Proc. 1061807):       "Considerar o aspecto instrumental do registro imobiliário, importa reconhecer, nele, (a) o poder que atribui a quem o tem (instrumento/poder) e investigar (b.i) a função que exerce na ordem jurídica da sociedade e (b.2) o fim a que se destina (instrumento/meio). Assim, no primeiro enfoque (registro como instrumento/poder), forçoso verificar, em cada sistema jurídico, quais os efeitos decorrentes do registro imobiliário, pois é na proporção da classificação e extensão desses efeitos que a inscrição representará o grau de poder conferido ao titular do direito real.(...) Qualificação registrária, inscrição e publicidade são decorrências diretas e específicas da atuação da instituição registral imobiliária, de sua dinâmica procedimental, ao passo que a segurança jurídica (estática e dinâmica) é a razão dessa instituição, que se obtém pelos efeitos da qualificação, da inscrição e da publicidade. (...) Fixadas as considerações gerais da instrumentalidade do registro imobiliário, importa então, no momento, especificar no que consiste o aspecto instrumental do registro imobiliário no controle urbanístico da propriedade. Neste ponto, preliminarmente, cumpre relembrar que o eixo do registro predial é a propriedade imobiliária. É, pois, em torno da propriedade imobiliária que gravitam todos os atos registrários praticados pelo Oficial Registrador no fólio real. Assim, entende-se a razão pela qual a funcionalidade registrária da publicidade imobiliária era associada à "preservação dos interesses privados" e, hoje, sustenta-se que está associada, "formalmente", à preservação de "determinados interesses da comunidade". (grifei) No que tange aos empreendimentos HIS e HMP, temos percebido que após o advento do decreto municipal de 19/1/24, passou-se a exigir que o título de aquisição seja acompanhado de certidão expedida por entidade supervisionada pelo BACEN, atestando o enquadramento da renda familiar do adquirente nos parâmetros estabelecidos no art. 46 da lei 16.050/14, conforme preceitua o art. 5º, §1º do decreto municipal 63.130/24, certidão essa que deverá ser expedida de acordo com as disposições contidas no anexo II da portaria 61 - SEHAB de 22/5/24. O fato é que a Portaria da Secretaria de Habitação, regra: Art. 4º A certidão exigida nos termos do art. 5º, caput do decreto 63.130 de 19/1/24 será emitida por entidade supervisionada pelo BACEN, sendo que, quando for expedida por correspondente bancário ou instituição que atue com crédito imobiliário, deverá ser expedida por profissional detentor da certificação CA-600 ou outra certificação que ateste conhecimento operacional necessário para atendimento a política pública, acompanhada da respectiva comprovação da certificação. Estariam aptos à emissão da certidão de enquadramento, profissionais bancários com a certificação CA-600. Quando a aquisição do bem ocorre através de financiamento bancário, a emissão da certidão se torna justificável, vez que o processo de financiamento imobiliário revela toda a condição financeira dos proponentes adquirentes. O problema se dá quando a aquisição é feita sem a intervenção de um agente bancário, através de escritura pública entre a construtora e o comprador. Como emitir dita certidão de enquadramento - não se tem notícia. Veja-se que conforme relatado, muitas vezes o adquirente não se enquadra nos preceitos do programa social, entretanto, a venda foi firmada. O imóvel permanece sob titularidade da construtora, e o adquirente, sem título de propriedade. Instala-se o litígio em que muitas vezes somente se resolverá no judiciário, com a devolução dos valores recebidos pela vendedora, acrescidos de acessórios como perdas e danos, nem sempre verificáveis se demonstrada a ciência do comprador da afetação do bem ao programa social. Uma solução não muito clara aos adquirentes (des)avisados seria a da destinação da unidade adquirida à locação social. Obscura situação vez que o eventual adquirente permanece não sendo enquadrado no rol dos requisitos do benefício, entretanto, haveria uma lacuna legal estatuída no decreto 63.130 de 19/1/24: Art. 7º Os benefícios pertinentes ao regime jurídico previsto neste decreto poderão ser também utilizados por empreendimentos destinados, total ou parcialmente, para locação das unidades habitacionais de HIS 1, HIS 2 e HMP, observadas as seguintes regras: I - as unidades destinadas para esta finalidade deverão indicar tal condição mediante averbação na matrícula, em adição à averbação prevista no art. 4º deste decreto; II - a celebração do contrato de locação também é condicionada à apresentação da certidão que ateste o enquadramento das famílias destinatárias finais na respectiva faixa de renda estabelecida, nos termos do artigo 5º deste decreto; III - a alienação das unidades destinadas à locação social será permitida, observando-se o regramento previsto neste decreto. (grifei) O regramento municipal não esclarece, ou ao menos é omisso - acintosamente, talvez, - se essas unidades HIS-1, HIS-2 ou HMP podem ser alienadas à pessoas não beneficiárias do Programa Social, desde que se habilitem a afetá-las à locação social, por 10 anos, mediante averbação concomitante ao registro da aquisição.    Como dito, a legislação se faz, mais uma vez, inerte a essas dúvidas, mas ainda assim, prostrada à ausência de fiscalização quando da alienação das unidades habitacionais. A princípio, nos parece possível, com fundamento no que regrava a MP 1.162/23, que tinha como objetivo retomar o Programa Minha Casa Minha Vida, buscando facilitar o acesso à moradia para famílias de baixa renda. A MP foi convertida na lei federal 14.620/23 que em seu art. 4º prevê: Art. 4º Os objetivos do Programa serão alcançados por meio de linhas de atendimento que considerem as necessidades habitacionais, tais como: (...) IV - fomento à criação de mercados de locação social de imóveis em áreas urbanas; (...) (grifei) A legislação exige a declaração de enquadramento do locatário, entretanto, não do locador. Logo, essa afetação deve ser feita pelo registrador imobiliário, por averbação na matrícula, e tal circunstância de aquisição para destinação à locação social, constar do título aquisitivo.   O próprio decreto municipal prevê sanções aos (des)avisados, entretanto, ainda sem regramento: Art. 8º A inobservância ao exposto neste decreto acarretará: I - ao promotor do empreendimento, o dever de pagamento integral do potencial construtivo adicional utilizado, tributos, custas e demais encargos referentes à sua implantação, além de multa equivalente ao dobro deste valor financeiro apurado, devidamente corrigido, sem prejuízo das sanções previstas na lei 16.642, de 9/5/17 - Código de Obras e Edificações; II - a terceiros adquirentes a partir da segunda alienação dos imóveis de HIS 1, HIS 2 e HMP, cobrança dos valores indicados no item anterior, calculados de forma proporcional à fração ideal do imóvel adquirido, estando autorizado o Poder Público a adotar as medidas processuais análogas às previstas nos incisos I e II do art. 107 da lei 16.050/14 - PDE. A 1ª Vara de Registros Públicos da Capital-SP manifestou-se no Processo de Dúvida nº 1061807-58.2024.8.26.0100 que tratava de caso análogo: Conforme se extrai dos dispositivos acima transcritos, a produção privada de unidades de HIS 1, HIS 2 e HMP utilizando benefícios urbanísticos e fiscais previstos no Plano Diretor Estratégico do município de São Paulo caracteriza adesão a regime jurídico próprio, qualificado, simultaneamente, pela fruição dos benefícios fiscais e urbanísticos pertinentes e pela destinação, de forma permanente e cogente durante dez anos, das unidades habitacionais a famílias que atendam aos limites de renda nela estabelecidos. É importante observar que a averbação na matrícula de cada unidade habitacional confere publicidade da situação jurídica que recai sobre o imóvel afetado ao regime jurídico próprio que restringe sua destinação a famílias com o perfil de renda declarado no licenciamento do empreendimento. Assim, uma vez efetivada a averbação na matrícula, na forma do art. 47, § 1º, I, da lei 16.050/14, promove-se integração entre o instrumento de provisão habitacional de interesse social para a população de baixa renda com o registro imobiliário, para ampla publicidade da situação jurídica do imóvel urbano vinculado, em prol da segurança jurídica no tráfico imobiliário. (grifei) Sinteticamente, no sistema registral brasileiro vigora o princípio da legalidade estrita admitindo o ingresso de título que atenda aos ditames legais. Nos parece que embora controvertida, o instituto de fomento à locação social, cumpre a legalidade de regramento faltoso, admitindo o ingresso dos títulos no fólio real. Assim como o decreto municipal prevê sanções ao incorporador que por alienação a não beneficiário do Programa que desafeta indiretamente a unidade habitacional, ressalva-se, também, ao registrador imobiliário, o direito de cobrar da instituidora condominial, a diferença emolumentar decorrente da desafetação da unidade em desrespeito aos preceitos legais do Programa Social.  Thomas Hobbes em "O Leviatã", há muito lecionava que o mundo jamais seria capaz de satisfazer as necessidades do homem, tendo em vista o egoísmo e a competição entre si - guerra de todos contra todos -  cada homem somente procura aquilo que lhe é de interesse particular, sem olhar para o todo.
Introdução O sistema brasileiro notarial e de registros públicos, de base constitucional, previsto desde 1988, no art. 236 da Constituição Federal, vem se modernizando velozmente, principalmente após o advento da lei 14.382/22, que criou o SERP - Sistema Eletrônico dos Registros Públicos, centralizando, em um único portal, o acesso a seus serviços, como pedidos de registro, certidões, consultas e informações, o que é de fundamental importância para a segurança jurídica e eficiência de nosso país. Mas a modernização dos ofícios de registros públicos não parou por aí. Isso porque, convocados pelo poder público, quando promulgou alei 14.382/22 que criou o SERP, notários e registradores atenderam ao chamado e estão realizado esforços e grandes investimentos para a adoção do que há de mais moderno a fim de disponibilizar um sistema de segurança jurídica em sintonia com a realidade tecnológica do século XXI. E tudo isso estará disponível para a sociedade brasileira, abrangendo todos os atores da economia, sejam entidades públicas dos três poderes, instituições financeiras, empresas e outras entidades privadas, por meio de plataforma interoperável. A tecnologia blockchain se tem destacado como uma solução inovadora para diversos setores, incluindo o sistema de registros públicos de bens no qual pode transformar a publicidade registral e a digitalização dos registros de bens e de pessoas, garantindo segurança, transparência e eficiência nos processos de registro. Mas se faz necessário aprofundar a compreensão sobre o tema, apontando vantagens e problemas inerentes à adoção dessa tecnologia no campo da segurança jurídica, em que atuam os ofícios de registros públicos brasileiros e, também, no aspecto tecnológico. Inicialmente, cabe considerar que, por mais moderna seja uma tecnologia, ela não se aplica por si mesma, impondo-se a atuação de agentes preparados para sua adequada utilização no campo de conhecimento em que se deseje adotá-la. E, no que concerne ao campo da segurança jurídica, sem dúvida notários e registradores são os agentes competentes e capazes para aplicar, da melhor forma, as mais modernas tecnologias disponíveis com o fito de garantir direitos, entes isentos e independentes que são, distantes tanto de interesses privados, quanto públicos, do estado brasileiro, o que não impede que sejam submetidos a normas e fiscalização pelo Poder Judiciário, assegurando ao sistema as necessárias higidez jurídica e fiscalização de condutas pelo estado. Em suma, o advento de modernas tecnologias não justifica que a sociedade dispense a isenta e independente atuação de notários e registradores, que é imprescindível à criação e manutenção de um ambiente social e de negócios seguro, e até mesmo à manutenção do estado democrático de direito. Fundamentos do Blockchain O que é Blockchain? O blockchain é uma tecnologia que permite a criação de um registro digital descentralizado e imutável. Cada bloco contém um conjunto de transações e está ligado ao bloco anterior, formando uma cadeia contínua e segura (Nakamoto, 2008). Descentralização Ao contrário dos sistemas tradicionais, onde um único servidor central controla os dados, o blockchain é mantida por uma rede de computadores (nós). Cada nó possui uma cópia completa do registro, o que significa que não há um ponto único de falha. Isso torna a blockchain extremamente resistente a ataques e manipulações (Tapscott & Tapscott, 2016). Imutabilidade Em tese, uma vez que uma transação é registrada e confirmada no blockchain ela não pode ser alterada ou excluída. Isso garante a integridade dos dados, pois qualquer tentativa de alteração seria imediatamente detectada pela rede (Swan, 2015). E dissemos "em tese" porque, como se verá mais adiante, tudo deve ser considerado relativamente. No caso, a imutabilidade das redes blockchain só existe em face da tecnologia de computação atualmente existente. Mecanismos de Consenso Para garantir que todas as transações sejam válidas, o blockchain utiliza mecanismos de consenso, como PoW - Proof of Work ou PoS - Proof of Stake. Esses métodos permitem que os participantes da rede concordem sobre o estado atual do registro, assegurando que todas as cópias do blockchain sejam idênticas (Buterin, 2014). Publicidade Registral de Bens e Direitos Sistema Tradicional Os sistemas tradicionais de publicidade registral de bens envolvem processos burocráticos, onde os registros de propriedade e direitos são mantidos nos arquivos e computadores dos cartórios. Esses sistemas, em tese, são suscetíveis a fraudes, erros humanos e manipulações, além de serem frequentemente ineficientes e caros (Linares, 2020). No Brasil isso tem sido superado pela adoção de modernas tecnologias de registro em meio eletrônico, bem como pelo compartilhamento de informações com portais centralizadores, como eram as centrais de cada especialidade registral (Central do Registro Imobiliário, Central RTDPJBrasil, Central do Registro Civil), as quais atualmente foram substituídas pelo SERP, para onde são enviados dados dos registros feitos, o que, criando redundância, se não elimina os males acima apontados, quase anula a possibilidade de que aconteçam. Portanto, é bom dizer: Na atualidade os registros públicos brasileiros são muito seguros, embora ainda não utilizem a tecnologia blockchain. Limitações A técnica registral tradicional, até o momento adotada em quase todo o mundo, sem dúvida é menos eficiente que aquela que empregue a nova tecnologia blockchain, por ser mais demorada e envolver custos de execução maiores, visto que seus processos sempre foram mais lentos. E a centralização dos dados torna o sistema mais vulnerável a ataques e até mesmo à corrupção (De Filippi & Wright, 2018), aspectos esses que, conforme já referido, no tocante ao Brasil, estão sendo, senão eliminados, muito mitigados após a implementação dos registros eletrônicos, com backups locais em meio físico e em "nuvem". Além do que, com o advento do SERP, a ele também são enviados dados dos registros, de modo que tudo isso conjugado cria uma descentralização do armazenamento de dados, provendo uma saudável redundância, como elemento de segurança e profilaxia de fraudes. A Adoção da Tecnologia Blockchain como Aperfeiçoamento do Sistema O blockchain pode criar um registro de propriedade, garantia e outros mais transparente e acessível a todos. Na rede blockchain dos ofícios de registros públicos, cada transação de propriedade ou de direitos outros será registrada de forma imutável, reduzindo, ainda mais, o risco de fraudes e aumentando a confiança no sistema. Com o blockchain qualquer pessoa pode verificar a autenticidade de um título constitutivo de direitos, tornando o processo mais transparente e seguro (Linares, 2020), pelo menos em face da atual tecnologia, que ainda não emprega computação quântica. Documento Público Digital Documentos públicos digitais são documentos oficiais que são criados, assinados e armazenados digitalmente. Exemplos incluem contratos, certidões e escrituras. A digitalização desses documentos facilita o acesso e a verificação, além de reduzir a necessidade de armazenamento físico (Linares, 2020). No Brasil, na atualidade grande parte, senão a maior parte, dos documentos e contratos já são apresentados em meio digital e os que o são em meio físico logo são convertidos ao meio digital para fins de armazenamento em mídias eletrônicas locais, físicas e em servidores externos, em "nuvem", e, em breve, na rede blockchain dos ofícios de registros públicos. Autenticidade e Integridade O blockchain garante que os documentos digitais não sejam falsificados ou alterados. Cada documento é registrado com uma assinatura digital que verifica sua autenticidade. Isso significa que qualquer tentativa de alteração seria imediatamente detectada, garantindo a integridade dos documentos (Swan, 2015), o que se afirma em face da tecnologia computacional ainda empregada, porque a computação quântica, que já é quase uma realidade, poderá alterar documentos digitais e redes blockchain. Confiança Documentos digitais no blockchain são quase tão confiáveis quanto os físicos, pois são protegidos contra adulterações, considerada a realidade tecnológica atualmente vigente. Isso facilita a verificação e a validação de documentos em transações legais e comerciais, aumentando a confiança no sistema (Tapscott & Tapscott, 2016). Digitalização dos Registros de Bens e direitos Registros de Bens e direitos Os registros de bens e direitos incluem imóveis, veículos, obras de arte e outros ativos valiosos, bem como direitos reais de garantia e outros. A digitalização desses registros envolve a conversão de documentos físicos em formatos digitais, facilitando o acesso e a gestão das informações (Linares, 2020), o que já há alguns anos vem sendo praticado pelos cartórios de registros públicos no Brasil. Casos de Uso Um exemplo de uso do blockchain é o registro de propriedades imobiliárias ou de constituição de garantias sobre bens e direitos diversos. Cada transação de compra e venda é registrada no blockchain, criando um histórico claro e imutável de propriedade. Isso facilita a verificação de títulos e reduz o risco de disputas de propriedade (De Filippi & Wright, 2018). Benefícios A digitalização e o uso do blockchain aumentam a eficiência e reduzem custos, embora, em muitos casos, não elimine a necessidade de intermediários, como advogados e notários, porque o direito e suas nuances sempre serão o pano de fundo das transações. A transparência do sistema também pode facilitar a resolução de disputas de propriedade, tornando o processo mais rápido e confiável (Buterin, 2014). Digitalização dos Registros de Pessoas Registros de Pessoas Os registros de pessoas incluem identidades de pessoas físicas e jurídicas, como certidões de nascimento, identidades, passaportes e registros de empresas. A digitalização desses registros facilita o acesso e a verificação das informações (Linares, 2020). Segurança e Confiabilidade O blockchain pode registrar identidades de forma segura, protegendo contra roubo de identidade e fraudes. Cada identidade digital é única e verificável, garantindo a autenticidade das informações (Swan, 2015), cabendo aqui, mais uma vez, lembrar que tudo isso que estamos dizendo deve ser entendido considerando a atual tecnologia cibernética, em que computadores quânticos ainda são experimentais, ao que se sabe. Privacidade e Proteção de Dados O blockchain permite que os dados pessoais sejam armazenados de forma segura e acessível apenas a partes autorizadas. Isso é crucial para proteger a privacidade dos indivíduos e cumprir com regulamentações de proteção de dados, como a GDPR na Europa (De Filippi & Wright, 2018) e a LGPD, no Brasil, lei 13.709/18. Perspectivas e Riscos Futuros Desafios A implementação do blockchain nos registros públicos enfrenta desafios legais, técnicos e de governança, sendo um dos maiores problemas o fascínio que muitos atores sociais têm por novas tecnologias, como se fossem soluções infalíveis, inexpugnáveis, que permitiriam abandonar as atuais práticas que até aqui garantiram a segurança jurídica da sociedade. Na verdade, é necessária muita cautela para que a adoção da tecnologia blockchain não se dê de forma temerária, sem a manutenção, redundante, do atual sistema de armazenamento eletrônico dos ofícios de registros públicos, que se adaptaria para esse fim. E, é forçoso dizer, há quem faça a pregação de adoção abrupta e imprudente da tecnologia blockchain, com o simples descarte do vigente sistema de registros públicos, por um maldisfarçado interesse em assumir as funções públicas dos agentes delegados pelo estado para esse ofício, que são os oficiais de registros públicos, profissionais do direito selecionados mediante rigoroso concurso público, com sua atividade prevista constitucionalmente, regulada por lei, normatizada e fiscalizada pelo Poder Judiciário. A referida redundância pela manutenção de uma adaptação do atual sistema de armazenamento de dados consistiria, tão somente, na manutenção, fora da rede blockchain, das informações nela contidas, o que seria feito em computadores do SERP e de cada ofício de registro competente para cada ato armazenado, de forma distribuída e redundante. Assim se criaria algo como um "blockchain físico", porque, tal qual aquela, seria um sistema redundante, e por isso seguro, mas desconectado da web, utilizando computadores e mídias físicas para arquivamento eletrônico, o que proveria ao sistema de registros públicos uma segurança extra, um backup, em face dos riscos que o advento da computação quântica, e até de outras futuras tecnologias, pode oferecer. A transferência de dados entre as redes blockchain e "física", constituída por computadores e mídias do SERP e dos ofícios de registro, ocorreria por etapas e seguindo rígidos protocolos de segurança, de modo a evitar que um eventual ataque cibernético ao blockchain a contaminasse no momento da transferência dos dados. Os computadores da "rede física" jamais estariam em contato com o blockchain, nem conectados à web, direta ou indiretamente. A comunicação com o blockchain ficaria a encargo de servidores intermediários, desconectados daqueles da "rede física" no momento da interação com o blockchain e providos de sistemas de segurança adequados. Assim, as mesmas informações contidas no blockchain dos ofícios de registros públicos estariam contidas em tal "rede". Nos servidores do SERP estariam contidas todas as informações e em cada ofício de registro as informações dos registro da sua competência legal, o que asseguraria redundância e impossibilidade de adulterações. Computação Quântica e Blockchain A computação quântica está atualmente em acelerado desenvolvimento, já existindo alguns servidores experimentais em operação, o que representa um risco potencial para a segurança das redes blockchain. Computadores quânticos têm a capacidade de realizar cálculos extremamente complexos em uma fração do tempo que os computadores clássicos levariam. Isso inclui a possibilidade de quebrar os algoritmos criptográficos que garantem a segurança das transações no blockchain (Shor, 1994). A computação quântica tem o potencial de quebrar os algoritmos criptográficos que atualmente protegem as redes blockchain. Algoritmos como o SHA-256, utilizado no bitcoin, e o ECDSA, que protege as chaves privadas, são vulneráveis a ataques quânticos. Um computador quântico suficientemente poderoso poderia resolver esses problemas matemáticos em um tempo viável, comprometendo a segurança das transações.E cabe lembrar que a evolução tecnológica é exponencial, sendo de se esperar que nos próximos dez anos sua evolução seja muito maior que a ocorrida em todo o último século, o que nos faz compreender o quão vulnerável e com potencial para gerar catástrofes pode ser a adoção destemperada de novas tecnologias como o blockchain, sem as necessárias precaução e redundância. Riscos de Violação Os algoritmos de criptografia atualmente utilizados no blockchain, como o SHA-256 e o ECDSA, são considerados seguros contra ataques de computadores clássicos. No entanto, a computação quântica pode quebrar esses algoritmos, comprometendo a integridade e a segurança das transações registradas no blockchain (Bernstein et al., 2009). Considerando que já há computadores quânticos funcionando nos grandes centros tecnológicos dos países mais avançados do mundo, o risco para a segurança de redes blockchain não é algo hipotético, que pode ocorrer em um futuro distante, mas sim um risco real e atual. As consequências da possibilidade de violação das redes blockchain seriam catastróficas. A violação das redes blockchain poderia comprometer a integridade de registros de propriedade, transações financeiras e dados pessoais. Isso provocaria um colapso econômico irreversível e até mesmo um forte abalo da segurança nacional. Governos e instituições financeiras dependem da integridade desses registros para funcionar corretamente. Então, para dizer pouco, a possibilidade de violação de redes blockchain é extremamente preocupante, porque um ataque cibernético com o emprego de computação quântica poderá alterar ou destruir todas as informações nelas contidas, o que não apenas é um grave risco para o direito de propriedade em geral, como também para a soberania nacional. Um ataque dessa natureza provocaria um colapso irreversível no funcionamento da economia, o que faz ressaltar a relevância da manutenção da estrutura dos ofícios de registros públicos e do sistema tradicional de armazenamento das informações registrais, como redundância das informações contidas em seu blockchain. E essa redundância seria facilmente empreendida, porque toda a estrutura cartorária já existe e a replicação das informações também seria realizada de forma rápida e eficiente, sem custos para os usuários do sistema. E tal medida de segurança evitará abalos de consequências inestimáveis e irreversíveis, que certamente provocariam gravíssima convulsão social. Medidas de Mitigação Para mitigar esses riscos, a comunidade de desenvolvedores de blockchain está tentando desenvolver algoritmos de criptografia resistentes à computação quântica, como a criptografia baseada em reticulados (lattice-based cryptography) e a criptografia de curvas hiperbólicas (hyperelliptic curve cryptography) (Chen et al., 2016). A transição para esses novos algoritmos será crucial para garantir a segurança das redes blockchain no futuro. E isso apenas considerado o horizonte da tecnologia inicial dos computadores quânticos, porque sequer podemos imaginar o salto tecnológico que advirá com o emprego maciço de computadores quânticos, se lembrarmos o início da computação clássica em que os primeiros computadores (mainframes) ocupavam salas inteiras e tinham uma capacidade de processamento inferior à das atuais calculadoras de bolso. Portanto, ressalta ser imprescindível muita cautela e adoção de medidas protetivas para a utilização de redes blockchain, de modo a se evitar catástrofe de dimensões e consequências incalculáveis. Perspectivas Futuras do Sistema Brasileiro de Registros Públicos A adoção do blockchain pode revolucionar a publicidade registral e a gestão dos registros públicos, trazendo mais eficiência e segurança, desde que se não descure da necessária cautela com a adoção de redundância pela manutenção das mesmas informações na rede de ofícios de registros públicos, com a utilização dos atuais sistemas de armazenamento de dados, conforme acima já abordado, o que poderá ser realizado não apenas sem custos adicionais, mas com sua redução. Isso poderá ser crucial para a sobrevivência de nosso país em face de um ataque cibernético com emprego de computação quântica. Portanto, a adoção do blockchain significará importante modernização do sistema de registros públicos de nosso país, que se tornará ainda mais transparente, seguro, módico e eficiente. No entanto, sobressai ser essencial, em face da iminência da computação quântica e de novas tecnologias que poderão vulnerar redes blockchain, que, em paralelo, a rede de ofícios de registros públicos, sob a coordenação do SERP, mantenha o sistema tradicional de armazenamento de dados em servidores desconectados da web, mantidos no SERP e distribuídos pelos diversos ofícios, onde seriam armazenadas as mesmas informações registrais inseridas em seu blockchain. Dessa forma, será possível preservar os relevantes dados sobre a titularidade de bens, direitos e identidades, o que poderá evitar catástrofe irreversível, de custo inestimável, que destruiria a economia de nosso país e levaria muitos à miséria, devido à perda de quase todos os seus bens. Finalmente, cabe ainda lembrar que a rede cartorária do Sistema Brasileiro de Registros Públicos também presta outros relevantes serviços presenciais à população, a qual, em sua maioria, é pouco versada nas novas tecnologias, nem tem acesso a computadores. E será insustentável a manutenção dessa rede de serviços públicos, se os ofícios de registros públicos não mais realizarem o registro de bens e direitos, que são o seu sustentáculo financeiro. __________ Bernstein, D. J., Buchmann, J., & Dahmen, E. (2009). Post-Quantum Cryptography. Springer. Buterin, V. (2014). A Next-Generation Smart Contract and Decentralized Application Platform. [White Paper]. Ethereum Foundation. Chen, L., Jordan, S., Liu, Y.-K., Moody, D., Peralta, R., Perlner, R., & Smith-Tone, D. (2016). Report on Post-Quantum Cryptography. National Institute of Standards and Technology. De Filippi, P., & Wright, A. (2018). Blockchain and the Law: The Rule of Code. Harvard University Press. Linares, M. D. (2020). Blockchain y publicidad registral inmobiliaria. El documento público digital y digitalización de los registros de bienes y de personas humanas y jurídicas. 34JNA. Nakamoto, S. (2008). Bitcoin: A Peer-to-Peer Electronic Cash System. [White Paper]. Shor, P. W. (1994). Algorithms for Quantum Computation: Discrete Logarithms and Factoring. Proceedings 35th Annual Symposium on Foundations of Computer Science. Swan, M. (2015). Blockchain: Blueprint for a New Economy. O'Reilly Media. Tapscott, D., & Tapscott, A. (2016). Blockchain Revolution: How the Technology Behind Bitcoin Is Changing Money, Business, and the World. Penguin.
Introdução Neste artigo propõe-se examinar a responsabilidade civil dos notários e registradores brasileiros à luz do tratamento dispensado pela Constituição Federal, lei dos registros públicos, Estatuto dos Notários e Registradores e jurisprudência, fazendo-se uma análise de seus possíveis avanços e retrocessos até a fixação do entendimento majoritário atual. Quanto à metodologia, empregou-se o método indutivo na coleta e exame material bibliográfico e na análise, o método dedutivo. Da responsabilidade civil dos titulares das serventias A responsabilidade civil de notários e registradores no Brasil é uma questão que de longa data tem causado discussões perante os órgãos judiciais e mesmo atualmente, com a pacificação no âmbito jurisdicional, conforme Tema 777 da Suprema Corte de Justiça do País, continua sendo objeto de polêmica. A fim de bem situar o leitor, antes que se adentre na análise da responsabilidade civil desses profissionais, necessário se faz recordar o tratamento dado à matéria nos últimos anos. Para tanto, tomar-se-á como parâmetro de corte o texto da lei 6.015/73, com vigência a partir de 1ª/1/76. Pois bem, esse diploma legal também conhecido como lei dos registros públicos, adotou a teoria da responsabilidade subjetiva, exigindo, em caso de reparação, que o oficial, seus substitutos e demais prepostos tenham agido com dolo ou culpa, em prejuízo do interessado no registro. Aqui cabe abrir um parêntese, pois em que pese a lei falar em oficial e registro, o texto deve ser lido como direcionado ao titular da serventia, ou seja, abrange tanto os registros públicos quanto as notas. Esclarecido isso, entende-se que ao entrar em vigor a Constituição de 1988 a questão ganhou novos contornos, vacilando a jurisprudência ora para o lado da teoria da responsabilidade subjetiva, ora encampando a teoria da responsabilidade objetiva (direta ou indireta), tese esta que passou ser a preferida quando entrou em vigor a conhecida lei dos notários e registradores, diferente do período compreendido entre 5/12/88 e 18/11/84, no qual prevaleceu o entendimento da responsabilidade sem culpa, isto é, necessitava-se fazer prova do fato e do nexo de causalidade para daí surgir a obrigação de indenizar. Noutro giro, a tese da responsabilidade objetiva foi combatida duramente anos pelos notários e registradores, até que a lei 13.286, de 10/5/16, ao dar nova redação ao art. 22 da lei 8.935/94, restabeleceu a teoria subjetiva, confirmada pelo STF quando do RE 842.846 - Santa Catarina, dando repercussão geral para fixar o entendimento no sentido de que o Estado responde de forma objetiva pelos ações ou omissões dos notários e registradores que causarem prejuízos a terceiros, assegurando-se o direito de regresso. Vale lembrar, que a lei 6.015/94 na maioria de seus aspectos foi recepcionada pela Constituição Federal e que a lei 8.935/94 em momento algum chegou a afirmar que notário e registradores estariam sujeitos a uma responsabilidade objetiva, portanto, não teria derrogado, neste particular aspecto, a lei dos registros públicos, e, com a redação dada pela lei 13.286/16 ao parágrafo único de seu art. 28, não restam dúvidas de que em um primeiro momento, eventual ação deverá ser dirigida contra o Estado. Todavia, MEIRELLES1 atualizado por Eurico de Andrade Azevedo, leciona que tanto as pessoas físicas quanto as pessoas jurídicas prestadoras de serviço público devem responder conforme o princípio da responsabilidade sem culpa, pois entende não se justificar que "(...) a só transferência da execução de uma obra ou de um serviço originalmente público, ao particular, descaracterize sua intrínseca natureza estatal e libere o delegatário das responsabilidades próprias do Poder Público(...)", muito embora em relação aos notários e registradores, julgue que o Estado ainda continua com responsabilidade subsidiária, isto é, o Estado somente  assumiria a responsabilidade por atos do delegatário na impossibilidade desse agente não contar com recursos para ele próprio fazer o ressarcimento dos danos causados a terceiros em razão de seu ofício, tese esta já superada. No plano doutrinário, entretanto, razão assiste a BENÍCIO2 que, no estudo sobre a responsabilidade civil do Estado decorrente de atos notariais e de registro ao indagar se as pessoas físicas prestadoras de serviço público estão alcançadas pelo disposto no art. 37, § 6º da Constituição, responde que  notários e registradores, em decorrência de atos próprios do serviço, não devem ser responsabilizados com fundamento na teoria do risco administrativo, pois no seu entendimento a responsabilidade objetiva é do Estado, cabendo-lhe unicamente ajuizar ação regressiva contra os titulares das serventias para buscar eventual ressarcimento, mas nesse caso deverá provar que esses profissionais ou seus prepostos agiram com dolo ou culpa em face do tomador dos serviços. De fato, lendo o artigo acima seria bizarro entender que o Constituinte atribuiu aos notários e registradores uma responsabilidade objetiva pela prática de atos próprios de suas atribuições legais, pois a teoria do risco administrativo, aqui discutida dirige-se às pessoas jurídicas, considerando que referido dispositivo constitucional nenhuma referência faz às pessoas físicas prestadoras de serviço público, como é o caso dos notários e registradores, em que pese essa tese ter sido majoritária na doutrina e jurisprudência brasileiras, antes das mudanças trazidas pela lei 13.286/16. Entretanto, o STF tem mantido ao longo de sua história uma jurisprudência firme no sentido de que notários e registradores na posição de ocupantes de cargos públicos, embora latu senso, somente devem ser responsabilizados por atos próprios da atividade notarial e registral, diante da demonstração de uma conduta dolosa ou culposa.   Da responsabilidade civil de interinos e interventores À luz da Constituição, o Estado não deveria prestar os serviços notariais e de registro diretamente, mas em algumas hipóteses assim tem sido feito diante da ausência de delegatários. Com efeito, na vacância eventual de uma serventia decorrente da extinção da delegação ou mesmo sem a extinção, como acontece quando o titular é afastado durante a instauração de um processo administrativo, o serviço notarial ou de registro passa a ser exercido, provisoriamente, por um agente estranho a essas instituições, ou seja, por interino ou interventor, respectivamente. Nessas hipóteses, a lei, embora desviando-se do modelo constitucional, tem admitido que a atividade notarial e de registro seja temporariamente exercida por essas pessoas não concursadas, criando-se uma situação anômala que já deveria ter sido reparada pelo legislador por meio de mecanismos que superassem esses entraves, como por exemplo, estabelecendo-se a obrigatoriedade de um prazo de dois anos prorrogável por igual período na validade dos concursos públicos, pois assim procedendo não se eliminariam os candidatos aprovados nos diversos certames que não foram chamados a assumir as serventias vagas. Por óbvio que nessas circunstâncias, na ausência do delegatário e tendo o Estado designando alguém para responder pelo serviço de forma provisória, deverá, também, ser responsabilizado pelos atos desses agentes administrativos. Na hipótese ora tratada, a responsabilidade civil do Estado é objetiva, pois os seus designados não respondem objetivamente pelos atos próprios da serventia, somente sendo responsabilizados pelos atos que praticarem durante a intervenção ou interinidade, em eventual ação regressiva requerida pela pessoa jurídica de direito público responsável pela designação a título precário. Com efeito, a precariedade do exercício da função notarial e de registro também não retira do Poder Público a responsabilidade pelos atos desses colaboradores esporádicos do Estado, antes reforça. RIBEIRO3 aduz que: Os designados atuam com o objetivo único de assegurar a continuidade do serviço até que a unidade vaga seja levada a concurso, razão pela qual é incompatível a sua manutenção no exercício dessa atribuição, por natureza precária e transitória, caso defendam interesse pessoal contrário à realização do concurso ou qualquer medida que importe no provimento da referida unidade. Agem em nome do Estado, que pode e deve definir seus parâmetros de atuação, pois, em caso de dano decorrente da prestação dos serviços, responde diretamente perante terceiros, com direito de regresso em face daqueles que precariamente designou para responderem pelo expediente vago. Na citada obra4, o autor reafirma que o Estado tem responsabilidade direta e solidária quanto aos danos causados pelo interino no exercício da função notarial e de registro nas referidas unidades vagas, reservando-lhe apenas o direito de regresso em face daqueles que precariamente designou. No mesmo sentido, CENEVIVA5 ao comentar a lei 8.935/94, na obra de igual prestígio, intitulada "Lei dos Notários e Registradores Comentada", consigna que: "(...). No período de vacância do delegado notarial ou de registro, o cumprimento das correspondentes atividades é da responsabilidade do Poder Público até que, após concurso público de ingresso ou de remoção, a vaga seja ocupada(...)". Conclusão Na atual quadra do desenvolvimento do país, a responsabilidade de notários e registradores, por atos lesivos a terceiros no exercício de suas atividades profissionais, não restam dúvidas de que seja subjetiva, a exigir que o delegatário tenha agido com dolo ou culpa, o mesmo ocorrendo com maior razão em relação aos interinos e interventores, eis que não se tratam de pessoas especialmente selecionadas por meio de concursos públicos, aumentando assim a responsabilidade do ente estatal. ___________ BENÍCIO, Hercules Alexandre da Costa. Responsabilidade Civil do Estado Decorrente de Atos Notariais e de Registros. Co. edição. rev. dos Tribunais. São Paulo: 2005, p. 205. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo. 34. edição. São Paulo: 2008. STJ - Recurso Especial n.º 476532/RJ, Quarta Turma, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, julgado em 20/05/2003 - (DJ 04.08.2003). CARMO, Jairo Rodrigues Vasconcelos, Direito Notarial e Registral. Coordenadora Vania Mara Nascimento Gonçalves 1. edição. 2008 - 2 - Tiragem  - Editora Forense - . Rio de Janeiro: 2008. RE 209354 - AgR-PR. RIBEIRO. Luís Paulo Aliende. Regulação da função pública notarial e de registro. São Paulo: Saraiva, 2009. pg. 110 e 111. RIBEIRO. Luís Paulo Aliende. Regulação da função pública notarial e de registro. São Paulo: Saraiva, 2009. pg. 133. Ceneviva, Walter.  Lei dos Registros Públicos Comentada. 15ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2010. ___________ 1 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo. 34. edição. São Paulo: 2008. 2 BENÍCIO, Hercules Alexandre da Costa. Responsabilidade Civil do Estado Decorrente de Atos Notariais e de Registros. Co. edição. rev. dos Tribunais. São Paulo: 2005, p. 205. 3 RIBEIRO. Luís Paulo Aliende. Regulação da função pública notarial e de registro. São Paulo: Saraiva, 2009. pg. 110 e 111. 4 RIBEIRO. Luís Paulo Aliende. Regulação da função pública notarial e de registro. São Paulo: Saraiva, 2009. pg. 133. 5 Ceneviva, Walter.  Lei dos Registros Públicos Comentada. 15ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2010.
Este trabalho tem como proposta por luzes sobre o aparente paradoxo existente entre a publicidade obrigatória de que trata a Lei dos Registros Públicos e as restrições previstas na Lei Geral de Proteção de Dados. Diante da globalização e do crescente uso da internet é possível, em questão de segundos com um mero toque na tela de um dispositivo tátil ou um clique no teclado de um computador, fazer que uma informação percorra o mundo. Os motores de busca na Internet permitem a todos seus usuários, incluindo a meros curiosos ou a mal-intencionados, encontrar essas informações de maneira quase imediata, o que pode expor dados pessoais que, por um motivo ou outro, circulam em matrículas, registros e certidões dos Registros de Imóveis, em prejuízo da privacidade e intimidade das pessoas referidas nesses documentos. Dessa forma, torna-se necessário a rediscussão dos limites da publicidade oferecida pelo sistema de registro de imóveis brasileiro, tendo em consideração não apenas a lei 6.015/1973 (Lei dos Registros Públicos - LRP), mas também a lei 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados - LGPD) e o Provimento n.149/2023-CNJ que instituiu o Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça - Foro Extrajudicial (CNN/ CN/CNJ-Extra), que regulamenta os serviços notariais e de registro. Com efeito, a lei 6.015/73, denominada Lei dos Registros Públicos, no capítulo IV do título I, ao tratar da publicidade dos atos concernentes aos registros públicos, prescreve no seu art. 17 que "(...) qualquer pessoa pode requerer certidão do registro sem informar ao oficial ou ao funcionário o motivo ou interesse do pedido (...)". Essa norma, que entrou em vigor há mais de 45 anos, portanto, anterior à vigente Constituição da República, praticamente é transcrição do art. 20 do decreto  4.857/39, o qual estabelecia que toda pessoa poderia requerer certidão do registro, sem importar ao oficial ou ao funcionário o motivo ou interesse da solicitação, refletindo, ainda, o pensamento de uma época na qual predominava no Brasil uma sociedade ruralista, onde os deslocamentos aos centros urbanos em busca da instrumentalização de negócios jurídicos eram muito precários, justificando o regramento então vigente. Entretanto, os tempos mudaram, os centros urbanos se desenvolveram, estradas deixaram de ser "caminhos" e foram pavimentadas, o País industrializou-se, tornando-se uma das maiores economias do mundo e, com isso, as pessoas passaram a se locomover com rapidez incomparável. Some-se a isso, as mudanças sociais também ocorridas com o advento da Quarta Revolução Industrial englobando um amplo sistema de avançadas tecnologias (como inteligência artificial, robótica, internet das coisas, computação em nuvem etc.) que mudaram as formas de produção e os modelos dos negócios no mundo inteiro. Para que se tenha uma ideia da magnitude dessas mudanças, segundo pesquisa divulgada no site convergenciadigital.com.br, entre 2018 e 2019, o percentual de pessoas maiores de 10 anos possuidoras de telefone móvel cresceu de 79,3% para 81,0%; entre aquelas que tinham aparelho celular com acesso à internet, o percentual cresceu de 88% para 91% nesse mesmo período. Confirma-se, assim, a existência, e a necessidade, de amplo acesso aos meios de informações. Porém, no particular aspecto da publicidade, a Lei dos Registros Públicos manteve-se inalterada, como se a informação continuasse a ser obtida nos moldes do século XIX. Ora, não se nega que a publicidade seja uma coluna do sistema de registro de imóveis brasileiro, sendo essencial à segurança das transações imobiliárias ao proteger a pessoa diligente que busca no registro informações antes de adquirir um imóvel. E essa busca, tem se ancorado no princípio da confiança, comentado por João Pedro Leite Barros1 ao citar Menezes Cordeiro2, este para quem: "exige-se que as pessoas sejam protegidas quando, em termos justificados, tenham sido levadas a crer na mantença de um certo estado de coisas. Ou seja, a pessoa que legitimamente tenha confiado em um certo estado de coisas não pode receber o tratamento igual se não o tivesse; seria tratar o diferente de modo igual". Todavia, diante das mudanças ocorridas, não há como o Registro de Imóveis fechar os olhos para as transformações da sociedade e continuar a emitir certidões e dar informações a qualquer pessoa, como em épocas pretéritas, devendo fazer no mínimo um filtro para que se saiba qual a pessoa está interessada na obtenção das informações. De fato, retomando a ideia de quando, no Brasil rural, a informação dos registros públicos demorava dias para ser prestada e quando mal utilizada, e não representava um perigo imediato àqueles a quem se referia, agora, com a rapidez trazida pelas novas tecnologias, o risco de causar danos no campo dos direitos à privacidade e à intimidade é muito grande.           Pois bem, se em épocas passadas a obtenção e divulgação de informações sobre a propriedade imobiliária não se propagava de forma tão rápida, isto é, ainda havia um tempo razoável para que o lesado desencadeasse uma contrarreação. Todavia, atualmente, essa conduta proativa do lesado torna-se praticamente impossível, razão pela qual os Registros de Imóveis devem acercar-se de meios que inibam ou restrinjam o fornecimento de informações a pessoas mal intencionadas, criando, no mínimo, um banco de dados com a identificação dessas pessoas, aliás, já exigido para fins de informações ao COAF - Conselho de Controle de Atividades Financeiras. Logo, tendo-se em consideração a defasagem entre a legislação atual em relação às mudanças sociais ocorridas na era digital, é de se entender que o acesso às informações do Registro Imobiliário proporcionado pelo art. 17 da lei 6.015/73 deve ser lido com as modulações dadas pela Lei Geral de Proteção de Dados c/c o Provimento 149/2023-CNJ, sem adentrar na questão envolvendo a legitimidade da pessoa requerente, mas tomando-se o cuidado de documentar cuidadosamente o pedido, a fim de se fazer frente a eventual demanda. Não se nega que parece um paradoxo impor critérios de identificação para a obtenção de certidões. Entretanto, não se deve esquecer que a LRP não proíbe esse tipo de prática, e o que se observa é a necessidade de identificação, em face do princípio da segurança jurídica. Na verdade, a Lei de Registros Públicos e a Lei Geral de Proteção de Dados são normas distintas com impactos diferentes no campo da publicidade, daí a ideia de aparente paradoxo entre elas, mas que estabelecem, na essência, complementariedade em busca da informação e da proteção desta. Nesse ponto, vale lembrar que a LRP estabelece as regras para o acesso e a publicidade dos documentos públicos, com o propósito de garantir a transparência e o acesso à informação por parte da sociedade como um todo. E essa norma determina, por exemplo, que certos documentos devem ser disponibilizados de forma pública. Por outro lado, a LGPD tem como objetivo proteger os dados pessoais dos indivíduos, estabelecendo regras para a coleta, uso, armazenamento e compartilhamento dessas informações por parte de empresas e instituições.  A LGPD foca em garantir a privacidade e a segurança das informações pessoais, dando aos indivíduos o controle sobre seus próprios dados. No contexto da publicidade, a LGPD estabelece que o tratamento de dados pessoais deve ser feito de forma transparente e com o consentimento do titular dos dados. Isso significa que as empresas que utilizam dados pessoais para fins publicitários devem informar claramente aos usuários como esses dados serão utilizados e obter o consentimento explícito para essa finalidade. Dessa forma, o que se tem é que a publicidade da Lei de Registros Públicos e da LGPD se relacionam, pois, ambas têm como objetivo garantir a transparência e o acesso à informação, porém a LGPD traz uma preocupação adicional com a proteção dos dados pessoais dos indivíduos, e em consonância com as novas perspectivas da sociedade, o que não se observava, nesse ponto, na LRP, esta que, como já mencionado inicialmente, entrou em vigor há mais de 45 anos. Portanto, ao realizar a publicidade no registro de imóveis, é necessário considerar tanto as regras estabelecidas pela LRP quanto as restrições contidas pela LGPD, garantindo a conformidade com ambas as legislações, visando assegurar a transparência e a legalidade no processo de divulgação de informações sobre os imóveis e, também, proteger os dados pessoais dos titulares. Tanto é verdade, que o já mencionado Provimento n.149/2023 - CNJ consagra essa ideia ao criar um título específico sobre proteção de dados pessoais, com referência expressa à LGPD, cuja interpretação, a toda evidência, é no sentido de alinhamento entre as normas.   Sendo assim, e diante desse relacionamento harmônico entre LRP e LGPD, como visto, pode-se concluir, com as vênias devidas, que o paradoxo entre elas não passa mesmo de aparente, e talvez se criou por uma ideia pouco ortodoxa de quem em algum momento duvidou daquilo que realmente buscou o legislador ordinário, bem como do que os novos tempos programam para o melhor convívio em sociedade. Referências bibliográficas BARROS, João Pedro Leite. Direito à informação repercussões no direito do consumidor. Indaiatuba, São Paulo: Editora Foco, 2022, p. 59. CORDEIRO, António Menezes. Da Natureza civil do direito de consumo. Estudos em memória do Professor Doutor Antônio Marques dos Santos. Coimbra: Almedina, 2005. Confira também: CORDEIRO, António Menezes. Da boa-fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 2015, p. 1234-1251. __________ 1 BARROS, João Pedro Leite. Direito à informação repercussões no direito do consumidor. Indaiatuba, São Paulo: Editora Foco, 2022, p. 59. 2 Vide CORDEIRO, António Menezes. Da Natureza civil do direito de consumo. Estudos em memória do Professor Doutor Antônio Marques dos Santos. Coimbra: Almedina, 2005. Confira também: CORDEIRO, António Menezes. Da boa-fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 2015, p. 1234-1251.
RESUMO Tendo em vista a extensão deste texto - justificada pela necessidade de digerir ao leitor um assunto recheado de conceitos da economia não tão familiares -, convém começar o presente texto resumindo, em frases diretas, as ideias principais. Segue resumo das ideias do texto: A lei dos juros legais (lei 14.905/24) promoveu alterações relevantes na sistemática dos juros remuneratórios, dos juros moratórios e da correção monetária. Buscou uniformizar essas regras para todas as dívidas civis, inclusive para as de contribuição condominial. Sua entrada em vigor dar-se-á em 30/8/2024 (capítulos 1 e 6). Convém que a calculadora interativa a ser criada pelo BACEN - Banco Central do Brasil seja mais completa do que a atual Calculadora do Cidadão e ofereça cálculos mais completos com diferentes marcos temporais e diferentes eventos, com funcionalidades até mais avançadas das tradicionais calculadoras disponibilizadas pelos sites de Tribunais. A ideia é permitir que o cidadão, com facilidade, obtenha um resultado rápido (capítulo 1). Juros remuneratórios são preço e são devidos no período da normalidade contratual. Já os juros moratórios são devidos no período da anormalidade. A permissão, em contratos bancários, de cobrança de juros remuneratórios no período da anormalidade é fruto de atecnia taxonômica e representa, na verdade, uma espécie de indenização por lucros cessantes (capítulo 2). O índice supletivo de correção monetária para as dívidas em geral é o IPCA - Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo, índice que mede, de oficial, a inflação no país (capítulo 3). Convém que o CNJ esclareça que os débitos judiciais deverão passar a ser corrigidos pelo IPCA, e não mais pelo INPC. Similar medida de esclarecimento pelo Poder Executivo mediante decreto seria bem-vinda (capítulo 3.2.). Os juros moratórios convencionais não podem exceder o dobro dos juros moratórios legais (capítulo 4.1.). Os juros moratórios legais é o resultado positivo da seguinte equação: Taxa Selic - IPCA (capítulo 4.2.). Em regra, os juros remuneratórios não podem exceder o dobro dos juros moratórios legais e não podem sujeitar-se a capitalização em periodicidade inferior à anual (capítulo 5.2.). Não se aplica o teto dos juros remuneratórios nem outras restrições da lei de usura (como a vedação de capitalização de juros em periodicidade inferior à anual) para obrigações entre pessoas jurídicas ou para obrigações no âmbito do mercado financeiro (capítulo 5.2.2.). No caso de alguma pessoa natural vier a ser considerada coobrigada ou corresponsável de uma dívida de pessoa jurídica com juros remuneratórios acima do teto dos juros remuneratórios (como nos casos de fiança ou de desconsideração da personalidade jurídica), há necessidade de recálculo da dívida. É que a pessoa natural só pode ser obrigada a juros remuneratórios acima do teto da lei de usura em obrigações no âmbito do mercado financeiro. A integralidade da dívida originária, sem a restrição do teto, só pode ser cobrada da pessoa jurídica (capítulo 5.2.3.). Mesmo nos casos de não incidência do teto da lei de usura, o índice pactuado de juros remuneratórios pode ser considerado nulo por abuso de direito se excederem colossalmente a média de mercado, sem qualquer justificativa da particularidade do caso concreto (capítulo 5.2.3.). É descabido invocar o teto da lei de usura em operações de factoring ou nas de antecipação de recebíveis de cartão de crédito, pois inexiste aí o fato gerador dos juros remuneratórios (capítulo 5.2.4.1.). As novas regras de juros remuneratórios não se aplicam a contratos anteriores, nem mesmo sobre prestações pendentes ou vincendas. É diferente do que se dá em relação às novas regras de juros moratórios, que atingirão as prestações pendentes ou vincendas de contratos anteriores (capítulo 6). 1. Introdução e a necessidade de a calculadora do BACEN ser mais funcional Qual é o índice dos juros moratórios legais? Há teto para os juros remuneratórios? Qual é o índice devido a título de correção monetária?1 Este artigo volta-se a discutir essas questões diante do cenário desenhado pelo que chamamos de lei dos juros legais (lei 14.905/24), que entrará em vigor em 30/8/24.2 Averbamos que a nova lei preferiu adotar índice oscilante para lidar com o tema, o que inevitavelmente torna os cálculos mais complexos. Prova disso é que o art. 4º da lei dos juros legais (lei 14.905/24)3 determina que o BACEN disponibilize ao público uma espécie de calculadora interativa. A nova lei não seguiu uma alternativa muito vantajosa em termos de simplificação e de sistematicidade (a adoção um percentual fixo de juros moratórios legais) sugerida no recente anteprojeto de reforma do Código Civil4 e tão magistralmente defendida pelo ministro Luis Felipe Salomão em recente voto perante o STJ por ocasião do julgamento do REsp 1.759.982/SP.5 Seja como for, o ideal é que, no mínimo, a calculadora interativa seja mais completa do que a atual Calculadora do Cidadão disponibilizada no site do BACEN6 e vá além para oferecer cálculos mais completos com diferentes marcos temporais e diferentes eventos, com funcionalidades até mais avançadas das tradicionais calculadoras disponibilizadas pelos sites de Tribunais. A ideia é permitir que o cidadão, com facilidade, obtenha um resultado rápido. Desde logo, fazemos uma ressalva de nomenclatura: Apesar de o texto legal referir-se a taxa de juros (art. 406 e 591, CC), trata-se de atecnia jurídica, pois taxa é um tipo de tributo. Preferiremos o verbete índice em nome da adequada taxonomia jurídica. A propósito, agradecemos ao amigo professor Rafael de Castro Alves, consultor legislativo do Senado Federal, advogado e ex-procurador do BACEN, um dos juristas mais especializados no tema, pelas reflexões que travamos sobre o assunto e que nos ajudaram no amadurecimento de vários pontos. Também registramos agradecimentos ao amigo professor Marlon Tomazette, um dos maiores empresarialistas brasileiros, com quem também pudemos amadurecer reflexões mediante conversas informais. Confira aqui a íntegra da coluna. _____________ 1 Este artigo foi desenvolvido com aportes colhidos ao longo das pesquisas desenvolvidas pelo autor no seu estágio pós-doutoral no Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, sob a supervisão do Professor Eduardo Tomasevicius Filho. 2 60 dias da publicação no Diário Oficial, a qual ocorreu em 1º/07/2024. 3 Art. 4º  O Banco Central do Brasil disponibilizará aplicação interativa, de acesso público, que permita simular o uso da taxa de juros legal estabelecida no art. 406 da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), em situações do cotidiano financeiro. 4 Esse Anteprojeto foi elaborado pela Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil, nomeada pelo Presidente do Senado, presidida pelo Ministro Luis Felipe Salomão e sob a vice-presidência do Ministro Marco Aurélio Bellizze. O Anteprojeto elegia o percentual de 1% ao mês como índice de juros moratórios legais no art. 406 do Código Civil. Disponível aqui. 5 A sessão de julgamento ocorrida em 06/03/2024 está disponível aqui. (a partir de 2:22:00). 6 Disponível aqui.
Este artigo discute se a doação a descendente ou ao cônjuge pode ou não ser feita além da parte disponível. Trata-se de tema importantíssimo em discussões de planejamento sucessório e na formalização dos contratos de doação. Parte disponível corresponde à metade do patrimônio de uma pessoa que possui herdeiros necessários (descendentes, ascendentes ou cônjuge1). A outra metade corresponde à legítima, porção que não pode ser objeto de liberalidades pelo seu titular diante de sua destinação preferencial em favor dos herdeiros necessários. Um dos fundamentos da legítima é apontado por Flávio Tartuce, com apoio nas lições do jurista italiano Angelo Spatuzzi: a necessidade de "equilibrar a autonomia do proprietário com o princípio da solidariedade familiar" (TARTUCE, Flávio. Fundamentos do Direito das Sucessões em outros sistemas e no Brasil. In: Revista Brasileira de Direito Civil - RDCivil, Belo Horizonte, v. 25, jul./set. 2020, p. 127). De fato, não se pode ignorar que o Direito Sucessório, além de outros fundamentos, envolve uma espécie de compensação patrimonial aos familiares, que investiram seu tempo, recursos e esforços em favor da relação familiar. Essa solidariedade familiar, se não tiver sido voluntária, poderá ter sido forçada com base nas regras de Direito de Família. Sobre o tema, trazemos a lume esta explicação (OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Princípio da vontade presumível no Direito Civil. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, janeiro 2023, p. 26): Assim, de um lado, é certo que a proximidade afetiva é um vetor para avaliar a vontade presumível do homo medius na escolha dos sucessores mortis causa. Por exemplo, pais costumam querer deixar o máximo de bens para seus filhos, especialmente se forem menores. De outro lado, porém, o legislador leva em conta também aspectos financeiros, numa ideia de o direito sucessório ser uma compensação patrimonial pelos dispêndios feitos gratuita ou forçosamente ao longo da vida entre os familiares. A própria irrepetibilidade dos alimentos entra nesse cenário. A solidariedade voluntária e a solidariedade compulsória do Direito de Família encontram, no Direito Sucessório, uma potencial compensação financeira. Frise-se o adjetivo potencial: a compensação financeira com a atribuição patrimonial sucessória não necessariamente existirá e, se existir, não necessariamente será na mesma medida. De fato, quando o legislador obriga, por exemplo, os pais a terem de pagar alimentos aos filhos menores, ele move-se essencialmente por razões existenciais de direito de família. O filho não terá de devolver o dinheiro que recebeu do pai a título de alimentos, dada a irrepetibilidade dos alimentos. Todavia, numa verdadeira espécie de compensação pecuniária, inspirado por razões de justiça, o legislador estabelece regras sucessórias em favor dos pais no caso de morte do filho. Esses ascendentes terão uma posição privilegiada na ordem de vocação hereditária. O legislador vai além quando se trata dos familiares privilegiados (ascendentes, descendentes e cônjuge). Ele estabelece a legítima como um limite a liberdade de testar. Quem tem um familiar privilegiado é proibido de dispor de mais de 50% do seu patrimônio por meio de testamento. A razão dessa regra é não apenas de ordem existencial, mas, sobretudo, de ordem patrimonial: o legislador quer garantir uma espécie de compensação financeira pelos dispêndios financeiros (ainda que potenciais) dos familiares privilegiados entre si. É preciso ser direto. Direito sucessório não é um ramo do direito civil baseado apenas em reflexões existenciais ou afetivas. É ramo substancialmente patrimonial. Objetiva partilhar bens. Sem bens, não há transmissão hereditária. É romântico sublinhar aspectos afetivos ou existenciais ao se tratar do direito sucessório, pois, se o falecido não tiver deixado bens, nada haverá a partilhar. Aliás, é por conta desse ambiente mais patrimonializado que o direito sucessório acomoda o princípio da vontade soberana do testador2. Enfim, no direito sucessório, reflexões extrapatrimoniais são importantes, mas em menor escala do que as de índole patrimonial. Logo, é evidente que o legislador precisa fazer reflexões de índole pecuniária para identificar a vontade presumível do falecido, tudo como forma de compensar pecuniariamente os familiares mais próximos. Por exemplo, os genitores investem valores elevadíssimos na criação dos seus filhos menores. O consorte (cônjuge ou companheiro) renuncia a projetos profissionais ou pessoais e investe seu tempo dedicando-se ao bem-estar do outro. O filho, ao adquirir autonomia profissional, tende a ajudar os pais que estejam em situação de necessidade. Além disso, o próprio legislador torna obrigatório esse auxílio financeiro por meio dos alimentos no caso de necessidade de um desses familiares próximos. Em contrapartida, esses familiares privilegiados são prestigiados pelas regras de direito sucessório. Entender o tema sob a ótica do princípio da vontade presumível é ferramenta poderosa não apenas para o juiz enfrentar os casos concretos, mas também para o legislador reavaliar constantemente a atualidade das regras de direito sucessório.  A proteção da legítima é pensada inicialmente como uma restrição à liberdade de testar. O Código Civil "adotou o 'sistema da liberdade de testar limitada', de modo que, se o testador possui herdeiros necessa'rios, ser-lhe-a' vedado dispor, em testamento, de mais da metade de seu patrimo^nio" (OLIVEIRA, Carlos E. Elias de; COSTA-NETO, João. Direito Civil. Rio de Janeiro: Método, 2024, p. 1.497). Daí se segue o princípio da intangibilidade da legítima. Acontece que essa proteção à legítima seria facilmente burlada se se esquecesse que, em vida, a pessoa poderia dispor gratuitamente dos seus bens além da parte disponível, em verdadeira burla à proteção da legítima. Por isso, para evitar esses dribles à legítima, o ordenamento fecha o cerco para liberalidades por atos inter vivos mediante regras protetivas da legítima. Uma dessas regras é a nulidade do excesso no caso de doação inoficiosa, conforme no art. 549 do Código Civil3. Diz-se inoficiosa a doação de bem que exceda à metade do patrimônio do doador, quando este tiver herdeiro necessário. Para tal efeito, leva-se em conta o cômputo do patrimônio no momento da liberalidade. Assim, se uma pessoa doa 80% do seu patrimônio a um terceiro, haverá nulidade de 30% dessa liberalidade por configurar doação inoficiosa (art. 549 do Código Civil). A pergunta central deste artigo é a seguinte: essa nulidade do excesso no caso de doação inoficiosa aplica-se mesmo na hipótese de o donatário ser um dos descendentes do doador ou ser o cônjuge? A resposta, ao nosso sentir, é negativa. Isso, porque, na hipótese de liberalidade a um descendente ou ao cônjuge, o ordenamento lança mão de outra ferramenta protetiva da legítima: o instituto da colação. A colação é o dever de, com a abertura da sucessão mortis causa, os descendentes ou o cônjuge levarem em conta as liberalidades recebidas do falecido como antecipação do respectivo quinhão hereditário procedente da legítima (arts. 2.002 e seguintes do Código Civil). É dever de eles trazerem para comparação com os outros descendentes as liberalidades recebidas do falecido. O objetivo é que, ao cabo da partilha mortis causa, todos os descendentes fiquem com um quinhão hereditário igual a partir da legítima. Aliás, isso explica o porquê de o art. 544 do Código Civil4 estabelecer que a doação feita a descendente ou ao outro cônjuge é um adiantamento do que lhe cabe por herança. Assim, se um pai doar 80% do seu patrimônio a um filho favorito, não haverá prejuízo algum para os demais filhos. Com a futura abertura da sucessão mortis causa do pai, o filho favorito terá de colacionar a liberalidade recebida. Se, por exemplo, há outros três irmãos e se o pai não deixou nenhum bem a partilhar, caberá ao filho favorito reter para si 20% da liberalidade e, a título de excesso, repassar 60% da liberalidade recebida para divisão pro rata com seus irmãos. Desse modo, ao cabo da partilha mortis causa, cada filho ficará com 20% de herança. O raciocínio é parecido quando estamos diante de doação feita a cônjuge. Com a morte de um dos cônjuges, o viúvo terá de colacionar as liberalidades recebidas. Nesse ponto, há um ponto omisso na lei: como ficaria a situação do cônjuge que recebeu liberalidades do outro e que se divorciou antes da abertura da sucessão mortis causa? Esse ex-cônjuge teria ou não dever de colacionar? Tivemos a oportunidade de, em artigo publicado em coautoria com o professor Flávio Tartuce, defender a existência de o ex-cônjuge colacionar as liberalidades recebidas, mesmo não sendo herdeiro. Mas essa colação, no máximo, acarretar-lhe-ia o dever de devolver eventual excesso em relação ao que receberia se não tivesse se divorciado. Sobre o tema, transcrevemos este excerto do artigo5: Começamos este texto com um caso concreto, a fim de analisar a polêmica do seu tema central. Suponha-se que um marido tenha doado um apartamento, de um milhão de reais, para a sua esposa. Na época, esse marido tinha um outro imóvel, uma casa também de um milhão de reais. Tempos depois, o marido vende a casa e gasta o dinheiro com viagens de luxo pelo mundo afora. Após acabar o dinheiro, gasto por ele, o casal entra em uma grave crise, se divorcia e a ex-esposa permanece com o apartamento doado como um bem particular. Alguns anos depois, o ex-marido falece, sem deixar qualquer bem aos seus herdeiros. Supondo-se que o falecido tenha deixado dois filhos unilaterais (descendentes apenas dele, e não da esposa), indaga-se: esses filhos podem exigir da ex-madrasta a colação daquele apartamento? O caso acima chama a atenção para uma questão que não está bem explicitada no texto do Código Civil, qual seja a dúvida se o viúvo ou o ex-cônjuge têm ou não o dever de colacionar. (...) O problema (...) reside na hipótese em que, antes do falecimento, tenha ocorrido o fim do relacionamento do casal. A questão, nesse caso, é saber se o ex-cônjuge tem ou não o dever de colacionar as liberalidades recebidas. O exemplo que indicamos no início do artigo realça exatamente essa questão. Pois bem, sobre essa problemática, existem duas correntes bem definidas. A primeira delas afirma que o ex-cônjuge não tem qualquer dever de colação, pois trata-se de instituto reservado apenas a herdeiros necessários, especificamente aos descendentes e ao cônjuge que ainda mantinha vínculo conjugal com o falecido ao tempo da morte. Em síntese, como o ex-cônjuge não é herdeiro por ter rompido o vínculo conjugal antes da abertura da sucessão mortis causa, nada lhe caberia colacionar. O fato de ele ter se divorciado antes da morte seria uma espécie de blindagem às liberalidades recebidas. Só restaria aos filhos unilaterais, no exemplo indicado no início deste texto, o lamento. Nem mesmo lhes sobraria eventual tentativa de invalidação de doação inoficiosa, uma vez que, à época da liberalidade, o falecido havia respeitado os limites da sua parte disponível, em consonância com o art. 549 do Código Civil, que veda as doações inoficiosas, com a seguinte dicção: "nula é também a doação quanto à parte que exceder à de que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento". A segunda corrente, por sua vez, é pela obrigatoriedade de o ex-cônjuge colacionar a liberalidade recebida, mesmo não sendo herdeiro. Essa colação, porém, seria feita apenas para o ex-cônjuge devolver o eventual excesso do que foi recebido, supondo-se que ele não tivesse se divorciado e ainda fosse herdeiro. A colação não transformará o ex-cônjuge em herdeiro e, portanto, jamais poderá beneficiá-lo com mais bens. A ideia, para essa vertente, é a de que o dever de colação do ex-cônjuge não é para beneficiá-lo com a condição de herdeiro, mas sim para evitar que os descendentes sejam prejudicados pelo simples fato de, antes da morte, o falecido ter se divorciado. Objetiva-se proteger os descendentes do falecido na hipótese de o patrimônio líquido deixado por ele não ser suficiente para aquinhoá-los com uma porção, no mínimo, igual à liberalidade recebida pelo ex-cônjuge. No exemplo citado no início deste texto, como o falecido nada deixou de patrimônio, pois tudo gastou, a ex-esposa teria de colacionar o apartamento de um milhão de reais para igualação de legítimas com os dois filhos unilaterais do falecido. E, considerando-se a atual concorrência sucessória entre os descendentes e o viúvo quanto a bens particulares - nos termos do que está no art. 1.829, inc. I, do Código Civil -, cada um deles deveria ficar com um terço do citado apartamento. Logo, a ex-esposa teria de transferir dois terços do apartamento para repartição entre os dois filhos unilaterais, descendentes somente do autor da herança. Caso, porém, o falecido tivesse partido desta vida em prosperidade financeira, deixando, a título de ilustração, um patrimônio de dez milhões de reais, não haveria qualquer necessidade de a ex-esposa transferir frações ideais do apartamento aos dois filhos unilaterais do falecido. Isso porque os filhos já haverão de receber, a título de herança, cinco milhões de reais, valor muito superior à liberalidade recebida em vida pelo ex-cônjuge. Evidentemente, o ex-cônjuge nada poderá reivindicar a título de herança, pois não é herdeiro. Portanto, a colação será imposta apenas para beneficiar os descendentes do falecido, e não para prejudicá-los. Entre as duas correntes, adotamos, com unanimidade, a segunda e última, fruto de uma interpretação extensiva e sistemática dos arts. 544 e 2.002 do Código Civil e que efetiva, com justiça, equidade e correição, a aplicação do bom Direito.  Em suma, entendemos que não se aplica a regra de nulidade de doação inoficiosa prevista no art. 549 do Código Civil para as hipóteses de doações feitas a descendentes ou a cônjuge, visto que, nesses casos, prevalece a regra especial relativa ao dever de colação (art. 544 e 2.002 e seguintes do Código Civil). A título de curiosidade, o Anteprojeto de Reforma do Código Civil, elaborada pela Comissão de Juristas nomeada pelo Presidente do Senado Federal (2023/2024), sugeriu deixar esse entendimento textual no art. 549 do Código Civil mediante ressalva expressa à hipótese do art. 544 do Código Civil. Este é o texto do Anteprojeto: "Art. 549. Salvo na hipótese do art. 544, é ineficaz a doação quanto à parte que exceder à de que o doador poderia dispor em testamento, no momento da liberalidade. (...)". Para saber mais dos trabalhos da comissão e do seu relatório final, ver: https://legis.senado.leg.br/comissoes/comissao?codcol=2630. _____________ 1 É o art. 1.845 do Código Civil: "Art. 1.845. São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge". 2 OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Princípio da vontade soberana do testador e o censurável "testamento magistral". Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-set-21/direito-civil-atual-principio-vontade-soberana-testador-censuravel-testamento-magistral. Publicado em 21 de setembro de 2020 (publicado na coluna "Direito Civil Atual", mantida pela Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo). 3 Art. 549. Nula é também a doação quanto à parte que exceder à de que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento. 4 Art. 544. A doação de ascendentes a descendentes, ou de um cônjuge a outro, importa adiantamento do que lhes cabe por herança. 5 TARTUCE, Flávio; OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Viúvo ou ex-cônjuge têm o dever de colacionar as liberalidades recebidas? Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/familia-e-sucessoes/397733/viuvo-tem-o-dever-de-colacionar-as-liberalidades-recebidas. Publicado em: 29 de novembro de 2023.
1. Introdução Com a lei 13.986/20, conhecida como "nova lei do agro", foram introduzidas significativas inovações nas operações de crédito rural no Brasil. Dentre as alterações mais destacadas, destacam-se a criação de dois novos tipos de garantias: O FGS - Fundo Garantidor Solidário e o PRA - Patrimônio Rural em Afetação. Adicionalmente, a legislação estabeleceu um título de crédito específico para o setor agropecuário, a CIR - Cédula Imobiliária Rural. Estas cédulas desempenham um papel essencial no financiamento dos setores agropecuário e industrial no país. Com a nova normativa, houve alterações substanciais na emissão e no registro desses títulos, possibilitando a emissão eletrônica das cédulas de crédito rural por meio de sistemas autorizados pelo Banco Central do Brasil. Este artigo explora as consequências dessas mudanças, especialmente no que tange ao registro das cédulas de crédito no Livro 3 - Registro Auxiliar, sob a jurisdição do registro de imóveis. A competência para o registro das cédulas de crédito rural e de produto rural foi transferida para entidades autorizadas, ainda que as garantias reais associadas permaneçam sujeitas ao registro no cartório de registro de imóveis. Além disso, serão discutidas a dispensa e a obrigatoriedade do registro no Livro 3, bem como a manutenção do registro de penhor e outras garantias vinculadas. Compreender estas nuances é crucial para profissionais do Direito Imobiliário, do agronegócio, das instituições financeiras e demais interessados na emissão, no registro e na garantia das cédulas de crédito. Abordaremos também, o registro no (Livro 2 - Registro Geral) referente a garantia de hipoteca e/ou alienação dos títulos oriundos das cédulas de crédito industrial, exportação e comercial e a obrigatoriedade do registro no (Livro 3 - Registro Auxiliar) destas cédulas. Também será abordada a necessidade de registro no Livro 2 - Registro Geral para garantias como hipoteca e/ou alienação dos títulos provenientes das cédulas de crédito industrial, exportação e comercial. Estes registros são fundamentais para assegurar a efetividade das operações financeiras e a proteção dos direitos envolvidos, e a obrigatoriedade do registro no (Livro 3 - Registro Auxiliar) destas cédulas. 2. O registro da cédula de crédito rural em sistema escritural eletrônico pelo Banco Central do Brasil O art. 45 da lei 13.986/20 alterou o art. 10º e seguintes do decreto lei 167/67, determinando que a cédula de crédito rural poderá ser emitida sob a forma escritural em sistema eletrônico de escrituração, devendo tal ser apenas autorizada pelo Banco Central do Brasil a exercer a atividade de escrituração. "Art. 10-A. A cédula de crédito rural poderá ser emitida sob a forma escritural em sistema eletrônico de escrituração. § 1º O sistema eletrônico de escrituração de que trata o caput deste artigo será mantido em entidade autorizada pelo Banco Central do Brasil a exercer a atividade de escrituração." O FGS, referente a lei 13.986, de 7/4/20, dispõe sobre o patrimônio rural em afetação, a CIR, a escrituração de títulos de crédito e a concessão de subvenção econômica para empresas cerealistas; alterando diversas leis.                     Em virtude da inovação legislativa a escrituração de títulos de crédito, o registro das Cédulas de Produto Rural e Cédulas Crédito Rural não é mais competência do registro de imóveis, todas as cédulas oriundas de que trata a lei 8.929/94 e o decreto-lei 167, de 14/2/67, respectivamente, não dependem de registro imobiliário em livro especial mas tão somente o registro das garantias reais e elas vinculadas. Vejamos como se trata o art. 42 da lei 13.986/20 in verbis: O art. 42, §1º da lei 13.986/20 dispõe que: "Art. 12. A CPR emitida a partir de 1º de janeiro de 2021, bem como seus aditamentos, para ter validade e eficácia, deverá ser registrada ou depositada, em até 10 dias úteis da data de emissão ou aditamento, em entidade autorizada pelo Banco Central do Brasil a exercer a atividade de registro ou de depósito centralizado de ativos financeiros ou de valores mobiliários."                                                          3. Manutenção do registro de penhor rural (Livro 3 - Registro Auxiliar). O art. 42, §1º da lei 13.986/20 dispõe que: § 1º Sem prejuízo do disposto no caput deste artigo, a hipoteca, o penhor rural e a alienação fiduciária sobre bem imóvel garantidores da CPR serão levados a registro no cartório de registro de imóveis em que estiverem localizados os bens dados em garantia. A lei de registros públicos prevê as condições para o registro de penhor de máquinas e contratos de penhor rural nos Livros 2 (Registro Geral) e 3 (Registro Auxiliar). Art. 168 da lei 6.015/73 - No registro de imóveis serão feitas: I - A inscrição: d) do penhor de máquinas e de aparelhos utilizados na indústria, instalados e em funcionamento, com ou sem os respectivos pertences; Art. 178 lei 6.015/73 - Registrar-se-ão no Livro 3 - Registro Auxiliar:      VI - dos contratos de penhor rural;              Dessa forma, é possível efetuar o registro em livro auxiliar do penhor rural originado pelas cédulas de Crédito de Produto Rural, Cédulas de Crédito Rural, Cédulas de Crédito Industrial, à Exportação e Comercial, Cédula de Crédito Bancário e nova Cédula Imobiliária Rural, na circunscrição onde os bens móveis estão localizados. 4. Obrigatoriedade do registro no (Livro 2 - Registro Geral) da cédula de crédito industrial, exportação e comercial E DO (Livro 3 - Registro Auxiliar - cédula) com garantia de hipoteca e/ou alienação FIDUCIÁRIA. Nesse giro, procuramos entender quais as cédulas de crédito têm a necessidade de ser registradas nos Livros 2 (Registro Geral) e Livro 3 (Registro Auxiliar) e, que não houve dispensa pela lei do agro e manteve o registro da cédula no Livro 3 (Registro Auxiliar). A saber: 4.1 Da Cédulas de Crédito Industrial As cédulas de crédito industrial, à exportação e comercial são regidas pelas seguintes leis: Crédito Industrial (decreto-lei 413/69), crédito à exportação (lei 6.313/75) e crédito comercial (lei 6.840/80). Elas devem ser registradas no cartório de registro de imóveis (Livro 3 - Registro Auxiliar) e, nos casos de garantia oriunda de hipoteca ou alienação fiduciária, no Livro 2 - Registro Geral. De acordo com o Art. 178 da LRP: "Registrar-se-ão no Livro 3 - Registro Auxiliar: II - As cédulas de crédito industrial, sem prejuízo do registro da hipoteca cedular." 4.2 Da Cédulas de Crédito Exportação No mesmo sentido, aplica-se a regra também à cédula de crédito à exportação, obediência ao decreto-lei 413, de 9/1/69, referente à cédula de crédito industrial e à nota de crédito industrial. O registro da cédula de crédito à exportação será praticado no Livro 3 - Registro Auxiliar, à cédula de crédito à exportação e a nota de crédito à exportação obedecerão às regras do decreto-lei 413, respeitada a respectiva denominação, conforme os arts. 3º, 4º e 5º da lei 6.313, de 16/12/75, que dispõe sobre títulos de crédito à exportação. Novamente, aplica-se a regra do art. 178 da LRP, in verbis: "Registrar-se-ão no Livro 3 - Registro Auxiliar: II - As cédulas de crédito industrial, sem prejuízo do registro da hipoteca cedular." 4.3 Da Cédulas de Crédito Comercial Conforme a lei 6.840, de 3/11/80, que dispõe sobre títulos de crédito comercial, em seu art. 5º: "Aplicam-se à Cédula de Crédito Comercial e à Nota de Crédito Comercial as normas do decreto-lei 413, de 9/1/69, inclusive quanto aos modelos anexos àquele diploma, respeitadas, em cada caso, a respectiva denominação e as disposições desta lei." Dessa forma, estamos diante de um permissivo legal que aplica à Cédula de Crédito Comercial e à Nota de Crédito Comercial as regras do decreto-lei 413, que dispõe sobre as Cédulas de Crédito Industrial. Portanto, registra-se no Livro 3 - Registro Auxiliar as cédulas de crédito industrial, sem prejuízo da garantia. Logo, aplica-se a obrigatoriedade do registro no Livro 3 da Cédula de Crédito Comercial em obediência a interpretação do art. 5º da lei 6.840, combinados com o art. 178 da LRP, in verbis: "Registrar-se-ão no Livro 3 - Registro Auxiliar: II - As cédulas de crédito industrial, sem prejuízo do registro da hipoteca cedular." Portanto, as Cédulas de Crédito Industrial, à Exportação e Comercial devem ser registradas no registro de imóveis no Livro 3 - Registro Auxiliar (cédula) e, apenas se houver garantia real de imóvel, também no Livro 2 - Registro Geral (hipoteca ou alienação fiduciária). Em síntese, a legislação vigente estabelece que as Cédulas de Crédito Industrial, à Exportação e Comercial devem ser registradas no Livro 3 - Registro Auxiliar do cartório de registro de imóveis, sem prejuízo das garantias adicionais como hipoteca ou alienação fiduciária, que são registradas no Livro 2 - Registro Geral. Essa regulamentação visa assegurar a clareza e a eficácia no processo de registro dessas cédulas, garantindo a segurança jurídica necessária para as operações financeiras que envolvem tais títulos de crédito. 5. Dispensa do registro das cédulas DE CRÉDITO no Livro 3 - (Registro Auxiliar) de que trata as cédulas do decreto-lei 167/67. Primeiramente, em face da revogação do art. 178, II da LRP e da lei 8.929/94, e dos arts. 30 ao 40 do decreto lei 167/67 e do art. 167, I. 13 e do art. 178, inciso II, ambos da LRP, não é mais obrigatório o registro das cédulas de crédito rural nem das cédulas de produtor rural, tendo sido dispensado o registro no livro auxiliar, conforme dispositivos a seguir: Art. 12 da lei 8.929/94, "§2º A validade e eficácia da CPR não dependem de registro em cartório, que fica dispensado, mas as garantias reais a ela vinculadas ficam sujeitas, para valer contra terceiros, à averbação no cartório de registro de imóveis em que estiverem localizados os bens dados em garantia, devendo ser efetuada no prazo de 3 dias úteis, contado da apresentação do título ou certidão de inteiro teor, sob pena de responsabilidade funcional do oficial encarregado de promover os atos necessários. de que trata o decreto-lei 167, de 14/2/67." O art. 178, inciso II, da lei 6.015/73, que permitia o registro das cédulas de crédito disciplinadas pelo decreto-lei 167 no Livro 3 - Registro Auxiliar, foi revogado pela lei do agro. Destaco que, a partir dessa revogação, é necessário que as garantias reais constituídas, tais como penhor, hipoteca e alienação fiduciária, sejam registradas para fins de publicidade registral. Assim, torna-se imprescindível e obrigatório o registro dessas garantias no competente registro de imóveis, no Livro 2 - Registro Geral. Art. 12, §1º lei 8.929/94, sem prejuízo do disposto no caput deste artigo, a hipoteca, o penhor rural e a alienação fiduciária sobre bem imóvel garantidores da CPR serão levados a registro no cartório de registro de imóveis em que estiverem localizados os bens dados em garantia.  Assim, as Cédulas de Crédito Rural, a Cédula de Produto Rural, a Cédula Rural Pignoratícia, a Cédula Rural Hipotecária, a Cédula Rural Pignoratícia e Hipotecária, a nova CIR - Cédula Imobiliária Rural criada pela lei do agro, bem como a Cédula de Crédito Bancário, não serão registradas no Livro 3 - Registro Auxiliar. Isso ocorre porque tal registro não é mais obrigatório de acordo com a lei do agro e a lei de registros públicos. Contudo, as garantias constituídas por essas cédulas continuam sujeitas ao registro, assegurando a formalização e a publicidade necessárias para a proteção dos direitos envolvidos. Os dispositivos da lei do agro mencionados foram inseridos em todas as legislações, conforme demonstrado a seguir. Este quadro mostra a obrigatoriedade e a dispensa nos seguintes livros: LIVRO 3 - REGISTRO GERAL (CÉDULA) LIVRO 2 - REGISTRO GERAL (GARANTIA) LIVRO 3 - REGISTRO ESPECIAL (CÉDULA) Penhor. 6. Tabela de dispensa e obrigatoriedade de registro no livro 2 E 3. __________ Art. 45 da Lei nº 13.986/2020 (lei do agro) alterou o artigo 10º e seguintes do Decreto Lei nº 167/67. Cédula Crédito de Crédito Rural (D. Lei nº 167/67) Cédula Produto Rural (Lei nº 8.929/94) Cédula Crédito Comercial (Lei nº 6.840/80) Cédula Crédito Industrial (D. Lei nº 413/69) Cédula Crédito à exportação (Lei nº 6.313/75) Cédula Crédito Bancário (Lei nº 10.931/04)
quarta-feira, 3 de julho de 2024

O acertado provimento 172 do CNJ

Conforme já propunha a doutrina1, o provimento 172 do CNJ, publicado em 5/6/24, resolveu que "a permissão de que trata o art. 38 da 9.514/97 para a formalização, por instrumento particular, com efeitos de escritura pública, de alienação fiduciária em garantia sobre imóveis e de atos conexos, é restrita a entidades autorizadas a operar no âmbito do SFI - Sistema de Financiamento Imobiliário (art. 2º da lei 9.514/97), incluindo as cooperativas de crédito." 2 Em recente artigo publicado neste portal, defendeu-se que um dos consideranda do provimento 172 teria reproduzido leitura equivocada da decisão do CNJ no PCA 0000145-56.2018.2.00.0000. Alegou-se, quanto a isso, que seria "equívoca a interpretação do corregedor de que o acórdão do CNJ teria ratificado provimento que limita o uso de instrumento particular para alienação fiduciária somente para entidades que operam no SFI, conforme definição do art. 2º da lei 9.514/97." Não houve, no entanto, nenhum equívoco: De acordo com a ementa da decisão, em trecho imediatamente anterior a afirmações sobre a competência normativa do órgão, "[o] entendimento sufragado pelo Tribunal mineiro é razoável e encontra ressonância na legislação de regência". É o que se pode ler também do acórdão: "A hermenêutica jurídica e legislativa levada a efeito pelo TJ/MG é razoável e guarda sintonia com os entendimentos de outros tribunais, a exemplo do TJ/PA, TJ/MA, TJ/PB e TJ/BA, que também inadmitem o uso de instrumento particular para entidades não integrantes do SFI." Noutros termos, a decisão do CNJ ratificou a interpretação que limita o uso de instrumento para alienação fiduciária somente para entidades que operam no SFI. Argumenta-se, além disso, que a decisão do CNJ não teria respeitado a sistemática da lei 9.514/97. O argumento revolve o entendimento de que o art. 22, § 1º (que esclarece que a alienação fiduciária de coisa imóvel pode ser contratada por entidade que não participa do SFI) deve ser empregado na interpretação do art. 38 (que autoriza o emprego de "instrumento particular com efeitos de escritura pública"). Uma vez mais3, o argumento é inapropriado. O art. 22, § 1º, trata tão somente do âmbito subjetivo do contrato de alienação fiduciária em garantia. Essa regra nada diz sobre o efetivo objeto do art. 38. Não é possível, do ponto de vista sistemático, extrair do art. 22, § 1º, que autoriza a contratação da alienação fiduciária, qualquer prescrição de forma. Dito de outra forma: Se um texto normativo permite que as entidades A e B celebrem o contrato de alienação fiduciária, dessa permissão, por si só, do ponto de vista jurídico, não decorre nenhuma consequência para a interpretação de normas, na mesma lei, quanto à forma prescrita para tal contrato. São regras distintas. Nada disso é novo. Restringir o uso do "instrumento particular com efeitos de escritura pública" a entidades integrantes do SFI é reconhecer e reafirmar o sentido histórico da figura.4 A atribuição dos "efeitos de escritura pública", afinal, serve - insista-se - para justificar "tratamento registral diferenciado" dos contratos celebrados pelas entidades participantes do SFI.5 Não há sentido algum em estendê-la a entidades que não participem do SFI. Também se levantam, contra o provimento 172 do CNJ, argumentos teleológico-consequencialistas. Fala-se, nesse caso, de "uma clara afronta ao objetivo proposto pelo legislador" nos Marcos Legais da Securitização e das Garantias na medida em que ele aumentaria "sensivelmente os custos de transação das operações de crédito nos mercados de capitais, financeiro e de securitização." Além de ser meramente retórica, não se baseando em nenhum estudo, a afirmação não parece levar em conta, para cálculos de eficiência, variáveis como a qualidade e a confiabilidade dos serviços notariais, que, por meio do controle feito sobre contratos, evitam diferentes tipos de vícios e os custos a eles atrelados.6 É por meio da colaboração notarial que se assegura a formação de consenso juridicamente relevante.7 Nos termos do art. 1º da lei 8.935/94, a lei dos serviços notariais e de registros, a notarização serve a "garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos." Muito longe de gerar "insegurança jurídica", como a retórica vazia tenta fazer crer, a notarização contribui, ao invés, para a elevação de segurança jurídica. Além disso, abrir mão de atributos típicos e historicamente consolidados do notariado latino - como a autenticidade, a segurança e a fé pública - simplesmente em benefício de uma suposta redução de custos de transação pode trazer sérias consequências indesejadas8: A experiência comparada mostra que "exigências de forma aplicáveis a equivalentes funcionais" dos "refinanciamentos hipotecários ofertados a devedores pré-insolventes" nos Estados Unidos "teriam obstado sua disseminação - e, com ela, a eclosão de bolhas imobiliárias - na Europa e na América Latina."9 A atuação de notários enquanto terceiros imparciais altamente qualificados, capazes de promover, na redação da escritura, o interesse de ambas as partes, não pode ser negligenciada. __________ 1 Referências em Alexandre Gonçalves Kassama. Alienação fiduciária e forma pública. Densidade dogmática e adequação funcional. Portal Migalhas, São Paulo, 30 ago. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 29 set. 2023. Também em Osny da Silva Filho, A qualificação do consensualismo: escritura pública e colaboração notarial, Revista do Advogado, São Paulo, n. 160, p. 7-13, dez. 2023, p. 9. 2 O Provimento acrescenta o Capítulo VII ("Da alienação fiduciária em garantia sobre imóveis") ao Título Único do Livro III da Parte Especial do Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça - Foro Extrajudicial (CNN/CN/CNJ-Extra). 3 Osny da Silva Filho, A qualificação do consensualismo: escritura pública e colaboração notarial, Revista do Advogado, São Paulo, n. 160, p. 7-13, dez. 2023, p. 10-11. 4 Reinhard Zimmermann, Roman Law, Contemporary Law, European Law - The Civilian Tradition Today, Oxford: Oxford University, 2001, p. 115: "a better picture usually emerges on the basis of an investigation into the historical development of the modern rules".   5 Osny da Silva Filho, A qualificação do consensualismo: escritura pública e colaboração notarial, Revista do Advogado, São Paulo, n. 160, p. 7-13, dez. 2023, p. 9, nt. 4. 6 Nesse sentido, Claus Ott, Das Notariat im Spannungsfeld von uberliefertem Rechtsstatus und wirtschaftlicher Entwicklung. Eine rechtsökonomische Untersuchung, German Working Papers in Law and Economics - Paper 7, 2001, p. 14. Disponível aqui. Observando que, nas comparações feitas entre diferentes sistemas notariais, não se costuma analisar a qualidade e a confiabilidade dos serviços notariais, que é típica do notariado latino, tampouco os custos do controle de qualidade e os custos derivados dos vícios de qualidade. 7 Osny da Silva Filho, A qualificação do consensualismo: escritura pública e colaboração notarial, Revista do Advogado, São Paulo, n. 160, p. 7-13, dez. 2023, p. 11. 8 Na tradição luso-brasileira, as escrituras são uma herança, inclusive terminológica, da experiência jurídica visigótica, como lembra João Mendes Almeida Junior, Orgams da fé publica. Tabelliães ou  notários. Escrivães e officiaes do juizo. Registradores. Archivistas, Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, São Paulo, v. 5, p. 7-114, 1897, p. 63. Nesse sentido, a Lex Visigothorum, legislação germânica aprovada em 654 d.C. e aplicável em todo o território da Península Ibérica até o século XIII, exigia, para "todo negocio jurídico de alguna importancia", como a compra e venda (LV 5, 4, 3), a scriptura. Cf., a esse respeito, Olga Marlasca Martínez, Algunos requisitos para la validez de los documentos en la lex Visigothorum, RIDA, Bruxelles, v. 45, p. 563-584, 1998, p. 583. 9 Osny da Silva Filho, A qualificação do consensualismo: escritura pública e colaboração notarial, Revista do Advogado, São Paulo, n. 160, p. 7-13, dez. 2023, p. 12.
Este artigo volta-se a discutir se é ou não viável (ou até recomendável) flexibilizar a obrigatoriedade de escritura pública prevista no art. 108 do Código Civil, que estabelece o seguinte: Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no país. Sobre o tema, recentemente, saiu mais um didático provimento da Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ (CN-CNJ), sob a gestão proativa e incansável do ministro Luis Felipe Salomão, que liderou inúmeras iniciativas de alto impacto na organização das atividades notariais e registrais, como a elaboração de um Código Nacional de Normas - CNN-CNJ. Trata-se do provimento 172, que introduziu o seguinte art. 440-AO ao CNN-CNJ: Art. 440-AN. A permissão de que trata o art. 38 da 9.514/97 para a formalização, por instrumento particular, de alienação fiduciária em garantia sobre imóveis e de atos conexos é restrita a entidades que autorizadas a operar no âmbito do SFI - Sistema de Financiamento Imobiliário (art. 2º da lei 9.514/97), com inclusão das cooperativas de crédito. Parágrafo único. O disposto neste artigo não exclui outras exceções legais à exigência de escritura pública prevista no art. 108 do Código Civil, como os atos envolvendo: I. Administradoras de Consórcio de Imóveis (art. 45 da lei 11.795, de 8/10/08); II. Entidades integrantes do Sistema Financeira de Habitação (art. 61, § 5º, da lei 4.380, de 21/8/64. Esse dispositivo consolida a interpretação sistemática e teleológica dada pelo Plenário do CNJ1 ao art. 38 da lei 9.514/97. Reconhece que, à luz desse preceito, somente as entidades integrantes do SFI estão autorizadas a formalizar, por instrumento particular, a alienação fiduciária em garantia de imóveis e os eventuais negócios jurídicos conexos. Trata-se de uma das exceções legais à obrigatoriedade, prevista no art. 108 do Código Civil2, de escritura pública para negócios translativos ou de oneração de direitos reais sobre imóveis de valor superior à 30 salários mínimos. Com preocupações didáticas - próprias de atos infralegais -, o supracitado dispositivo do CNN-CNJ foi além para apontar outros dois exemplos de exceções à obrigatoriedade do art. 108 do Código Civil: A de negócios translativos ou de onerações de imóveis promovidos por administradores de Consórcio de Imóveis e por entidades do SFH - Sistema Financeiro de Habitação (art. 45 da lei 11.795/08; art. 61, § 5º, da lei 4.380/64). Diante desse cenário, indaga-se: Dever-se-ia ou não alargar as exceções legais ao art. 108 do Código Civil, permitindo que particulares ou empresas possam formalizar negócios imobiliários por instrumento particular? A resposta, a nosso sentir, é negativa. Consideramos que essa ampliação seria extremamente danosa à segurança jurídica do nosso ordenamento e frustraria diversas finalidades de interesse público que pairam sobre o tráfego imobiliário. Isso, porque há interesse público na exigência de escritura pública para negócios translativos ou de oneração de imóveis valiosos. Sobre o tema, tivemos a oportunidade de escrever em nosso manual de Direito Civil em coautoria com João Costa-Neto, in verbis: Segundo o art. 108 do CC, devem ser formalizados por escritura pública (documento no qual o tabelião de notas redige o negócio jurídico) negócios jurídicos envolvendo direitos reais sobre imóveis de valor superior a 30 salários-mínimos, considerado o maior salário-mínimo do país. Duas finalidades principais inspiram a norma: (1) monitoramento estatal em relação aos tributos, como o ITBI e o imposto de renda decorrente da valorização do imóvel, conhecido como IR sobre o ganho de capital; e (2) dificultar "grilagens", pois é mais dificil falsificar um contrato de compra e venda de imóvel se este tiver de ser lavrado por um tabelião. Outro exemplo de finalidade que inspira a regra do art. 108 do CC é viabilizar a utilização dos serviços notariais na prevenção de crimes de lavagem de dinheiro e de financiamento de terrorismo e de proliferação de armas de destruição em massa, conforme arts. 137 e seguintes do CNN-CNJ. É que os tabeliães têm dever de reportar eventual indício desses crimes a partir de fatos insólitos nos negócios que vier a formalizar. Na experiência brasileira, as exceções à obrigatoriedade de escritura pública têm ocorrido em favor de instituições financeiras e de administradoras de consórcios de imóveis3, que são submetidas a um regime rigoroso de fiscalização pelo Banco Central. Entendeu o legislador que, por conta desse ambiente regulatório e fiscalizatório capitaneado por uma autarquia (o Banco Central), seria viável flexibilizar a obrigatoriedade de escrituras públicas para a formalização de negócios imobiliários "financiados" por essas entidades. Não é, porém, adequado ultrapassar essa linha vermelha, abrindo espaço para que qualquer empresa ou particular possam lavrar instrumentos particulares com força de escritura pública em negócios imobiliários. Transpassar o Rubicão aí seria abalar a segurança jurídica do sistema imobiliário brasileiro. Todas as finalidades de interesse público supracitadas se frustrariam. Além disso, é segredo de Polichinelo que não necessariamente haveria barateamento para o consumidor, pois é consabido que os agentes privados costumam cobrar "taxas de escrituração" do consumidor ou majorar ocultamente o preço cobrado do consumidor, repassando a este os custos com profissionais contratados para a elaboração dos instrumentos. A visão ora exposta encontra eco na comunidade jurídica majoritária do Direito Civil, do que dá prova o recente anteprojeto de reforma do Código Civil. Esse anteprojeto foi elaborado pela comissão de juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil, nomeada pelo presidente do Senado4, presidida pelo ministro Luis Felipe Salomão e sob a vice-presidência do ministro Marco Aurélio Bellizze. A comissão, integrada por 38 juristas (com inclusão de professores, ministros do STJ e outros juristas), sugeriu a ampliação da obrigatoriedade da escritura pública para negócios imobiliários, exigindo-a mesmo para imóveis abaixo de 30 salários mínimos (com um desconto de emolumentos para esses casos). Veja o texto do novo texto sugerido para o art. 108 do CC: Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis. § 1º Os emolumentos de escrituras públicas de negócios que tenham por objeto imóvel com valor venal inferior a trinta vezes o maior salário-mínimo vigente no país, terão os seus custos reduzidos em cinquenta por cento. § 2º Em caso de dúvida e para as finalidades deste artigo, o valor do imóvel é aquele fixado pelo Poder Público, para os fins fiscais ou tributários. Como se vê, em nome da preservação da segurança jurídica no tráfego imobiliário e na preservação dos diversos interesses públicos que rondam os negócios imobiliários, é inadequado entregar a atores privados o poder de elaborar instrumentos particulares com força de escritura pública, notadamente quando esses agentes não estiverem sujeitos a um rigoroso regime estatal de fiscalização. Do ponto de vista operacional, temos testemunhado uma maximização constante na agilidade na confecção de escrituras públicas pelos cartórios de notas, especialmente depois da permissão dada para a elaboração de escrituras públicas eletrônicas com o provimento 100 do CNJ (o qual foi incorporado ao Código Nacional de Normas do CNJ - provimento 149). Sempre é possível pensar em novas soluções, como, por exemplo, a de o cartório de notas manter escrituras públicas pré-prontas de vendas de uma determinada incorporadora para rápida assinatura (de modo eletrônico) com a concretização de venda. Em suma, a formalização de negócios translativos ou de oneração de imóveis por meio de agentes sujeitos a um regime rigoroso de fiscalização pelo Estado é uma conditio sine qua non da preservação das diversas finalidades de interesse público que cerca o tráfego imobiliário. Não convém, pois, flexibilizar o art. 108 do Código Civil. Ao contrário, parece-nos mais adequada a alternativa de ampliação da obrigatoriedade de escritura pública na forma do apontado no anteprojeto de reforma do Código Civil. _________ 1 CNJ, Procedimento de Controle Administrativo 0000145-56.2018.2.00.0000, Rel. Conselheiro Mário Goulart Maia, julgado em 8 de agosto de 2023. 2 Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País. 3 Art. 6º da lei 11.795/2008. 4 Sobre os trabalhos da Comissão e o relatório final com o anteprojeto. Disponível aqui.
A previsão legal autorizadora do processamento do inventário consensual pela via administrativa se encontrou inauguralmente expressa na lei 11.441, de 4 de janeiro de 2007 que alterou a redação do art. 982 da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 (Código de Processo Civil revogado)1. A disposição legal em destaque permitia o inventário e a partilha por escritura pública se todos os interessados fossem capazes e concordes, não houvesse testamento e todas as partes estivessem assistidas por advogado. Hodiernamente, a autorização legislativa para realização do inventário em tabelionato de notas, a qual possui os mesmos requisitos outrora previstos2, se encontra expressa no art. 610 do Código de Processo Civil3. De sua vez, a regulamentação normativa que disciplina a lavratura dos atos notariais relacionados a inventário e partilha por via administrativa se encontra prevista na Resolução do Conselho Nacional de Justiça nº 35, de 24 de abril de 20074. Dentre as previsões contidas na referida norma, destaca-se a que diz respeito às sucessões causa mortis nas quais conviventes sejas sucessores, in verbis:   Art. 18. O(A) companheiro(a) que tenha direito à sucessão é parte, observada a necessidade de ação judicial se o autor da herança não deixar outro sucessor ou não houver consenso de todos os herdeiros, inclusive quanto ao reconhecimento da união estável. Embora a matriz legal contida no Código de Processo Civil não tenha realizado diferenciação entre cônjuges e conviventes supérstites na escolha do procedimento extrajudicial para o ato, de acordo com a disposição acima em destaque, somente pode ser processado o inventário administrativo nos quais conviventes sejam sucessores se houver concorrência sucessória e os demais herdeiros reconhecerem a união estável. Outrossim, de acordo com a disposição normativa contida no art. 18 da Resolução CNJ nº 35, de 2007 será necessária ação judicial se o convivente for o único sucessor. Considerando que, diferentemente do casamento, a união estável pode ser constituída sem solenidade, a Resolução exige, com espeque em sua redação original, a corroboração fática por parte dos demais herdeiros ou a necessidade de ação judicial se o autor da herança não deixar outro sucessor. Trata-se de discriminação pautada na matriz configuradora do casamento e da união estável, uma vez que a segunda, prima facie, é desprovida de solenidade para a sua constituição. Nada obstante, a evolução social e, por conseguinte, técnico-jurídico da união estável impôs a remodelação da forma ínsita à sua configuração, conferindo a necessidade de releitura das normas de processamento dos inventários nos quais conviventes sejam os únicos sucessores. Clique aqui e confira a coluna na íntegra. __________ 1 Art. 982.  Havendo testamento ou interessado incapaz, proceder-se-á ao inventário judicial; se todos forem capazes e concordes, poderá fazer-se o inventário e a partilha por escritura pública, a qual constituirá título hábil para o registro imobiliário. Parágrafo único.  O tabelião somente lavrará a escritura pública se todas as partes interessadas estiverem assistidas por advogado comum ou advogados de cada uma delas, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial." (NR) 2 De acordo com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, é possível o processamento do inventário no âmbito extrajudicial ainda que exista testamento se os interessados forem capazes e concordes e estiverem assistidos por advogado, desde que o testamento tenha sido previamente registrado judicialmente ou tenha a expressa autorização do juízo competente (REsp nº 1808767 / RJ). 3 "Art. 610. Havendo testamento ou interessado incapaz, proceder-se-á ao inventário judicial. § 1º Se todos forem capazes e concordes, o inventário e a partilha poderão ser feitos por escritura pública, a qual constituirá documento hábil para qualquer ato de registro, bem como para levantamento de importância depositada em instituições financeiras. § 2º O tabelião somente lavrará a escritura pública se todas as partes interessadas estiverem assistidas por advogado ou por defensor público, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial." 4 As Resoluções do Conselho Nacional de Justiças são dotadas de caráter normativo primário, dado que arranca diretamente do § 4º do art. 103-B da Carta-cidadã (v. STF - ADC 12 MC / DF).
1. Introdução e delimitação do tema Apesar da profunda alteração jurídica operada nos serviços a cargo dos tabeliães e registradores pela Constituição de 1988, as leis atuais que disciplinam as delegações e os registros públicos continuam a ser influenciadas pelas normas anteriormente vigentes, a exemplo do que ocorre com a dúvida registral, objeto deste trabalho. A dúvida registral, como aqui defendida, é um procedimento administrativo adotado com supedâneo nas leis e normas administrativas brasileiras e se destina a resolver dissenso entre o registrador e o usuário interessado na prática de algum ato registral, sendo admitida em alguns estados da federação não apenas a dúvida propriamente dita, mas também a dúvida inversa. Nesse sentido, admitir que o ordenamento jurídico em vigor tenha recepcionado, em sua inteireza, a lei dos registros públicos, parece violar a engenharia  constitucional que passou a reger a temática a partir da Constituição de 1988, merecendo ser questionada ou, no mínimo debatida, a posição majoritária presente na doutrina e jurisprudência no sentido de que a dúvida registral deve ser decidida por um juiz, pois essa conformação implicaria na existência da revisão administrativa de atos dos delegatários por uma autoridade judiciária investida, também, de autoridade administrativa, o que seria inconstitucional em face do art. 236 da Constituição Federal, a qual ao transformar o regime jurídico dos titulares das serventias extrajudiciais não permite que o estado realize atos notariais e de registro por conta própria, exceção prevista somente na lei ordinária para os casos do exercício interino. Assim, o panorama parece sinalizar que a dúvida registral não se encontra bem resolvida quanto a sua juridicidade, especialmente no que tange à dúvida inversa. A lei 6.015/73, mesmo com os ajustes recentes, não fornece a necessária pacificação do tema, talvez porque deixa de enfrentar as questões fundamentais que aqui se discutirão brevemente. Com efeito, na seção 1, denominada conceitos básicos em relação à dúvida registral, apresentar-se-á diferentes conceitualizações do termo, para, na seção 2, intitulada dúvida registral e dúvida inversa: Implicações, dedicar-se à análise da natureza jurídica e as implicações da dúvida registral propriamente dita e da dúvida inversa, com especial atenção às escolas jurisprudenciais do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Minas Gerais, São Paulo, Goiás, Pará e Pernambuco, a título de exemplos. Por fim, na seção 3, denominada considerações finais, serão explicitados o posicionamento trazido neste trabalho em relação às duas espécies de dúvida direta/inversa, justificando-o não como mero preciosismo intelectual, mas sim como elemento fundamental para aqueles que defendem que o sistema registral brasileiro seja o reflexo do poder constituinte originário. Quanto à metodologia, empregou-se o método dedutivo, em que se partiu da revisão bibliográfica e pesquisa jurisprudencial da área em questão para a formulação da proposta apresentada. 2. Conceitos de dúvida registral A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 garantiu o direito de propriedade e lhe atribuiu uma função social no art. 5º, incisos XXII e XXIII. Além disso, municiou a sociedade do instrumento por intermédio do qual esse direito poderia ser onerado, transferido e publicizado, a fim de que seja oponível perante todos. Com efeito, o Constituinte estabeleceu um arcabouço de regras (art. 236/CRFB) que, regulamentado pela lei 8.935/94, transformou a natureza jurídica dos popularmente conhecidos cartórios extrajudiciais que passaram a ser denominados serviços notariais e de registro, muito embora a nova nomenclatura não tenha caído no gosto popular. Até então, esses serviços eram prestados por servidores públicos lato sensu, nomeados pelos entes subnacionais (Estados e Distrito Federal), como tabeliães e registradores, os quais, na grande maioria, remunerados exclusiva e diretamente pelos usuários dos serviços por meio de emolumentos e não eram delegatários do Poder Público. Assim sendo, a jurisprudência majoritária, inclusive, do STF, assentou o entendimento de que a remuneração paga diretamente pelos usuários não descaracterizaria a condição de servidor público, haja vista que os emolumentos recebidos por esses agentes públicos têm a natureza jurídica de tributo. Noutro giro, com a Constituição de 1988 os serviços notariais e de registro passaram a ser exercidos por delegação.  No que se refere à dúvida, esse fato ainda não despertou a merecida atenção, pois o entendimento que predomina não leva em consideração essa mudança, conforme se poderá verificar das definições abaixo, trazidas por grandes juristas da área. Confira-se: Walter Ceneviva1 define a dúvida como "o procedimento administrativo pelo qual o serventuário submete à decisão judicial, a pedido do interessado, a exigência apresentada por aquele e não satisfeita por este". Victor Kümpel2 leciona que: A dúvida consiste no procedimento administrativo pelo qual o oficial de registro, a pedido do interessado, submete a exigência apresentada, mas não satisfeita, à decisão judicial. Trata-se de procedimento de revisão hierárquica do juízo administrativo de objeção a uma pretensão de registro.  Lamana Paiva3 afirma que: O procedimento de dúvida é o mecanismo que serve para verificar a correção - ou não - das exigências formuladas pelo registrador, ou para que ele seja autorizado a proceder a um ato registral, quando a parte não apresente condição de atendê-las. Por sua vez, Eduardo Sócrates Castanheira Sarmento4 menciona que "surge a dúvida da objeção fundamentada do delegatário à prática de ato que lhe é solicitada por interessados, na esfera de sua serventia". Sobre o conceito, note-se que a mencionada "revisão hierárquica" diz respeito à superposição dos órgãos de decisão (serventia/juízo), valendo mencionar que tecnicamente é incorreto se falar em hierarquia entre os agentes públicos (juiz/registrador), uma vez que o serviço notarial e de registro é vinculado ao Judiciário, na forma do art. 236, caput e §1º da Constituição Federal e dos arts. 37 e 38 da lei 8.935/94. Nesse sentido, à exceção de Sarmento que se utiliza do termo técnico delegatário, Ceneviva e Kümpel ao se valerem das expressões "serventuário" e "poder hierárquico", respeitosamente, são exemplos claros de que a doutrina majoritária da dúvida já toma por correta a qualificação registral por parte de um juiz no plano administrativo, quando o certo seria que essa "qualificação" fosse realizada por um colegiado de registradores, que por decisão do Constituinte, somente eles poderiam realizar uma qualificação registral imobiliária válida. Confira aqui e confira a íntegra da coluna. ___________ 1 CENEVIVA, Walter. Lei dos notários e registradores comentada, 9 ed. Ver. E atual. - São Paulo: Saraiva, 2014. p. 251. 2 KÜMPEL, Vitor Frederico et. al. Tratado Notarial e Registral. vol. 5. 1ª ed. São Paulo: YK Editora, 2020. Pg. p. 587-588. 3 PAIVA, João Pedro Lamana. O procedimento de dúvida e a evolução dos sistemas registral e notarial no século XXI - 4. Ed. - São Paulo: Saraiva, 2014. p. 75. 4 SARMENTO, Eduardo Sócrates Castanheira. A dúvida registral: doutrina, prática, legislação. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 63.