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Migalhas Notariais e Registrais

Questões práticas e teóricas envolvendo o Direito Notarial e de Registro.

Izaías G. Ferro Júnior, Carlos Eduardo Elias de Oliveira, Hercules Alexandre da Costa Benício, Flauzilino Araújo dos Santos, Ivan Jacopetti do Lago e Sérgio Jacomino
O reconhecimento da filiação, seja ela biológica ou socioafetiva, é uma questão de extrema relevância no âmbito do Direito de Família e das Sucessões e está alicerçado em princípios constitucionais como o da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição Federal), da igualdade entre os filhos (art. 227, § 6º, da Constituição) e do melhor interesse da criança e do adolescente. A legislação infraconstitucional, como o Código Civil, reforça essa visão, especialmente em seus arts. 1.593 (que reconhece as várias formas de parentesco) e 1.607 (que regula o reconhecimento de filhos). A resolução 571, de 27/8/24, deu nova redação à resolução 35/CNJ, introduzindo diversas alterações significativas no intuito de promover a desjudicialização e garantir maior celeridade em assuntos relacionados a inventário, partilha, separação consensual, divórcio consensual e extinção consensual de união estável. Foi, assim, autorizada a extrajudicialização do inventário, mesmo quando as partes sejam pessoas menores ou incapazes, desde que observados os requisitos previstos nos incisos do art. 12-A. Os requisitos a serem observados são os seguintes: Pagamento do quinhão hereditário do menor ou da meação do incapaz em parte ideal em cada um dos bens inventariados e manifestação favorável do Ministério Público, sendo expressamente vedada a prática de atos de disposição relativos aos bens ou direitos do interessado menor ou incapaz, conforme § 1º do mesmo artigo. O § 2º do art. 12-A da resolução 35/CNJ, incluído pela resolução 571/CNJ, estabelece que, havendo nascituro do autor da herança, para a lavratura do inventário, deverá ser aguardado o registro de seu nascimento com a indicação da parentalidade, ou a comprovação de não ter nascido com vida. A disposição do § 2º é compreensível, pois a partilha muda a depender de ocorrer ou não o nascimento com vida desse herdeiro. Assim, a resolução 571 bem regulamentou essa questão do nascituro. Por outro lado, não se pode compreender o disposto no art. 12-B, § 1º, da resolução aqui comentada, que traz a vedação do inventário extrajudicial se na certidão do testamento for constatada a existência de disposição reconhecendo filho. Ora, sabe-se que o reconhecimento de filho no testamento é disposição irrevogável, conforme estabelece a lei 8.560/92, em seu art. 1º, III, e o CC brasileiro, em seu art. 1.609, inciso III. Assim, se constar do testamento válido esse reconhecimento, muito dificilmente deixará de ser considerada essa declaração, pois a anulação do reconhecimento somente será admitida nos casos de existência de vício de consentimento no ato jurídico realizado, o que deverá ser feito judicialmente, na via adequada a este procedimento. Cabe enfatizar que ambas as modalidades de filiação, biológica e socioafetiva, podem ser objeto de testamento. Havendo no testamento o reconhecimento de filiação, e sendo o testamento válido, o meeiro(a) e sucessores devem aceitar tal fato e proceder à inclusão de mais um herdeiro no inventário. Se todas as partes aceitarem o novo herdeiro, não há razão para ser obrigatória a via judicial. Havendo consenso entre as partes, não se pode conceber da proibição da opção pela via extrajudicial. Seria perfeito que o CNJ tivesse determinado que, antes de prosseguir no inventário, fosse averbado no registro civil o nome do pai ou da mãe, de modo que o reconhecimento do filho esteja refletido no seu registro civil, na mesma lógica estabelecida para o caso do nascituro. A melhor hipótese ventilada para justificar a redação da norma que veda o inventário quando há reconhecimento de filho no testamento é a de que a resolução 571 desconsiderou o fato de que o reconhecimento de paternidade pode ser feito diretamente no Registro Civil das Pessoas Naturais, por isso é importante reforçar que não é necessário mover a máquina judiciária para a averbação da paternidade ou maternidade no registro do filho. No caso de o pai biológico ter falecido, vale o testamento como manifestação de vontade dele, como autorizam a lei 8.560/92 e o Código Civil vigente. Já para o reconhecimento socioafetivo, há previsão expressa da aceitação do testamento como manifestação da vontade do pai ou da mãe no provimento 149/CNJ, em seu art. 507, § 8º. Assim, necessário se faz a revisão do disposto na resolução 35/CNJ, quanto ao afastamento da via extrajudicial quando houver filho reconhecido no testamento. Enquanto não houver tal revisão, sugere-se que, quando for apresentado ao Juiz o testamento para fins de seu registro, abertura e cumprimento1, seja informado ao Juiz que a averbação da paternidade ou maternidade já foi realizada e seja solicitada a autorização para a lavratura extrajudicial do inventário. A resolução 35/CNJ, a nova resolução 571/CNJ, bem como outras normas que ampliam as possibilidades de atuação extrajudicial consolidam a tendência à desjudicialização. Contudo, necessário se faz que sejam eliminadas barreiras desnecessárias, haja vista serem os atos notariais e registrais consagrados como instrumentos plenos e legítimos de resolução de questões familiares e patrimoniais. _________ 1 A autorização judicial é obrigatória em qualquer hipótese de existência de testamento, nos termos dos incisos do art. 12B, da Resolução nº 35/CNJ, na nova redação dada pela Resolução 571/CNJ.
Nesta seção da "Oficina Notarial e Registral" vamos tratar hoje de um tema pouco estudado e que pode ocorrer nos processos extrajudiciais de usucapião, adjudicação, execução extrajudicial etc. É possível que no curso desses processos ocorra a reiteração de pedidos de suscitação de dúvida. No caso concreto enfrentado por nós tratava-se de reiteração de dúvida já suscitada e julgada procedente anteriormente - inclusive em grau de recurso, com trânsito em julgado.1 Vamos lançar um breve olhar sobre a jurisprudência escassa que enfrentou raros casos de reiteração de pedidos de suscitação de dúvida. Formou-se, ao longo do tempo, no Eg. Conselho Superior da Magistratura de São Paulo, uma orientação bastante consistente e que vale a pena rememorar para que se iluminem as questões agitadas no caso concreto enfrentado por nós. Sabemos que a dúvida tem natureza administrativa (art. 204 da LRP). As decisões prolatadas  no processo de dúvida (art. 198 da LRP) não produzem eficácia externa, típica da coisa julgada material - salvo se o interessado optar pela via do processo contencioso, como posto na parte final do art. 204 citado. Portanto, no processo de dúvida não ocorre a coisa julgada material. Entretanto, com o trânsito em julgado (art. 203 da LRP), dá-se a coisa julgada formal - na verdade um efeito preclusivo endoprocessual, com o esgotamento da matéria neste âmbito. Segundo Ricardo Dip et al., de fato, não há coisa julgada material no processo de dúvida, mas "pode cogitar-se, contudo, de formação de coisa julgada formal (que melhor se denomina preclusão administrativa", vale dizer: "imutabilidade nos mesmos autos em que proferida".2 A reiteração da dúvida não é incondicionada no sistema registral pátrio, admite-se-a, "desde que se supere motivo anteriormente reconhecido3 ou que se tenha alterado a jurisprudência a respeito das questões tratadas".4 Nery e Nery sustentam que a coisa julgada formal ocorre quando a sentença já não se acha sujeita a recurso ordinário ou extraordinário, quando já se tenham "esgotados todos os meios recursais de que dispunham as partes e interessados naquele processo. Para a coisa julgada formal leva-se em conta, principalmente, a inimpugnabilidade da sentença, vale dizer, o momento em que se forma a coisa julgada".5 Tradicionalmente, o CSMSP sempre entendeu viável a reiteração de suscitação de dúvida, desde que "afastados os motivos e as irregularidades que justificaram as exigências albergadas em anterior decisão de dúvida, mantendo-se, ou não, o reconhecimento de procedência da recusa".6 Nem mesmo os pedidos "de reconsideração" são cabíveis, justamente porque no processo de dúvida a decisão terminativa tem caráter preclusivo. Encerrada a via administrativa, não se pode conceber o revolvimento ou desfazimento das decisões de primeiro e segundo graus. Não há qualquer previsão na lei de regência (LRP arts. 198-204).7 Suscitação de dúvida - obrigação do Oficial Entretanto, visto da perspectiva do interessado, nada impede que ele provoque nova suscitação de dúvida, já que a sua eventual pretensão encontra guarida no art. 12 da LRP: "Art. 12 Nenhuma exigência fiscal, ou dúvida, obstará a apresentação de um título e o seu lançamento do Protocolo com o respectivo número de ordem, nos casos em que da precedência decorra prioridade de direitos para o apresentante". Feita a reapresentação do título, que é protocolado e examinado, redundando na reiteração de exigências, nada impede que o interessado requeira a suscitação de dúvida. A suscitação é obrigação legal imposta ao registrador que se não pode forrar à obrigação contida no comando legal, sob pena de responsabilidade administrativa.8 Por fim, nem mesmo poderia ser prolatada sentença de arquivamento sumário do pedido, já que tal decisão pode vir a ser anulada por ferir o disposto no art. 199 da LRP.9 Parece bem assentes, portanto, tais balizas para os casos ordinários. Entretanto, será assim para os processos registrais complexos - como, por exemplo, a usucapião e adjudicação extrajudiciais? Processo de usucapião e a coisa julgada formal Homólogo ao rito processual ordinário10, sem os efeitos da coisa julgada material, a usucapião extrajudicial tramita na serventia com a obrigatória ultrapassagem de todas as etapas intercorrentes do processo extrajudicial, culminando com o saneamento e decisão final acerca do registro ou da rejeição da pretensão (§ 8º do art. 216-A da LRP).  Tem-se entendido que é o deferimento ou rejeição do pedido, devidamente fundamentado, que pode ser objeto de dúvida - salvo decisões intercorrentes admitidas por exceção. De fato, poder-se-ia acenar com a figura extravagante de agravo de decisões intercorrentes no iter processual da dúvida. Depois do advento do CPC/15, o seu art. 15 prevê que, relativamente às decisões administrativas, as suas disposições serão aplicadas a elas supletiva e subsidiariamente, incidindo, portanto, as normas do agravo de instrumento em todo processo administrativo em curso nas serventias extrajudiciais.11 No caso concreto examinado por nós (aresto já indicado na nota 1), não se inaugurou uma nova sazão do processo registral. A parte é a mesma, a prenotação idem, o Oficial do Registro e os órgãos judiciários são os mesmos; em suma, o processo registral é o mesmo, e o tema sobre o qual se controverte é o mesmo. A decisão terminativa do Oficial nada mais fez do que encerrar o processo pela rejeição do pedido, com fundamento nas razões já explicitadas e apreciadas no curso do processo em seus vários graus de recursos. Portanto, teoricamente, a reiteração do pedido de suscitação de dúvida já não caberia no curso de um mesmo processo extrajudicial. Caberia, se o caso, o ajuizamento da ação ordinária de usucapião (§ 9º do art. 216-A da LRP) ou a via de escape prevista na própria LRP (art. 204). _________ 1 Ap. Civ. 1114836-23.2024.8.26.0100, São Paulo, j. 13/11/2024, Rel. Des. Francisco Loureiro. Disponível aqui. 2 DIP, Ricardo. RIBEIRO, Benedito Silvério. Algumas Linhas Sobre a Dúvida no Registro de Imóveis. In Revista de Direito Imobiliário, n. 23, jan./jun. 1989. 3 É o caso tratado pelo CSMSP quando o interessado trouxera a juízo "outros elementos de embasamento para sua pretensão, tardiamente obtidos para impulsionamento anterior da via recursal, quando, noutra dúvida, suscitada a propósito do registro dos mesmos títulos, lhe foi adversa a R. decisão de primeiro grau". Ap. Civ. 3.095-0, São Paulo, j. 27/12/1983, DOJ 11/01/1984, Rel. Des. Bruno Affonso de André. Disponível aqui. 4 DIP, Ricardo, op. cit. loc. cit. O exemplo mais impressivo é a hesitação jurisprudencial acerca da exigibilidade da CNJ do INSS para os atos de alienação ou oneração de bens imóveis. 5 NERY JR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. CPC Comentado. 17ª ed., São Paulo: RT, 2019, p. 1.208, n. 17. 6 A decisão proferida em sede de dúvida não faz coisa julgada (salvo formal - cf. art. 204 da LRP). A reiteração de dúvida se admite, se superados os óbices que ensejaram a recusa anterior ou que se altere a jurisprudência acerca da matéria posta novamente em debate: Ap. Civ. 10.380-0/1, Americana, j. 27/8/1990, Dje 29/10/1990, Rel. Des. Onei Raphael Pinheiro Oricchio, disponível aqui. Há inúmeros precedentes:  Ap. Civ. 1018383-15.2014.8.26.0100, São Paulo, j. 2/12/2014, Dje 2/3/2015, Rel. des. Elliot Akel, disponível aqui. Ap. Civ. 1.559-0, São Caetano do Sul, j. 25/3/1983, DOJ 3/5/1983, Rel. Des. Bruno Affonso de André. Disponível aqui. No mesmo sentido: Ap. Civ. 3.095-0, São Paulo, j. 27/12/1983, DOJ 11/1/1984, Rel. Des. Bruno Affonso de André, disponível aqui; Ap. Civ. 3.497-0, São Caetano do Sul, j. 18/7/1984, DOJ 15/8/1984, Rel. Des. Marcos Nogueira Garcez, disponível aqui. Ap. Civ. 6.536, 7 Agravo interno 2054280-52.2021.8.26.0000/50000, Ribeirão Preto, j. 8/6/2021, DJe 16/6/2021, Rel. des. Ricardo Mair Anafe. Disponível aqui. No mesmo se pretendeu a rescisória de processo de dúvida, pedido julgado incabível. Disponível aqui. STJ REsp 1.269.544/MG, j. 26/6/2015, Dje 29/5/2015, Rel. Min. João Otávio de Noronha. Disponível aqui. No mesmo sentido: PASSOS, Josué Modesto. BENACCHIO, Marcelo. A dúvida no Registro de Imóveis. São Paulo: RT, 2020, p. 103, n. 14.2. 8 O CSMSP já decidiu que "é obrigação legal do Serventuário suscitar a dúvida, nos termos do art. 198 dessa Lei, sempre que houver recusa sua para a prática de atos de registro". Ap. Civ. 11.673-0/6, Agudos, j. 17/9/1990, DJ 31/10/1990, Rel. Des. Onei Raphael Pinheiro Oricchio, disponível aqui. Na 1VRPSP, Processo 100.09.135469-8, São Paulo, j. 30/11/2009, Dje 3/12/2009, Dr. Gustavo Henrique Bretas Marzagão. Disponível aqui. 9 O processo de dúvida "não comporta arquivamento puro e simples, sem julgamento, frente ao disposto no art. 199 da Lei de Registros Públicos". (...) "Mesmo em se tratando de nova apresentação do título, sendo suscitada a dúvida, esta somente poderia findar-se por sentença, na forma da lei, inadmitido o seu arquivamento, puro e simples". Ap. Civ. 6.507-0, São Carlos, j. 15/12/1986, DOJ 15/12/1986, Rel. Des. Sylvio do Amaral, disponível aqui. 10 As próprias NSCGJSP preveem no item 416.1: "O requerimento de reconhecimento extrajudicial da usucapião atenderá, no que couber, aos requisitos da petição inicial, estabelecidos pelo art. 319 do Código de Processo Civil - CPC". Vide: Processo: 1008143-25.2018.8.26.0100, j. 6/4/2018, Dje 17/4/2018, Dra. Tânia Mara Ahualli, disponível aqui. 11 PASSOS e BENACCHIO, Op., cit. nota 7, p. 101, n. 13.2.3.
Resumo Começamos por resumir, em tópicos, as principais ideias deste artigo: A titularidade de criptomoedas corresponde à titularidade de direitos pessoais (que são bens móveis por determinação legal - art. 83, III, CC), e não de direitos reais. (capítulos 1 e 2). A titularidade de direitos sobre "moedas" ou "funcionalidades" disponibilizadas em jogos eletrônicos é de direito pessoal, à semelhança do que, mutatis mutandi, se dá com a titularidade sobre as criptomoedas (capítulos 1, 2 e 3.1.). No caso de criptomoedas com âncora conhecida - como no caso da famosa ether -, a titularidade de criptomoeda é um direito pessoal com identificação de um sujeito de direito obrigado a garantir a satisfação do direito do titular (capítulo 3.2.). No caso de criptomoeda sem âncora conhecida - como na hipótese do bitcoin -, a titularidade segue sendo um direito pessoal, mas é desconhecido o sujeito de direito que pudesse, em tese, vir a ser obrigado a garantir a satisfação do direito do titular (capítulo 3.3.). No caso de aquisição, gestão e alienação de criptomoedas vir a ser realizada com a intermediação de uma corretora, seria, em regra, descabido cogitar em lei que instituísse patrimônio de afetação sobre as titularidades das criptomoedas, pois a corretora atuará como mera mandatária. A exceção corre à conta das hipóteses em que a corretora exerce a intermediação por meio de uma operação de espelhamento obrigacional (capítulo 3.4.1. e 3.4.2.). Merece reflexão eventual conveniência de lei que estabeleça regime de patrimônio de afetação sobre o dinheiro depositado nas contas das corretoras de criptomoedas como forma de fortalecer a segurança jurídica dos investidores (capítulo 3.4.1.). O pagamento, com criptomoedas, da aquisição de um bem não configura um contrato de compra e venda, e sim um contrato de permuta (capítulo 3.5). 1. Introdução Qual a natureza jurídica da criptomoeda? É um direito real? É um direito pessoal? Qual a repercussão prática disso? Esse é o foco do presente artigo. Desde logo, por todas as conversas que nos ajudaram a amadurecer o tema, agradecemos ao amigo jurista Rafael de Castro Alves, consultor legislativo do Senado, advogado e ex-procurador do Banco Central, dono de profundo conhecimento em Direito aplicado ao mercado financeiro. A resposta às perguntas centrais deste artigo tem de se encaixar na classificação do CC, para bens móveis, os quais podem ser: a) Bem móvel por natureza (art. 82, CC1); b) Bem móvel por determinação legal, que pode ser subdividido em (art. 83, CC2): b.1) Energia elétrica; b.2) Direitos reais; b.3) Direitos pessoais de caráter patrimonial. A questão não é meramente estética. Há desdobramentos práticos dessa categorização, conforme veremos ao longo deste artigo. Além disso, a importância das criptomoedas é tamanha que foi editada a lei das criptomoedas (lei 14.478/22), regulando esse "ativo virtual" (para usar a nomenclatura legal). Antes de responder e avançar na resposta da pergunta central deste artigo, convém uma comparação. Alguns jogos eletrônicos de computador, de Playstation e de outras plataformas permitem que o usuário "compre" armaduras ou roupas para o seu personagem. É clássico o jogo Fortnite, que vende "armaduras" (geralmente chamadas de skin) para o personagem. A propósito, segundo notícia colhida da mídia, houve um caso de um menino britânico de 10 anos de idade que gastou mais de US$ 1.500,00 no jogo Fortnite, comprando itens para o seu personagem no jogo.3 De curiosidade, em 2021, para os amantes do jogo, foi lançada a skin traje do Batman, a qual é disponibilizada por 1.500 V-Bucks, "moeda oficial do jogo". Para adquirir 1.500 V-Bucks, o jogador precisa pagar, em real, um valor para a empresa fornecedora do jogo Fortnite, e esta, em contrapartida, disponibilizará o referido quantitativo de moeda digital. Esses 1.500 V-Bucks deve ficar por volta de R$ 37,00.4 Indaga-se: Qual a natureza jurídica dessas "armaduras" compradas para o personagem do jogo? E a natureza jurídica da moeda oficial do jogo Fortnite? Há uma tendência popular de tratar esses "bens digitais" como se fossem direitos reais de propriedade. É comum ouvir alguém dizer: Sou dono de mil bitcoins; ou sou dono da armadura do Batman no jogo fortnite; ou tenho milhares de V-Bucks, a moeda digital do mundo digital. Mas é preciso tomar cuidado para que o senso comum não contamine a acuidade técnica dos conceitos jurídicos, pois o regime jurídico é diverso a depender da natureza jurídica das coisas. Desde logo, já respondemos: As criptomoedas, assim como a armadura do Batman no Fortnite bem como as moedas oficiais desse jogo (os V-Bucks), não passam de meros direitos pessoais (art. 83, III, CC). Não se trata de um direito real de propriedade. 2. Direitos reais vs direitos pessoais: Bens incorpóreos Reportamo-nos a anterior artigo nosso em que defendemos que os direitos reais não podem recair sobre bens incorpóreos, salvo lei expressa em sentido contrário. No máximo, o que há no nosso ordenamento é hipótese de direito pessoal que atrai, no que couber, regras de direitos reais por razões de ordem práticas.5 Como inexiste lei que etiquete a titularidade sobre criptomoedas como direitos reais, a natureza jurídica dessa titularidade é de direito pessoal (art. 83, III, CC). Pode-se, apenas no couber, aplicar regras de direitos reais. 3. Criptomoedas como direito pessoal 3.1. Comparação com "ativos" de jogos virtuais Ao ingressar no Fortnite, o usuário celebra um contrato com o fornecedor desse jogo. Não há a intermediação humana no momento da celebração desse contrato. E nem seria necessário, porque a figura do smart contracts lato sensu6 retrata exatamente a existência de contratos cuja celebração, execução ou extinção ocorre mediante um sistema cibernético. Nesses casos, o que importa é a vontade humana inicial, que forneceu esse sistema cibernético a adotar determinada reação diante de uma ação do usuário. Portanto, no caso do Fortnite, quando o usuário compra as "moedas virtuais do jogo" e quando as utiliza para comprar para o seu personagem a "armadura do Batman" ou outra skin, tudo não passa de um serviço prestado pela empresa fornecedora do jogo ao usuário. O serviço consiste em garantir ao usuário esse universo cibernético e fantasioso cativante à mente humana. Tudo é uma ilusão de ótica causada pelo software do Fortnite.7 Logo, o que o usuário titulariza é apenas um direito pessoal: A fornecedor do jogo Fortnite tem de garantir ao usuário a continuidade do serviço cibernético, com os personagens comandados pelo usuário com as "armaduras" ou outras skins escolhidas pelo jogador, respeitada, obviamente, eventual particularidade contratual que respalde eventual descontinuidade do jogo. Não há, de modo algum, qualquer direito real do usuário sobre a "armadura do Batman". Teoricamente, se, na plataforma do jogo, for possível um personagem entregar a outro personagem, de outro usuário, a "armadura do Batman", outra skin ou até mesmo as moedas oficiais do jogo, o que teremos aí seria uma transmissão do direito pessoal (especificamente uma cessão de crédito, uma cessão de contrato ou outro instituto translativo de direito pessoal, a depender do tipo de jogo). O outro usuário passará a titularizar o direito pessoal que havia sido adquirido pelo anterior jogador. O fornecedor do Fortnite terá de assegurar ao personagem do novo jogador a "armadura do Batman" ou outras skins. Em tese, esse direito pessoal poderá até ser utilizado em contrato de permuta na vida real. Suponha que alguém - que é um fanático jogador de Fortnite - esteja a vender um celular. Imagine que aparece um outro fanático jogador interessado em adquirir o celular. Ora, nesse caso, seria totalmente lícito que esses jogadores fizessem um contrato de permuta: O celular de um em troca do direito pessoal do outro à "armadura do Batman" ou a uma determinada quantida de V-Bucks (a moeda oficial do jogo). O antigo dono do celular, após a permuta, passaria a ter a "armadura" do Batman ou passaria a ter uma quantidade de V-Bucks para gastar no jogo, tudo por ter-se tornado titular do respectivo direito pessoal perante o fornecedor do Fortnite. De modo similar, quando discutirmos a natureza jurídica das criptomoedas, a comparação é bem didática. É claro que, se formos discutir o regime jurídico aplicável (o que seria outro assunto), não há nada a comparar, porque a importância assumida pelas criptomoedas nos negócios jurídicos é muito superior ao da "armadura" do Batman do boneco do Fortnite. 3.2. Criptomoedas com âncora conhecida: Natureza jurídica Quanto às criptomoedas, temos dois grupos principais: Aquelas com uma âncora conhecida e aquelas sem âncora conhecida. O primeiro grupo diz respeito a casos em que há uma pessoa (física ou jurídica) conhecida que comanda a disponibilização de criptomoedas. É o caso do ether, criptomoeda que é comandada por uma pessoa jurídica (que chamaremos de fornecedor do ether). Nesse caso, quando o usuário acessa o software que dá acesso à plataforma blockchain para realizar transações com ether, o que se tem aí é um verdadeiro contrato desse usuário com o fornecedor da ether. Trata-se de um contrato com uso de tecnologia para a contratação, a execução e a celebração do contrato, mediante reações cibernéticas do sistema desenhado pelo desenvolvedor da ether. Quando o usuário adquire ether, ele, na verdade, adquire apenas um direito pessoal perante o fornecedor, o qual tem o dever de manter o serviço da plataforma funcionando para garantir a identificação da titularidade do ether. 3.3. Criptomoedas sem âncora conhecida: Natureza jurídica O segundo grupo de criptomoedas é daqueles não possuem âncora conhecida. É o caso do bitcoin, que se opera por meio de uma plataforma de blockchain que foi desenvolvida por uma pessoa desconhecida e que é autoexecutável mediante a participação dos mineradores. Ao acessar o software que permite operações nessa plataforma, o usuário celebra um contrato com o desconhecido fornecedor do Bitcoin. Trata-se de um contrato com uso de tecnologia para a celebração e a execução mediante as reações automáticas do sistema cibernético. O problema é que, como o fornecedor é desconhecido, os usuários não terão, na prática, contra quem endereçar eventual ação de responsabilidade civil contratual no caso de a plataforma de blockchain vir a ser retirada totalmente do ar (com, inclusive, eventual apagamento dos espelhamentos da plataforma nos computadores de todos os mineradores). No mais, o raciocínio desenvolvido para as criptomoedas com âncora conhecidas é totalmente aplicável, inclusive em relação à presença de eventual corretora. 3.4. Corretora e a questão do patrimônio de afetação Como fica o arranjo jurídico de titularidade de criptomoedas quando o usuário contrata uma corretora? Nesse ponto, temos duas situações: Uma sem o que chamamos de operação de espelhamento obrigacional e outra com esse espelhamento. 3.4.1. Corretora SEM operação de espelhamento obrigacional Começamos pela operação sem esse espelhamento. Nessa hipótese, se o usuário contrata uma corretora e passa a esta a sua senha pessoal, a verdade é que a corretora atuará como mera mandatária do usuário: Acessará o software que permite operar na plataforma de blockchain específica para, em nome do usuário, fazer alienações ou transferências de ether. Como se vê, a corretora não é titular de nenhum direito real, mas é mera mandatária. Por isso, se essa corretora vier a falir, o juízo falimentar não poderá arrecadar as criptomoedas dos usuários, pois essas criptomoedas são direitos pessoais dos usuários: A corretora é mera mandatária deles. Por essa razão, nessa situação, são totalmente descabidas reflexões de instituir regime de patrimônio de afetação sobre as criptomoedas: Inexiste qualquer titularidade de direito real sobre criptomoedas! Nem mesmo o cliente tem direito real, mas mero direito pessoal perante o fornecedor da ether. A única sensibilidade é se o usuário vier transferir dinheiro (em real, por exemplo) para uma conta bancária da corretora, com o objetivo de esta, como mandatária, vir a fazer aquisição de ether. Nesse caso, indaga-se: Se vier a ser decretada a falência da corretora, como ficará esse "dinheiro"? Antes de responder, é preciso uma lembrança. O dinheiro transferido para a corretora é apenas um direito pessoal que se aproxima ao do depositante no contrato de depósito irregular de que trata o art. 645 do CC.8 É similar ao dever dos bancos em que depositamos cédulas de dinheiro. É diferente do que se dá com o dinheiro em espécie (a cédula). Este é um bem corpóreo. Sobre ele, há direito real de propriedade. Quando entregamos cédulas de dinheiro para o banco, a propriedade é transferida por se tratar de uma coisa fungível. Em contrapartida, o banco assume um dever obrigacional de restituir cédulas semelhantes caso o cliente venha a exigir (art. 587 e 645, CC9). Se for decretada a falência do banco, os clientes se unirão aos demais credores em busca de receber a satisfação do seu direito pessoal (o direito a receber, em espécie, o valor que foi depositado). Igual resposta há para a corretora de criptomoedas: Ela apenas tem um dever de natureza obrigacional perante o usuário. Em tese, até seria possível que uma lei estabelecesse que as corretoras deveriam manter segregação contábil do dinheiro depositado pelo usuário e só poderiam utilizar esse dinheiro a compra de criptomoedas ou para restituir ao usuário. Nessa hipótese, até se poderia estabelecer um regime de patrimônio de afetação desse dinheiro para imunização diante de outros credores da corretora. Trata-se de alternativa plenamente viável ao legislador, até porque as corretoras de criptomoedas não podem exercer atividades de intermediação financeira por não serem instituições financeiras. Cabe um alerta: Se o fornecedor do ether vir a adotar alguma conduta capaz de retirar a plataforma do ar (Exemplo: Apagar dos computadores de todos os mineradores os espelhamentos da plataforma de blockchain), só sobrará aos usuários (que tinham ether) a opção de ajuizar ações de responsabilidade civil contratual contra o fornecedor. 3.4.2. Corretora COM operação de espelhamento obrigacional Situação diferente é quando a corretora de criptomoeda atua por meio do que chamamos de operação de espelhamento obrigacional. 3.4.2.1. Definição da operação de espelhamento obrigacional e o exemplo das BDRs A operação de espelhamento obrigacional dever de manter a titularidade de um crédito (crédito principal) como forma de vir a satisfazer um crédito do devedor (crédito espelhado). Essas operações podem ou não envolver títulos de crédito. A operação de espelhamento obrigacional é comumente utilizada em situações em que uma pessoa pretende adquirir um direito pessoal (crédito, título de crédito, criptomoedas etc.), mas há obstáculos operacionais que inviabilizam ou dificultam demasiadamente esse pleito. Nessas hipóteses, um intermediário (que chamaremos de espelhador) realiza uma operação destinada a assegurar um resultado prático similar. De um lado, adquire, em nome próprio, o direito pessoal almejado (crédito principal), superando todos os referidos obstáculos operacionais, e obriga-se a manter esse crédito pessoal até "segundas ordens" por parte do interessado. De outro lado, o espelhador obriga-se, perante o interessado, em pagar a este o valor do crédito principal quando este vier a ser realizado, deduzidas eventuais remunerações pelo serviço de intermediação. A operação de espelhamento obrigacional é empregada, pela B3 (empresa que mantém a Bolsa de Valores e outros serviços relevantíssimos ao mercado de capitais), para viabilizar a pretensão de investidores que desejam adquirir ações ou outros valores mobiliários no exterior. De uma forma bem simplificada e sem minúcias técnicas irrelevantes ao presente artigo, podemos resumir assim a operação.10 Como há expressivos obstáculos operacionais a que se consiga formalizar diretamente a compra de ativos estrangeiros em nome do investidor brasileiro, a B3 vale-se de uma operação de espelhamento obrigacional: Ela adquire, em nome próprio, o ativo estrangeiro (crédito principal) e, concomitamente, emite ao investidor brasileiro uma BDR (Brazilian Depositary Receipts). A BDR é um título de crédito11 por meio do qual o emitente (no caso, a B3) obriga-se a manter a titularidade daquele ativo estrangeiro e a entregar ao investidor o valor obtido com a futura venda ou realização daquele ativo estrangeiro. Assim, suponha que investidor brasileiro queira comprar uma ação da Apple Inc., que é negociada em bolsa de valores nos EUA. É muito burocrático viabilizar essa pretensão diretamente. O investidor poderia, então, adquirir uma BDR da Apple (que é identificada na Bolsa de Valores Brasileira pelo ticker APPL34), emitida pela B3, de modo a obter um resultado prático similar. 3.4.2.2. Caso das corretoras de criptomoedas As corretoras de criptomoedas podem oferecer aos investidores operações de espelhamento obrigacional para satisfazer-lhes a pretensão de adquirirem criptomoedas. Isso, porque aquisição e alienação de criptomoedas diretamente pelo usuário envolvem dificuldades operacionais a ponto de ser mais fácil para as corretoras realizar esses atos em nome próprio (crédito principal) e obrigar-se, perante o investidor, a entregar-lhe os proveitos econômicos correspondentes (crédito espelhado). Nesses casos, a corretora será a titular das criptomoedas, ou seja, será a titular de direitos pessoais. Já o investidor será titular de um outro direito pessoal, especificamente um direito de crédito perante a corretora. Em situações como essa, como a corretora é a titular das criptomoedas (que é um direito pessoal), há risco de credores pessoais da corretora (Ex.: credores trabalhistas, fiscais etc.) virem a penhorar e excutir esses bens, o que frustraria totalmente a segurança jurídica necessária dos investidores. Diante disso, é conveniente que a lei preveja o regime de patrimônio de afetação para imunizar essas titularidades de criptomoedas por parte da corretora perante outros credores que não seja o próprio investidor. 3.5. Pagamento de compra de bens com criptomoedas: Compra e venda ou permuta? Um dos desdobramentos práticos é discutir se, por exemplo, os Cartórios de Notas poderiam ou não lavrar escrituras públicas de transferência de um imóvel em troca do recebimento de criptomoedas (como a famosa bitcoin). Nesse ponto, com acerto, o provimento 38/21 da CGJ/RS12 permite esse tipo de escritura e nomina o contrato translativo como o de permuta nos termos do art. 533 do Código Civil.13 De fato, não se trata de compra e venda, pois esta se caracteriza pela entrega de dinheiro. Dinheiro deve ser entendido apenas como a moeda oficial do país ou de outro país (respeitadas as regras restritivas de uso de moeda estrangeira no país, como a do art. 13 da lei do mercado de câmbio - lei 14.286/21).14 Não importa aí se o dinheiro será pago em espécie ou por transferência bancária (em que, na prática, há apenas uma transferência de um direito pessoal do cliente de um banco, já que o depósito bancário configura uma espécie de contrato de depósito15), pois, em ambos os casos, temos uma forma de circulação de dinheiro oficial nos termos da lei. _________ 1 Art. 82. São móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social. 2 Art. 83. Consideram-se móveis para os efeitos legais: I - as energias que tenham valor econômico; II - os direitos reais sobre objetos móveis e as ações correspondentes; III - os direitos pessoais de caráter patrimonial e respectivas ações. 3 Disponível aqui.  4 Disponível aqui. 5 OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias. Direitos Reais sobre Coisa Incorpórea?. Disponível aqui. Publicado em 27 de novembro de 2024. 6 Sobre a nomenclatura dos smart contracts, ver: OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Smart Contracts vs Contratos Eletrônicos vs Outras Classificações: Por uma sistematização de nomenclatura. Disponível aqui. Publicado em 14 de novembro de 2024. 7 Alertarmos, desde logo, que as "moedas virtuais" ou as armaduras ou outra skin dos personagens do jogo Fortnite não se enquadram como "ativos virtuais" para efeito da lei 14.478/2022. Esta Lei define "ativos virtuais" com o objetivo de viabilizar uma regulamentação estatal deles e, com isso, foca representações virtuais de valor com o objetivo precípuo de pagamento e investimentos (art. 3º). Além do mais, o art. 3º, III, da referida lei exclui expressamente do seu âmbito "instrumentos que provejam ao seu titular acesso a produtos ou serviços especificados ou a benefício proveniente desses produtos ou serviços, a exemplo de pontos e recompensas de programas de fidelidade".  8 Art. 645. O depósito de coisas fungíveis, em que o depositário se obrigue a restituir objetos do mesmo gênero, qualidade e quantidade, regular-se-á pelo disposto acerca do mútuo. 9 Art. 587. Este empréstimo transfere o domínio da coisa emprestada ao mutuário, por cuja conta correm todos os riscos dela desde a tradição. Art. 645. O depósito de coisas fungíveis, em que o depositário se obrigue a restituir objetos do mesmo gênero, qualidade e quantidade, regular-se-á pelo disposto acerca do mútuo. 10 Uma descrição mais técnica está disponível aqui. 11 Alertamos que os títulos representativos de direitos também devem ser considerados títulos de créditos, regidos por regras de Direito Cambial. 12 Art. 1º - Os Tabeliães de Notas apenas lavrarão escrituras públicas de permuta de bens imóveis com contrapartida de tokens/criptoativos mediante as seguintes condições cumulativas: I - declaração das partes de que reconhecem o conteúdo econômico dos tokens/criptoativos objeto da permuta, especificando no título o seu valor; II - declaração das partes de que o conteúdo dos tokens/criptoativos envolvidos na permuta não representa direitos sobre o próprio imóvel permutado, seja no momento da permuta ou logo após, como conclusão do negócio jurídico representado no ato; III - que o valor declarado para os tokens/criptoativos guarde razoável equivalência econômica em relação à avaliação do imóvel permutado; IV - que os tokens/criptoativos envolvidos na permuta não tenham denominação ou endereço (link) de registro em blockchain que deem a entender que seu conteúdo se refira aos direitos de propriedade sobre o imóvel permutado. Art. 2º - Os Registradores de Imóveis, na qualificação de títulos referentes a transações de imóveis por tokens/criptoativos, observarão a presença das exigências do art. 1º, e, caso atendidas, transcreverão expressamente no ato as cláusulas relativas aos incisos I e II. Art. 3º - Todas os atos notariais e registrais realizados na forma deste provimento deverão ser comunicados ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras - COAF, na forma do Provimento nº 88/2019 do Conselho Nacional de Justiça. 13 Art. 533. Aplicam-se à troca as disposições referentes à compra e venda, com as seguintes modificações: I - salvo disposição em contrário, cada um dos contratantes pagará por metade as despesas com o instrumento da troca; II - é anulável a troca de valores desiguais entre ascendentes e descendentes, sem consentimento dos outros descendentes e do cônjuge do alienante. 14 Art. 13. A estipulação de pagamento em moeda estrangeira de obrigações exequíveis no território nacional é admitida nas seguintes situações: I - nos contratos e nos títulos referentes ao comércio exterior de bens e serviços, ao seu financiamento e às suas garantias; II - nas obrigações cujo credor ou devedor seja não residente, incluídas as decorrentes de operações de crédito ou de arrendamento mercantil, exceto nos contratos de locação de imóveis situados no território nacional; III - nos contratos de arrendamento mercantil celebrados entre residentes, com base em captação de recursos provenientes do exterior; IV - na cessão, na transferência, na delegação, na assunção ou na modificação das obrigações referidas nos incisos I, II e III do caput deste artigo, inclusive se as partes envolvidas forem residentes; V - na compra e venda de moeda estrangeira; VI - na exportação indireta de que trata a lei 9.529, de 10 de dezembro de 1997; VII - nos contratos celebrados por exportadores em que a contraparte seja concessionária, permissionária, autorizatária ou arrendatária nos setores de infraestrutura; VIII - nas situações previstas na regulamentação editada pelo Conselho Monetário Nacional, quando a estipulação em moeda estrangeira puder mitigar o risco cambial ou ampliar a eficiência do negócio; IX - em outras situações previstas na legislação. Parágrafo único. A estipulação de pagamento em moeda estrangeira feita em desacordo com o disposto neste artigo é nula de pleno direito. 15 Há quem defenda que o contrato de depósito bancário configura um contrato atípico, mas isso é irrelevante para efeito deste artigo. O que importa é que o cliente é titular de um direito pessoal.
quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Direitos reais sobre coisa incorpórea?

1. Introdução A titularidade de bens incorpóreos configura direitos reais ou direitos pessoais? Esse é o foco do presente artigo. A pergunta tem relevância prática, especialmente porque o Código Civil, ao classificar os bens, faz menção aos direitos reais e aos direitos pessoais com caráter econômico, além de aludir também à energia elétrica e ao direito à sucessão hereditária (arts. 81 e 83 do CC1). O debate também assume relevância no mundo contemporâneo, recheado de titularidades de bens digitais, com inclusão de criptomoedas e de valores mobiliários. Nesses casos, teríamos um direito real de propriedade ou apenas um direito pessoal? Enfrentaremos o tema neste artigo.  2. Reflexões  Há três pontos a serem levados em conta quando tratamos dos direitos reais. O primeiro é o de que, em nome do princípio da taxatividade, só é direito real aquilo que a lei assim designar. O art. 1.225 do CC cataloga os principais direitos reais, como o de propriedade, o de usufruto, o de hipoteca etc. Inexiste previsão legal expressa para que o direito sobre os "bens digitais" sejam incluídos como direitos reais de propriedade. Esse primeiro ponto, porém, poderia ser questionado, porque há quem defenda que o direito real de propriedade também pode recair sobre bens incorpóreos. Por isso, é preciso atentar para um segundo ponto. É que, conforme o caput do art. 1.228 do CC2, o direito real de propriedade é caracterizado, entre outros poderes inerentes, pelo poder de perseguir a coisa das mãos de terceiro (o ius persequendi). Por aí já se vê que a categoria do direito real de propriedade diz respeito a coisas corpóreas, porque, somente para elas, há sentido lógico em invocar o ius persequendi. Se alguém leva meu veículo e entrega a terceiros, eu, como titular do direito real de propriedade, tenho o direito de reivindicar a coisa das mãos desse terceiro. Não há sentido lógico em falar em ius persequendi para bens incorpóreos. Não há como alguém tomar meu direito de crédito (ex.: direito a receber R$ 10.000,00 de uma pessoa) e entregar a terceiros. Não há lógica em falar que eu teria de ajuizar uma ação reivindicatória para obter uma ordem judicial determinando que o terceiro me devolva o crédito. Direitos de crédito não são direitos reais de propriedade. A categoria jurídica de direito real não desenvolvida para esses casos. Um terceiro ponto é que, quando tratamos de direitos reais, é possível falar em usucapião em favor do possuidor. Também só há sentido em pensar em usucapião para bens corpóreos. Não há qualquer aderência lógica em pensar que, no exemplo acima do direito de crédito, um terceiro teria tomado o meu crédito e o teria adquirido por usucapião por ter ficado mais de 5 anos com meu crédito. A verdade é que a categoria dos direitos reais não foi pensada para bens incorpóreos. Essa categoria, na verdade, foi desenvolvida como forma de incorporar o ius in rem, em contraposição ao ius in personam. O direito anglo-saxão, a propósito, não seguiu a linha de direitos reais, mas preferiu seguir a utilizar a dualidade ius in rem e ius in personam3. Não se ignora, porém, que o legislador, em algumas questões pontuais, passou a prever alguns tipos de direitos reais sobre bens incorpóreos. É o caso do penhor de direitos (art. 1.451, CC) e da cessão fiduciária de direitos creditórios relativos a contratos de alienação de imóveis (art. 17, II e § 1º, da lei 9.514/1997). Há ainda outras hipóteses em que o legislador, sem textualmente se valer da etiqueta de direitos reais, acena para a sua incidência sobre alguns bens incorpóreos. É o que se dá com alienação fiduciária em garantia de valores mobiliários (art. 66-B da Lei de Mercado de Capitais - lei 4.728/19654). Além do mais, mesmo sem autorização legal expressa, é sabido ser comum a utilização do usufruto em quotas de sociedades. Diante desse cenário, indaga-se: os direitos reais podem ou não incidir sobre bens incorpóreos? Se respondêssemos positivamente sem qualquer ressalva, estaríamos a, na prática, a transformar praticamente todos os direitos pessoais (os que descendem da antiga figura do ius in personam) em direitos reais (cujo ancestral é o ius in rem). Teríamos a estranhíssima situação de uma pessoa que titulariza um crédito de R$ 10.000,00 perante um devedor avocar, para si, a categoria de direito real de propriedade, o que seria um despropósito. Se, porém, negarmos, incorreremos em contrariedade a hipóteses legais expressas de direitos rotulados como reais mesmo incidindo sobre imóveis. Por isso, entendemos que o adequado é considerar que, em regra, os direitos reais só recaem sobre bens corpóreos, salvo disposição legal específica em sentido contrário (como no caso da cessão fiduciária de créditos imobiliários nos termos do art. 17, § 1º, da lei 9.514/1997). Paralelamente a isso, é também possível admitir a aplicação, no que couber, de regras próprias de direitos reais a determinados direitos pessoais, como ocorre com o usufruto de ações ou quotas de sociedade. Explica-se com um exemplo. Sob o título "Constituição de Direitos Reais e Outros Ônus", os arts. 39 e 40 da Lei nº 6.404/1976 preveem a averbação, em livro próprio da sociedade, do penhor ou da caução de ações bem como de outros "outros direitos e ônus". Neste último grupo, o referido art. 40 enquadra "usufruto, o fideicomisso, a alienação fiduciária em garantia e quaisquer outras cláusulas ou ônus que gravarem a ação"5. A lei  6.404/1976 não etiquetou, como direitos reais, esses "outros direitos", nem mesmo o usufruto. Daí se indaga: há ou não direitos reais aí? Entendemos que não. Apesar disso, no caso do usufruto, de fideicomisso e de alienação fiduciária em garantia de ações, o efeito prático é similar, porque aí haverá um direito pessoal (ius in personam) que atrairia, no que couber, as regras próprias do direito real de usufruto (no caso do usufruto de ações) e de propriedade (no caso de alienação fiduciária em garantia e de fideicomisso). Curioso é que, no caso de quotas de sociedades, inexiste dispositivo similar. Todavia, por analogia, é forçoso reconhecer o cabimento desses ônus especiais, que são direitos pessoais que atraem, no que couber, as regras de direitos reais. Parece-nos que o legislador, que, por vezes, age com preocupação prática e não teórica, incorreu em certo tropeço ao etiquetar, como direitos reais, algumas hipóteses pontuais envolvendo bens incorpóreos. Todavia, não houve prejuízo prático, porque a aplicação de regras de direitos reais não causou transtornos efetivos. Em suma, a regra é a de que direitos reais só incidem sobre bens corpóreos, salvo lei em sentido contrário.  Paralelamente a isso, há ainda uma situação sui generis de direitos pessoais que atraem, no que couber, as regras de direitos reais. Alertamos que o conceito de direito pessoal no Código Civil Brasileiro alcança não apenas hipóteses que envolvem relações jurídicas (como a envolvendo credor e devedor), mas também situações jurídicas de natureza patrimonial não etiquetadas como direitos reais. Esse foi o critério legal adotado no art. 83 do CC. Do ponto de vista prático, as duas últimas situações (direitos reais sobre bens incorpóreos por força de lei e direitos pessoais com regras subsidiárias dos direitos reais) distinguem-se mais por razões de mera etiqueta jurídica, porque, na maior parte dos casos concretos os efeitos jurídicos práticos se equivalerão. Em qualquer um desses casos, não se deve falar em usucapião nem de ius persequendi, pois estes dois institutos pressupõem coisas corpóreas. A posição acima encontra amparo no jurista português Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, que, embora trate do Direito das Coisas Português, expede lição plenamente extensível ao Direito das Coisas Brasileiro por conta da proximidade, com as adaptações acima6. O professor Marcelo Milagres, no seu aprofundado Manual de Direito das Coisas, também nos parece reconhecer a tese supracitada, embora o autor realce a existência de correntes destinadas a estender direitos reais para coisas incorpóreas7. Igualmente, em sentido similar ao ora defendido, acenava Luciano de Camargo Penteado8. Por fim, merece elogios o Anteprojeto de Reforma do Código Civil, elaborada pela Comissão de Juristas designada pelo Presidente do Senado Federal em 20239. Sugeriu-se a inclusão de dispositivos10 que, na prática, reconhecem expressamente a situação sui generis do direito brasileiro envolvendo direitos pessoais que atraem, no que couber, as regras dos direitos reais, tudo dentro da preocupação do legislador com a utilidade prática das regras. __________ 1 Art. 80. Consideram-se imóveis para os efeitos legais: I - os direitos reais sobre imóveis e as ações que os asseguram; II - o direito à sucessão aberta. Art. 83. Consideram-se móveis para os efeitos legais: I - as energias que tenham valor econômico; II - os direitos reais sobre objetos móveis e as ações correspondentes; III - os direitos pessoais de caráter patrimonial e respectivas ações. 2 Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha. § 1 o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas. § 2 o São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem. § 3 o O proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriação, por necessidade ou utilidade pública ou interesse social, bem como no de requisição, em caso de perigo público iminente. § 4 o O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante. § 5 o No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores. 3 Para aprofundamento, ver: OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de Oliveira. Princípio da Harmonização Internacional dos Direitos Reais. Tese de Doutorado perante a Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Disponível aqui. Pp. 191-198. 4 Art. 66-B. O contrato de alienação fiduciária celebrado no âmbito do mercado financeiro e de capitais, bem como em garantia de créditos fiscais e previdenciários, deverá conter, além dos requisitos definidos na Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil, a taxa de juros, a cláusula penal, o índice de atualização monetária, se houver, e as demais comissões e encargos. (Incluído pela lei 10.931, de 2004) § 1o Se a coisa objeto de propriedade fiduciária não se identifica por números, marcas e sinais no contrato de alienação fiduciária, cabe ao proprietário fiduciário o ônus da prova, contra terceiros, da identificação dos bens do seu domínio que se encontram em poder do devedor. (Incluído pela lei 10.931, de 2004) § 2o O devedor que alienar, ou der em garantia a terceiros, coisa que já alienara fiduciariamente em garantia, ficará sujeito à pena prevista no art. 171, § 2o, I, do Código Penal. (Incluído pela lei 10.931, de 2004) § 3o É admitida a alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis, bem como de títulos de crédito, hipóteses em que, salvo disposição em contrário, a posse direta e indireta do bem objeto da propriedade fiduciária ou do título representativo do direito ou do crédito é atribuída ao credor, que, em caso de inadimplemento ou mora da obrigação garantida, poderá vender a terceiros o bem objeto da propriedade fiduciária independente de leilão, hasta pública ou qualquer outra medida judicial ou extrajudicial, devendo aplicar o preço da venda no pagamento do seu crédito e das despesas decorrentes da realização da garantia, entregando ao devedor o saldo, se houver, acompanhado do demonstrativo da operação realizada. (Incluído pela lei 10.931, de 2004) § 4o No tocante à cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis ou sobre títulos de crédito aplica-se, também, o disposto nos arts. 18 a 20 da Lei no 9.514, de 20 de novembro de 1997. (Incluído pela lei 10.931, de 2004) § 5o Aplicam-se à alienação fiduciária e à cessão fiduciária de que trata esta Lei os arts. 1.421, 1.425, 1.426, 1.435 e 1.436 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002.  (Incluído pela Lei 10.931, de 2004) § 6o Não se aplica à alienação fiduciária e à cessão fiduciária de que trata esta Lei o disposto no art. 644 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002.             (Incluído pela Lei 10.931, de 2004) 5 SEÇÃO VII Constituição de Direitos Reais e Outros Ônus Penhor Art. 39. O penhor ou caução de ações se constitui pela averbação do respectivo instrumento no livro de Registro de Ações Nominativas. (Redação dada pela Lei nº 9.457, de 1997) § 1º O penhor da ação escritural se constitui pela averbação do respectivo instrumento nos livros da instituição financeira, a qual será anotada no extrato da conta de depósito fornecido ao acionista. § 2º Em qualquer caso, a companhia, ou a instituição financeira, tem o direito de exigir, para seu arquivo, um exemplar do instrumento de penhor. Outros Direitos e Ônus Art. 40. O usufruto, o fideicomisso, a alienação fiduciária em garantia e quaisquer cláusulas ou ônus que gravarem a ação deverão ser averbados: I - se nominativa, no livro de "Registro de Ações Nominativas"; II - se escritural, nos livros da instituição financeira, que os anotará no extrato da conta de depósito fornecida ao acionista. (Redação dada pela Lei nº 9.457, de 1997) Parágrafo único. Mediante averbação nos termos deste artigo, a promessa de venda da ação e o direito de preferência à sua aquisição são oponíveis a terceiros. 6 Luís Manuel Teles de Menezes Leitão ensinava (LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes. Direitos Reais. Coimbra/Portugal: Almedina, 2018, pp. 56-57): (...) Coisas corpóreas são aquelas que existem no mundo natural, tendo consequentemente existência física, independentemente de revestirem a natureza da matéria (terrenos, edifícios, objetos, líquidos, gases e outros elementos materiais) ou de energia (como a eletricidade ou a energia nuclear). Coisas incorpóreas são aquelas que têm mera existência social, entre elas se incluindo os bens intelectuais (obras literárias e artísticas, invenções e marcas). A classificação entre coisas corpóreas e incorpóreas deve-se a Gaius que utiliza o critério de serem ou não apreensíveis pelos sentidos, qualificando como coisas incorpóreas os direitos. Atualmente, no entanto, o critério da apreensão pelos sentidos não pode ser seguido, já que muitas coisas com existência física, como os gases e a eletricidade, não são apreensíveis pelos sentidos. Por outro lado, os direitos não podem ser vistos como coisas incorpóreas, uma vez que não se admitem direitos sobre direitos. As coisas incorpóreas abrangem assim apenas os bens intelectuais, objeto do Direito de Autor e da Propriedade Industrial. O art. 1302º, nº 1, estabelece que só as coisas corpóreas, móveis ou imóveis, podem ser objeto do direito de propriedade regulado no Código, na sequência do § 90 do BGB, que refere que "coisas no sentido da lei são somente os objetos corpóreos". Em consequência dessa opção legislativa, refere o art. 1303º, nº 1, que os diretos de autor e a propriedade industrial estão sujeitos a legislação especial. Efetivamente, coisas incorpóreas, como a obra literária ou artística, os bens industriais (invenção, modelo, desenho, marca, logotipo) ou quaisquer outras coisas incorpóreas, não são abrangidos pelo Direito das Coisas, sendo sujeitos a outros regimes. O Direito das Coisas é, porém, objeto de aplicação subsidiária aos direitos de autor e à propriedade industrial em tudo o que se harmonize com a natureza daqueles direitos e não contrarie o regime especial por eles estabelecidos (art. 1303º, nº 2). A aplicação subsidiária é, porém, bastante limitada, uma vez que grande parte dos institutos relativos aos direitos reais, como a posse, a ocupação, a acessão, a usucapião, a tradição e a aquisição tabular são de aplicação quase inconcebível fora do âmbito das coisas corpóreas. Essa aplicação é, por outro lado, limitada ao conteúdo patrimonial desses direitos, uma vez que os mesmos possuem um cariz pessoal, ligado à determinação da sua titularidade originária, que nunca se coloca em relação aos direitos reais sobre coisas corpóreas. Resulta, assim, que só as coisas corpóreas podem ser objeto de direitos reais, sendo os outros bens objeto de direitos de natureza diferente. 7 Ensina Marcelo Milagres (MILAGRES, Marcelo. Manual de direito das coisas. Belo Horizonte, São Paulo: D'Plácido, 2023, pp. 32-35). A Parte Geral do Código Civil brasileiro não desconhece os bens materiais, nem os bens incorpóreos como aqueles essenciais ao desenvolvimento da personalidade humana. De outro lado, o Direito das Coisas - ou Direitos Reais -, na Parte Especial, traz a ideia de redução temática ou de restrição à disciplina das relações jurídicas concernentes aos bens corpóreos ou materiais. As formas de manifestação de domínio se cingem a esses bens, não sendo compreendido pela codificação o regime jurídico de bens imateriais, como marcas, patentes, softwares - objeto de legislação especial -, em que pese a reconhecida possibilidade de penhor e de usufruto de ações. (...) Coisas, pela delimitação material, são espécies de bens. O próprio Superior Tribunal de Justiça já reconheceu a impropriedade de ações possessórias para fins de tutela de direitos autorais. Segundo sua Súmula 228, "é inadmissível o interdito proibitório para a proteção de direito autoral". (...) Embora Ebert Chaumon tenha afirmado que a atual codificação brasileira não se alinharia à tese da possessio juris ou quase possessio, sendo inadmissível o poder sobre uma coisa incorpórea, disciplinou-se, em caráter excepcional, a possibilidade de usufruto de títulos de crédito (art. 1.395 do Código Civil) e de penhor de direitos e títulos de crédito (art. 1.451 do Código Civil). 8 São dele estas palavras: "Se o ente for corpóreo e passível de apropriação e tiver função de utilidade para o sujeito (valor econômico), pode ser objeto de direito real. Caso falte o requisito corporeidade, é necessário que a lei preveja, expressamente, modos de transferência específicos que remeta, também expressamente, o regime de transferência ao de um dos direitos reais instituídos, ou ainda que, de antemão, diga que tal ou qual direito real pode se exercer sobre determinados bens imateriais" (PENTEADO, Luciano de Camargo. Direito das Coisas. São Paulo: RT, 2008, p. 53) 9 Para aprofundamento dos trabalhos da Comissão, ver aqui. 10 Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem, sobre coisa corpórea, o exercício de fato, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade. Parágrafo único. A regra do caput se aplica aos bens imateriais no que couber, ressalvado o disposto em legislação especial. (...) Art. 1.228-A. É reconhecida a titularidade de direitos patrimoniais sobre bens imateriais.
segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Uma (re)visão das unidades interligadas

Países com amplas dimensões territoriais ou que contam com grande número populacional, possuem, geralmente, algum problema social e de ordem pública. O Brasil, acumulando esses dois aspectos - em extensão, um dos maiores países do mundo (perdendo apenas para Rússia, Canadá, Estados Unidos e China), e o sexto mais populoso do planeta (perdendo, apesar de não haver uma competição, para China, Índia, Estados Unidos, Indonésia e Paquistão) -, não é diferente. Quando da promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, nosso país já contava com uma população na margem dos 150 milhões de habitantes. Seguimos crescendo e, atualmente, segundo o IBGE, existem mais de 203 milhões de brasileiros1 - número atualizado até 22/12/23. Ao mesmo tempo em que, naquela época, o número populacional subia, outro índice chamava a atenção do setor público: O de sub-registro de crianças recém-nascidas. Conforme a ARPEN-Brasil - Cartilha da Associação Nacional dos Registradores Civis2, intitulada de "Registro Civil de Nascimento: o primeiro ato de cidadania", o índice de sub-registro, em 2004, no Brasil, era de 17%. Outra informação, também compartilhada nessa cartilha, é de que segundo "a ONU é considerado erradicado o sub-registro de nascimento quando o país atinge índice igual ou inferior a 5%". Em 2013, portanto nove anos depois, foi o último ano em que o Brasil esteve acima do índice indesejado. Após, superou e, no ano de 2022, alcançou o índice de sub-registro de 1,31%. Vejamos o gráfico a seguir: Em 2022, novamente com base nas informações constantes da Cartilha da ARPEN-Brasil, o destaque no combate à erradicação do sub-registro de nascimentos era do Estado do Paraná, com índice de 0,17%, seguido pelos estados de Santa Catarina e São Paulo, com 0,20% e 0,21%, respectivamente. Na margem contrária, Roraima, com 14,29%, era superado pelos estados do Amapá e Amazonas, com 9,52% e 6,48%, respectivamente. A conquista do indicador de 1,31% foi alcançada em função da enorme capilaridade dos cartórios de Registro Civil de Pessoas Naturais. Afinal, e segundo dados da ARPEN-Brasil, o país possui 7.687 serventias com esta especialidade em 5.570 municípios. Ou seja, todos os municípios do país, nos vinte e seis estados e no distrito federal, possuem, ao menos, um cartório de Registro Civil. Foi com base nessa capilaridade que o CNJ encontrou uma alternativa para frear o índice de sub-registro de nascimentos. Então, em 3/9/10, foi publicado o provimento 13, referindo, em seu preâmbulo, o seguinte: CONSIDERANDO que é o registro de nascimento perante as serventias extrajudiciais do registro civil das pessoas naturais que confere, em primeira ordem, identidade ao cidadão e dá início ao seu relacionamento formal com o Estado, conforme dispõem os arts. 2º e 9º do Código Civil em vigor; CONSIDERANDO a instituição do Compromisso Nacional pela Erradicação do Sub-registro Civil de Nascimento e a ampliação do acesso à documentação básica, por meio do decreto 6.289, de 6/12/07, e da publicação dos Protocolos de Cooperação Federativa - Compromissos: Mais Nordeste pela Cidadania e Mais Amazônia pela Cidadania, que estabelecem a intensificação das ações para erradicar o sub-registro civil de nascimento nas respectivas regiões, até o final de 2010, incluída o registro de nascimento e a emissão de certidão de nascimento nos estabelecimentos de saúde antes da alta hospitalar; CONSIDERANDO a parceria firmada entre a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, o CNJ, o Ministério da Justiça, a Associação dos Notários e Registradores do Brasil e a Arpen Brasil - Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais, por meio do acordo de cooperação, processo 00005.003503/2007-71, publicado no Diário Oficial em 3/1/08, o qual objetiva cooperação com vistas à implantação do Plano Social de Registro Civil de Nascimento e Documentação Básica, destinado à erradicação do sub-registro civil de nascimento; CONSIDERANDO a participação do CNJ no Grupo de Trabalho que discute a criação e implantação do SIRC - Sistema de Informações de Registro Civil, de acordo com portaria conjunta SEDH/PR/MJ/CNJ, publicada em 18/2/09; CONSIDERANDO a participação do CNJ, da Corregedoria Nacional de Justiça e das Corregedorias - Gerais de Justiça dos Estados e Distrito Federal nas ações de Mobilização Nacional pela Certidão de Nascimento; CONSIDERANDO a publicação do decreto 7.231 de 14/7/10 e dos provimentos 2 de 27/4/09, 3 de 17/11/09 e 10 de 13/7/10 da Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ; CONSIDERANDO que a ARPEN-BR - Associação dos Registradores das Pessoas Naturais do Brasil sugeriu a possibilidade de formação de consórcio de empregadores urbanos para a contratação de preposto capaz de atuar em parte dos estabelecimentos de saúde; CONSIDERANDO o entendimento de que a aplicação analógica do artigo 25-A da lei 8.212/91 não encontra óbice legal (art. 5º, II, da CF) e contribui para a obtenção do pleno emprego e para o incremento do bem-estar e da justiça social (art. 170, VIII e 193, ambos da Constituição Federal); CONSIDERANDO, por fim, a conveniência de uniformizar e aperfeiçoar o registro de nascimento e a emissão da respectiva certidão nos estabelecimentos de saúde, antes da alta hospitalar da mãe ou da criança; Com a faculdade oportunizada pelo provimento, cartórios instalaram, em suas circunscrições de atuação (art. 12 da lei 8.935/94), unidades interligadas em complexos hospitalares e, desde então, lavram assentos de nascimento, inclusive dos munícipes das cidades vizinhas que encaminham as gestantes para uma unidade hospitalar maior, uma vez que estes municípios não possuem hospitais e/ou profissionais capazes para a realização de partos. Assim, enquanto o índice de sub-registro de nascimentos caminhava para a erradicação deste indicador, outro - de cartórios deficitários - acelerava o passo. Confira aqui a íntegra da coluna. _________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui.
Resumo Este artigo relata e examina a inovadora lavratura de escritura pública de inventário extrajudicial envolvendo herdeiros menores, realizada junto ao 1º Tabelião de Notas de Santo André, São Paulo, em conformidade com a resolução CNJ 571/24. A escritura incluiu a partilha dos menores em frações ideais de imóveis, destacando as implicações jurídicas, processuais e doutrinárias dessa inovação normativa, e abordando ainda a questão da eventual extinção do condomínio entre os herdeiros. Introdução A resolução 571, de 2024, promulgada pelo CNJ, introduziu um marco relevante para o direito sucessório brasileiro ao autorizar inventários extrajudiciais envolvendo herdeiros menores ou incapazes, desde que todos os requisitos legais sejam atendidos e com manifestação favorável do Ministério Público1. Essa inovação normativa visa desburocratizar o sistema e tornar mais célere a partilha de bens, mantendo o rigor protetivo sobre o patrimônio de herdeiros vulneráveis. Estrutura normativa e conceito de fração ideal  A resolução CNJ 571/24 determina que a partilha de bens imóveis para herdeiros menores seja feita em frações ideais, uma medida que se coaduna com o conceito jurídico de co-propriedade abstrata. A fração ideal representa uma proporção do direito de propriedade sobre um bem indivisível, sem segmentação física da área, garantindo ao herdeiro a titularidade sobre uma parte proporcional do valor total do bem, conforme sua cota no espólio2. Segundo Guarnera, essa solução é amplamente vantajosa, pois evita a depreciação do imóvel e preserva seu valor econômico e jurídico3. Neste mesmo sentido, Germano, Nalini e Nosch4, inovaram ao defender a divisão do patrimônio igualmente entre herdeiros. Assim, ainda que um deles fosse incapaz, não haveria qualquer prejuízo. É o que acontece na imensa maioria das partilhas, com atribuição de parte ideal (CC art. 1.784).  Raramente os bens são atribuídos de forma exclusiva ou individual aos herdeiros. Caso ocorra a hipótese, aí se justificará participação do Ministério Público e do Poder Judiciário. Conforme o §1º do art. 12-A da resolução, "o pagamento do quinhão hereditário ou da meação do herdeiro menor deve ocorrer em parte ideal de cada bem inventariado". Dessa forma, cada menor detém uma cota ideal sobre os bens imóveis do espólio, evitando o fracionamento físico que, além de ser oneroso, poderia comprometer o valor do bem5. A escolha da fração ideal visa tanto à preservação do patrimônio dos herdeiros quanto ao respeito à unidade econômica dos imóveis partilhados. Procedimento de sub-rogação e validação pelo Ministério Público A escritura, lavrada junto ao 1º Tabelião de Notas de Santo André, incluiu a sub-rogação dos dois herdeiros menores em frações ideais de bens imóveis. A sub-rogação, um mecanismo de substituição de titularidade em cotas abstratas, permite que os herdeiros exerçam seu direito sem que o bem precise ser fragmentado fisicamente. A manifestação favorável do Ministério Público foi fundamental para assegurar a conformidade do ato com o princípio da proteção integral dos incapazes, que encontra respaldo no art. 12-A, §3º, da resolução6. Essa exigência visa a garantir que os valores atribuídos aos quinhões dos herdeiros menores estejam adequados e proporcionais, conforme a titularidade de cada um. A atuação do MP nesse processo é central, pois assegura a proteção dos direitos dos herdeiros menores e valida a eficácia jurídica da escritura extrajudicial7. DA NECESSIDADE DE HOMOLOGAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO E A CONSEQUENTE CONDIÇÃO DE EFICÁCIA MINISTERIAL A resolução CNJ 571/24 inseriu o art. 12-A na resolução CNJ 35/07, estabelecendo um requisito essencial para que a escritura de inventário e partilha com herdeiros menores seja eficaz: a homologação pelo Ministério Público. Este dispositivo reforça a garantia de que os direitos dos herdeiros incapazes sejam respeitados e protegidos no âmbito do inventário extrajudicial. Abaixo, o artigo é transcrito, com destaque ao §3º, que aborda de forma direta a intervenção ministerial: Art. 12-A. No inventário e na partilha extrajudiciais promovidos em cartório e com a participação de menores ou incapazes, a eficácia da escritura dependerá da manifestação favorável do Ministério Público, conforme disposto na legislação civil e notarial vigente.  §1º Nos casos em que houver incapazes, os bens e direitos dos herdeiros menores devem ser preservados em frações ideais, respeitando-se a indivisibilidade e o valor dos bens comuns.   §2º Havendo disposição testamentária ou nascituro do autor da herança, a lavratura da escritura extrajudicial deverá aguardar a confirmação judicial, nos termos do CC.   §3º A eficácia da escritura pública do inventário com interessado menor ou incapaz dependerá da manifestação favorável do Ministério Público, devendo o tabelião de notas encaminhar o expediente ao respectivo representante. Em caso de impugnação pelo Ministério Público ou terceiro interessado, o procedimento deverá ser submetido à apreciação do juízo competente. No contexto do presente inventário, a eficácia do negócio jurídico descrito na escritura é subordinada à participação e à anuência do Ministério Público. Segundo o professor Antonio Junqueira de Azevedo, ao discutir a eficácia de atos jurídicos, não nos referimos a uma eficácia prática imediata, mas sim à eficácia jurídica, com ênfase na sua eficácia própria ou típica: a dos direitos expressamente manifestados como desejados pelas partes. A doutrina usualmente trata a eficácia no âmbito dos elementos acidentais do negócio jurídico, que incluem o termo, a condição e o modo ou encargo8. A condição, neste caso, exerce um papel de destaque, pois influencia diretamente a eficácia do negócio jurídico, e sua implementação está vinculada à divisão equânime e à ausência de prejuízos aos herdeiros menores. Trata-se de uma condição suspensiva, isto é, uma condição que, enquanto não cumprida, impede que o negócio jurídico produza efeitos no mundo exterior. Somente com a manifestação favorável do Ministério Público, que atesta a regularidade e a justiça do ato, os direitos dos menores são integralmente protegidos, e o inventário adquire eficácia plena e vinculante. Pontes de Miranda9, ao explorar o conceito de eficácia suspensiva, esclarece que negócios jurídicos pendentes de eficácia operam como causas temporárias de ineficácia: embora válidos entre as partes, eles permanecem inoperantes até o cumprimento da condição estipulada. Essa observação é aplicável ao inventário extrajudicial, em que o registro imobiliário só poderá ocorrer após a manifestação ministerial. Assim, no caso descrito, o Ministério Público se manifestou favoravelmente ao plano de partilha apresentado, considerando salvaguardados os interesses dos herdeiros menores, permitindo que a escritura seguisse para registro, validando o ato no plano jurídico e externo. Eventual extinção do condomínio e consequências jurídicas A atribuição de frações ideais aos herdeiros menores implica a constituição de um condomínio, pois cada herdeiro possui uma parte indivisa do bem. A extinção desse condomínio pode ser realizada mediante acordo entre os herdeiros ou por ação judicial, caso seja necessário dissolver a co-propriedade. A eventual alienação ou divisão do imóvel dependerá da anuência de todos os co-proprietários, ou, no caso de herdeiros ainda menores, de autorização judicial específica10. Essa possibilidade de extinção do condomínio é uma consequência natural do regime de frações ideais, sendo uma forma de viabilizar a individualização da propriedade caso surjam interesses divergentes entre os herdeiros. Tal procedimento, no entanto, deve sempre considerar a proteção dos interesses dos menores, como disposto na doutrina de Venosa sobre a tutela dos direitos de herdeiros vulneráveis11. Considerações sobre o Impacto da resolução CNJ 571/24 O presente caso exemplifica o potencial de aplicação da resolução CNJ 571/24, que permite uma administração patrimonial menos burocrática, alinhada às necessidades de uma justiça célere e eficiente. A possibilidade de extinção do condomínio após a distribuição em frações ideais garante a flexibilidade na gestão do patrimônio, possibilitando que os herdeiros possam, no futuro, realizar a divisão física ou a alienação dos bens, se assim desejarem e com as devidas salvaguardas legais12. Conclusão  A execução deste inventário extrajudicial junto ao 1º Tabelião de Notas de Santo André representa uma aplicação prática e eficaz da resolução CNJ 571/24, proporcionando uma alternativa ao processo judicial, com a devida proteção dos direitos dos herdeiros menores. A manutenção em condomínio e a possibilidade de extinção deste, conforme os interesses dos herdeiros, contribuem para a valorização e a preservação do patrimônio hereditário, além de promover uma administração patrimonial alinhada aos princípios da proteção integral e da função social da propriedade. ________ 1. CNJ. resolução 571, de 27 de agosto de 2024. Disponível aqui. 2. Silva, Antônio. Direito das Sucessões Contemporâneo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2024. 3. IBDFAM. CNJ publica resolução que autoriza extrajudicialização de divórcios e inventários, mesmo com filhos menores e testamentos. Disponível aqui. 4. Portal Migalhas. CNJ autoriza inventário extrajudicial com herdeiro menor incapaz. Disponível aqui. 4. Portal Migalhas. Um passo adiante. Disponível aqui. 5. Guarnera, Roberto. Estudos sobre a Desjudicialização e a Eficiência no Direito Sucessório Brasileiro. São Paulo: Editora Jurídica, 2024. 6. Venosa, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Sucessões. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2024. 7. Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Manual Prático para Implementação da resolução 571/24. Brasília: CNJ, 2024. 8. Santos, Maria do Carmo. Proteção Jurídica do Menor no Direito Sucessório Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2024. 9. Farias, Cristiano Chaves de; Rosenvald, Nelson. Curso de Direito Civil: Sucessões. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2024. 10. Junqueira de Azevedo, Antonio. Teoria Geral dos Negócios Jurídicos. São Paulo: Saraiva, 2024. 11. Pontes de Miranda, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro:
Resumo Começo com um resumo, em tópico, das ideias principais deste artigo: Quanto ao suporte formal, o contrato pode ser analógico ou eletrônico (capítulo 2); Quanto à escrita, o contrato pode ser escrito ou não escrito (capítulo 3). A assinatura pode ser física ou eletrônica. Esta última pode ser simples, avançada ou qualificada. Também há assinatura eletrônicas típicas e atípicas (capítulo 4.1 a 4.4.). No caso de assinatura com reconhecimento de firma (inclusive o reconhecimento de assinatura eletrônica pelo notário) ou de assinatura eletrônica típica, o documento considera-se autêntico, de modo que eventual impugnação do signatário quanto à sua autoria deve ser acompanhada de prova (capítulo 4.5). Quanto à automação, o contrato pode ser: manual ou automatizado lato sensu (= smart contract lato sensu ou contrato autoexecutável lato sensu). Este último é subdivido em: contrato automatizado emancipado (smart contract stricto sensu) e contrato automatizado não emancipado (capítulo 5). Nos contratos automatizados lato sensu, a vontade inicial humana é a matéria-prima para a aplicação da teoria geral dos contratos, inclusive as regras de resolução ou revisão contratual por fato superveniente bem como as de invalidade de cláusulas contratuais. O juiz, porém, deve manter acentuada postura de contenção em atenção ao inequívoco interesse das partes em prestigiar uma interpretação mais literal do contrato (capítulo 6). 1. Introdução Este artigo foca na definição e na classificação dos contratos eletrônicos e dos smart contracts, também chamados de contratos inteligentes. Para tanto, o artigo aborda outras classificações, como de assinaturas eletrônicas, tudo com o objetivo de sistematizar as terminologias. Não se trata de diletantismo. A ciência do Direito ocupa-se de taxonomias e classificações, porque cada categoria atrai um regime jurídico diferente. Registramos nossos agradecimentos ao amigo professor Leandro da Silva Nunes Vieira, consultor legislativo do Senado Federal, dono de um vasto conhecimento em tecnologia da informação. As conversas com ele foram fundamentais para as reflexões deste artigo. O presente artigo é fruto de reflexões realizadas durante nosso estágio pós-doutoral em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP), sob a supervisão do Professor Eduardo Tomasevicius Filho. 2. Classificação do contrato quanto ao suporte formal (analógico vs eletrônico ou digital) Quanto ao suporte formal, o contrato pode ser classificado em: a) contrato analógico: é aquele resultante de um acordo de vontades externado em um ambiente não digital. - Incluem-se aí não apenas os contratos formalizados por escrito em papel ou em outro suporte físico, mas também os contratos não escritos, como os formalizados verbalmente, por gesticulações ou, até mesmo, pelo silêncio conclusivo na hipótese do art. 111 do CC1. b) contrato eletrônico ou digital: é aquele fruto de acordo de vontades exteriorizado em um ambiente digital. Entende-se por ambiente digital os canais de comunicação no meio cibernético, envolvendo interação entre computadores, como no caso de uso da internet. - Incluem-se aí não apenas os contratos formalizados em arquivos de texto eletrônico (como os em formato PDF), mas também os aperfeiçoados por e-mail, por aplicativos de conversa on-line (como o WhatsApp) ou por outro canal de comunicação cibernético2. 3. Classificação do contrato quanto à escrita (escrito vs não escrito) Quanto à escrita, o contrato pode ser: a) contrato escrito: é aquele em que o acordo de vontades é colocado a termo, em texto escrito, ainda que em um suporte digital (como em um arquivo eletrônico em formato PDF). Podem ser subdivididos em: a.1) contrato por instrumento particular: é aquele escrito pelas partes. b.2) contrato por instrumento público: é aquele escrito por um agente público com fé pública a partir da manifestação de vontade das partes. É o caso dos contratos formalizados por escritura pública, inclusive a escritura pública eletrônica lavrada por meio da plataforma do e-Notariado (arts. 284 e seguintes do CNN-Extra-CNJ3). b) contrato não escrito: é aquele em que o acordo de vontades não é exteriorizado por texto escrito, a exemplo dos contratos fruto de uma comunicação verbal (contrato verbal), ainda que por meio eletrônico (como em videoconferência). 4. Espécies de assinatura 4.1. Introdução No caso de contratos escritos, a prova da autoria da manifestação de vontade costuma ser feita pela assinatura. Afinal, a assinatura faz presumir a autoria da declaração de vontade, conforme art. 219 do CC4. Nesse ponto, indaga-se: esse dispositivo deve ser interpretado para abranger assinaturas físicas e eletrônicas? Responderemos após explicamos as espécies de assinaturas. 4.2. Assinatura física e Assinatura eletrônica A assinatura pode ser classificada em: assinatura física: é a assinatura manuscrita, feita a mão, em suporte físico. É a representação gráfica manuscrita feita pela pessoa para identificar-se para fins oficiais. A assinatura física tem de ser lançada na carteira de identidade (art. 3º, "f", da lei das carteiras de identidade - lei 7.116/83). assinatura eletrônica: é o ato praticado em meio digital com o objetivo de atestar a autoria de uma manifestação de vontade. Esse ato envolve o que chamamos de âncora de confiabilidade, assim designado o elemento de identificação do autor da declaração de vontade5. A âncora de confiabilidade da assinatura eletrônica pode ser de diversos tipos, a exemplo de um código (como um login e senha) fornecido ao sujeito por diversos meios: carta, e-mail, consulta presencial, videoconferência etc. Clique aqui para ler a íntegra da coluna. ________ 1 Art. 111. O silêncio importa anuência, quando as circunstâncias ou os usos o autorizarem, e não for necessária a declaração de vontade expressa. 2 O anteprojeto de reforma do CC elaborado pela comissão de juristas nomeada pelo presidente do Senado Federal em 2023 dá didática definição: "Art.  Entende-se por contrato digital todo acordo de vontades celebrado em ambiente digital, como os contratos eletrônicos, pactos via aplicativos, e-mail, ou qualquer outro meio tecnológico que permita a comunicação entre as partes e a criação de direitos e deveres entre elas, pela aceitação de proposta de negócio ou de oferta de produtos e serviços" (Disponível aqui.) 3 Código Nacional de Normas do CNJ aplicável ao Extrajudicial (provimento 149/23). 4 Art. 219. As declarações constantes de documentos assinados presumem-se verdadeiras em relação aos signatários. Parágrafo único. Não tendo relação direta, porém, com as disposições principais ou com a legitimidade das partes, as declarações enunciativas não eximem os interessados em sua veracidade do ônus de prová-las. 5 Para aprofundamento, ver: OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de; BENÍCIO, Hércules Alexandre da Costa. Assinatura eletrônica nos contratos e em outros atos jurídicos. Disponível aqui. Publicado em 28 de agosto de 2020.
O artigo que apresentamos resulta do desafio que me foi proposto pelo Senhor Doutor Sérgio Jacomino, ilustre registrador e cultor da ciência jurídica, no IX encontro de Direitos Reais, de Direito Registal Imobiliário e de Direito Notarial que teve lugar no colégio da Trindade, em Coimbra, no passado dia 22 de maio de 2024. No referido evento apresentei umas breves notas, tentando contribuir, como debatedor, para ampliar/apelar ao debate sobre as implicações da Inteligência Artificial (doravante "IA") no método jurídico e em especial na atividade notarial e registal. A IA aparece como produto da inovação científica sem paralelo e que se vem desenvolvendo desde há, pelo menos, sete décadas, procurando imitar o cérebro humano com a finalidade de o aperfeiçoar e de superar as nossas capacidades cognitivas.1 Há quem afirme que estamos perante uma concorrência de inteligências! A IA vai, paulatinamente, afastando e substituindo o trabalho intelectual dos seres humanos, especialmente no âmbito de profissões mais técnicas, como por exemplo, construir uma ponte, fabricar um automóvel, construir um edifício, controlar o tráfego aéreo. O surgimento da IA poderá representar, assim, impacto sobre a História da humanidade muito diferente daquele que teve a revolução agrícola ou a revolução industrial - esta é a primeira revolução a pôr em causa, também, as profissões que exigem um nível superior de diferenciação. Perante este cenário, qual o nosso papel, enquanto seres humanos, num mundo em que a IA cresce exponencialmente e nos afasta como medida de todas as coisas?2 Que valor podemos acrescentar à IA quando esta cresce em capacidade que lhe permite "pensar" mais (que não melhor) em termos estatísticos do que a inteligência humana? A resposta estará no controlo, direção e governo da IA. Empresas como a Google, Amazon, Facebook (Meta) e Apple, conhecidas pelo acrónimo GAFA são o produto da "Era do Petabyte", uma nova era da nossa História reveladora do aumento exponencial da massa de dados digitalizados cada vez mais acessíveis porque se encontram hoje numa "nuvem" e já não em disquetes, discos duros ou pen drives. Como referiu o ilustre notário espanhol Manuel González-Meneses García-Valdecasas3, o método científico sempre foi construído sobre hipóteses submetidas a testes. Na verdade, continuando a acompanhar o autor citado, quer a física (não só a clássica newtoniana, mas também a quântica), quer a biologia, têm oferecido aproximações à verdade, mas incapazes de nos dar conta de toda a complexidade do real. Hoje, com os petabytes, é possível afirmar que a correlação é suficiente: deixou de ser necessário lançar mão de modelos explicativos, isto é, podemos analisar dados sem necessidade de formular hipóteses, bastando lançar números sobre potentes computadores e deixar que os algoritmos estatísticos encontrem soluções em padrões que os cientistas não são capazes de ver. Exemplos desta nova forma de fazer ciência são a sequenciação genética aleatória levada a cabo já no início deste século pelo biólogo J. Craig Venter e que permitiu descobrir novas formas de vida. Mas também o programa Cluster Exploratory, plataforma destinada a mimetizar o cérebro e o sistema nervoso.4 O ritmo é estonteante e hoje, face à quantidade de dados disponíveis e ao seu tratamento, assistimos a fenómenos como o machine learning, o processamento de linguagem natural e a própria inteligência artificial generativa. Esta revolução no método científico será transponível para o método jurídico? Perante todo este ruído, toda esta massa de dados, todo o avanço tecnológico de que é exemplo candente o ChatGPT, partilhamos algumas das questões levantadas por González-Meneses: Vamos continuar a ter necessidade de juristas? É necessário fazer um curso de Direito, com a memorização de doutrina, jurisprudência, definições e antecedentes históricos? Afinal, toda essa informação não está já na nuvem? Vamos continuar a fazer todo um percurso de estágio e de experiência profissional para sermos magistrados, notários, conservadores dos registos ou advogados? Continuamos vinculados a uma lógica jurídica baseada em normas, regras ou princípios gerais e na consequente qualificação jurídica ou aplicação da regra geral ao facto concreto? Uma análise superficial pode levar-nos a concluir que esta é uma tarefa de fácil tratamento algorítmico. Em breve, não teremos ferramentas informáticas que permitirão processar, de forma automática, todos os dados disponíveis nos tribunais, nos cartórios, nos serviços de registo e nos escritórios dos advogados para correlacionar padrões que possam servir de base a decisões adequadas ao caso concreto? Continuaremos vinculados à lógica jurídica de subsunção de um facto concreto a uma regra geral, ou seja, ao silogismo legal que é uma forma de dedução? Aparentemente, este exercício de qualificação encaixaria bem numa ferramenta informática desenvolvida pela IA, mas aquele exercício convoca uma tarefa intelectualmente bem mais complexa que requer ao aplicador do Direito um entendimento do significado da norma, regra ou critério geral e da sua relação com os interesses ou valores do caso concreto a subsumir. Requer, ainda, a seleção da norma que será relevante para o caso concreto, de entre as inúmeras normas de diferentes ordenamentos jurídicos. O tradutor DeepL ou outros disponíveis à distância de um click, para traduzir de forma aceitável um determinado texto, não precisa de compreender as regras gramaticais de determinado idioma, pois o processo de tradução é estatístico, baseado na comparação e análise de uma massa infinita de dados. Também não lhe interessa o significado dos textos que traduz, nem a relevância dos mesmos para quem requer a tradução ou a adaptação linguística ao destinatário da tradução.5 No limite, podemos optar por um sistema de decisão jurídica que não subsuma factos a regras ou princípios gerais e que não precise de nenhum modelo conceptual. Este sistema, alimentado por milhões de textos jurídicos anteriores (sentenças, articulados, escrituras públicas, registos), operaria de forma indutiva e estatística gerando, automaticamente, soluções com base em semelhanças ou padrões detetados sem necessidade de perceber o significado ou sentido de nenhuma norma, conceito, ou teoria abstrata. Poderia ser uma opção política, legitimada pelo povo, no contexto de uma democracia. A este propósito é muito interessante a posição assumida pelo norte americano, Erik J. Larson, um informático e empreendedor tecnológico, no livro "The Myth of Artificial Intelligence. Why Computers Can't Think the Way We Do?"6 que se mostra muito crítico com o projeto científico e tecnológico da IA e, em particular, com a ideia de que o aparecimento da IA de nível humano ou sobrehumano é uma inevitabilidade quase iminente. Segundo este autor, os promotores da IA cometem um grave erro intelectual: por um lado, sobrestimam de forma pouco científica a capacidade real da IA, mesmo no estado da arte atual e, por outro, subestimam a inteligência natural humana. Para fundamentar esta posição, Larson invoca a autoridade do filósofo Charles Peirce, para explicar que a inteligência diferencial humana não é aquela que se manifesta em processos lógicos de dedução (que se limita a tornar explícito o conhecimento que já estava implícito em algumas premissas) ou da indução (que pretende obter um conhecimento geral, partindo da acumulação de observações particulares ou singulares), processos que os computadores já conseguem fazer com êxito. Aquele filósofo defende que a inteligência diferencial humana se manifesta num processo a que chamou "abdução", ou seja, a capacidade de conjeturar ou prever por forma a obter uma hipótese explicativa com base em determinados dados. Ora, segundo este autor, o único tipo de pensamento que funcionaria para uma IA de nível humano é justamente aquele relativamente à qual não há ainda ideia de como desenhar ou programar.7 A pretensão de que as máquinas, por si só, e em função da quantidade massiva de dados que estão à sua disposição, são capazes de avançar o nosso conhecimento científico é posta em causa por Larson ao afirmar que: "(q)uando Copérnico defendeu que a terra girava à volta do sol e não o inverso, teve de ignorar montanhas de evidências e dados acumulados durante séculos por astrónomos que trabalhavam o modelo ptolomaico. Copérnico redesenhou tudo com o Sol no centro e fabricou um modelo heliocêntrico. Ora, só ignorando todos os dados anteriores ou, ao menos, reconceptualizando-os, pôde Copérnico afastar o modelo geocêntrico e introduzir uma estrutura radicalmente nova para o sistema solar". E conclui: "como é que o big data poderia ter ajudado neste processo se todos os dados se encaixavam num modelo equivocado?". A IA que combina a base massiva de dados e a aprendizagem automática (big data e machine learning) usa um sistema de indução automatizada e não uma verdadeira inteligência com capacidade cognitiva. O problema de conhecimento não será, assim, quantitativo. A disponibilidade de mais dados, de novos dados, pode ajudar-nos a detetar um modelo explicativo erróneo, mas não nos oferece, por si só, uma nova explicação. Assim, só o controlo efetivo da IA poderá manter a nossa capacidade de preservar a inteligência natural, a inteligência humana, como defende o ilustre Professor de Filosofia do Direito da Universidade Pontifícia de Comillas, José María Lasalle Ruiz8. E esse controlo implicará a aplicação da nossa inteligência e capacidades cognitivas, restaurando a sabedoria aristotélica que procurava a prudência como suporte da equidade. A prudência, a par da justiça, da força e da temperança, é uma das quatro virtudes cardeais da Antiguidade e talvez a mais esquecida. Virtude intelectual, explicava Aristóteles, na medida em que tem a ver com a verdade, com o conhecimento e com a razão. A prudência é a disposição que permite deliberar corretamente acerca do que é bom ou mau, não em si, mas no mundo tal como ele é, não em geral, mas nesta ou naquela situação e que nos leva a agir de acordo com o bem. A prudência condiciona todas as outras virtudes e é o que separa a ação do impulso.9 Sem a prudência como suporte da equidade, a decisão humana será substituída, também no Direito, pela lógica do conhecimento que nasce da gestão algorítmica de uma massa infindável de dados. E se as regras passarem por aqui, então já perdemos o "jogo" para as máquinas. Se a IA é algo ou uma coisa que aspira em ser alguém, então cabe ao ser humano ser a sua consciência crítica e decisória, garantido o seu controlo. É um desafio para inteligência humana que no campo do Direito implica a restauração da iuris prudens principio que interpretou o Direito como "ars iuris" (arte de fazer o justo), do "suum quique tribuire"  (dar a cada um aquilo que é seu).  Devemos resistir à tentação de aceitar a oferta de uma segurança jurídica infalível imposta por uma ditadura da IA.  O ser humano deve, pelo contrário, afirmar a sua condição, acrescentado um valor que não pode ser deixado ao tratamento algorítmico. Só os seres humanos poderão decidir o que significa dar a cada um o que é seu. O aplicador do Direito tem de ir mais além, entendendo o significado da norma que vai aplicar e a sua relação com os interesses e valores em causa, num determinado caso concreto a subsumir com as regras ou princípios gerais, porque presenciou, viu, ouviu, relacionou. Acredita-se que uma civilização apoiada na tecnologia da informação pode disponibilizar ferramentas mais sofisticadas e eficientes para a manutenção da paz social, mas o problema do conhecimento não é quantitativo. Mais dados, novos dados, ajudam-nos a detetar que um determinado modelo pode estar errado, mas não nos oferecem, por si só, novas explicações. Há que atribuir um significado aos dados, construir um novo modelo. Em recente entrevista ao diário espanhol ABC, o matemático, Pablo Morales10, galardoado com o "Premio Talento Joven Fundación BBVA" por ter desenhado algoritmos que permitem detetar ondas gravitacionais afirmou: "(t)rabalho com algoritmos, mas por vezes surpreendem-me, pois tomam decisões, mas não sabem explicar porquê! Mesmo quando acertam, não existe a explicação que se exige a um médico, a um juiz." e continua: "[o]s algoritmos são treinados com milhões de dados disponibilizados pelas pessoas, e cada vez precisam menos de nós. Mas eu confio em fontes de prestígio, de cientistas que conheço. A reputação continua a ser um assunto dos seres humanos." Como bem assinalou Sérgio Jacomino11, "(d)evemos manter a inquietação, o inconformismo, em face da investida neopositivista que esta vaga tecnológica representa. Como o Dr. Pangloss, na novela de Voltaire, a IA fala sobre tudo e todos, pontifica como o eixo plenário do conhecimento humano.. Mas Voltaire não pode compreender a dimensão de Leibniz. O melhor mundo possível não é aquele que exonera o homem e Deus". E conclui: "(a) IA é a expressão de um otimismo idealista. Os idealismos provaram ser o veneno da liberdade humana". Por tudo o que fica dito, parece-nos que atribuir à IA capacidades cognitivas de que esta ferramenta realmente carece pode levar-nos a delegar competências decisórias sobre questões humanas que excedem, verdadeiramente, a sua capacidade ________ 1 Geoffrey Hinton em entrevista à revista XL Semanal, 1928, de 6 de outubro de 2024. 2 Recuperamos a sentença de Protágoras na sua obra A Verdade. Para mais desenvolvimentos, cf. Danilo Pereira dos Santos "Observações Sobre a Doutrina do Homem-Medida: Uma Tentativa de Reconstrução do Pensamento de Protágoras" disponível aqui. 3 "Big data" y "machine learning": ¿el fin del método jurídico? In Notario del Siglo XXI, nº 113. 4 Chris Anderson, "The end of theory." In Wired Magazine, de 23.06.2008 5 "Big data" y "machine learning": ¿el fin del método jurídico? In Notario del Siglo XXI, 113. 6 Erik J. Larson, "The Myth of Artificial Intelligence. Why Computers Can't Think the Way We Do?", Harvard University Press, 2021. 7 Contra, Geoffrey Hinton, na já citada entrevista à revista XL Semanal, quando afirma que ..."[d]evemos compreender que a IA é uma forma de inteligência mais potente do que a nossa. E muito superior a todos nós em muitos aspetos". E prossegue: "[a] IA tornar-se- á incontrolável, pois teremos várias superinteligências. Imaginemos uma IA da Google, outra da Microsoft e várias de origem chinesa. A IA tem já as suas próprias necessidades: se perguntarmos à Alphazero, a IA de xadrez da Google se quer ganhar ao seu adversário, a resposta será: claro!". E conclui:"[a]lgumas pessoas pensam que a IA é limitada porque só é alimentada com os dados disponíveis na internet. Isso é um engano. A IA superinteligente já viu coisas que os humanos nunca viram. Sobretudo poderá fazer analogias melhores do que as nossas. Entendi isto mesmo quando perguntei ao ChatGPT porque é que um monte de compostagem funciona como uma bomba nuclear. À medida que o monte de compostagem aquece, gera calor de forma mais rápida (por ação microbiana). E, à medida que uma bomba nuclear produz neutrões, fá-lo cada vez mais rápido. A escala entre uma e outra é completamente diferente, mas a lógica é a mesma: uma reação em cadeia. O ChatGPT chegou a esta conclusão, mas onde encontrou esta ideia? É possível encontrar esta analogia na internet? Pedi ao Sergey Brin, fundador da Google, para pesquisar este fenómeno e não o encontrou. A IA atual é extremamente eficaz a criar analogias. A sua capacidade de aprendizagem nada tem a ver com o passado. O que aprende não é um conjunto de regras lógicas; o que aprende é a ter intuição." 8 "Inteligencia artificial, sabiduría humana y justicia", in Notario del Siglo XXI, 117. 9 Acompanhamos José Maria Lasalle Ruiz, no citado artigo. 10 Entrevista ao diário espanhol ABC de 17 de maio de 2024, disponível aqui. 11 Declarações produzidas no IX Encontro de Direitos Reais, de Direito Registal Imobiliário e de Direito Notarial, Colégio da Trindade, Coimbra, 22 de maio de 2024.
quarta-feira, 6 de novembro de 2024

De volta ao passado!

O direito nasce para regulamentar às relações em sociedade. Quando crimes acontecem, o direito encontra uma forma de coibi-lo. Quando surgem novas relações sociais trazendo algum reflexo para o mundo jurídico, surge também uma demanda legislativa para regulamentar e proteger a vida social. No direito de família não é diferente. A CF/88, por meio do art. 226, prevê que "a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado." Ou seja, deve o Estado se preocupar em cuidar daquilo que é a base da sociedade. Este cuidado reflete na necessária e constante atualização legislativa para trazer ao mundo jurídico relações familiares que estão excluídas, garantindo a todas as famílias os exercícios dos meus direitos. Família consanguínea, cível, mosaico, anaparental, monoparental, socioafetiva ou homoafetiva. Todas elas, sem exclusão de nenhuma, são a base que fundamenta a sociedade. Neste ponto, cabe acrescentar que o Estado age, cuidando da sua 'base', como se fosse um rio que, em alguns pontos deixa suas águas, e em outros traz para si águas de outras fontes. Em algumas destas margens, o rio tende a se fortalecer por auxílio da natureza. Neste rio de atuações do Estado, surgem as correntezas do extrajudicial, cujas águas são fortes e preparadas para cuidar das relações humanas. Assim é o registro civil das pessoas naturais, que é responsável por registrar, publicizar e, entre outras importantes atividades, garantir o exercício dos direitos da pessoa humana. O registro civil das pessoas naturais vem ganhando força e destaque a cada dia, seja através de novas e robustas atribuições, seja através da contemplação da sociedade, que visualiza o quão real e importante são os atos ali praticados. Quando nasce um bebê, é o registro civil que anuncia este nascimento e prepara o Estado para preparar as políticas públicas para recepcioná-lo. Quando alguém morre, é este mesmo registro civil que comunica aos órgãos regulamentadores e emissores de documentos, cancelando-os e evitando que novas relações sejam constituídas com documentos de pessoas falecidas. Este mesmo registro civil, que dia após dia se fortalece e recebe novas atribuições, ganhou destaques nos últimos anos com o procedimento de alteração de prenome e gênero das pessoas transgêneros, reconhecimento de filiação socioafetiva, alterações de prenomes e sobrenomes dos maiores de idade e procedimentos envolvendo a união estável. É uma evolução nunca vista na história do extrajudicial, muito embora há muito prevista, já que os registradores civis são profissionais do direito, altamente capacitados para atuar em prol da desjudicialização e extrajudicialização. Não obstante, é importante esclarecer que a evolução que prosperava, parece vir à mingua no que toca ao procedimento de reconhecimento de filiação socioafetiva. Veja só. Hoje é perfeitamente possível o reconhecimento de filiação socioafetiva da pessoa maior de 12 anos de forma desjudicializada, por meio de um procedimento que inaugura com requerimento conjunto do pretenso pai ou pretensa mãe socioafetiva, autorização dos genitores biológicos, concordância do filho(a) socioafetivo(a), além da apresentação de provas robustas da presença da socioafetividade, por meio do trato familiar de pai/mãe e filho(a) e conhecimento público do estado de filiação.  Este procedimento, após preenchido todos os requisitos ora explicitados, é analisado, primeiramente, pelo representante do Ministério Público, que, deferindo, retorna ao cartório de registro civil para conclusão pelo oficial de registro civil e subsequente averbação à margem do assento de nascimento. Quando um procedimento de filiação é realizado, nasce um pai, uma mãe, um filho. O fim do progresso vem com a reforma do CC, cujo anteprojeto em discussão apresenta a temerária redação do art. 10, §2º "O reconhecimento de filiação socioafetiva de pessoa com menos de dezoito anos de idade será necessariamente feito por sentença judicial e levado a registro, nos termos deste código". É possível, de imediato, encontrar um erro grosseiro de redação, já que o reconhecimento de filiação, seja biológico, seja socioafetivo, é objeto de averbação à margem do registro de nascimento. Não há um registro isolado próprio para reconhecer filhos. O segundo grande equívoco está na vedação do reconhecimento socioafetivo de modo extrajudicial para os menores de dezoito anos. E ele se repete com outro artigo introduzido no anteprojeto: "art.1617-C, caput: "O reconhecimento de filiação socioafetiva de crianças, de adolescentes, bem como de incapazes, será feito por via judicial". Como aqui já brevemente explicado, o registro civil das pessoas naturais está preparado e já vem, desde meados de dois mil e dezessete, realizando inúmeros procedimentos de reconhecimento socioafetivo de adolescentes acima de doze anos. Todos de forma segura, rápida e eficiente (mais de 11 mil procedimentos foram realizados, conforme os números levantados pela Revista Cartórios com Você). Proibir a realização destes procedimentos de forma desjudicializada é exatamente o mesmo que negar à base da sociedade, a proteção estatal, a mesma tutelada e prevista no art. 226 da CF/88. Uma barreira surge nas correntezas do registro civil, enfraquecendo o rio que fortalece às relações familiares. Não é permitido ao direito regredir, ignorar a realidade das coisas como são. E mais que isso, enfraquecer instituições que estão preparadas para prosperar ao lado da sociedade. Fica aqui a torcida para que os deputados federais e senadores, por meio de suas comissões, reparem este mal e acrescentem no Código Civil justamente o Procedimento já (bem) existente para os reconhecimentos de filiação socioafetiva, deferindo a todos os maiores de 12 anos, as facilidades existentes no exercício dos seus direitos de forma desjudicializada.
"Dieu nous garde d'un qui pro quo d'apothicaire, et d'un et cætera de notaire" Provérbio francês "La voluntad de las partes es lingote, y la actividad del Notario es troquel" Rafael Nuñez Lagos Como visto anteriormente1, a diferenciação da fé pública notarial da registral ocorre a partir da função probatória atribuída ao notário, o qual é capaz de atestar fatos externos sobre os quais apõe a sua fé, não estando restrito à certificação de seu próprio acervo, donde ser a imediação - que se expressa em toda escritura pública, mas não nos atos registrais, pela fórmula "perante mim, notário"2- princípio eminentemente notarial.     No entanto, tal relevância da função probatória no sistema geral formado por títulos e registros não pode obliterar, embora às vezes o faça, inclusive perante os profissionais especializados da área extrajudicial, a atuação notarial enquanto jurista na confecção do próprio negócio jurídico - e não apenas conservador do documento que o contém. Assim, um segundo equívoco comum sobre a atividade notarial é enxergar o tabelião tal qual espécie de máquina fotográfica de um negócio totalmente conduzido pelas partes e por ele recebido passivamente para mera autenticação, numa lembrança do tabellio romano que apenas reduzia a escrito o contrato oral perante ele celebrado pelas partes3. Fosse tão somente probatória/conservatória a função notarial, então talvez pudesse ser substituída por equivalentes funcionais já existentes a exemplo da tão alardeada "blockchain" e outras tecnologias4. E já dizia Carnelutti, ainda na década de 50, "el notario es un documentador, un creador de documentos. Es cierto, pero no es sólo esto. De serlo, mañana podría quedar en nada."5 Em verdade, a eficácia da prova documental produzida pela escritura ocorre atualmente no momento de exaurimento da função notarial, estando ligada à forma escrita, ao protocolo das folhas dos livros e à sua organização em uma matriz que não circula senão na forma de cópia - ou, como no Brasil se pacificou chamar, "certidão"6. Todas essas características, embora fundantes da organização notarial do tipo "latino", não traduzem, por si só, a complexidade do sistema de transmissão no qual o notário é chamado a intervir7. Historicamente, é bem verdade, a função notarial estava ligada ao mero domínio da escrita, sendo o notário - ou no termo tradicional espanhol que nesse aspecto melhor reflete a atividade, "escribano" - aquele que dominava a "arte de redigir", em especial, em latim. Os aspirantes à profissão treinavam suas minutas na chamada Ars dictandi8, protótipos de escrituras nas quais exercitavam a utilização do latim em construções jurídicas ou não, formando linhas gerais de aprendizado do bem escrever na língua morta. Foi Bolonha que, a partir de seus grandes mestres, a exemplo de Salatiel ("Ars Notarie" - de 1242) e Rolandino ("Summa Ars Notarie" - de 1255), sedimentou a visão do notário feito profissional jurídico especializado que, não à toa, serviu de instrumento à nascente organização estatal e, em especial, da expansão da burguesia europeia9, tendo seus profissionais se espalhado por toda a Europa meridional mais ou menos nessa época10, chegando, em 1392, em seus pontos mais ao norte no continente11 e, desde então, nunca mais se retirado12. Com o prestígio que os grandes mestres de Bolonha vieram a angariar a partir do renascimento do Direito Romano e a fusão, por eles promovida, do Corpus Iuris com os direitos germânicos e locais, se formaram as bases do chamado "Direito Comum", o qual, por sua vez, pode ser tido por antecedente histórico de todo o Direito Privado mundial de viés europeu continental até hoje13. Especificamente em relação ao instrumento notarial e suas cláusulas, se os primeiros notários modernos, discípulos de Irnério, eram, tal qual seu mestre, glosadores, ainda presos ao reconhecimento possível do texto do Corpus recém redescoberto, junto da posterior escola dos comentadores vieram também as cláusulas notariais "criativas" que, basicamente, construíam artifícios jurídicos para permitir aquilo que a lei - em especial os cânones romanos - queria proibir. É nesse sentido que Nuñez Lagos nos diz que "Las llamadas 'cautelae' de los doctores medievales eran 'habilidades', 'maestrías' de pura técnica, travesuras en la redacción de documentos para lograr soluciones de equidad huyendo del rigor de las leyes prohibitivas. En el fondo había una fraude a la Ley, pero para lograr una solución moral. (...) Los maestros de las 'cautelae' fueron los Notarios. El arte notarial, desde su cátedra permanente de Bolonia, llegó a tener favor y respeto, y hasta inspiró pánico."14 Ora, desde esse ponto o notariado jamais perdeu sua função de jusperito redator do instrumento público e são inúmeras as contribuições dos notários a todo o Direito Privado que muitas vezes passam despercebidas a olhos menos atentos. A começar pela própria forma escrita dos negócios, pois, diferente do que comumente se imagina, não é a escritura pública um plus em relação ao documento privado, que teria surgido antes e mais naturalmente. Ao contrário, o instrumento público foi o paradigma da construção escrita do direito na esfera negocial, surgindo o instrumento privado posteriormente como um minus em relação à escritura, e tendo sido os notários os grandes responsáveis pela difusão da contratação, especialmente imobiliária, documentada em forma escrita15, donde ainda no século XVIII se definia o instrumento privado por referência àquilo que nele faltava para se tornar uma escritura pública: "Est igitur scriptura privata, illa, quae fit a non publicis personis et non habet per se authoritatem nisi adersarius eam confiteatur"16 Também a redação objetiva, que trata o negócio segundo a visão de um terceiro não participante das obrigações, e que, nesse sentido, contraria a prática romana de declarações subjetivas formalmente assumidas por cada parte dentro do contrato - na esteira da antiga "stipulatio" - foi obra de um específico notário, tendo sido defendida com sucesso por Rolandino como forma de demonstrar que o verdadeiro autor do documento não eram as partes, mas o notário17.  Igualmente, a declaração tradicional de transmissão pela qual se transfere "todo jus, posse, ação, domínio" remonta à confecção do Direito Comum dentro das escrituras medievais, aproximando, de um lado, o efeito obrigacional específico da forma declaratória do ritual de contratação romano, e, de outro, a entrega da coisa transmitida, progressivamente substituída nos costumes germânicos por elementos simbólicos como a mera entrega da escritura ao comprador - a propósito, uma das razões pela qual, até hoje, é costume se entregar o "traslado" da escritura ao comprador, e não ao vendedor ou a ambas as partes. Atualmente, essa cláusula tradicional remanesce como o modelo padrão de constituto possessório e, tamanha sua difusão, passou a constar inclusive em recente lei brasileira18. Ainda, a declaração de responsabilidade pela transmissão, fossilizada na tradicional formatação "fazer sempre boa a presente escritura, por si e seus sucessores", deriva do conhecimento notarial do processo germânico no qual era o suposto proprietário quem, uma vez desafiado em juízo, deveria demonstrar o seu domínio, o que se fazia em priscas eras pelo chamamento de seus anteriores transmitentes que se obrigavam a comparecer em juízo pela referida declaração, com a assunção de penas severas no caso de inadimplemento19. No formulário Rolandino: "promittens per se et suos heredes dicto emptori [a redação objetiva], pro se et suis heredius stipulanti litem vel conttroversian  (...) de dicta re seu parte ipsius aliquo tempore non inferre nec inferenti consentire; sed ipsam rem venditam tam in proprietate quam in possessione ei et suis heredibus ab omni homine et universitate LEGITIME DEFENDERE, auctorizare et desbrigare,(...) sub poena ..." Outrossim, se era possível proteger o comprador de eventuais direitos de terceiros, também era possível acautelá-lo e reduzir a responsabilidade natural do vendedor pela evicção que surgiu posteriormente nas fontes romanas, sendo esta uma das mais famosas "cautelas" notariais: "Era valida la renuncia si el renunciante ignoraba el alcance, las consecuencias de lo que renunciaba? La duda empezó respecto de la renuncia de la mujer casada al Senado-consulto Veleyano y se extendió, identitate rationis, a todas las renuncias de evicción y al juramento, dando lugar a una cautela en el otorgamiento: la certioratio."20. Também é tributária dessa renúncia "acautelada", da certioratio, o nosso atual art. 449 do Código Civil21. Se a renúncia a direitos deveria ser especificamente acautelada, por outro lado, o poder executivo do documento devia também ser inicialmente estipulado contratualmente, sendo a força executiva da escritura - protótipo de todos os demais títulos executivos "extrajudiciais" atualmente existentes - criada a partir da chamada "clausula guarentigia", pela qual as partes se obrigavam a comparecer em juízo para "confessar" o débito transcrito na escritura que, assim, ganhava a mesma força da sentença judicial. Era o "pactum de recipiendo praecepto iudicis ordinarii"22. No âmbito comercial, os notários espanhóis instrumentavam sociedades com limitação da responsabilidade de seus sócios mesmo antes de a lei prever, em tal país, tais tipos societários23, e, não à toa, aquela que foi, durante longo período, nosso único tipo societário unipessoal exigia, para sua constituição, o instrumento público24. No âmbito do direito familiar, ainda no Brasil Império, sob a égide da religião oficial estatal, notários do então diminuto povoado de São Paulo, que contava com não mais do que poucas dezenas de milhares de habitantes, já lavravam escrituras de "contratos de casamento"25 entre professantes de outros credos, visando dar alguma regulação jurídica formal a tais entidades familiares para aqueles que estavam impedidos de obter a chancela jurídica do casamento, muito antes de qualquer desenvolvimento doutrinário ou legal sobre a união estável. Em Portugal, as convenções antenupciais lavradas por notários forjaram regimes mistos de bens que se autonomizaram dos regimes tradicionais, ascendendo aos domínios de uma prática generalizada e conquistando a consagração da lei26. Enfim, pode-se dizer que os tabeliães de notas contribuem enormemente na elaboração do direito, havendo, mesmo, quem sustente que atos notariais constituem quase que uma fonte de direito. Nesse sentido, o notário português Luís Filipe Aviz de Brito27 pondera que, se os usos e costumes (que, via de regra, são práticas populares não-documentadas) se convertem em direito consuetudinário, desde que legitimados ("e sancionados pela opinio juris"), deve-se reconhecer que a cláusula notarial (muito mais precisa, por ser redigida e exarada por juristas profissionais), com peculiar razão, terá de caminhar na vanguarda dos usos e costumes, para elaboração de novas figuras jurídicas. Como acima relatado, vários são os exemplos marcantes de como as cláusulas espontâneas dos atos notariais introduzem, na ordem social, um "filtro jurídico" de bons costumes que, por sua vez, gera um direito novo. Sob a tutela dos notários, devido à competência/habilidade profissional e aos bons cuidados redacionais, criam-se verdadeiras figuras contratuais ou mesmo novos regimes que, dada a sua eficiência e utilidade, a lei escrita apressa-se a acolher. Em síntese, embora tenha sido a função meramente documental a responsável pela criação inicial do notariado, não se manteria a profissão se não tivesse evoluído, junto de toda a sociedade, para a sua especialização e a criação de conhecimentos próprios. A linha que separa o notário meramente documentador daquele profissional especialista e capacitado atual é, em certo sentido, a mesma que separa os requisitos do negócio como mera prova daqueles que o exigem como qualificada forma. Se para provar uma dada declaração, oral ou escrita, vários mecanismos analógicos e digitais podem ser utilizados com igual benefício, para a formalização jurídica adequada dos negócios é necessário que se construa um profissional especialista e capacitado, apto a, nas palavras de Carnelutti, "ser um intérprete"28, do ordenamento e da vontade, praticando um juízo análogo ao juízo judicial, segundo Satta29, mas em subsunção inversa: enquanto o juiz vai da norma ao caso concreto para repor o direito que foi violado, o notário vai do caso à norma para atender melhor a parte. E a escolha do tipo de ato, para cada tipo de cliente e caso, é a função tipicamente notarial: conhece teu cliente para lhe fornecer a melhor subsunção jurídico-negocial possível. É por essa razão que a escritura passa a ser exigida não mais com fins probatórios, mas com fins de acautelamento e controle profilático dos atos jurídicos mais adequados para o desenvolvimento consensual do direito, em outras palavras, como forma do negócio. É na passagem da prova à forma que se encontra a passagem do notário testemunha ao notário artesão jurídico. E em certa medida, desconhecer a função especializada do notário como profissional capacitado do direito é desconhecer não apenas a instituição notarial, mas o próprio histórico e desenvolvimento do Direito Privado. _________ 1 O nosso anterior 3 equívocos comuns sobre a função notarial: Semelhanças e diferenças entre a fé pública notarial e registral - Parte 1. Disponível aqui. Acesso em 18.10.2024. 2 Preciso sobre o tema: V. ADRADOS, Antonio Rodríguez. Princípios Notariais. Trad. Gabriela Saciloto Cramer. Diadema: JS Gráfica, 2022. p.87, para quem "A fórmula tradicional do 'Perante mim' persiste precisamente como expressão da imediação, embora para alguns sugira uma concepção passiva da função notarial, uma sobrevivência mesmo do notário-testemunha". 3 E já Carnelutti apontava para tal equívoco: "ser documentador es una parte de la profesión del Notario, a la cual, sin embargo, son encomendadas otras y más importantes funciones. Al Notario no se va solamente para hacer construir un documento que esté dotado de una cierta eficacia probatoria o, como nosotros decimos, de la fe pública; de él también nos servimos por otras razones." CARNELUTTI, Francesco. La figura juridica del notario. Conferência na Academia Madrilenha do Notariado. Maio de 1950. In: Teoría del Derecho Notarial. Lima: Gaveta Notarial, 2021. p. 123-149. 4 Nesse sentido, com uma visão simplista da atuação notarial, inclusive englobando notários e registros em uma mesma categoria e função, recaindo, no equívoco tratado no texto anterior, v.  DANTAS, Robinson Gamba; CARVALHO, Marcos; COSTA, Isac Silveira da. 'Você tem alguns minutos para ouvir a palavra da blockchain?". In: COSTA, Isac Silveira; PRADO, Viviane Muller; GRUPENMACHER, Giovana Treiger. Criptolaw. São Paulo: Almedina, 2020. p.35-67, para quem "ao custo de impor aos membros da comunidade a guarda dos dados, poderíamos viver em um mundo sem cartórios - e sem a cobrança das respectivas taxas". 5 CARNELUTTI, F. op. cit. p. 120. 6 Sobre os princípios organizadores da instituição e do documento notarial dados pela forma escrita, pelo protocolo e pela matricidade, v. novamente, ADRADOS, A. R. op. cit. p. 171. Foram a matricidade e o protocolo os responsáveis pela guarda dos documentos relativos à escravidão no país que não puderam, em decorrência de estarem atrelados a escrituras de outros tipos e negócios, ser incinerados na época do decreto do então Ministro da Fazenda Rui Barbosa, fazendo, assim, as escrituras notariais, hoje, uma das principais - se não a principal - fontes históricas primárias para estudo do tema. 7 Sobre a justificativa econômica para a intervenção notarial nos sistemas de transferência imobiliária e sua comparação com outros mecanismos de segurança reais  - e não meramente ideais - existentes no mundo comparado v. KASSAMA, Alexandre. Alienação fiduciária e forma pública: densidade dogmática e adequação funcional. 30.08.2023. Disponível aqui. Acesso em 01.08.2024. KASSAMA, Alexandre. Custos da escritura pública - e da falta dela: Ciência e senso comum na análise econômica do notariado - Parte 1. 08.05.2024. Disponível aqui. Acesso em 01.08.2024. Ainda XIMENES, Rachel Letícia Curcio; ALMEIDA, Tiago de Lima. Os mitos dos cartórios (de notas) no Brasil - e no mundo. 28.08.2024. Disponível aqui. Acesso em 22.10.2024. 8 NUÑEZ LAGOS, Rafael. Las "cautelae" y su epoca.In: Revista de Derecho Notarial. Jul-Dez. 1964. Madri:  Colégio Notarial de Madri, 1964. p.341-372. 9 Para uma ligação do início do desenvolvimento do mercado europeu com o desenvolvimento da profissão notarial, v. ARRUÑADA, Benito. The economics of Notaries. In: European Journal of Law and economics. Vol 3, 1996. p. 5-37. 10 V. NOGUEIRA, Bernardo de Sá. Tabelionato e instrumento público em Portugal. Génese e implantação (1212-1279). Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2008. E BARRIOS FERNÁNDEZ, Plácido. De escribanos a Notarios. Apuntes para una historia del notariado español. Madri: Basconfer, 2023. 11 Data em que os primeiros notários de formação bolonhesa passaram a integrar a "Worshipful Company of Scriveners of the City of London". Acesso em 22.10.2024 12 O que culminou, também, com a final transferência da faculdade de formação de notários daquilo que seria algo mais próximo à atual faculdade de letras (por isso "ars" notarie) para a de direito, em 1458. V.  NUÑEZ LAGOS, Rafael. op. cit.  p. 356. 13 V. CALASSO, Francesco. Introduzione al diritto comune. Milão: Giuffre, 1951. O Direito Privado assim moldado, por exportação europeia, chegou à maior parte da América e a muitos países africanos e mesmo asiáticos, entre eles o Japão e, mais recentemente, a China - países que, não por acaso, adotaram também o notariado latino. 14 NUÑEZ LAGOS, Rafael. Hechos y derechos en el documento publico. Madri: Instituto Nacional de Estudios Jurídicos, 1950. p. 254 15 V. GHENGINI, Riccardo. La forma notarile digitale. Milão: Wolters Kluver, 2022, p. 46, para quem a adaptação à contratação notarial digital requererá "un sforzo di creazione ed innovazione análogo a quello compiuto dal notariato del X e XI secolo, che operava in una società che considerava il contratto essenzialmente orale e il documento um mero mezzo probatorio (notitia): la tecnica di documentazione inventata ed applicata dai notai ha determinato il passaggio dal contratto orale al contratto scritto (charta)." 16 NUNEZ LAGOS, Rafael. Concepto y clases de documentos. Lima: Gaceta Notarial, 2013. p. 100, citando passagem de Nicoalu de Passeribus de 1728. 17 PASSAGGERI, Rolandino. Aurora. Com os comentários de Pedro de Unzola. Traduzido ao Espanhol por Víctor Vicente Vela e Rafael Nuñez Lagos segundo a versão publicada em 1485. Madri: Colégio Notarial de Madri, 1950 18 Art. 9º, §9º. Inciso II ("mandato irrevogável para representar o garantidor hipotecário, com poderes para transmitir domínio, direito, posse e ação, manifestar a responsabilidade do alienante pela evicção e imitir o adquirente na posse."), da Lei 14.711, de 30 de outubro de 2023. 19 NUÑEZ LAGOS, Rafael. Tres momentos del Título Notarial. Lima: Gaceta Notarial, 2013. p. 222 20 NUÑEZ LAGOS, Rafael. Los esquemas conceptuales del instrumento público. Lima: Gaceta Notarial, 2013. p. 178. 21 Art. 449. Não obstante a cláusula que exclui a garantia contra a evicção, se esta se der, tem direito o evicto a receber o preço que pagou pela coisa evicta, se não soube do risco da evicção, ou, dele informado, não o assumiu. 22 NUÑEZ LAGOS, Rafael. Hechos y derechos en el documento publico. p. 267. 23 NUÑEZ LAGOS, Rafael. El derecho notarial. Lima: Gaceta notarial, 2013. p. 72. 24 Art. 251 da Lei 6.404, de 15 de dezembro de 1976. 25 Devo esta descoberta ao substituto da 1ª Tabeliã de Notas de São Paulo, Leonardo Marques Pacheco, quem me apresentou a tais achados notariais. 26 BENÍCIO, Hercules Alexandre da Costa. Responsabilidade civil do Estado decorrente de atos notariais e de registro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 31. 27 BRITO, Luís Filipe Aviz de. O notariado na elaboração do direito privado. Braga: Pax, 1966, p. XIII. 28 CARNELUTTI, op. cit. 29 SATTA, Salvattore. Poesia e veritá nella vita del notaio. p. 548.In: Vita Notarile: Studi problemi e lettere del notariato. Rivista di Diritto e pratica contrattuale e tributaria. Indice Generale. 1955. Palermo: Edizioni Fiuridiche Italiane. p. 543-550.
quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Indisponibilidade de bens - Parte II

Havia uma pedra no caminho A CGI e a CGJSP A Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo logo cuidou de regulamentar, no âmbito de suas atribuições e competências, as disposições contidas no decreto-lei 502/69, nascendo, então, o livro de "Registro de Notificações" expedidas pela CGI com a indicação das pessoas que teriam seus bens tornados indisponíveis. Nasceria em caráter confidencial, pois sem essa nota de sigilo a providência se frustraria pela prévia difusão de seu teor. Vale a pena conhecer na íntegra o ato normativo da Corregedoria bandeirante: Provimento 8/69 - Dispõe sobre atribuições dos Oficiais do Registro de Imóveis e dá outras providências. O desembargador Hildebrando Dantas de Freitas, Corregedor Geral da Justiça do Estado de São Paulo, no uso de suas atribuições, Considerando as disposições dos arts. 1º e 2º do decreto-lei 502, de 17/3/69 e a decisão proferida nos autos do proc. CG-31.903/69; Determina: Art. 1º  - Em cada Cartório do Registro de Imóveis do Estado de São Paulo será aberto um livro destinado ao "Registro das Notificações" expedidas pela. C.G.I., numerado em série crescente, a partir do 1. Art. 2º - Cada livro conterá termo de abertura e de encerramento assinados pelo juiz corregedor permanente que rubricará todas as folhas, formalidade que precederá a sua utilização. Art. 3º - Será organizado, obrigatoriamente, um índice geral, através de livro, facultada a utilização de fichas. Art. 4º - Recebida a notificação, o Oficial imobiliário procederá ao imediato registro, observada a ordem cronológica. Art. 5º - As notificações serão encadernadas em grupo de 200 e arquivadas em cartório. Art. 6º - O Oficial Imobiliário, recebida a notificação, cumprirá o disposto no art. 1º, inciso I, do decreto-lei 502-69, sob pena de providência de ordem disciplinar, sem prejuízo da sanção penal prevista no art. 1º, parágrafo único, do mesmo diploma legal. Publique-se, registre-se e cumpra-se. Remetam-se cópias aos MM. juízes corregedores permanentes dos Cartórios de Registro de Imóveis do Estado. São Paulo, 16/7/69. Hildebrando Dantas de Freitas, corregedor geral da Justiça1. Assim foi criado o livro cognominado "CGI", como ficou conhecido nas serventias paulistas. Nalgum momento da história cartorária chamaríamos o tal livro de "Cadastro Geral de Indisponibilidades", mas na verdade poucos sabiam o significado do acrônimo, que se referia ao órgão criado pelo Estado naquele tormentoso período.  Adveio em seguida o provimento CG 14, de 30/12/69, em que a estruturação do livro de "Registro de Notificações" ficou afinal estabelecida - certamente em virtude do advento do dec.-lei 48, de 18/11/66 e do dec.-lei 685, de 17/7/69, que tratava igualmente de indisponibilidade de bens de atingidos em processos de empresas em regime de liquidação extrajudicial (art. 1º). A redação das normas administrativas foi esta: "XII - Não podem ser efetuadas transcrições, inscrições ou averbações de documentos públicos ou particulares relativos aos bens confiscados ou de quaisquer atos ou contratos em que sejam interessadas pessoas naturais ou jurídicas, cujos bens tenham sido objeto de confisco (Decreto-Lei n. 502, de 1969; Provimento 8/69). XIII - Deve ser providenciada a abertura do Livro 'Registro de Notificações', a que se refere o provimento n. CG 8/69, para anotação de comunicações oriundas da C.G.I. e dos liquidantes de empresas em regime de liquidação extrajudicial (Decreto-Lei n. 685, de 17.7.1969)"2. As disposições relativas à indisponibilidade de bens se espraiariam pelas normas baixadas sucessivamente pela Corregedoria Geral de Justiça. Na bela consolidação empreendida na gestão do desembargador José Carlos Ferreira de Oliveira, e com base na legislação da época, cravou-se no art. 780:  "Não serão efetuadas transcrições, inscrições ou averbações relativas a bens confiscados, ou de quaisquer atos ou contratos em que sejam interessadas pessoas naturais ou jurídicas, cujos bens tenham sido objeto de confisco"3.   Aparentemente, terá escapado do compilador a disposição contida nos provimentos 8 e 14 de 1969. Entretanto, no bojo do processo CG 21.433/72 previu-se o registro das indisponibilidades, assim estabelecido: XXXII - Não podem ser efetuadas transcrições, inscrições ou averbações de documentos públicos ou particulares relativos aos bens confiscados, ou de quaisquer atos ou contratos em que sejam interessadas pessoas naturais ou jurídicas, cujos bens tenham sido objeto de confisco (decreto-lei 502/69; Prov. CG. 8/69 e 14/69). (...)  XXV - Deve-se ter em conta a indisponibilidade dos bens dos administradores, gerentes e conselheiros fiscais de sociedades sujeitas ao regime de liquidação extrajudicial, nos termos do Decreto-lei n.º 48, de 18-XI-66, até a definitiva apuração e liquidação de suas responsabilidades, observadas as disposições do decreto-lei 685/69 (Prov. CG. 14/69)4. A CGI seria extinta pelo decreto 82.961, de 29/12/78, em razão da revogação dos Atos Institucionais e Complementares pela EC 11/78 (art. 3º). O decreto 84.251, de 28/11/79, alteraria o decreto 82.961/78 para dispor que ficariam "canceladas as anotações referentes a medidas preliminares e acauteladoras (bloqueio de bens), determinadas pela extinta Comissão Geral de Investigações" (art. 2º). Livro de registro das comunicações relativas a diretores e ex-administradores de sociedades em regime de liquidação extrajudicial  Em 1980 vem a lume o roteiro das correições, alentado compêndio que organizava a matéria relativa às correições, propiciando aos magistrados orientação adequada e traçando um roteiro a ser observado nos trabalhos correcionais5. Foi o precursor da atual planilha de "Ata de Correição". Neste documento, prevê-se o livro das comunicações, referido no subtítulo 251, e suas disposições são as seguintes: 251. Livro de registro das comunicações relativas a diretores e ex-administradores de sociedades em regime de liquidação extrajudicial. O livro de registro das comunicações relativas a diretores e ex-administradores de sociedades em regime de liquidação extrajudicial, instituído em consequência do decreto-lei 685, de 17/7/69, deverá conter o registro de todos os ofícios da E. Corregedoria Geral da Justiça, ou dos liquidantes, comunicando os nomes das referidas pessoas, com a indicação da sociedade pertinente; Uma vez feito o registro próprio, as comunicações relativas a diretores e ex-administradores de sociedades em regime de liquidação extrajudicial, no verso das quais se lançará certidão referente ao ato praticado, serão arquivadas em ordem cronológica; O registro das comunicações relativas a diretores e ex-administradores de sociedades em regime de liquidação extrajudicial deverá ser dividido em colunas, uma para o número de ordem do registro; outra para a data; outra para o nome e a qualificação das pessoas e uma última para as averbações necessárias; As comunicações que alterem ou cancelem registros atinentes às comunicações relativas a diretores e ex-administradores de sociedades em regime de liquidação extrajudicial deverão ser simplesmente averbadas, à margem dos respectivos registros, não se justificando sejam objeto de novo registro; Todos os nomes constantes do livro deverão constar também do indicador pessoal (art. 180 da lei dos registros públicos); o caráter sigiloso daquelas comunicações não impede essa providência , diante do princípio da publicidade que rege os registros públicos em geral; A indisponibilidade de bens acaso existentes na comarca (ou no registro) deverá ser averbada à margem da transcrição ou na matrícula dos imóveis (art. 247 da lei dos registros públicos); Os registros e comunicações da CGI, abolido o livro especial, podem ser feitos no mesmo livro destinado ao registro das comunicações relativas a diretores e ex-administradores de sociedades. Vê-se que o livro de registro de notificações oriundas da CGI reputava-se abolido. A partir daí, todas as comunicações, sejam as anteriores, oriundas da CGI, sejam aquelas relativas às comunicações acerca de diretores e ex-administradores de sociedades, seriam lançadas no novo livro.  d) O advento da lei 6.216/1975 A redação original da lei 6.015/73, publicada em 31/12/73, não trazia qualquer disposição acerca da indisponibilidade de bens. Tampouco o regulamento de 1939. A inserção do artigo que dispõe sobre a indisponibilidade de bens veio no bojo da PL do Congresso Nacional (PLN 3/75), encaminhado por Ernesto Geisel, por intermédio do seu ministro da Justiça, Armando Falcão.6 O projeto converteu-se na lei 6.216/75, que alteraria, ainda na vacatio, a lei 6.015/73. Eis o dispositivo entranhado no corpo da lei: Art. 247 - Averbar-se-á, também, na matrícula, a declaração de indisponibilidade de bens, na forma prevista na lei. A parte final do artigo - na forma prevista em lei - dá ensanchas a que se possa discutir se a figura da indisponibilidade de bens poderia ser potencializada como meio oblíquo de constrição no processo executivo, tema ao qual voltaremos na parte II deste artigo. e) Espólio do regime militar Uma vez extinta a CGI, revogados, pela EC 11/78, o AI 5, pelo qual havia sido autorizado o confisco de bens decorrentes de enriquecimento ilícito no exercício de cargo ou função pública, e o ato complementar 42/69, tornando ineficaz o dec.-lei 359/68, ficariam "sem efeito as medidas acauteladoras para o confisco de bens previstas no art. 8º do aludido AI 5 e no Ato Complementar 42, medidas essas disciplinadas no dec.-lei 502, de 17/3/69, consistentes no embargo da disponibilidade dos bens mediante impedimento à sua transmissão ou oneração, através de anotações nos Registros de Imóveis"7. Entretanto, havia inúmeras situações em que o confisco efetivamente se concretizara e muitos bens objeto de registro foram tornados indisponíveis. Em face da superveniência dos referidos diplomas e declarações de inconstitucionalidade, a Corregedoria paulista provocou a Consultoria Geral da República que, em parecer aprovado pela presidência da república, responderia às questões formuladas pelo Judiciário paulista nos seguintes termos, in verbis: "Consultoria geral da república Parecer N-32, de 05/5/80. Assunto: Findou-se, ou não, a Comissão Geral de Investigações, que foi criada pelo dec. lei 359/68, mas declarada extinta, pelo dec. 82.961/78. Ementa: Extinguiu-se a CGI, pois que o dec. lei 359/68 veio a se tornar inconstitucional quando, revogados os atos institucionais e complementares, a Constituição da república recuperou a plenitude de sua vigência.  O surto posterior de diversas inconstitucionalidades do dec. lei 359/68 e do dec. lei 502/69  - sua revogação tácita, por contrários à CF/88. Atos praticados pela CGI; análise de sua eficácia após a vigência plena da Constituição, em 1/1/79. Nestes atos da CGI, distinguem-se os que criaram situações jurídicas acabadamente constituídas sob o regime dos atos institucionais e complementares, de outros, aqueles atos que estavam instituindo situações jurídicas, ainda em curso de formação do ato final de decreto de confisco pelo presidente.  Enquanto aqueles atos acabadamente constituídos permanecem juridicamente perfeitos, infensos à ulterior alteração da ordem jurídica e não apreciáveis pelo Poder Judiciário, entretanto os atos meramente cautelares, os que geraram situações jurídicas apenas em curso de formação do futuro confisco, estes encontram-se desconstituídos, por desamparo do dec. lei 359/68 e dec. lei 502/69, revogados por inconstitucionais. Aprovo. Em 12/5/80. (PR 521 - 80 encaminhado ao GM da PR em 13.5.80)"8. A decisão concluiu que deveriam ser canceladas as anotações de bloqueio de bens determinadas pela CGI, permanecendo indisponíveis os bens objetos de decretos de confisco por "atos acabadamente constituídos" que "permanecem juridicamente perfeitos, infensos à ulterior alteração da ordem jurídica". Os corregedores permanentes dos Cartórios de Registro de Imóveis, de ofício ou a requerimento de interessados, deveriam determinar o cancelamento das anotações deixando de subsistir o bloqueio de bens eventualmente averbado. Eis a conclusão: "Conclui-se, do exposto, deverem ser canceladas (...) as anotações concernentes às medidas preliminares e acauteladoras de bloqueio de bens, determinadas pela extinta CGl e efetuadas por instrução desta E. Corregedoria Geral da Justiça, ao transmitir aos Srs. Juízes de Direito Corregedores Permanentes dos Cartórios de Registro de Imóveis e de Notas, da Capital e das comarcas do interior do Estado, as comunicações da mencionada Comissão e o dispositivo do art. 2.º do Dec.-lei 502, de 17.3.69, para que nenhuma transação fosse celebrada envolvendo bens e pessoas físicas e jurídicas por ela expressamente arroladas.10 Esse regime de medidas acauteladoras em processo de confisco chegava ao seu termo final. A CGI, que deveria proceder ao exame sumário dos elementos de prova que o justificasse, não mais existe. f) O decreto-lei 685/69, a lei 6.024/74 e as indisponibilidades de bens O decreto-lei 48, de 18/11/66, disporia sobre a intervenção e a liquidação extrajudicial de instituições financeiras, conduzidas pelo Banco Central do Brasil, "nos casos em que se verificarem anormalidades na condução dos negócios sociais, inclusive por culpa ou responsabilidade dos dirigentes do estabelecimento". Faltava, todavia, prever o procedimento padrão para se evitar a dissipação patrimonial dos administradores, gerentes e conselheiros fiscais das sociedades sujeitas ao regime de liquidação extrajudicial. Surge, então, o decreto-lei 685, de 17/7/69 que, em seu art. 1º, disporia que os administradores, gerentes e conselheiros fiscais das sociedades sujeitas ao regime de liquidação extrajudicial ficariam "com todos os seus bens indisponíveis não podendo, por qualquer forma, direta ou indireta, aliená-los ou onerá-los, até final e definitiva apuração e liquidação de suas responsabilidades". O parágrafo único do art. 4º revezava que os registros deveriam ser procedidos no prazo de 15 dias pelos Oficiais dos Registros de Imóveis, "à vista da comunicação formal que lhes seja feita, em caso, pelo liquidante", isto é, pelo Banco Central do Brasil. O decreto-lei de 1969 seria expressamente revogado pela lei 6.024, de 13/3/74, que disporia sobre a intervenção e a liquidação extrajudicial de instituições financeiras, diploma atualmente em vigor. O quadro normativo relativo à indisponibilidade e inscrição nos Registros de Imóveis pode ser assim resumido: A indisponibilidade de bens alcança os administradores, gerentes, conselheiros fiscais das instituições financeiras em intervenção, em liquidação extrajudicial ou em falência. Podem ser atingidas pessoas que, a qualquer título, tenham adquirido por simulação bens de administradores.  Os titulares de bens considerados inalienáveis ou impenhoráveis não se sujeitam às restrições. Não se sujeitam às restrições os bens objeto de contrato de alienação, de promessa de compra e venda, de cessão de direito, "desde que os respectivos instrumentos tenham sido levados ao competente registro público, anteriormente à data da decretação da intervenção". A indisponibilidade é eficaz desde o ato que decretar a intervenção. Cabe ao interventor, ao liquidante ou escrivão da falência comunicar o gravame aos Registros Públicos.  Recebida a comunicação, os registradores ficam impedidos de praticar quaisquer atos de registro ou averbação de instrumentos públicos ou particulares. A partir de então, o Banco Central do Brasil inundaria as Corregedorias Gerais de Justiça dos Estados com ofícios comunicando a intervenção em instituições financeiras e noticiando a indisponibilidade de bens de seus administradores. As Corregedorias estaduais, por seu turno, encaminhariam às comarcas do estado dossiês (alguns sigilosos) aos magistrados diretores ou corregedores permanentes e estes os encaminhariam a cada oficial de registro de imóveis.  Eram dossiês densos, muitas vezes compostos de centenas de páginas, gerando um imenso caudal informações que desaguaria nos cartórios, depois de lavrado o ato correspondente no "livro de Registro de Notificações". Maria Helena Leonel Gandolfo nos dá a síntese do conjunto acima exposto: "De acordo com o decreto-lei 502, de 1969, a CGI - Comissão Geral de Investigações pode determinar a indisponibilidade de bens de empresas ou pessoas físicas que se achem sob investigação, como medida cautelar visando à proteção do patrimônio público. Os bens assim declarados 'indisponíveis' ou 'bloqueados' não podem ser vendidos, prometidos à venda, doados ou, por qualquer outra forma, transmitidos a terceiros.  Recebida a comunicação, através da Corregedoria Geral da Justiça ou do juiz corregedor permanente do Cartório de Registro de Imóveis, ao Oficial compete efetuar as anotações necessárias, inclusive no indicador pessoal, pois responde, civil e criminalmente, pelo registro que venha a fazer, da transmissão de bens indisponíveis.  No Estado de São Paulo, a Corregedoria Geral da Justiça instituiu um 'livro de Registro de Notificações', que tanto serve para o lançamento das comunicações da CGI como das enviadas pelos interventores de instituições financeiras em regime de liquidação, conforme disposição da lei 6.024, de 13/3/74.  A comunicação de indisponibilidade pode ser genérica, isto é, mencionar nomes das pessoas cujos bens são bloqueados, sem se referir diretamente a qualquer imóvel, caso em que todos os imóveis que aquelas pessoas possuam - ou venham a possuir - se tornam intransmissíveis. Pode, também, especificar imóvel ou imóveis determinados. Neste caso, o bloqueio só atinge estes imóveis, não afetando os demais, do mesmo proprietário.  Essa foi a orientação dada pela Corregedoria Permanente de São Paulo, mediante resposta ao Dr. Gilberto Valente da Silva a consulta formulada por um dos Cartórios sob sua jurisdição, depois de ouvir a respeito a própria CGI.  Portanto, uma vez recebida a comunicação de indisponibilidade de bens de uma pessoa, referindo-se a determinado imóvel não situado na circunscrição abrangida pelo Cartório, não há necessidade de proceder-se ao registro no livro de notificações. Nesse caso, arquiva-se a comunicação, sem qualquer anotação, uma vez que a própria CGI afirma que o bloqueio só atinge o bem mencionado no ofício. Tratando-se, porém, de indisponibilidade genérica (sem discriminar imóvel determinado) o registro deve ser feito no Livro mencionado, mesmo que a pessoa visada não possua imóvel registrado em seu nome, anotando-se, também, no indicador pessoal. M.H.L.G".11  Vimos que o roteiro das correições de Adriano Marrey indicava que o livro de Registro de Notificações da CGI havia sido "abolido" (letra "g" do item 251); entretanto, "os registros e comunicações da CGI poderiam ser feitos no mesmo livro destinado ao registro das comunicações relativas a diretores e ex-administradores de sociedades"... Não temos notícia da existência de ato formal de abolição do antigo livro de Registro das Notificações da CGI, soando-nos pouco razoável que, extinta a comissão e cancelados seus atos vestibulares de bloqueio e indisponibilidades, ainda se lavrasse no novo livro as ditas comunicações. Este hiato provocou consultas ao IRIB. Considerando-se que as averbações de indisponibilidade ou bloqueio de bens determinadas pela CGI ficaram sem efeito, o livro próprio para essas averbações deveria ser encerrado? Respondeu-nos o Instituto: "A maior parte dos Cartórios de Registros de Imóveis possui um único livro, tanto para a prática desses atos, como para o registro da indisponibilidade de bens imposta nas liquidações extrajudiciais de entidades financeiras, procedidas pelo Banco Central. Quem assim procedeu, deverá continuar escriturando esse livro com relação a estes últimos atos. Todavia, os que possuem dois livros poderão encerrar aquele destinado às anotações determinadas pela extinta CGI - Comissão Geral de investigações"12. Este período da história institucional é ainda muito pouco estudado. Somente conhecendo as origens do instituto da indisponibilidade de bens, conhecendo o seu desenvolvimento ao longo do tempo, será possível identificar a origem dos desvios e imperfeições reconhecidos, corrigindo os rumos e dotando o SREI de uma ferramenta útil e eficaz. Na parte seguinte deste artigo, vamos verificar como o sistema de indisponibilidade de bens foi informatizado no Estado de São Paulo e quais foram os impulsos que a Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo recebeu de alguns registradores, apoiados pela ARISP - Associação de Registradores Imobiliários de São Paulo. Veremos, a seguir, as novas ideias que plasmaram a concepção da nova CNIB - Central Nacional de Indisponibilidade de Bens. __________ 1 Provimento CG 8/1969, de 16/7/1969, DOJ de 18/7/1969, Des. Hildebrando Dantas de Freitas. Disponível aqui.  2 Provimento CG 14/1969, de 30/12/1969, Des. Hildebrando Dantas de Freitas. Disponível aqui.  3 OLIVEIRA, José Carlos Ferreira de. Consolidação de Normas da Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo. 17.10.1973. Disponível aqui. 4 Processo CG 21.433/1972, São Paulo, parecer de 3/2/1972, Dr. José Haroldo de Oliveira e Costa, in Boletim da Associação de Serventuários de Justiça do Estado de São Paulo, n. 93, jan./abr. de 1972, pp. 109-110. Disponível aqui.  5 MARREY, Adriano. Coord. Roteiro das Correições. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980. Disponível aqui. O Regimento das Correições no Estado de São Paulo foi estabelecido pelo Decreto 4.786, de 3 de dezembro de 1930, não revogado expressamente. 6 Mensagem 37, de 1975 (115/75 na origem), in Diário do Congresso Nacional de 30.4.1975, p. 855 et seq. 7 Processo CG 7.397/1973, São Paulo, dec. de 9/7/1980, DOJ 12/7/1980, Des. Adriano Marrey. Disponível aqui.  8 Diário da União de 13.5.1980, Seção I, p. 8.486. Disponível aqui.   9 Um exemplo prática da persistência de atos "juridicamente perfeitos, infensos à ulterior alteração da ordem jurídica" pode ser conferido pelo registro (transcrição) do confisco decretado por meio do Decreto 72.560, de 31/7/1973 (DOU de 7/8/1973), assinado pelo Presidente Emílio Garrastazu Médice e pelo Ministro Alfredo Buzaid. Os bens foram transcritos nesta Serventia em nome da União Federal e posteriormente alienados a particulares, com base no Decreto 79.155, de 25 de janeiro de 1977. 10 Processo CG 7.397/1973, cit.  11 GANDOLFO. Maria Helena Leonel. Indisponibilidade. Boletim do IRIB n. 16, setembro de 1978, p. 2. 12 Perguntas e respostas do IRIB in Boletim do IRIB n. 33, fev. 1980.
segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Indisponibilidade de bens - Parte I

Este artigo examina a história do instituto da indisponibilidade de bens no Brasil e suas repercussões no Registro de Imóveis. Inicialmente concebido para fins muito específicos - como o combate à corrupção e à improbidade administrativa durante a Ditadura Vargas e Regime Militar de 1964 -, foi gradualmente modificado, assumindo uma feição draconiana no processo executivo. Aponta-se a necessidade de revisitar o instituto e estabelecer critérios mais rigorosos para sua aplicação, a fim de evitar o bloqueio indiscriminado de bens e direitos e garantir a livre circulação de bens e riquezas. O artigo discute ainda o impacto da informatização do sistema, que levou a uma explosão no número de inscrições de indisponibilidade de bens, muitas das quais permanecem latentes e sem solução. Key words: CGI - Comissão Geral de Investigações - Regime Militar. Indisponibilidade de bens. CNIB - Central Nacional de Indisponibilidade de bens.  Os registradores acham-se diante de uma verdadeira avulsão de inscrições na Plataforma da CNIB - Central Nacional de Indisponibilidade de bens. Na data de hoje registramos mais de 2.4 milhões de inscrições na plataforma e mais de 3.3 milhões de pessoas atingidas, com 205.8 milhões de relatórios emitidos1. Como chegamos a estas cifras assombrosas? Terá havido uma distorção no sistema em razão do modelo adotado? Como este "gravame"2 heterodoxo converteu-se em ferramenta corriqueira no processo executivo, disputando e suplantando figuras tradicionais de arresto e penhora de bens? No contexto do encontro Indisponibilidade de Bens, promovido pela Fundação Arcadas, da Faculdade de Direito do Largo São Francisco3, Celso Fernandes Campilongo destacou: "A decretação de indisponibilidade de bens possui enorme virulência. É medida drástica. Tem consequências patrimoniais devastadoras. Por isso, deve ser usada com moderação. Não se pode perder de vista que a intrínseca dose de coerção e violência da indisponibilidade não deve ser percebida apenas como reparação de dano causado à sociedade. Ela é, antes disso, consequência de violação à lei. Adequar o direito ao interesse público não é algo que possa ser feito à margem do direito, com sanha inquisitória e proporções desequilibradas"4. Mais recentemente, Moacyr Petrocelli bem observou que o instituto foi banalizado e urge que o instituto seja revisitado com a fixação de parâmetros e estabelecimento de critérios consentâneos com o Direito brasileiro para a utilização da ferramenta, que deve ser sempre excepcional. E conclui: "Não é demais lembrar que à luz do princípio da livre circulação das riquezas, os bens em geral devem permanecer in commercium. Somente em hipóteses mui excepcionais, autorizadas expressamente por lei e mediante ordem fundamentada da autoridade competente, admite-se que bens determinados sejam retirados do comércio, tornando-se indisponíveis por seus titulares".5 Com razão o registrador paulista. A gravosidade do bloqueio patrimonial, muitas vezes decretado em decorrência de obrigações de bagatela - ou teratológicas, como as originadas de pequenas dívidas trabalhistas que gravam e embaraçam todo o patrimônio de construtoras ou de bancos. Tais ordens acabam por criar empecilhos e obstáculos injustificáveis para a regular atividade de empresas e instituições. A eletronificação das comunicações produziu a explosão de inscrições e o crescimento inesperado da base de dados com a avultada ocorrência de indisponibilidades que remanescem no sistema num estado de latência. Ou os gravames recidivam a prenotação (quando feita na postagem original na CNIB) ou reagem quando ingressam os títulos em que os atingidos adquirem bens ou direitos. Muitas destas inscrições remanescem no limbo do sistema sem solução. Não há administração racional deste cemitério de inscrições. A modernização do sistema visou um objetivo: racionalização das comunicações. Ao longo do tempo, formaram-se alentados dossiês produzidos especialmente após o advento da Lei 6.024/1974, multiplicados sucessivamente pelas corregedorias estaduais, pelos corregedores permanentes e diretores do fórum e por fim por registradores de cada comarca brasileira. O modelo era moroso, ineficiente, oneroso, complexo. Não raro havia falhas de comunicação e problemas de interpretação das ordens ou decisões do Banco Central do Brasil. Não havia coincidência nos índices e acervos dos cartórios brasileiros. Além disso, havia serventias criadas muito posteriormente aos primeiros diplomas e que não possuíam a memória das indicações pretéritas. Há algumas pistas para identificar o ponto de viragem deste instituto outrora consagrado a finalidades muito diversas e específicas - e elas podem revelar o percurso sinuoso que se robusteceu no auge do regime militar de 1964 e se foi enraizando na legislação e, especialmente, espraiando-se no seio da jurisdição. Mirando a figura do bloqueio ou indisponibilidade de bens numa perspectiva histórica e crítica, pode-se chegar à conclusão de que o sistema deve ser balanceado por medidas corretivas a cargo da Corregedoria Nacional de Justiça. Neste opúsculo introdutório, cingimo-nos ao nascedouro do instituto e na parte complementar vamos enfrentar os problemas concretos decorrentes da implantação da plataforma eletrônica (CNIB). Finalmente, à guisa de conclusão, vamos sugerir algumas medidas para eventual correção de rumos na recepção e tratamento das ordens judiciais postadas nas plataformas eletrônicas. Indisponibilidade de bens - excurso histórico a) Ditadura Vargas, tribunais de exceção e a CCA Antes mesmo da irrupção do movimento político-militar que se instaurou no país a partir de 1964, o Governo Provisório, que se seguiu à revolução de 1930, criaria um tribunal de exceção ("tribunal especial") dedicado a instaurar processos para julgamento de crimes políticos, funcionais "e outros que serão discriminados na lei da sua organização".6 Para apuração de crimes ou contravenções relacionados à aplicação ou ao uso indébito ou irregular dos dinheiros ou haveres, advieram diversos decretos que visavam coibir a "prática de improbidade contra a fortuna pública".7 O Tribunal especial, criado em 1930 e reorganizado em 1931 previa o sequestro de bens como medida assecuratória8 e consideraria nulos de pleno direito, em relação à Fazenda Pública, "todos os atos de alienação, oneração, ou desistência de qualquer bem, direito ou ação, dos responsáveis pela gestão ou aplicação de dinheiros públicos, inclusive membros do Congresso Nacional, ou dos Governos Federal, Estaduais ou Municipais, no período do governo que determinou a Revolução, no que venham a frustrar no todo ou em parte as indenizações a que possam ser obrigados, nos termos deste decreto e mais disposições aplicáveis".9 Para a efetividade dos processos, previu-se a "indisponibilidade de bens" das pessoas investigadas e processadas.10 Em suas consideranda, o Decreto 19.630/1931 declarava que continuava expressamente proibida "a alienação, ou oneração, de quaisquer bens, moveis, ou imóveis, ações, ou direitos pertencentes às pessoas" a que se referia o Decreto 19.440/1930 (arts. 9º, 12 e 43). Para disposição de bens imóveis atingidos exigia-se a expedição de alvarás pela autoridade competente.11 Em fins de 1931, seria criada a Comissão de Correição Administrativa, que tinha por objetivo proceder à correição dos atos da administração pública, sugerindo às autoridades competentes a aplicação de medidas e sanções previstas no Decreto 20.424/1931.12 Tratava-se de um tribunal de exceção criado para julgar e punir o uso indevido ou irregular dos dinheiros ou haveres públicos e todo ato ou prática de improbidade contra a fortuna pública. A dita Comissão funcionaria até 1934.13 A ideia de confisco e indisponibilidade de bens não era, portanto, uma novidade e a bandeira de moralização da administração pública, livrando-a da nódoa da corrupção, seria agitada na etapa seguinte da república.14 b) Regime Militar de 1964 A história se repetiria em 1964 - e ela seria lembrada nas palavras proferidas por Jarbas Passarinho na momentosa sessão do Conselho de Segurança Nacional que deliberaria a decretação do AI-5. Disse o então ministro do Trabalho e da Previdência Social que via com "certa alegria" que se falasse em confisco de bens daqueles que enriqueceram ilicitamente, invertendo o ônus da prova. "Neste ponto", disse ele, "parece-me que se deveria repetir a revolução de 1930, quando se deu a esses homens o ônus de provar que os bens lhe pertenciam de direito".15 Mobilizados sob a ideia motriz de combater a subversão e a corrupção, os militares agitariam a mesma bandeira de moralização dos costumes políticos. Castelo Branco organizaria, no início do movimento militar, o famoso "Livro Branco", que reuniria provas de corrupção no governo anterior, mas este documento nunca veio a lume, tornando-se "letra morta" - provavelmente porque "seria preciso admitir o envolvimento de militares nos episódios de corrupção que o pretenso livro deveria relatar".16 As sementes lançadas anteriormente acabaram por germinar nesta nova sazão autoritária com a sucessão de diplomas legais que visavam coibir práticas de malversação de recursos públicos. A criação da Comissão Geral de Investigações (CGI), nascia nos primeiros meses do regime militar com o advento do Decreto 53.897, de 27/4/1964. O ato tinha por finalidade regulamentar a investigação sumária prevista no § 1º dos artigos 7º e 10º do Ato Institucional n. 1, de 9/4/1964. Esta primeira iniciativa se deu sob a direção do Comando Supremo da Revolução, então chefiado por Costa e Silva. A CGI era composta por representantes da Marinha e do Exército, tendo como seu presidente o marechal Estevão Taurino de Resende, que teria proferido a célebre frase que ficaria gravada nos anais da história daquele período: "O problema mais grave do Brasil não é a subversão. É a corrupção, muito mais difícil de caracterizar, punir e erradicar"17. O móvel que justificava o impulso governamental e fez surgir o bloqueio ou indisponibilidade de bens era a improbidade administrativa e a corrupção - e logicamente o combate à subversão. Todavia, esta primeira comissão teria vida curta e logo seria extinta pelo Decreto 54.609, de 26/10/1964 (art. 1º). Mais tarde, o AI 5, de 13/12/1968, previu que o Presidente da República poderia, "após investigação, decretar o confisco de bens de todos quantos tenham enriquecido, ilicitamente, no exercício de cargo ou função pública" (art. 8º). Para produzir os elementos de investigação, a CGI seria recriada, agora no âmbito do Ministério da Justiça, pelo Decreto-Lei 359, de 17/9/1968, com a "incumbência de promover investigações sumárias para o confisco de bens de todos quantos tenham enriquecido, ilicitamente, no exercício de cargo ou função pública". O Decreto-Lei 457, de 7/2/1969, reforçaria que competia à CGI "promover investigações sumárias para o confisco de bens" (art. 1º). Novamente, tratava-se de um verdadeiro tribunal de exceção.18 Paralelamente, no Estado de São Paulo, seria criada a Comissão Estadual de Investigações, instituída no âmbito da Secretaria da Segurança Pública, com finalidades análogas à CGI19. O Decreto-Lei 359 seria alterado pelo Decreto-Lei 446, de 3/2/1969, e, mais adiante, pelo Decreto-Lei 760, de 13.8.1969, que trataria do processo sumário de confisco. Assim, os atos de aquisição e alienação de bens e direitos por quem tivesse se locupletado e enriquecido ilicitamente por desvio do patrimônio público (art. 8º do AI 5/1968, Ato Complementar 42, de 27 de janeiro de 1969 e arts. 6º e 11 do Decreto-lei referido) seriam declarados nulos de pleno direito, alcançando, inclusive, os bens que se achassem em posse de terceiros de boa-fé, assegurado o direito de regresso (art. 8º do DL 359/1968). Com a declaração de nulidade, publicado por meio de decreto presidencial no Diário Oficial, os Oficiais de Registro de Imóveis deveriam promover a transcrição em nome da pessoa jurídica de direito público, sob pena de prevaricação. Eis a redação do art. 5º do DL 359/1969: Art. 5º Encerrada a investigação, se a Comissão concluir pela existência de enriquecimento ilícito, proporá ao Presidente da República a expedição de decreto, com a especificação dos bens a serem confiscados e dos atos de alienação ou oneração de bens a serem declarados nulos. § 1º Publicado o decreto no Diário Oficial, os registros competentes, no prazo de sessenta dias, providenciarão, de ofício, a transcrição dos bens em nome da pessoa jurídica de direito público em favor da qual haja sido decretado o confisco, remetendo-lhe as respectivas certidões. § 2º A inobservância do disposto no parágrafo anterior configurará crime de prevaricação. Decorridos mais de uma década, a CGI seria afinal extinta, no final do governo Geisel, pelo Decreto 82.961, de 29/12/1978, em razão da revogação dos Atos Institucionais e Complementares pela Emenda Constitucional 11/1978 (art. 3º), como veremos mais abaixo. Como lembra Falcão, "mexendo com tanta gente graúda", os processos originados na CGI mergulhariam "no sono do túmulo da Secretaria-Geral do Conselho de Segurança Nacional".20 A CGI e os cartórios Os cartórios de Registro de Imóveis, desde muito cedo, enfrentaram o problema da inscrição dos atos que decretavam o confisco e a indisponibilidade de bens. Contudo, somente a partir do advento do Decreto-Lei 502, de 17/3/1969, que os Ofícios Prediais seriam obrigados a manter um cadastro sigiloso21, de caráter preparatório, organizado com vistas a "separar bens que assegurem, no futuro, a plena execução do ato de confisco". Rezava o seu artigo 1º: Art. 1º Tão logo seja decretado o confisco de bens pelo Presidente da República, os órgãos mencionados nos itens abaixo não poderão: I - Os Registros de imóveis, fazer transcrições, inscrições ou averbações de documentos públicos ou particulares relativos aos bens confiscados, ou de quaisquer atos ou contratos em sejam interessados pessoas naturais ou jurídicas, cujos bens tenham sido objeto de confisco; (...) Parágrafo único. A violação do disposto no artigo 1º deste Decreto-lei tornará o infrator passível do crime previsto no artigo 319 do Código Penal [prevaricação], além da perda do cargo. Art. 2º A Comissão Geral de Investigação poderá, pelo seu Presidente, se assim julgar conveniente e durante o curso da investigação sumária, notificar aos órgãos mencionados no artigo 1º deste Decreto-lei da existência do processo de confisco e determinar, desde logo, as providências contidas nesse dispositivo. Pelo Decreto 64.203, de 17/3/1969, seria aprovado o Regulamento da CGI. As disposições relativas aos Registros Imobiliários se acham nos artigos 34 e 35, disposições análogas ao disposto no art. 1º Decreto-Lei 502, de 17/3/1969.22 Os cartórios de Registro de Imóveis ficavam impedidos, sob pena de perda do cargo por crime de prevaricação, de praticar quaisquer atos (transcrições, inscrições, averbações) relativamente aos bens confiscados ou bloqueados no curso da investigação. Em face de tão gravosas consequências, alguns Oficiais sentiam-se inseguros acerca da extensão das determinações emanadas das autoridades e consultavam o juízo da corregedoria permanente.23 Além disso, qual seria a extensão do sigilo que guardava as determinações de indisponibilidade? Afinal, os cartórios deveriam expedir certidões dos atos de registro, quando instados. A certidão, após mencionar a existência, ou não, de ônus de qualquer natureza deveria "acrescentar, sem nenhum prejuízo da quebra do sigilo, proveniente do caráter confidencial do documento, que ditos bens são indisponíveis por força de ato do Governo Federal". Afinal, os Registros Públicos, "precisamente por serem públicos, não possuem segredos. Tudo o que neles se trata é de acesso ao público (arts. 16 e segs. [da LRP]), pois de outra forma seria impossível atingir a finalidade de segurança e eficácia dos atos jurídicos, que está na sua essência (art. 1º). Quem vai negociar um imóvel tem o direito de ser informado das restrições acaso incidentes na disponibilidade. Para esse fim é que a repartição existe".24 A fim de promover diligências, sindicâncias, exames ou investigações, visando a apurar a prática de enriquecimento ilícito, como previsto no artigo 8º do AI 5/1968 e Ato Complementar 42/1969, a CGI criaria Subcomissões Gerais de Investigações, cujas instruções foram aprovadas pela Resolução Colegiada n. 23, de 11 de abril de 197325, que entraria em vigor a partir de 11 de maio do mesmo ano. A partir de então, os cartórios passariam a receber a visita de investigadores que buscavam obter, sempre de forma sigilosa, informações sobre os investigados. Assim previa o art. 31 da Resolução 23/1973: Art. 31 - Sempre que, no curso da Investigação Sumária, forem apurados indícios de aumento patrimonial, sem idoneidade financeira, a Subcomissão deverá incluir nos autos uma análise das mutações patrimoniais do indiciado, confrontadas com a receita por ele obtida em cada ano. Parágrafo único  - O estudo das variações patrimoniais será realizado em face de dados informativos da Secretaria da Receita Federal do Ministério da Fazenda, dos Registros de Imóveis, dos Registros de Comércio e de outras fontes idóneas. Finalmente, após as investigações, discutida a matéria em plenário, o Presidente submeteria as conclusões à apreciação do colegiado, seguindo-se a votação do relatório final. A Subcomissão deveria concluir pela existência ou inexistência de enriquecimento ilícito (art. 39); no caso positivo, deveria apresentar "proposta de confisco", devendo observar o seguinte: c)  - individualizar, para confisco, os bens pertencentes ao indiciado, juntando certidões do Registro de Imóveis, quando for o caso; d)  - discriminar os atos de alienação e de oneração de bens imóveis a serem declarados nulos, na forma da lei, juntando as correspondentes certidões do Registro de Imóveis. As visitas aos Cartório eram feitas por "agentes credenciados" que diligenciavam a obtenção de informações sobre o patrimônio imobiliário de pessoas arroladas em listas e fichas padronizadas, especialmente preparadas pelos órgãos de informação26. [A CGI e a CGJSP - continua parte II] __________ 1 Dados disponíveis aqui. Acesso em 26.8.2024. 2 Sobre a ocorrência da expressão "gravame", v. JACOMINO, Sérgio. CRUZ, Nataly.  Ônus, gravames, encargos, restrições e limitações. São Paulo: Migalhas Notariais e Registrais, 10.11.2021. Disponível aqui. 3 Curso Indisponibilidade de Bens. Fundação Arcadas, da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, Comissão de Direito Notarial e Registral da OAB - São Paulo, com o apoio do Irib - Instituto de Registro Imobiliário do Brasil, do CNB-CF - Colégio Notarial do Brasil e do NEAR-lab. As entidades uniram esforços para apresentar aos interessados um painel rico e multifacetado acerca dessa figura que ganha cada vez maior proeminência no Direito registral brasileiro. Acesso aqui. 4 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Indisponibilidade de Bens: entre o Direito, a Política e a Economia. São Paulo: Observatório do Registro, 4.10.2021, disponível aqui. 5 RIBEIRO, Moacyr Petrocelli de Ávila. Da Indisponibilidade de Bens no Registro de Imóveis. São Paulo: IRIB, 2024, p. 12-3.  6 Decreto 19.398, de 11 de novembro de 1930, que instituiu o Governo Provisório da República e previu os tribunais especiais para julgamento de crimes políticos, funcionais e outros (art. 16). 7 Decreto 19.440, de 28 de novembro de 1930. Este diploma organizaria o Tribunal Especial, posteriormente revogado pelo Decreto 19.719/1931; Decreto 19.575, de 7 de janeiro de 1931, que dispunha sobre as atribuições dos procuradores especiais. 8 Decreto 19.719, de 20 de fevereiro de 1931, art. 11 e parágrafo único do art. 47. O referido decreto  reorganizava o Tribunal Especial. 9 Decreto 19.719, de 20 de fevereiro de 1931, art. 46. 10 Decreto 19.630, de 27 de janeiro de 1931. Estabeleceu a indisponibilidade de bens das pessoas processadas pelo Tribunal Especial. 11 "Nas escrituras que se lavrarem, para a dita alienação, ou oneração, serão transcritos os alvarás expedidos pela autoridade competente, autorizando essas transações" (art. 6º do Decreto 19.630/1931). 12 Decreto 20.424, de 21 de setembro de 1931. Neste decreto reiterava-se a disposição acerca do confisco de bens (letra "d" do art. 6º) pela "aplicação, uso indevido ou irregular dos dinheiros ou haveres públicos (...); e, em geral, todo ato ou prática de improbidade contra a fortuna pública. CAMARGO, Angélica Ricci. Ministério da Justiça e Negócios Interiores: um percurso republicano (1891 - 1934). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2015, pp. 30-31. 13 Decreto 23.803, de 25 de janeiro de 1934, que extinguiu a Comissão de Correição Administrativa. 14 Posteriormente, ainda no período Vargas, houve algumas disposições legais que visavam coibir e sancionar o crime de locupletamento ou enriquecimento ilícito de que resultava prejuízo à Administração Pública. É o caso do Decreto-Lei 3.240/1941, que previa o sequestro dos bens e a hipoteca legal em favor da Fazenda Pública (n. 1 e 2, § 2º, do art. 4º); art. 128 do CPP. No período do Governo de Juscelino Kubitschek: Lei 3.164, de 1º/6/1957; Lei 3.502, de 21/12/1958. V. SERPA LOPES, Miguel Maria de. Tratado, Vol. IV. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1961, p. 199. 15 Ata 43ª sessão do Conselho de Segurança Nacional realizada a 13/12/1968 no Palácio das Laranjeiras, Rio de Janeiro, Estado da Guanabara. 16 STARLING, Heloísa Maria Murgel et. ali. Ditadura Militar, in Corrupção - Ensaios e Críticas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008, p. 252. Vide igualmente: SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo - 1964 - 1985. São Paulo: Paz e Terra, 1994, p. 84, n. 16. FICO, Carlos. Como Eles Agiam - Os Subterrâneos da Ditadura Militar: Espionagem e Polícia Política. Rio de Janeiro: Record, 2001, pp. 45 et seq. e p. 149 passim.   17 FALCÃO, Armando. Tudo a Declarar. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989, p. 310. 18 KNACK, Diego. Ditadura e Corrupção. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2018, pp. 20 e 88. 19 Decreto-Lei n. 6, de 6 de março de 1969. A dita Comissão estadual seria extinta pela Lei 2.034, de 11 de julho de 1979. 20 FALCÃO, Armando. Op. cit. p. 312. 21 "Embora de existência pública e conhecida no período em que foi criada", diz KNACK, "a atuação da CGI era secreta - diferentemente dos procedimentos judiciais convencionais - e colocava os acusados debaixo de toda sorte de constrangimentos: intimações, repetidos depoimentos em quartéis, desconhecimento das peças do processo, entre outros tipos de coação. O "sistema CGI", como era chamado todo o conjunto de CGI e SCGIs, funcionou durante dez anos e terminou extinto no final do governo Geisel, por conta do processo de abertura política". KNACK, Diego, op. cit. p.  20. 22 Decreto 64.203 de 17 de março de 1969, retificado e publicado sucessivamente no Diário Oficial da União de 20/3/1969 (p. 2391, col. 2) e de 25/3/1969. Acesso aqui. 23 V. Processo 1VRPSP 4/1979, j. 16/2/1979, Dr. Gilberto Valente da Silva. Disponível aqui. 24 Ap. Civ. 583/1977, Santos, j. 14/10/1977, rel. Acácio Rebouças. CONFISCO - Processo - Comunicação sigilosa da Comissão Geral de Investigações (CGI) aos Cartórios do Registro de Imóveis, para deixar indisponíveis os bens de quem está sendo investigado - Natureza e extensão do sigilo - Necessidade de os Cartórios mencionarem, nas certidões que lhes forem pedidas sobre esses imóveis, a existência da indisponibilidade temporária, por força de determinação superior. Disponível aqui. 25 Resolução Colegiada n. 23, de 11 de abril de 1973. Disponível aqui. 26 Vide exemplos colecionados e mantidos pelo Registro de imóveis de São Paulo, omitidos os nomes dos investigados. Disponível aqui. 
A LRP - Lei de Registros Públicos, ao tratar da usucapião extrajudicial, disciplina o procedimento quando há impugnação ao pedido. A redação original, dada pela lei 13.105/15, determinava que, havendo impugnação, o registrador de imóveis deveria remeter os autos ao juízo competente, pois a partir de então o procedimento deveria ser obrigatoriamente judicial, cabendo ao requerente emendar a petição inicial para adequá-la ao procedimento comum.  O legislador, no entanto, entendeu que somente a impugnação "justificada" poderia afastar a via extrajudicial. De fato, a nova redação decorrente da lei 14.382/22 estabelece que o Oficial de Registro de Imóveis deve inadmitir a impugnação injustificada, cabendo ao interessado suscitar dúvida em face da decisão do registrador, nos termos do art. 198 da LRP. Para facilitar a análise, abaixo se reproduz o § 10 do art. 216-A da LRP na redação original e na redação atual: Redação original dada pela lei 13.105/15 Redação dada pela lei 14.382/22 § 10. Em caso de impugnação do pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, apresentada por qualquer um dos titulares de direito reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes, por algum dos entes públicos ou por algum terceiro interessado, o oficial de registro de imóveis remeterá os autos ao juízo competente da comarca da situação do imóvel, cabendo ao requerente emendar a petição inicial para adequá-la ao procedimento comum. § 10. Em caso de impugnação justificada do pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, o oficial de registro de imóveis remeterá os autos ao juízo competente da comarca da situação do imóvel, cabendo ao requerente emendar a petição inicial para adequá-la ao procedimento comum, porém, em caso de impugnação injustificada, esta não será admitida pelo registrador, cabendo ao interessado o manejo da suscitação de dúvida nos moldes do art. 198 desta Lei.   A pergunta que se faz é: o que seria impugnação injustificada? A resposta não consta da LRP nem do CNN/ CN/CNJ-Extra - Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça - Foro Extrajudicial. Aliás, o CNN está desatualizado em relação à nova redação da LRP, pois ainda estabelece o seguinte: Art. 411. A existência de ônus real ou de gravame na matrícula do imóvel usucapiendo não impedirá o reconhecimento extrajudicial da usucapião. Parágrafo único. A impugnação do titular do direito previsto no caput poderá ser objeto de conciliação ou mediação pelo registrador. Não sendo frutífera, a impugnação impedirá o reconhecimento da usucapião pela via extrajudicial. Art. 412. Estando o requerimento regularmente instruído com todos os documentos exigidos, o oficial de registro de imóveis dará ciência à União, ao Estado, ao Distrito Federal ou ao Município pessoalmente, por intermédio do oficial de registro de títulos e documentos ou pelo correio com aviso de recebimento, para manifestação sobre o pedido no prazo de 15 dias. § 1.º A inércia dos órgãos públicos diante da notificação de que trata este artigo não impedirá o regular andamento do procedimento nem o eventual reconhecimento extrajudicial da usucapião. § 2.º Será admitida a manifestação do Poder Público em qualquer fase do procedimento. § 3.º Apresentada qualquer ressalva, óbice ou oposição dos entes públicos mencionados, o procedimento extrajudicial deverá ser encerrado e enviado ao juízo competente para o rito judicial da usucapião. [...] Art. 415. Em caso de impugnação do pedido de reconhecimento extrajudicial da usucapião apresentada por qualquer dos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo ou na matrícula dos imóveis confinantes, por ente público ou por terceiro interessado, o oficial de registro de imóveis tentará promover a conciliação ou a mediação entre as partes interessadas. § 1.º Sendo infrutífera a conciliação ou a mediação mencionada no caput deste artigo, persistindo a impugnação, o oficial de registro de imóveis lavrará relatório circunstanciado de todo o processamento da usucapião. § 2.º O oficial de registro de imóveis entregará os autos do pedido da usucapião ao requerente, acompanhados do relatório circunstanciado, mediante recibo. § 3.º A parte requerente poderá emendar a petição inicial, adequando-a ao procedimento judicial e apresentá-la ao juízo competente da comarca de localização do imóvel usucapiendo. (sem grifos no original) Apesar de o CNN estar desatualizado, não há dúvida de que a norma constante do § 10 do art. 216-A da LRP entrou em vigor em 28/6/22, data da publicação da lei 14.382, conforme art. 21 da referida lei, razão pela qual é preciso definir o que é impugnação injustificada ao pedido de usucapião extrajudicial. Em Minas Gerais, o Código de Normas estadual ainda não foi alterado para contemplar essa questão, mas, na parte referente à retificação de área, foi feita análise do que é uma impugnação sem fundamento, o que pode ser aplicado, por analogia, à usucapião: Art. 916. Considera-se infundada a impugnação:  já examinada e refutada em casos iguais ou semelhantes pelo juiz de direito com jurisdição em Registros Públicos ou, onde não houver vara especializada, pelo juízo cível ou pela Corregedoria-Geral de Justiça;  em que o interessado se limite a dizer que a retificação causará avanço em sua propriedade sem indicar, de forma plausível, onde e de que forma isso ocorrerá;  que não contenha exposição, ainda que sumária, dos motivos da discordância manifestada;  que ventile matéria absolutamente estranha à retificação;  que o oficial de registro, pautado pelos critérios da prudência e da razoabilidade, assim reputar.  Em São Paulo, as Normas Extrajudiciais de Serviço da Corregedoria do Tribunal de Justiça já contemplavam, anteriormente à alteração na redação do § 10 do art. 216-A da LRP, a hipótese de impugnação injustificada na usucapião. Prestigiando a qualificação do registrador de imóveis e a importância do procedimento extrajudicial, as referidas normas determinam que seja julgada pelo registrador a fundamentação da impugnação, com afastamento daquela claramente impertinente ou protelatória, caso em que prosseguirá no procedimento extrajudicial caso o impugnante não recorra no prazo de 10 dias.  Ainda conforme as normas de São Paulo, tendo o registrador entendido que a impugnação é injustificada, somente em caso de recurso do impugnante serão os autos remetidos ao juiz competente para julgamento de plano ou após instrução sumária, cabendo ao juiz examinar apenas a pertinência da impugnação. Cabe ao juiz decidir se o caráter da impugnação é meramente protelatório ou completamente infundado. Havendo qualquer indício de veracidade que justifique a existência de conflito de interesses, a via extrajudicial se torna prejudicada, devendo o interessado se valer da via contenciosa, sem prejuízo de utilizar-se dos elementos constantes do procedimento extrajudicial para instruir seu pedido, emendando a petição inicial para adequá-la ao procedimento comum. Abaixo são reproduzidas as normas de São Paulo: 420.2. Consideram-se infundadas a impugnação já examinada e refutada em casos iguais pelo juízo competente; a que o interessado se limita a dizer que a usucapião causará avanço na sua propriedade sem indicar, de forma plausível, onde e de que forma isso ocorrerá; a que não contém exposição, ainda que sumária, dos motivos da discordância manifestada; a que ventila matéria absolutamente estranha à usucapião. 420.3. Se a impugnação for infundada, o Oficial de Registro de Imóveis rejeitá-la-á de plano por meio de ato motivado, do qual constem expressamente as razões pelas quais assim a considerou, e prosseguirá no procedimento extrajudicial caso o impugnante não recorra no prazo de 10 (dez) dias. Em caso de recurso, o impugnante apresentará suas razões ao Oficial de Registro de Imóveis, que intimará o requerente para, querendo, apresentar contrarrazões no prazo de 10 (dez) dias e, em seguida, encaminhará os autos ao juízo competente.  420.4. Se a impugnação for fundamentada, depois de ouvir o requerente o Oficial de Registro de Imóveis encaminhará os autos ao juízo competente.  420.5. Em qualquer das hipóteses acima previstas, os autos da usucapião serão encaminhados ao juízo competente que, de plano ou após instrução sumária, examinará apenas a pertinência da impugnação e, em seguida, determinará o retorno dos autos ao Oficial de Registro de Imóveis, que prosseguirá no procedimento extrajudicial se a impugnação for rejeitada, ou o extinguirá em cumprimento da decisão do juízo que acolheu a impugnação e remeteu os interessados às vias ordinárias, cancelando-se a prenotação. A 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo, em maio de 2023, em dúvida suscitada pelo Oficial do 11º Registro de Imóveis da Capital, ratificou a decisão do Oficial, rejeitando as impugnações e o recurso apresentados, autorizando que o procedimento extrajudicial pudesse ter regular prosseguimento. Abaixo se reproduz, em parte, a referida decisão: No caso em tela, ambas as impugnações são no sentido de que S. M. é a proprietária, a qual exerce posse mansa e pacífica sobre o bem desde que o recebeu por sucessão. Entretanto, não vieram acompanhadas de qualquer evidência neste sentido. Note-se que não se comprovou nem ao menos a alegação de que o imóvel está alugado, o que seria bastante simples mediante apresentação de contrato e recibos de aluguel, ou de que são os proprietários os responsáveis pelo pagamento dos tributos incidentes sobre ele, o que poderia se dar pela apresentação dos comprovantes de quitação. Já a parte suscitada demonstrou, por meio de ata notarial, ter assumido a posse do terreno após a aquisição de imóveis vizinhos no ano de 2008 (fls. 73/84). Na ata em questão, há referência sobre apresentação de contas de água, luz e telefone em nome da parte interessada no período de setembro de 2008 a agosto de 2021, além do lançamento de IPTU para o ano de 2022, e sobre a constatação pelo tabelião de uso do terreno pela empresa requerente para a prática de suas atividades, inclusive com fotos. Há que se confirmar, portanto, como infundadas as impugnações na medida em que genéricas e desprovidas de qualquer suporte probatório. Note-se, ainda, que a parte recorrente ventila matéria estranha à usucapião, sustentando irregularidade no procedimento extrajudicial e necessidade de perícia. De fato, o imóvel está bem identificado, não havendo qualquer dúvida quanto à sua delimitação (fls. 73/84 e 85/88). A contratação noticiada pela parte suscitada, outrossim, não se deu com os proprietários: o requerimento é claro no sentido de que, após a aquisição de imóveis vizinhos, a empresa requerente assumiu a posse da área em questão e passou a utilizá-la com animus domini (fls. 59/72), o que se confirma pelas fotos citadas (fls. 79/84). Não bastasse isso, constata-se que não há qualquer irregularidade ou invalidade a ser reconhecida no procedimento extrajudicial, que ainda não se encerrou: alguns dos proprietários puderam ser notificados, mas outros ainda não (fls. 02/03 e 103/126); a tentativa de conciliação foi corretamente realizada entre a coproprietária que impugnou tempestivamente o pedido e a parte suscitada, sem qualquer prejuízo para qualquer dos interessados. Diante do exposto, ratifico a decisão do Oficial, rejeitando as impugnações e o recurso apresentados, de modo que o procedimento extrajudicial possa ter regular prosseguimento. A diferença entre as normas de São Paulo e o que veio estabelecer a nova redação do art. 216-A da LRP é que, conforme a lei, no caso de o registrador decidir que a impugnação é infundada, o interessado deverá suscitar dúvida, ou seja, o caminho conforme a lei não é mais a apresentação de recurso. O restante da norma de São Paulo é aplicável à nova realidade, de modo que, no julgamento da dúvida, cabe ao juiz decidir apenas se o caráter da impugnação é meramente protelatório ou completamente infundado. Se o juiz entender que a impugnação é justificada, a via extrajudicial não mais será viável, devendo o interessado se valer da via contenciosa. Em conclusão, mais uma vez foi determinada a desjudicialização, sendo atribuído ao registrador de imóveis que decida sobre a impugnação, desconsiderando aquela que reputar injustificada. É o que estabelece a nova redação dada pela lei 14.382/22 ao § 10 do art. 216-A da LRP. O interessado que não se conformar deverá suscitar dúvida em face da decisão do registrador, nos termos do art. 198 da LRP. O CNN/ CN/CNJ-Extra - Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça - Foro Extrajudicial e os Códigos de Normas dos Estados deverão ser atualizados para contemplar essa inovação, que prestigia a qualificação do registrador de imóveis e a importância do procedimento extrajudicial. ___________ 1 CORREGEDORIA Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça. Provimento Nº 149 de 30/08/2023. Disponível aqui. Acesso em: 29 set. 2024. 2 TRIBUNAL de Justiça de Minas Gerais e CORREGEDORIA GERAL de Justiça de Minas Gerais. Provimento Conjunto nº 93 da Corregedoria-Geral de Justiça de Minas Gerais. Disponível aqui. Acesso em: 29 set. 2024. 3 CORREGEDORIA GERAL da Justiça de São Paulo. PROVIMENTO Nº 58/89. Disponível aqui. Acesso em: 29 set. 2024. 4 MAHUAD, Luciana Carone Nucci Eugênio. Processo nº: 1032941-74.2023.8.26.0100. Disponível aqui. Acesso em 29 set. 2024.
1. Resumo A cláusula de compensação pecuniária por tempo de casamento ou de união estável configura uma prefixação de alimentos compensatórios, que possuem natureza jurídica indenizatória. É cabível cobrança de alimentos compensatórios suplementares no caso de insuficiência, no caso concreto, da prestação prefixada. A cláusula é devida mesmo fora do regime da separação de bens, vedado, porém, que o ex-consorte credor fique, ao final, com patrimônio superior ao que receberia no regime da comunhão universal. Eventuais alimentos compensatórios adicionais a esse teto é excepcional e devem ser pleiteados judicialmente mediante prova de justa causa. Não é devida a compensação pecuniária por tempo de relacionamento na hipótese de o ex-consorte devedor ter caído em situação de penúria ou na de o valor pecuniário impor-lhe grave peso patrimonial em virtude de sua decadência financeira ao longo da convivência more uxorio. É nula cláusula em sentido contrário. 2. Introdução É ou não legítimo estabelecer que o casal adote o regime da separação de bens com uma "compensação pecuniária" a cada determinado tempo de casamento ou de união estável? Trata-se de cláusula que tem se tornado comum, especialmente em hipóteses em que um dos cônjuges possui vasto patrimônio e não pretende que haja comunicação dele com o outro consorte. Quanto à data de pagamento, pode-se estabelecer o momento do fim da relação (ex.: separação de fato, divórcio, morte etc.) ou o fim do ciclo temporal estabelecido (ex.: a cada ano). Exemplo: A cada ano de casamento, a esposa terá direito a R$ 10.000,00, a ser pago pelo marido ou por seu espólio quando do fim casamento. 3. Cláusula atípica em pacto antenupcial ou em contrato de convivência Entendemos que a cláusula de compensação pecuniária por tempo de relacionamento é válida. Cuida-se de um exemplo de cláusula atípica, porque não decorre do Direito de Família. Essa cláusula que estabelece um valor prefixado de "alimentos compensatórios" versa sobre uma prestação de natureza jurídica indenizatória. Não se trata de cláusula típica do Direito de Família, porque, nesse âmbito, apenas se admite a escolha de regras de comunicação de bens por meio de regime de bens. Nas precisas palavras de Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, "por regime de bens, entenda-se o conjunto de normas que disciplina a relação jurídico-patrimonial entre os cônjuges, ou, simplesmente, o estatuto patrimonial do casamento"1. A comunicação de bens envolve a formação de um condomínio de "mãos juntas", unindo o casal na prosperidade ou na desventura. Assim, se o casal vier a perder o bem por qualquer motivo (ex.: uma excussão judicial), nada haverá a partilhar ao final da relação. Tudo isso decorre da ideia central do Direito de Família em reconhecer que há um "esforço comum" do casal no crescimento ou na decadência patrimoniais. Com exceção do regime da separação legal de bens em razão de uma construção jurisprudencial com base em princípios jurídicos2, esse "esforço comum" é uma presunção absoluta nos regimes de bens que prevejam a comunicação: não se admite prova em contrário. De fato, no Direito de Família, há uma solidariedade natural entre os cônjuges, solidariedade essa que envolve verdadeiros serviços prestados sem caráter monetário. Seria até estranho se o Direito de Família se baseasse na monetarização dessa solidariedade. Imagine, por exemplo, um casal em que a esposa concentre os trabalhos do lar e da família, ao passo que o marido ficasse livre para investir nas próprias atividades profissionais.   Seria exótico pensar em a esposa monetarizar cada serviço de cuidado prestado, seguindo uma tabela de preços como esta: R$ 200,00 por qualquer prato de comida elaborado (valor esse que seria acrescido de R$ 100,00 a título de taxa de urgência caso se trate de uma canja de galinha feita ao marido em situação de doença); R$ 3 mil mensais pelos serviços de lavagem de roupa; R$ 1,5 mil mensais pelos serviços de transporte escolar dos filhos; R$ 1,5 mil pelos serviços de gestão administrativa das questões dos filhos; R$ 1 mil diários pelo serviço de "coaching" prestados mediante palavras de ânimo; Direito de Família não é compatível com essa monetarização de serviços. Ele é baseado na solidariedade familiar. Se alguém pretende contratar prestadores de serviço, cabe-lhe valer-se das figuras do Direito Contratual ou do Direito do Trabalho. A verdade é que, se fôssemos monetarizar cada conduta de solidariedade familiar, chegaríamos a cifras surreais de dinheiro, ainda mais se levarmos em conta encargos trabalhistas e a natureza bem personalizada do trabalho. A verdade é que não há como monetarizar a solidariedade familiar, porque, como diz o ditado popular, o amor não tem preço. 3. Natureza de "alimentos compensatórios" prefixados Em suma, a cláusula que, no regime da separação de bens, fixa um valor pecuniário a cada período de tempo de casamento é uma prefixação de "alimentos compensatórios". Os alimentos compensatórios são prestação de natureza indenizatória devida ao ex-consorte no final do casamento quando ele vier a ficar em uma situação patrimonial brutalmente inferior ao do outro. Como lembra Flávio Tartuce, os alimentos compensatórios é uma "construção desenvolvida no Brasil por Rolf Madaleno, a partir de estudos do Direito Espanhol e Argentino"3. Em outro artigo, defendemos que esses alimentos compensatórios também são cabíveis quando o ex-cônjuge tiver sofrido um "apagão profissional" por longo tempo para se dedicar aos trabalhos de cuidado, ainda que sua situação patrimonial não fique brutalmente inferior ao do outro ex-consorte4. Mas esse caso excepcional deve ser visto com muito cautela pelo juiz no caso concreto. Pense, por exemplo, em um casamento que durou 30 anos, com a mulher se dedicando exclusivamente aos trabalhos de cuidado. Com o divórcio, a mulher fica com um patrimônio de duzentos mil reais. O marido, que, com o apoio familiar, conseguiu passar em um alto concurso público, seguirá com prosperidade remuneratória. Em situação como essa, caso o juiz não fixe pensão alimentícia vitalícia ao ex-cônjuge, o caso é de pensar em uma prestação compensatória adicional para essa mulher que sofreu um brutal apagão profissional. Não importa aí se o casal havia adotado ou não o regime da comunhão universal de bens, pois os alimentos compensatórios servirão como justa compensação pelo "apagão profissional" de um ex-consorte às custas do qual o outro conseguiu alcançar estabilidade profissional. Quando se estipula um valor pecuniário a ser pago a cada período de tempo de casamento ou de união estável, estamos diante de uma prefixação de alimentos compensatórios, o que é plenamente lícito. 4. Questões adicionais Três questões, porém, merecem reflexão. 4.1. Teto para a compensação compensatória, compensação "suplementar", condicionalidade da cláusula Em primeiro lugar, é ou não cabível a "compensação por tempo de relacionamento" fora do regime da separação de bens? Entendemos que sim, mas com uma restrição: o ex-consorte, ao final, não poderá ficar com valor superior ao que obteria se tivesse casado no regime da comunhão universal de bens. Não poderia, por cláusula matrimonial ou convivencial, fixar nenhum tipo de compensação que exceda ao máximo que o Direito de Família admita em matéria de regime de bens. O único modo de exceder esse teto seria mediante alimentos compensatórios fixados pelo juiz de modo muito excepcional naquela hipótese que já tratamos acima. 4.2. Teto para a compensação compensatória, compensação "suplementar", condicionalidade da cláusula Em segundo lugar, o juiz pode ou não fixar alimentos compensatórios suplementares ao que foi prefixado a título de "compensação pecuniária por tempo de relacionamento"? Entendemos que sim, porque essa cláusula apenas estabelece um valor presumido de compensação, o qual serve como valor mínimo de alimentos compensatórios. Se, no caso concreto, verificar-se a insuficiência desse valor diante da dinâmica adotada ao longo do casamento, o juiz pode fixar alimentos compensatórios suplementares. Pense em um casamento que durou 30 anos, com a mulher dedicando-se integralmente aos trabalhos de cuidado e com o marido crescendo profissionalmente ao sopro desse suporte familiar. Suponha que tenha sido estipulado alimentos compensatórios de R$ 10.000,00 por ano, e o regime adotado tenha sido o da separação de bens. Com o divórcio, imagine que o marido tenha ficado com um patrimônio particular de milhões de reais. Não parece adequado que essa mulher apenas fique com R$ 300.000,00 de alimentos compensatórios, especialmente se lhe for negada pensão alimentícia vitalícia. Temos por devido o arbitramento de alimentos compensatórios suplementares aí. Trata-se de regra de ordem pública, fruto da vedação ao abuso de direito e ao enriquecimento sem causa bem como do princípio da solidariedade familiar. 4.3. Condicionalidade da cláusula Em terceiro lugar, indaga-se: a compensação pecuniária por tempo de relacionamento é ou não devida na hipótese de o ex-consorte devedor ter caído em situação de penúria ou na de o valor pecuniário vir a impor-lhe grave peso patrimonial em virtude de sua decadência financeira ao longo da convivência more uxorio? Entendemos que não. É que, ao casar e adotar o regime da separação de bens com uma cláusula de "compensação pecuniária por tempo de relacionamento", o consorte milionário pode não ter antevisto que o Infortúnio haveria de cruzar seu futuro, reduzindo-o à escassez.  Nesse quadro, perguntamos: seria adequado permitir que, com o fim do casamento ou da união estável, o ex-consorte devedor seja mais ainda afundado patrimonialmente com o pagamento da "compensação pecuniária por tempo de relacionamento"? Entendemos que não. Os alimentos compensatórios, sejam os prefixados por cláusula, sejam os arbitrados judicialmente, pressupõem que o ex-consorte devedor ficou em situação patrimonial mais vantajosa. Se o ex-consorte devedor naufragou patrimonialmente, trata-se de azar a ser compartilhado pelo outro. Afinal de contas, o instituto dos alimentos compensatórios foi desenvolvido como um fator de correção a injustiças causadas pela escolha de um regime de bens que não veio a refletir a realidade assumida na dinâmica do casamento. Os alimentos compensatórios não são uma remuneração por trabalhos prestados. São um fator de correção para compensar o ex-consorte prejudicado com um regime de bens incompatível com a dinâmica assumida pelo núcleo familiar. 5. Advertência final Cabe uma advertência final. No geral, tudo quanto foi exposto acima gira em torno de relacionamentos de perfil mais tradicional, em que um dos consortes (geralmente a mulher) assume os trabalhos de cuidado e sofre apagão profissional em prol do outro consorte. Nesses casos, o instituto dos alimentos compensatórios serve como fator de correção para eventual injustiça no caso concreto. Para os perfis tidos por mais modernos, em que ambos os consortes mantêm autonomia profissional e compartilham ou terceirizam os trabalhos de cuidado, entendemos não ser cabível qualquer tipo de intervenção adicional para a fixação de alimentos compensatórios. Não importa se um dos consortes prosperou financeiramente e outro, não. A desventura profissional do ex-consorte não é atribuível à sua dedicação ao núcleo familiar, e sim à sua própria sorte. Seja como for, mesmo nesses casos, nada impede que os consortes estipulem "compensação pecuniária por tempo de relacionamento" em nome da autonomia privada. Mas, além de não ser cabível quaisquer alimentos compensatórios suplementares, há de respeitar o teto daquilo que o ex-consorte receberia se tivesse adotado o regime da comunhão universal. ________ 1 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: direito de família, volume 6. São Paulo: Saraivajur, 2024. 2 "1. Nos termos da jurisprudência do STJ, comunicam-se os bens adquiridos na constância do casamento celebrado sob o regime de separação de bens, desde que comprovado o esforço comum para a aquisição. Precedentes." (STJ, AgInt nos EDcl no REsp n. 1.764.933/ES, relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, 4ª turma, julgado em 24/6/24, DJe de 26/6/24). 3 TARTUCE, Flávio. Direito Civil: direito de família. Rio de Janeiro: Forense, 23, p. 601. 4 OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Economia do Cuidado e Direito de Família: alimentos, guarda, regime de bens, curatela e cuidados voluntários. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, Maio 2024 Disponível aqui.
Passando à margem da discussão sobre a legalidade da cláusula de renúncia à condição de herdeiro, entre e cônjuges e companheiros, tenho por objetivo neste texto fazer comentários muito breves sobre a registrabilidade dos pactos que contemplam tal cláusula. Tive oportunidade de escrever mais amplamente sobre o tema, em trabalho publicado em Portugal1, e que também integra a 3ª edição do livro Noções Fundamentais de Direito Registral e Notarial2. Em recente decisão, de 1º/10/243, o CSM do Estado de São Paulo, decidiu, por maioria, pela registrabilidade do pacto no registro imobiliário, no livro 3, tendo a ementa os seguintes termos: "Registro de Imóveis - Escritura pública de pacto antenupcial que fixa o regime da separação convencional de bens - Cláusula que prevê a renúncia recíproca ao direito sucessório em concorrência com herdeiros de primeira classe, conforme previsão do art. 1.829, I, do CC - Desqualificação pelo Oficial e dúvida julgada procedente, sob o argumento de infringência ao art. 426 do CC, que veda contrato cujo objeto seja herança de pessoa viva. Controvérsia doutrinária acerca da validade da renúncia antecipada ao direito sucessório concorrencial Validade da renúncia defendida por parte da doutrina, que não vislumbra transgressão a nenhum dispositivo legal (arts. 426, 1.784 e 1.804, parágrafo único, todos do CC). Distinção entrepacta corvina e renúncia antecipada à herança, que não tem como objeto disposição sobre o patrimônio de pessoa viva Discussão sobre a legalidade da renúncia antecipada de herdeiro necessário à legítima, antes da abertura da sucessão, que somente seria possível de lege ferenda. Cônjuges devidamente advertidos, por ocasião da lavratura da escritura, a respeito da controvérsia do tema e possibilidade de invalidação futura da cláusula Registro no livro 03 do RI obstado em razão de uma única cláusula, impedindo que o pacto como umtodo surta efeitos perante terceiros Validade da renúncia antecipada será avaliada na esfera jurisdicional se a sociedade e o vínculo conjugal terminarem pela morte de um dos cônjuges e se houver concorrência na sucessão Registro do pacto essencial para que o regime da separaçãoconvencional de bens, em sua totalidade, tenha eficácia em face de terceiros. Registro do pacto não significa adesão à legalidade da cláusula de renúncia antecipada, aberta a via jurisdicional para discussão dos interessados, após a abertura da sucessão. Distinção entre a amplitude da qualificação do registrador para o registro constitutivo de direitos reais e para o registro de pacto antenupcial, para fins de eficácia perante terceiros. Apelação provida para determinar o registro do pacto antenupcial" (grifamos).  O acórdão aborda aspectos importantes e faz relevantes afirmações. Vale destacar o ponto em que analisa a amplitude da qualificação do registrador no caso. Para além disso, o risco para a segurança jurídica no rechaço de um registro por eventual nulidade de uma cláusula em um pacto antenupcial que, ao fim e ao cabo, sequer é esssencial. O relator, em seu voto, após discorrer sobre as controvérsias em torno da validade da cláusula de renúncia à condição de herdeiro, afirma quanto à negativa do registro: "a decisão administrativa em caráter normativo se anteciparia à discussão que eventualmente será travada na esfera jurisdicional no momento da abertura da sucessão"; "não é demasia ingressar na amplitude do poder qualificador do oficial de registro de imóveis, ao analisar pactos antenupciais que terão acesso ao livro 03. Em atribuição que se distancia de suas funções usuais tanto é que a inscrição é efetuada em livro auxiliar destinado a atos que não dizem respeito a imóvel matriculado (art. 177 da lei 6.015/73), negaria o registro do pacto antenupcial, impedindo que toda a avença e não só a cláusula questionada produza efeitos erga omnes"; "o pacto antenupcial, lavrado com todas as cautelas e informações possíveis, deve ser registrado na serventia imobiliária. (.) o registro não significa a chancela judicial à validade da cláusula, mas tão somente que não se deve negar eficácia perante terceiros ao pacto antenupcial, até que em momento e na esfera própria a questão da nulidade eventualmente seja arguida e decidida na esfera jurisdicional". Entendo bastante acertada a decisão, a lamentar apenas que não tenha sido proferida por unanimidade, e especialmente, que tenha decorrido da negativa de um registrador à prática do ato, ensejando a suscitação da dúvida. Como tive oportunidade de apontar, no texto publicado, não pode ser óbice à habilitação para o casamento, ou ao registro no livro 3 do Registro de Imóveis, a cláusula em questão, pactuada livremente pelos nubentes, dentro do sua liberdade de contratar - a validade da cláusula, como bem esclarecido pelo acórdão, não deve ser verificada pelo registrador imobiliário (como também não deve ser pelo registrador civil). Para produção de efeitos futuros, sua validade deve ser analisada à luz do direito vigente no momento do óbito de um dos cônjuges, e em eventual arguição por um interessado. Inicialmente, a apresentação de óbices ao registro invade seara que, no caso, é exclusiva do notário - a inserção da cláusula, e sua eventual nulidade (apenas da cláusula, e não do pacto), não tem qualquer reflexo no registro civil do casamento ou no registro do pacto, para fins publicitários, no registro imobiliário. O notário, instado a lavar uma escritura de pacto antenupcial, ou pacto patrimonial, na qual as partes solicitem que se insira cláusula de renúncia à condição de herdeiro, deve lavrar o ato notarial, com inserção nas escrituras que os nubentes foram orientados sobre todas as consequências da adoção do regime, inclusive quanto aos aspectos sucessórios. Diante da discussão doutrinária e jurisprudencial quanto à nulidade, o notário poderá praticar o ato, enquanto intérprete e aplicador do direito, respondendo pela solução jurídica aplicada, a ser adotada após orientação das partes sobre todas as circunstâncias envolvidas e clara opção destas, a ser expressada no ato notarial.        Dentro desse contexto, em que a atividade notarial do tabelião, profissional do direito, se exerce com independência jurídica e imparcialidade, no acolhimento da vontade das partes, devem ter em conta os notários, primeiramente, a autonomia de vontade das partes. A autonomia de vontade das partes deve ir ao encontro da liberdade de interpretação do tabelião, que deve praticar os atos que entender estarem dentro de um contexto de legalidade. Em termos práticos, partilhando do entendimento de que não há nulidade na cláusula, deve o tabelião inserir nas escrituras de pacto antenupcial e patrimonial, a cláusula de renúncia recíproca à condição de herdeiro. Feita tal qualificação pelo tabelião, e não sendo a cláusula essencial aos pactos antenupciais, não devem os registradores civis e imobiliários avançarem com qualificação sobre a validade da mesma. Em boa hora veio a decisão, mas como já afirmado, decorrente de uma qualificação que, com a devida vênia, acaba por desmerecer a qualidade de profissionais do Direito reconhecida legalmente aos delegatários. O reconhecimento não deve vir apenas de fora, mas, principalmente, de dentro da profissão. O registrador, em hipóteses como a ventilada, ao qualificar positivamente os títulos, estará prestigiando a independência jurídica dos notários. Especificamente, e sucintamente, sobre a atuação dos registradores, entendo que: Quanto ao RCPN, examinará o registrador civil, quando for o caso, o pacto antenupcial no curso do processo de habilitação para o casamento. Caso não exista qualquer vício no pacto, no que concerne aos requisitos referentes ao casamento, cabe ao registrador civil prosseguir no processo de habilitação, com posterior celebração do casamento e lavratura do registro em livro próprio (livro B - art. 33, II, da lei 6.015/73), com as indicações sobre o pacto nos termos do inciso VII do art. 1.536 do CC. Isso porque não releva para o registro civil o exame de cláusulas que digam respeito aos direitos sucessórios entre cônjuges. Os efeitos patrimoniais do casamento, durante a sociedade conjugal, estarão definidos e preservados. É certo que a cláusula de renúncia à condição de herdeiro poderá vir a ser discutida, diante das controvérsias existentes. Ainda que venha a ser considerada inválida, o pacto antenupcial não será alcançado integralmente pela declaração de invalidade da cláusula, como se vê do teor do art. 1.655 do CC, inserido no capítulo que trata do pacto antenupcial: "É nula a convenção ou cláusula dela que contravenha disposição absoluta de lei". O entendimento pela nulidade, no caso, se restringiria à cláusula em discussão, mantendo-se hígido o pacto quanto ao regime de bens adotado. Portanto, não deve o registrador civil recusar a prática dos atos referentes ao casamento. Passando ao registro imobiliário, encontramos previsões de registro e averbação do pacto antenupcial nos arts. 167, I, 12; 167, II, 1; 178, V; e 244 da lei 6.015/73. Determina a legislação o registro do pacto no livro 3, Registro Auxiliar, e sua averbação nas matrículas dos imóveis que pertençam aos cônjuges (tanto dos imóveis que constituem bens particulares, quanto dos comuns). O CC condiciona o registro do pacto antenupcial no Registro Imobiliário, no livro 3, para a produção de efeitos com relação a terceiros4. A lei 6.015/73, no art. 244, cuida dos atos a praticar no registro imobiliário5.      O pacto antenupcial é ineficaz se não lhe seguir o casamento (art. 1.653 do CC). Assim, só terá acesso ao registro imobiliário se tiver acontecido o casamento. O oficial do registro civil, no exercício do seu mister, já examinou o pacto, no processo de habilitação para o casamento, e lavrou o assento do matrimônio. O registrador imobiliário, ao ser provocado para a prática de atos em que o título, em sentido formal, seja o pacto antenupcial, deve exigir comprovação do casamento, a demonstrar a eficácia daquele. No exame do título, não deve o registrador imobiliário, pelas mesmas razões que o registrador civil, qualificá-lo negativamente. Os atos praticados no registro imobiliário, relativos aos pactos antenupciais, têm como finalidade dar publicidade aos mesmos, garantindo produção de efeitos em relação a terceiros, e alcançando assim a segurança jurídica dinâmica. Já realizado o casamento, e não sendo nulo o pacto, eventual discussão sobre cláusula que verse sobre também eventuais direitos sucessórios (pois pode haver patrimônio ou não por ocasião do passamento de cada um dos cônjuges), não há de obstar seu acesso ao registro imobiliário. O tema está bastante vivo, e precisamos, como  notários e registradores, atender aos anseios da sociedade, solucionando as questões no âmbito dos serviços notariais e registrais, sem o chamamento do Poder Judiciário - reservado para, apenas, quando absolutamente indispensável. Assim valorizaremos nossa condição de profissionais do Direito. ________ 1 SOUZA, Eduardo Pacheco Ribeiro de. Renúncia à condição de herdeiro entre cônjuges e companheiros: A atuação notarial na lavratura dos pactos antenupciais do contexto legislativo atual e seus reflexos no registro imobiliário. Estudos em homenagem a Sérgio Jacomino. Organizadores: Alfonso Candau, Ivan Jacopetti do Lago, Madalena Teixeira, Margarida Costa Andrade, Mónica Jardim e Rafael Vale e Reis. - Coimbra, PT: Gestlegal, 2022. 2 SOUZA, Eduardo Pacheco Ribeiro de. Noções Fundamentais de Direito Registral e Notarial. São Paulo: Saraiva, 3ª edição, 2022. 3 Apelação Cível 1000348-35.2024.8.26.0236, da Comarca de Ibitinga, relator Desembargador Francisco Loureiro. 4 Art. 1.657: "as convenções antenupciais não terão efeito perante terceiros senão depois de registradas, em livro especial, pelo oficial do Registro de Imóveis do domicílio dos cônjuges". 5 Art. 244 - "as escrituras antenupciais serão registradas no livro 3 do cartório do domicílio conjugal, sem prejuízo de sua averbação obrigatória no lugar da situação dos imóveis de propriedade do casal, ou dos que forem sendo adquiridos e sujeitos a regime de bens diverso do comum, com a declaração das respectivas cláusulas, para ciência de terceiros".
O direito à identidade Aprendemos logo no início da faculdade que onde há sociedade, há Direito, e vice-versa. Trata-se de uma relação inescapável. Sendo assim, e considerando que a sociedade está em constante mudança (evolução?), o Direito também muda constantemente. Uma das principais mudanças pelas quais passou o Direito Civil nos últimos tempos, agora já não mais representando novidade a ninguém, é a chamada despatrimonialização. Sobretudo por conta da supremacia da dignidade da pessoa humana, prevista como princípio supremo em diversas constituições do Ocidente, no pós-guerra, inclusive a brasileira, o Direito Civil deixou de dar ênfase às situações patrimoniais. Uma dessas marcas é a previsão de um tópico exclusivo para tratar dos direitos da personalidade no CC/02. Esses direitos deixaram de ser tutelados apenas indiretamente, por meio da imposição de sanções civis ou penais a ofensas ou ameaças a eles, como ocorria sob a égide do CC/16, e passaram a ser previstos e, consequentemente, tutelados de forma direta, preferencialmente de modo preventivo. Consoante lição de Menezes Cordeiro, condicionamentos histórico-culturais determinam a possibilidade de serem isolados atributos da personalidade. 1 Por vezes, como sabemos, esses condicionamentos levam à positivação de certos direitos, como ocorreu com os direitos ao nome e à vida privada no CC/02. Outras vezes, eles não permitem que se chegue a esse ponto, de tal modo que o reconhecimento de um direito da personalidade depende da aceitação da ideia de que certo atributo possa ser tutelado, independentemente dessa positivação. No Brasil, aparentemente, prevalece a noção de que existe norma que permite a tutela a personalidade como um todo. Maria Celina Bodin de Moraes, por exemplo, diz que o art. 1º, inc. III, da CF/88, a que nos referimos acima, é justamente a cláusula geral dos direitos da personalidade. 2 Fernanda Cantali, por sua vez, afirma que o art. 12 do CC é a norma que prevê o direito geral da personalidade. 3 Sob esse prisma, o direito à identidade pode ser extraído do nosso sistema jurídico como um direito da personalidade. Não apenas o direito à identidade com viés publicista, para fins de controle e organização do Estado, como é o caso do nome, mas outros aspectos dessa identidade, como é o caso da identidade religiosa, enquanto visão de mundo (Weltanschauung) que ela também representa. A propósito, vale mencionarmos uma lição de Charles Taylor, professor emérito de Filosofia e Ciência Política na Universidade de McGill, acerca da identidade de que estamos tratando: "Minha identidade é definida pelos compromissos e identificações que proporcionam a estrutura ou o horizonte em cujo âmbito posso tentar determinar aquilo que endosso ou a que me oponho. Em outros termos, trata-se do horizonte dentro do qual sou capaz de tomar uma decisão". 4 Um caso emblemático de identidade religiosa  Em virtude das limitações deste espaço, vamos nos limitar a dizer que a identidade religiosa é uma das espécies de direito à identidade porque representa justamente uma visão de mundo, consoante mencionamos acima, ou seja, uma lente através da qual a pessoa pensa e toma as suas decisões. Dito isso, examinemos, à guisa de exemplo, o caso envolvendo a "Associação Centro Dom Bosco de Fé e Cultura", doravante denominada apenas "associação", e as "Católicas pelo Direito de Decidir", doravante chamada apenas "coletivo". A associação ajuizou ação objetivando impedir os integrantes do coletivo de usarem justamente o termo "católicas", uma vez que defenderiam a descriminalização e legalização do aborto. Em suma, como elas não seriam católicas, não poderiam autointitularem-se desse modo. Em primeira instância, o processo foi extinto por ilegitimidade ativa, visto que a referida associação não teria legitimidade para postular isso em juízo; somente a autoridade eclesiástica o teria. Julgando a apelação interposta pela referida associação, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo deu provimento ao recurso 5 para, no mérito, proibir o supracitado coletivo de utilizar o termo "católicas", pois estariam fazendo uso dele de forma abusiva, nos termos do art. 187 do CC. Reproduzimos abaixo breve trecho da ementa apenas para facilitar a compreensão do leitor: "EMENTA: AÇÃO DECLARATÓRIA - ASSOCIAÇÃO - Abstenção do uso da expressão "Católicas" no nome - Atuação e finalidade da associação requerida que revelam PÚBLICA E NOTÓRIA incompatibilidade com os valores adotados pela associação autora e pela Igreja Católica de modo geral - Violação à moral e bons costumes, havendo evidente contrariedade ao bem e interesses públicos, valores expressamente tutelados pela LEI DOS REGISTROS PÚBLICOS (Inteligência do artigo 115 da lei 6.015/73, que inclusive veda o registro de ato constitutivo de pessoa jurídica em tais circunstâncias) - Preservação de tal nome em associação que para além de ferir notoriamente o Direito Canônico, se traduz em inegável desserviço à sociedade, não interessando a quem quer que seja a existência de grupo com nome que não corresponda a sua autêntica finalidade - Incidência do art. 5º da LEI DE INTRODUÇÃO ÀS NORMAS DO DIREITO BRASILEIRO, segundo o qual na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum - Violação, ademais, ao artigo 7º do DECRETO Nº 7.107/2010, segundo o qual A REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL ASSEGURA, NOS TERMOS DO SEU ORDENAMENTO JURÍDICO, AS MEDIDAS NECESSÁRIAS PARA GARANTIR A PROTEÇÃO DOS LUGARES DE CULTO DA IGREJA CATÓLICA E DE SUAS LITURGIAS, SÍMBOLOS, IMAGENS E OBJETOS CULTUAIS, CONTRA TODA FORMA DE VIOLAÇÃO, DESRESPEITO E USO ILEGÍTIMO - Liberdade de expressão que não estará minimamente prejudicada, podendo a associação requerida defender seus valores (inclusive o aborto) como bem entender, desde que utilize nome coerente, sem se apresentar à sociedade com nome de instituição outra que adota pública e notoriamente valores flagrantemente opostos - Titular de direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes que também pratica ato ilícito (ARTIGO 187 DO CÓDIGO CIVIL)." A decisão chamou a atenção de vários operadores do Direito, tanto que foi objeto de artigo escrito neste mesmo site em 4/11/20. Em artigo intitulado "No Estado laico, juiz não pode atuar como intérprete da fé", Maíra Fernandes teceu críticas à decisão tomada. Mas o caso não terminou por aí. Foi interposto novo recurso e em 30/8/22 o STJ reverteu o julgamento acima para reafirmar o entendimento do juízo de primeiro grau, isto é, que a associação não tem mesmo legitimidade para ajuizar a ação postulando o não uso do termo "católicas". Destacamos, novamente, um trecho da ementa do julgado para a melhor compreensão do leitor: "5. Na hipótese dos autos, carece a parte autora de legitimidade ativa na medida em que inexiste qualquer relação jurídica de direito material entre as partes que justifique o ajuizamento da presente ação, sendo certo que, ao menos a partir do exame abstrato das alegações deduzidas na inicial, quem teria, em tese, ligação direta com o direito material deduzido em juízo não seria a associação de fiéis, mas a própria organização religiosa, que é pessoa jurídica de direito privado autônoma e titular da própria esfera jurídica, nos termos do inciso IV, do art. 44, do Código Civil." 6 Na sequência, outro artigo sobre o tema foi publicado neste site, a demonstrar que se trata de matéria relevante no âmbito jurídico Uma breve reflexão a partir do julgado Esse caso nos permite pensar um pouco sobre o direito à identidade enquanto direito da personalidade. Segundo Appiah, as identidades coletivas constroem os rótulos dos quais nos apropriamos e a partir dessa apropriação construímos aquilo se incorpora à nossa identidade individual. Dito isso, ele questiona se seria possível aceitar que apenas os próprios titulares da identidade pudessem defini-la. Por exemplo, somente negros poderiam definir o que é ser negro (significado do rótulo e suas circunstâncias)? 7 A sua resposta é negativa. Por primeiro, pois o reconhecimento alheio é sempre fonte de significado (problema externo). Por segundo, pois ainda que se aceitasse isso, o problema não restaria substancialmente resolvido, visto que os titulares da identidade precisariam do reconhecimento dos demais titulares (problema interno). E se houvesse divergência entre esses titulares? 8 Expurgados alguns que certamente não poderiam utilizar o rótulo porque não se adequariam ao conceito da maioria, o problema passaria a ser entre essa maioria e a outra minoria remanescente, e assim sucessivamente. É um círculo vicioso que conduziria a um esvaziamento do rótulo. Sendo assim, malgrado possa haver conflito interno entre os pretensos titulares do rótulo que se pretenda tratar, no caso, de cunho religioso, não seria dado a alguns, ainda que componham a maioria, simplesmente definir quem e por que alguns devem integrar o grupo. Cuida-se de um dilema que poderíamos chamar de "bacamartiano", em homenagens ao médico psiquiatra do famoso livro de Machado de Assis, O Alienista, que de tanto internar as pessoas no manicômio que havia criado, acaba esvaziando a cidade. Conclusão Uma das principais características dos direitos da personalidade é que eles, em geral, segundo a doutrina, têm natureza erga omnes; são considerados absolutos. Entenda-se: geram obrigação passiva universal, assim como ocorre com os direitos reais. Ocorre que, no caso de certas espécies de direito à identidade, nomeadamente aquelas ligadas à supracitada visão de mundo, pode não haver exclusividade na titularidade do direito ao uso de determinado rótulo. Devem ser aceitas divergências internas entre os variados integrantes do grupo, somente sendo cabível cogitar de abuso de direito ligado ao direito à identidade, como é o caso da liberdade de expressão conectada ao direito à identidade religiosa, se ele é absolutamente claro e induvidoso 9. Do contrário, todos devem ter lugar de fala. ___________ 1. CORDEIRO, António Menezes. Tratado de direito civil. 5. ed., rev. e atual.: Pessoas. Lisboa: Almedina, 2019, v. IV, p.107. 2. BODIN DE MORAES, Maria Celina. Ampliando os direitos da personalidade. Na medida da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 125. 3. CANTALI, Fernanda. Direitos da personalidade: disponibilidade relativa, autonomia privada e dignidade humana. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 94/95. 4. TAYLOR, Charles. As fontes do self: a construção da identidade moderna. Tradução Adail. U. Sobral e Dinah de A. Azevedo. São Paulo: Loyola, 1977, p. 44. 5. Brasil. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo - Apelação Cível n. 1071628-96.2018.8.26.0100 - 2ª Câmara de Direito Privado - rel. Des. José Carlos Ferreira Alves - j. 20/10/2020. 6. Brasil. Superior Tribunal de Justiça - Recurso Especial n. 1.961.729-SP - 3ª Turma - rel. Minª. Nancy Andrighi. j. 30/08/2022. 7. APPIAH, K. Anthony. The ethics of identity. New Jersey: Princeton University Press, 2005, p. 64/65. 8. APPIAH, K. Anthony. The ethics of identity. New Jersey: Princeton University Press, 2005, p. 106/110. 9. "São facilmente criticáveis aquelas concepções que, para salvar a noção de direito subjetivo, identificam, no poder da vontade que se exprime de forma arbitrária e absoluta, o princípio; e, nos limites, a exceção. Por exemplo, quem é proprietário de um terreno só pode construir a determinadas distâncias da rua e das estradas; (...) O enfoque não é correto. No vigente ordenamento não existe um direito subjetivo - propriedade privada, crédito, usufruto - ilimitado, atribuído ao exclusivo interesse do sujeito, de modo tal que possa ser configurado como entidade pré-dada, isto é, preexistente ao ordenamento e que deva ser levada em consideração enquanto conceito, ou noção, transmitido de geração em geração. O que existe é um interesse juridicamente tutelado, uma situação jurídica que já em si mesma encerra limitações para o titular. Os chamados limites externos, de um ponto de vista lógico, não seguem a existência do princípio (direito subjetivo), mas nascem junto com ele e constituem seu aspecto qualitativo. O ordenamento tutela um interesse somente enquanto atender àquelas razões, também de natureza coletiva, garantidas com a técnica das limitações e dos vínculos. Os limites que se definem externos ao direito, na realidade não modificam o interesse pelo externo, mas contribuem à identificação da sua essência, da sua função". (PERLINGIERI, Pietro. Perfis de Direito Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.121)
Para além do § 1º do art. 1º da lei 9.492/97, a recém editada Resolução CNJ 547/24 fez inserir, em caráter definitivo, o protesto da CDA - Certidão de Dívida Ativa - no contexto macro de recuperação do crédito tributário inadimplido. Com ela, os tabelionatos de protesto passam a desempenhar papel de grande relevância no cenário da arrecadação e cobrança da dívida ativa tributária e não tributária, em todas as esferas da administração pública do país. Mas há uma questão delicada a ser enfrentada em futuro bem próximo. Um pequeno elefante na sala que, em breve, não passará mais despercebido: o exercício privado da atividade púbica desempenhada pelos Tabelionatos e a necessidade de sobrevivência dos entes delegados através de uma justa e adequada remuneração pelos serviços efetivamente prestados e pela reconhecida eficiência nos resultados alcançados através do seu trabalho. Antes, porém, duas premissas precisam ser estabelecidas: a primeira delas, referente ao caráter altamente "desjudicializante" do protesto de títulos e, a segunda, relacionada ao que um tabelionato de protesto definitivamente NÃO É: empresa de cobrança remunerada através do êxito (circunstancial) no recebimento do crédito. Quanto à primeira das premissas, pode-se afirmar, sem sombra de dúvidas, que não há nenhuma atividade extrajudicial que seja mais desjudicializante do que o protesto de títulos. Explica-se: uma vez intimado o devedor e não tendo sido paga a dívida no tríduo legal, lavra-se o protesto e, a partir daí, a única alternativa que remanesce ao credor é o ajuizamento de uma ação de cobrança ou de execução extrajudicial. A constatação, portanto, é óbvia e necessária: a cada título que é quitado em um Tabelionato de Protesto corresponderá, necessariamente, menos uma ação judicial deflagrada para a cobrança desse crédito. Repita-se: cada dívida paga é menos um processo emperrando a já assoberbada máquina judicial. Desta forma, os Tabelionatos de Protesto do país seguem firme ao lado do Poder Judiciário na verdadeira cruzada para reduzir o estoque alarmante de processos no país e reduzir a taxa de congestionamento do Judiciário. A parceria, na exata dicção da Resolução CNJ 547/2024 e do que ela propõe, nunca esteve tão forte, o que é motivo de orgulho para todo o seguimento. A segunda das premissas, porém, é: os tabelionatos de protesto não atuam como empresas de cobrança, vale dizer, não são remunerados por percentuais aplicados sobre o total arrecadado (em média de mercado que oscila entre 20% e 30% do valor recebido). Tabelionatos desempenham atividade pública, porém em caráter privado. Não há taxa de "êxito" ou taxa de "sucesso" no seu rol de serviços. São remunerados por emolumentos, que são integralmente devidos na exata medida em que todo o procedimento previsto em lei tiver sido observado pelo Serviço Delegado. Se o cartório desempenhou toda a sua função, se observou todo o procedimento que a lei lhe exige, deve ser portanto integralmente remunerado por isso, independentemente do pagamento pelo devedor. Quem deve assumir o "risco" da inadimplência é o credor e a empresa de cobrança eventualmente contratada por ele, não o ente delegado, que nada tem com isso. Esta segunda premissa traz uma consequência inafastável e que deve representar uma mudança na visão e na forma como o trabalho desempenhado pelos tabelionatos de protesto deve ser visto: Se não é o ente delegado que cria/constitui o título, se não é ele quem escolhe a forma de cobrança (call center, "negativação" direta ou qualquer outro meio), se não é o cartório que mantém uma base de dados atualizada e "higienizada" sobre os devedores, se o cartório não tem, enfim, NENHUMA ingerência sobre a formação do título ou como e quando ele vai ser cobrado, não faz nenhum sentido lógico ou jurídico que o serviço efetiva e integralmente prestado somente seja remunerado SE o devedor efetuar o pagamento da dívida. Essa é a forma de atuação de empresas de cobrança que, repita-se, optam por assumir o risco de prestar o serviço sem receber por isso, mas assim agem por cobrarem percentuais robustos sobre o êxito eventualmente alcançado. Cartórios de protesto não são empresas de cobrança e, por desempenharem atividade pública, têm seus emolumentos fixados em lei, que devem ser pagos quando o serviço for prestado. Há uma doutrina inteira de Direito Administrativo a sustentar a tese... A questão assume contornos ainda mais dramáticos quando se está a tratar especificamente da cobrança de créditos públicos, vale dizer, do protesto das Certidões de Dívida Ativa, objeto da Resolução CNJ 547/2024. Por inúmeras razões, dentre os quais a alta carga tributária do país (e sempre crescendo), a natureza de "rejeição social" da norma que obriga ao pagamento de impostos, além (principalmente) da péssima gestão que fazem as Fazendas Públicas (com raras e honrosas exceções) sobre os créditos que têm a receber, o índice de pagamento de CDAs no protesto é baixíssimo. Repita-se uma vez mais: por culpa exclusivamente do credor, não tendo o tabelionato de protesto nenhuma ingerência sobre os procedimentos administrativos prévios de cobrança deste crédito tributário. Se o Conselho Nacional de Justiça, diante das circunstâncias apresentadas, vê como alvissareira a utilização do protesto ao invés da execução fiscal, tendo em vista que o protesto apresenta, nestes casos, uma média de 20% de recuperação face ao percentual de êxito de uma execução fiscal (em torno de 2%), o fato é que, se para o ente público recuperar 20 em cada 100 títulos é motivo de júbilo, para o Tabelionato de Protesto significa dizer que em cada 100 serviços integralmente prestados, em 80 deles o trabalho foi feito de forma absolutamente gratuita. Todo o custo da operação, em 80 (!) de 100 casos, foi integralmente assumido pelo Tabelionato de Protesto, na tentativa de recuperar o crédito público (de toda a sociedade), incrementar a arrecadação pública (de toda a sociedade) e diminuir os processos em curso na Justiça. Mas por que deve fazê-lo de forma gratuita, se o serviço foi integralmente prestado? Por que somente os Tabelionatos de Protesto devem prestar gratuitamente seus serviços se toda a sociedade é beneficiada? A inserção dos Tabelionatos de Protesto na esteira da recuperação do crédito tributário traz ainda um outro paradoxo. Todos os personagens envolvidos no ciclo de cobrança dos créditos tributários, desde o seu nascedouro (lançamento tributário) até os últimos esforços para o seu recebimento (processo de execução) são devidamente remunerados através de verba orçamentária própria, independentemente do sucesso ou insucesso, da eficiência ou ineficiência do seu trabalho dedicado à arrecadaçao. Absolutamente nenhuma dessas personagens depende da adimplência do contribuinte para receber os valores que lhes são devidos pelo seu justo trabalho. A título ilustrativo, os Secretários de Fazenda, os servidores públicos administrativos das Secretarias (e outros órgãos de arrecadação) não dependem do efetivo pagamento do tributo para serem remunerados pelo seu trabalho. As Procuradorias, seus Procuradores (Federais, estaduais, municipais, autárquicos etc.) e seu quadro funcional igualmente não dependem do efetivo pagamento do tributo pelo contribuinte. Os Magistrados e os serventuários da justiça afetos aos processos de execução fiscal não dependem, igualmente, do pagamento do tributo para terem acesso à justa remuneração pelo trabalho de excelência que prestam. A pergunta que remanesce (já a essa altura óbvia) é: por que apenas o tabelionato de protesto, que desempenha atividade pública, vai receber os seus emolumentos apenas SE E SOMENTE SE o contribuinte efetuar o pagamento da dívida? Titulos com baixíssimo índice de recuperação têm sido apresentados a protesto por órgãos públicos ávidos por colocarem fim aos inúmeros processos de execução fiscal pendentes. Apesar de a Resolução CNJ 547/24 não condicionar a extinção da execução ao prévio protesto (não confundir com o fato de o protesto ser requisito para NOVAS execuções), o fato é que, a título de exemplo, no Rio de Janeiro, Tabelionatos de Protesto receberam CDAs contra as empresas Mesbla, Ultralar e Arapuã. São situações reais, concretas, que estão longe de constituirem mera exceção ou esgarçamento da regra. O afã de se extinguirem execuções fiscais leva necessariamente à apresentação de títulos (CDAs) que se apresentam irrecuperáveis, fazendo com que os Tabelionatos de Prostesto tenham altos custos operacionais e, apesar de desempenharem integralmente a sua atividade, apesar de prestem integralmente o seu serviço, não recebam nenhum tipo de remuneração por isso. Não existe gratuidade sem fonte de custeio. Não se pode exigir o trabalho gratuito de quem quer que seja, esperando-se que aquele percentual (ínfimo) de recebimento compense todo o trabalho que foi desenvolvido e entregue de forma gratuita. Não existe recebimento "condicionado" de emolumentos. Comparativamente, os Registros Civis de Pessoas Naturais, os chamados "ofícios da cidadania", são obrigados por lei a fornecer gratuitamente inúmeras certidões de nascimento e óbito, além de diversos outros atos que praticam em benefício dos mais necessitados. Um belo trabalho desempenhado por estes entes delegados. Mas para fazer frente a estas gratuidades, foram criados, em todo o país, fundos de compensação, fundos de ressarcimento para estes atos gratuitos. E é assim que deve ser. Não custa lembrar e repetir à exaustão: Não existe gratuidade sem fonte de custeio. O legislador, ao criar gratuidades, não pode exigir que aqueles que desempenham atividades em caráter privado, assumam todos os encargos financeiros para permitirem que aquele serviço seja prestado. É exatamente isso que está agora acontecendo com os Tabelionatos de Protesto, com sua saúde e sua viabilidade financeira seriamente comprometidas, por estarem assumindo a cobrança estatal dos créditos públicos, através do protesto da Dívida Ativa, sem a devida e correspondente remuneração por isso. A situação, especialmente em pequenos cartórios do interior do país, pode se revelar bastante grave. É preciso refletir muito seriamente sobre essa questão ou ela, como um monstro, nos engolirá a todos. O elefante está na sala. E crescendo..
"Siendo un oficio el de escribano, sin el cual andaría la verdad por el mundo a sombra de tejados, corrida y maltratada; y así dice el eclesiástico: in manu Dei prosperitas hominis, et super faciem scribae imponet honorem suum" Miguel de Cervantes Há uma confusão recorrente, em especial para quem não tem familiaridade com temas ligados aos serviços extrajudiciais, entre a fé pública notarial e a registral. Em decorrência da filiação comum dos "órgãos da fé pública" 1ao mesmo dispositivo constitucional2, bem como da estruturação rudimentar dada por uma mesma norma organizadora3, as duas funções aparecem muitas vezes amalgamadas no cognome comum de "cartórios". Contribui para tal situação, o fato de o art. 52 da lei 8.935/94, ao organizar as competências registrais e notariais, ter garantido a algumas especialidades registrais a continuidade de exercício, em alguns estados da federação, de certas funções notariais, donde ser possível, por exemplo, no Estado de São Paulo, praticar o ato de reconhecimento de firmas - tipicamente notarial - junto aos registradores civis.  Aos olhos do cidadão incauto, qualquer cartório, seja aquele onde se casa e se registram filhos, seja aquele onde se assinam escrituras e se fazem testamentos, teria as mesmas atribuições. O fato de se poder reconhecer firmas em ambos assim o comprovaria. E não há que se negar que o reconhecimento de firma é, por metonímia, a representação do serviço supostamente prestado por todos os cartórios e especialidades frente à população em geral, como se o fim último de todos os cartórios fosse tão somente o reconhecimento de firmas - paradoxalmente, ato que vem se tornando cada vez mais subsidiário no dia a dia notarial, a despeito de iniciativas de mercado e de especialidades registrais que procuram desenvolver seus próprios produtos concorrentes com as mesmas funções. Esse tipo de confusão leiga é, todavia, eventual e surpreendentemente, reproduzida também no próprio mundo jurídico especializado, por seus operadores e reguladores, os quais deveriam ser, ao contrário, os primeiros a velar pela coerência do sistema extrajudicial.  É salutar, assim, de quando em quando, descer aos princípios e estruturas formadores das diferentes instituições para afastar ideias que exsurgem "fora do lugar" e que acabam por gerar mais confusão e perplexidade, em detrimento das próprias funções que, bem diferenciadas, prestam um "output" mais eficiente. Apesar de herdeiras de um arcabouço normativo comum no país, a atividade registral e a notarial em muito se diferem, muito antes da própria existência de sua ordenação em solo brasileiro.  É exatamente essa diferença secular, tributária de um desenvolvimento histórico longevo, que conforma cada instituição, e que, nas palavras de Reinhard Zimmermann, citando Savigny, faz com que não haja algo como uma "autonomous human existence entirely isolated from the past", pelo que "we cannot freely fashion our own existence, including our laws"4. Nesse sentido, a história da função notarial é, em grande medida, a história da diferenciação entre as provas testemunhal e documental. O gérmen da fé pública notarial se encontra, nos primórdios, no processo probatório judicial, tendo sua eficácia intrinsecamente vinculada ao desenvolvimento da prova documental que, pouco a pouco, veio a substituir as declarações testemunhais de seus autores. Pode se traçar os albores de tal evolução na constituição LXXVI de Justiniano5, diferenciando os documentos particulares dos documentos produzidos ante o tabellio romano, sendo este último alcunhado de "abuelito" do notário moderno6.  Em referida constituição se estatui que o documento privado deveria ser firmado por testemunhas, em número mínimo de 3, e que, em caso de contestação, deveriam ser tais testemunhas chamadas a depor em juízo, demonstrando, assim, que a fé do documento privado não seria maior do que aquela que merecessem as pessoas - partes e testemunhas - que o firmassem. Em outras palavras, o limite da força probatória do documento privado se dava nos mesmos exatos limites da capacidade da prova testemunhal que o defendesse. Por sua vez, embora o documento notarial também devesse ser firmado por testemunhas, já apontava o ato do imperador que, morto o notário que confeccionou a escritura, e não tendo sido assinada por testemunhas, ainda assim deveria receber alguma fé. É, por assim dizer, a ancestral da fé pública notarial. Pouco a pouco, a confiança do aparato estatal judicial sai da pessoa responsável pela realização do documento e se transfere à função pública de produção de documentos, e, nesse momento, em específico, com a objetivação da função frente à pessoa, tal confiança recai sobre o documento público produzido no exercício da referida função. Tanto notários quanto, posteriormente, registradores têm uma qualidade em comum consistente em produzir documentos com o selo da fé pública, o que significa que os documentos atestados no exercício de tais funções fazem prova por si bastante - "prova plena", dirá o art. 215 do CC em relação às escrituras públicas -, não necessitando de outros meios de prova para atestar aquilo que a própria lei determina que seja considerado conforme o estado em que atestado por tais funcionários no exercício de suas funções.  Ora, não haveria qualquer sentido em se organizar todo um aparato estatal com a função especial de se fornecerem informações confiáveis - "fé pública" -, se a autoridade judicial pudesse a qualquer momento afastar essa informação com base em uma livre valoração que não tomasse previamente para si a específica questão de se negar, no caso concreto, a presunção de legitimidade de tais documentos. Um juiz que simplesmente ignora um documento produzido com fé pública, sem antes destruir a fé pública de tal documento em decisão adequada e especificamente fundamentada, não está decidindo contra o funcionário, pessoa que o produziu, mas, sim, contra a própria lei que atribuiu a tal documento eficácia especial7.  A organização notarial e registral permite que situações de direito nem sempre imediatamente observáveis na realidade física das coisas - e assim, por exemplo, a propriedade, em contraposição à posse - possam receber respostas rápidas e confiáveis por meio do documento notarial ou registral - por ex. a matrícula do imóvel.  Embora possuam a mesma função e eficácia - fato que talvez seja o gérmen de toda a confusão -, a fé pública registral e a fé pública notarial possuem diversas estruturas, objetos e modos de atuação. E é da adequada coordenação entre ambas que o sistema extrai o melhor de suas qualidades. Em relação à estrutura, a fé pública notarial opera segundo a clássica regra do visis et auditis suis sensibus. O notário só dá fé daquilo que vê e ouve por seus próprios sentidos. Em comparação ao processo de cognição judicial, que é retrospectivo e se faz de forma mediada, tomando o juiz conhecimento do caso a partir de documentos produzidos por outras pessoas e fatos por outras testemunhas presenciados, a cognição notarial é sempre simultânea ao acontecimento e imediata aos fatos. Trata-se do princípio da imediação8, o qual, junto da forma e do protocolo,"han hecho al notariado"9. Segundo Rafael Nuñez Lagos, "al Derecho Notarial incumbe más que ningún otro el principio de la inmediación. La presencia física, directa, inmediata de las personas (comparecencia) y de las cosas (exhibición), es la base del Derecho Notarial"10.  A imediação enquanto base da fé pública notarial remonta novamente à fase romana, na qual a contratação ritualística solene se dava de forma oral perante o notário que era então encarregado de reduzir a escrito, em especial a partir da fase pós-clássica, os exatos termos daquilo que viu e ouviu acontecendo a sua frente. É nesse sentido que as escrituras eram redigidas, até a alteração promovida em Bolonha por Rolandino11, na primeira pessoa:"Eu, fulano de tal, prometo...". Em síntese, em princípio, todas as "escrituras" eram, na verdade, atas, e as atas formam a base da fé pública notarial até hoje. Mesmo após toda a longa evolução histórica que trouxe o notário do papel de narrador privilegiado para o de verdadeiro consultor jurídico e confeccionador do negócio escriturado, toda escritura conserva ainda muito de ata. Assim, na clássica abertura "saibam quantos a presente virem, que na data de..., em..., compareceram...", tem-se, nada mais, do que uma pequena ata ainda narrativa dos fatos que darão base ao contrato na parte ulterior e negocial das escrituras. Nesses termos, se em toda escritura existe uma parte "ata", por óbvio, não pode lavrar escrituras, quem não é capaz de confeccionar atas. Por sua vez, a fé pública registral se dá especificamente sobre o próprio acervo do registrador. Este não presencia os fatos narrados nos títulos que publica (leia-se, registra). A certidão do ato registral é uma certidão sobre o que foi inscrito e se encontra nos livros registrais, não sobre o fato narrado no título a ele apresentado para tal inscrição, que ele sequer presenciou. A imediação é princípio notarial, não registral, e disso decorrem as diferentes formas de operacionalização das fés públicas. Essa específica diferença é bastante clara, por exemplo, na forma como se registram fatos - não negócios - na tábula registral. Nenhum registrador civil precisa presenciar os nascimentos que publica em seu livro "A", nem tampouco tem qualquer contato com os fatos que ocasionam o óbito devidamente inscrito no livro "C". Toda a fé pública dos livros de registro civil indicados se baseia em títulos que sejam adequadamente confiáveis e controlados - a declaração de nascido vivo e a declaração de óbito - mas que não foram produzidos pelo registrador. Em sentido diverso, nenhum notário poderia jamais atestar o nascimento de uma pessoa se não o presenciasse por seus próprios sentidos. É dessa presença imediata do notário frente aos fatos, mas apenas mediata do registrador por meio de seus registros, que Vicente de Abreu Amadei declara que "em sede de fé pública - desculpem-me os Registradores - mas a primazia é dos Notários, pois neles, mais do que em qualquer outro profissional, a fé pública é seu princípio, seu meio e seu fim. (...) Os Tabeliães - e só eles - têm vocação testemunhal; os Registradores, não.12"  É certo que tanto o registro imobiliário, quanto o tabelionato de notas estão destinados à segurança jurídica, mas não do mesmo modo. Nos dizeres de Ricardo Dip, "o notário dirige-se predominantemente a realizar a segurança dinâmica; o registrador, a segurança estática; o notário, expressando um dictum - conselheiro das partes, cujo actum busca exprimir como representação de uma verdade e para a prevenção de litígios; de que segue sua livre eleição pelos contratantes, porque o notário é partícipe da elaboração consensual do direito; diversamente, o registrador não exercita a função prudencial de acautelar o actum, mas apenas a de publicar o dictum, o que torna despicienda a liberdade de sua escolha pelas partes: o registrador não configura a determinação negocial.13"  Essa é, em síntese, a base do sistema de "título e modo", no qual a instância que publica os títulos, não é aquela que os confecciona. Tampouco a instância que confecciona os títulos tem poder para, sozinha, trazer a eles os efeitos específicos da publicidade registral14. Da adequada interação entre ambas as instâncias surgem externalidades positivas que vão por sua vez às raízes de todo o sistema, justificando, por exemplo, que o notário seja de livre escolha do cidadão, mas o registro vinculado15.  Ademais, em um sistema em que os vícios eventuais do título transcendem à tábula registral - diga-se, um registro "causal" -, não sendo a publicidade suficiente para sanar defeitos não expressos no registro, avulta a importância de que o momento de formação do título, não presenciado pelo agente de sua publicidade (o registrador), seja especialmente protegido de eventuais contestações futuras - exatamente, o papel do notário. De nada adiantaria se ter um bom registro em termos de publicidade se os títulos publicados fossem, intrinsecamente, contestáveis. A separação de funções e diferentes formas de fé pública conformam, assim, não apenas a atividade individual de cada especialidade, mas todo o sistema em que imbricados os notários e registradores. As confusões conceituais que eventualmente surgem na matéria, trazendo aos registradores funções intrinsecamente notariais, ou ao contrário, aos notários funções publicitárias, são, mais do que uma questão individual de cada especialidade "atacada", um desmonte de um sistema estruturado e finamente sintonizado que, no limite, se reverte em prejuízo a toda a população. Compreendidas, de forma apropriada, as similitudes e distinções entre as atividades notariais e de registro, bem se perceberá a vocação notarial para a viabilização de prazo de reflexão aos declarantes e para o aconselhamento tendente a reduzir assimetrias informacionais; ao passo que a vocação registral está mais ligada à publicização de atos e à viabilização de que terceiros tenham conhecimento sobre uma determinada situação jurídica. ___________ 1 Como na referência clássica: ALMEIDA JR. João Mendes. Orgams da Fé Pública. In: Revista da Faculdade de Direito de São Paulo. Vol. V. p. 7 a 114 e vol. VI, p. 7 a 113. São Paulo: Espíndola, Siqueira & Campos, 1897. 2 Art. 236 da Constituição Federal. 3 Lei 8.935/94 - "Lei dos Notários e Registradores" 4 ZIMMERMANN, Reinhard. Roman Law, Contemporary Law, European Law. The Civilian Tradition Today.  Oxford: Oxford University Press, 2001. p.109 5 Entre outros temas afeitos ao dia a dia notarial, já apontava referida norma que "Non enim ita quis scribit iuvenis et robustus, ac senex et forte tremens", traçando a dificuldade em se manter o mesmo padrão de assinatura ao longo da vida, bem como a necessidade de maiores cuidados formais para os instrumentos firmados pelos iletrados - passando as testemunhas de 3 para 5 -, cuidado esse, contudo, que só seria exigido, no caso de contratos com valor superior a uma libra de ouro.  6 NUÑEZ LAGOS, Rafael. Hechos y Derechos en el instrumento público. Madri: Instituto Nacional de Estudios Jurídicos, 1950. p.81 7 V. FALCÃO, Alcino Pinto. Parte Geral do Código Civil. Rio de Janeiro: José Konfino, 1959. p.269.  8 V. ADRADOS, Antonio Rodríguez. Princípios Notariais. Tradução de Gabriela Saciloto Cramer. Diadema: JS Gráfica, 2023. p. 87-98. 9 NUÑEZ LAGOS, R. El derecho notarial. Lima: Gaceta Notarial, 2013. p. 36 10 Idem, ibidem. 11 PASSAGGERI, Rolandino. Aurora. Com os comentários de Pedro de Unzola. Traduzido ao Espanhol por Víctor Vicente Vela e Rafael Nuñez Lagos segundo a versão publicada em 1485. Madri: Colégio Notarial de Madri, 1950. 12 AMADEI, Vicente de Abreu. A fé pública nas notas e nos registros. In: YOSHIDA, Consuelo Ytasuda Moromizato; FIGUEIREDO, Marcelo; AMADEI, Vicente de Abreu. Direito Notarial e Registral avançado. São Paulo: RT, 2014. p.35-53. p. 49-50  13 DIP, Ricardo. Querem matar as notas? In: Registros Públicos e Segurança Jurídica. Porto Alegre: Safe, 1998, pp. 95-96. 14 O que é matizado, contudo, no protesto de títulos, uma ata notarial com efeito publicitário. 15 V. ARRUÑADA, Benito. The economics of Notaries. In: European Journal of Law and economics. Vol 3, 1996. p. 5-37.
1. Introdução Neste artigo, apontamos estes três parâmetros a serem observados para a flexibilização do direito real de habitação vidual1, previsto no art. 1.831 do CC: Proteção do viúvo de avançada idade;  Proteção a longos relacionamentos conjugais ou convivenciais; e  Proteção do viúvo diante de caprichos dos demais herdeiros. Para facilitar, transcrevemos o referido dispositivo: Art. 1.831. Ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar. A reflexão vem em momento oportuno. É que, na terça-feira passada (24/9/24), fruto de elevada sensibilidade e da vasta experiência que singularizam os ministros da 3ª turma do STJ, nasceu interessantíssimo julgado sobre o tema (STJ, REsp 2.151.939/RJ, 3ª turma, relatora ministra Nancy Andrighi, j. 24/9/24). O julgado tratou de uma situação absolutamente excepcional de flexibilização do referido direito vidual, a demonstrar que, por vezes, o magistrado precisa imprimir interpretação restritiva a dispositivos pelo fato de a lei dizer mais do que queria (plus dixit quam voluit).  O caso foi relatado pela experiente ministra Nancy Andrighi e contou com a adesão unânime dos igualmente experientes ministros Humberto Martins, Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro. À vista disso, é extremamente conveniente aprofundar o debate sobre a mitigação do direito real de habitação vidual, especialmente para afastar eventual ilação que leitores mais eufóricos e incautos poderiam tirar no sentido de que o STJ teria infertilizado esse instituto. A esses mais afoitos reportamos uma advertência feita pela ministra Nancy Andrighi durante o seu voto. Após realçar que a flexibilização feita no caso é absolutamente excepcional, fruto das particularidades do caso concreto, a ministra alertou, in verbis: .... eu procurei gravar e fixar bem a excepcionalidade. Para não dizerem que eu estou rechaçando o direito de habitação, (...) eu repeti na ementa duas vezes [a excepcionalidade]. Logo, na excepcional situação examinada, deve-se flexibilizar o direito real de habitação em favor dos herdeiros2.  Passamos a expor os parâmetros a serem observados para a flexibilização do direito real de habitação vidual, levando em conta o recente julgado do STJ. Além da leitura do julgado e de acompanhar a sessão de julgamento, consultamos o inteiro teor dos autos para maior precisão da base fática julgada pelo STJ. Por fim, embora não seja o foco deste artigo, apontamos que, em casos de flexibilização do direito real de habitação vidual, parece-nos absolutamente necessário respeitar o ambiente de dúvida jurídica razoável. Desse modo, somente após a decisão judicial definitiva, é que se poderá invocar qualquer efeito decorrente de posse de boa-fé. Sobre o tema, reportamo-nos a outro artigo nosso3.  2. Parâmetros para a flexibilização do direito real de habitação vidual De modo extremamente excepcional, o direito real de habitação vidual pode ser flexibilizado quando, à luz das particularidades do caso concreto, não coadunar com seu caráter humanitário e social.  É preciso verificar cada caso concreto, pois o afastamento do direito real de habitação vidual é excepcionalíssimo. Não se pode esvaziar hermeneuticamente o texto do art. 1.831 do CC banalizando essa flexibilização, sem que haja uma mudança legislativa efetiva4. Entendemos que três parâmetros devem ser levados em conta:  Proteção do viúvo de avançada idade;  Proteção a longos relacionamentos more uxorio; e  Proteção do viúvo diante de caprichos dos demais herdeiros. O parâmetro da proteção do viúvo de idade avançada veda a mitigação do direito real de habitação quando o viúvo tiver idade avançada, independentemente da condição financeira sua ou dos demais herdeiros.  Para tal efeito, consideramos pessoa de idade avançada aquela com idade superior a 55 anos. Isso, porque essa idade é fruto da média aritmética de três referências legislativas indicativas de idade avançada: a idade mínima do viúvo para a vitaliciedade da pensão por morte5, a idade mínima para aposentadoria6 e a idade indicada pelo Estatuto da Pessoa Idosa7. Trata-se da idade em que a pessoa presumidamente já reclama maior estabilidade patrimonial por conta do próprio ciclo natural da vida. De fato, a proteção da pessoa de idade avançada não é apenas por razões patrimoniais, mas também emocionais e psicológicas. Afastar o direito real de habitação do art. 1.831 do CC para sujeitar uma pessoa de avançada idade ao transtorno de ter de buscar uma nova moradia contraria o próprio caráter humanitário desse direito. Não é razoável acrescer a uma pessoa de idade avançada já combalida pela perda do cônjuge mais uma dor: a de ter de sair da casa em que vivia.  Além disso, considerando que o direito real de habitação se extingue com a morte e tendo em vista a expectativa de vida média dos indivíduos, a verdade é que esse direito do viúvo não representará grande peso aos demais herdeiros. Diferente seria se o viúvo fosse jovem.  Por fim, temos ainda de levar em conta que estamos a tratar de sucessão mortis causa: os demais herdeiros nada estariam a receber se o falecido tivesse sobrevivido mais tempo. Não é razoável forçar interpretação restritiva do art. 1.831 do CC para beneficiá-los em detrimento de quem viveu mais intimamente com o falecido até seu último dia, dedicando-se com trabalhos de cuidado em seu favor. Aliás, a própria conservação do imóvel deve também ser atribuído a esse trabalho invisível (o trabalho de cuidado) exercido pelo viúvo, ainda mais quando se tratar de mulher, que ainda cumula as tarefas de cuidado na prática social brasileira.  O segundo parâmetro é o da proteção a longos relacionamentos more uxorio (conjugais ou convivenciais), segundo o qual não se deve flexibilizar o direito real de habitação do art. 1.831 do CC quando o viúvo tiver mantido um longo relacionamento com o falecido.  Consideramos longo relacionamento aquele com mais de 21 (vinte e um) anos. Isso, porque, presumidamente nesse lapso de tempo, o casal terá dedicado os seus maiores esforços em prol da família, com eventual criação de filho. O tempo de 21 anos é tomado emprestado da legislação previdenciária, que estima essa idade como parâmetro para extinção da pensão devida a filhos menores do casal8.  Nesses casos, é irrelevante se o viúvo tem ou não condições financeiras de arcar com outra moradia.  Isso, por dois principais motivos. De um lado, o direito real de habitação do art. 1.831 do CC protege o vínculo afetivo com um local que guarda memórias profundas da família. Nas palavras de Flávio Tartuce, citado pela ministra Nancy Andrighi, esse direito resguarda o "vínculo afetivo e psicológico estabelecido pelos cônjuges ou companheiros com o imóvel em que, no transcurso de sua convivência, constituíram não apenas uma residência, mas um lar" (voto neste julgado: STJ, REsp 2.151.939/RJ, 3ª turma, relatora ministra Nancy Andrighi, j. 24/9/24). De outro lado, o direito legal é um reconhecimento da sua longa dedicação ao falecido e ao lar. Essa dedicação, inclusive, pode ter colaborado até mesmo para o falecido ter conseguido preservar ou conquistar o patrimônio. De fato, os trabalhos de cuidado não podem ser desprezados pelo direito das sucessões, dentro do paradigma atual de prestígio à economia do cuidado9. Eventual desventura financeira dos demais herdeiros - que presumidamente decorre de suas escolhas ou de sua falta de sorte - não pode ser invocada para derrubar o direito de quem, por longos anos, às custas de sacrifícios pessoais, dedicou-se ao cuidado mais íntimo do falecido.   O terceiro parâmetro é o da proteção do viúvo diante de caprichos dos demais herdeiros.  À luz desse parâmetro, a flexibilização do direito real de habitação não deve acontecer quando os demais herdeiros dispuserem de situação financeira confortável ou quando esses herdeiros estiverem em situação de vulnerabilidade por conta de uma escolha por uma vida de poucas responsabilidades (como no caso de filhos que desprezaram as oportunidades de estudos e de trabalho que receberam de seus pais por preferirem um caminho de menor responsabilidade).  Isso, porque não soa condizente com a equidade forçar uma interpretação restritiva do art. 1.831 do CC para beneficiar o capricho dos demais herdeiros em detrimento do viúvo. É irrelevante se o viúvo também está em condições financeiras confortáveis. Esse parâmetro dialoga com o princípio da proteção simplificada do luxo10, com o princípio de amparo às pessoas vulneráveis11 e com os primados de autonomia privada. 3. Compatibilidade da jurisprudência do STJ com os três parâmetros de flexibilização do direito real de habitação vidual O STJ caminha no sentido acima, conforme o único julgado do STJ que flexibilizou o direito real de habitação (STJ, REsp 2.151.939/RJ, 3ª turma, relatora ministra Nancy Andrighi, j. 24/9/24).  Não é possível generalizar nada, porque só há um julgado do STJ, e a 4ª turma ainda haverá de se manifestar. Seja como for, enxergamos que o referido julgado indica um pendor do STJ em seguir os três parâmetros que indicamos acima.  Nesse julgado, por unanimidade, os ministros rejeitaram o direito real de habitação vidual sobre um imóvel de classe média12 em que a viúva residia com o falecido.  A viúva era uma jovem senhora de 52 anos que não tinha filhos e que havia ficado com uma expressiva e vitalícia pensão por morte (o falecido era procurador Federal) após 16 anos de casamento.  O único bem financeiramente relevante no espólio era esse imóvel, adquirido pelo falecido por herança no curso do casamento13. Com isso, o STJ beneficiou os dois únicos filhos do falecido, que ficaram com a propriedade plena da integralidade do imóvel14. Eles não dispunham de imóvel próprio e viviam de aluguel com os 5 netos (ainda menores de idade à época do falecimento). Foi decisivo, no julgamento, o fato de, ao tempo da abertura da sucessão, tanto o fato de os filhos estarem em situação patrimonial vulnerável quanto o fato de a viúva ser uma jovem senhora com uma pensão vitalícia elevada e com idade próxima aos filhos unilaterais do falecido. Em princípio, como o direito real de habitação só se extinguiria com a morte da viúva, os filhos do falecido dificilmente fruiriam efetivamente do bem que receberam por herança. Entendemos que a flexibilização do direito real de habitação vidual aí observou os três parâmetros que defendemos: (1) a viúva não era pessoa de idade avançada, ou seja, não tinha mais de 55 anos; (2) o seu casamento durou menos de 21 anos; e (3) os demais herdeiros estavam em situação de vulnerabilidade financeira sem que tenha havido capricho deles. __________ 1 A palavra "vidual" significa relativo a viuvez. 2 Fala da ministra durante a sessão de julgamento às 2h21min deste vídeo. Disponível aqui.  3 OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Dúvida jurídica razoável como excludente de responsabilidade civil, de enriquecimento sem causa e de outros remédios contra ilícitos civis: comentários a um julgado do STJ. In: Revista IBERC, v. 3, n. 1, p. 1-19, jan-abr de 2020-P. Disponível aqui. 4 A propósito de eventual mudança legislativa, o Anteprojeto de Reforma do Código Civil (Senado Federal, 2023/24) sugere que o referido dispositivo passe a ser textual em condicionar a subsistência do direito real de habitação do viúvo à sua incapacidade financeira em custear uma moradia digna sem prejuízo do próprio sustento. O texto sugerido é este: Art. 1.831. Ao cônjuge ou ao convivente sobrevivente que residia com o autor da herança ao tempo de sua morte, será assegurado, qualquer que seja o regime de bens e sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação, relativamente ao imóvel que era destinado à moradia da família, desde que seja o único bem a inventariar. § 1º Se ao tempo da morte, viviam juntamente com o casal descendentes incapazes ou com deficiência, bem como ascendentes vulneráveis ou, ainda, as pessoas referidas no art. 1.831-A caput e seus parágrafos deste Código, o direito de habitação há de ser compartilhado por todos. § 2º Cessa o direito quando qualquer um dos titulares do direito à habitação tiver renda ou patrimônio suficiente para manter sua respectiva moradia, ou quando constituir nova família. Disponível aqui. 5 44 anos (art. 222, VII, "6", da lei 8.112/90; art. 77, § 2º, V, "6", da lei 8.213/91). 6 62 anos para mulher e 65 anos para o homem, o que dá uma média de 62,5 anos (art. 40, III; art. 201, § 7º, I, da CF). 7 60 anos (art. 1º da lei 10.741/03). 8 Art. 77, § 2º, II, da lei 8.212/91; art. 221, IV, da lei 8.112/90. 9 Para aprofundamento: Para aprofundamento: OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Economia do Cuidado e Direito de Família: alimentos, guarda, regime de bens, curatela e cuidados voluntários. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, maio 2024. Disponível aqui. 10 OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. O princípio da proteção simplificada do luxo, o princípio da proteção simplificada do agraciado e a responsabilidade civil do generoso. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, Dezembro/2018 (Texto para Discussão nº 254). Disponível aqui. 11 OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Princípio do amparo às pessoas vulneráveis no Direito Civil. Disponível aqui. 12 Tratava-se de um imóvel no famoso bairro Glória, Rio de Janeiro. 13 Dados obtidos dos autos: data do óbito: 15/9/04; Data de nascimento da viúva, do falecido, do filho1 e do filho2: 22/7/52, 21/8/36, 31/1/84 e 13/10/65. Data do casamento: 20/1/88.  14 A Corte de origem não reconheceu direito hereditário à viúva sobre o imóvel, apesar de ela ser casada no regime da comunhão parcial de bens. Adotou entendimento superado do art. 1.829, I, do CC.
Trataremos, de modo objetivo, do que designamos de princípio do amparo às pessoas vulneráveis no Direito Civil. Entre o forte e o fraco, a liberdade escraviza, e o Direito liberta. Essa é uma frase atribuída a Henri Dominique Lacordaire e dá a entender que, para grupos sociais mais vulneráveis, o Direito precisa intervir para protegê-los e até ajudá-los. Essa preocupação está no fundamento do Direito Civil brasileiro por meio do que chamamos de princípio do amparo às pessoas vulneráveis. Como qualquer princípio, ele passa por balanços de ponderação ao chocarem com outros princípios, como o da autonomia privada, tudo de modo a encontrar uma solução justa no caso concreto. Esse princípio consiste em que o Direito deve, sempre que possível e com razoabilidade, proteger e ajudar as pessoas vulneráveis nas relações jurídicas, neutralizando eventual abuso por parte de terceiros em condições pessoais vantajosas e contrabalançando as limitações impostas pelas situações de vulnerabilidade. É claro que esse princípio não se destina a fomentar a irresponsabilidade ou a infantilização das pessoas a pretexto de vulnerabilidade, mas apenas a, com razoabilidade, municiar essas pessoas com instrumentos jurídicos que compensem as dificuldades decorrentes da vulnerabilidade. Nos últimos anos, o Direito Civil, em conjunto com outros ramos, tem lançado os olhos para esse princípio com mais intensidade, do que dão exemplo as várias leis especiais destinadas à garantia dos direitos de pessoas vulneráveis. Do princípio em pauta decorrem diversas consequências práticas no Direito, como estas: O Ministério Público, na condição de fiscal da lei (custos legis), tem o dever de agir em favor de grupos mais vulneráveis em diversas situações, como no caso de pessoa incapaz; A tutela coletiva de direitos por meio dos instrumentos da lei de ação civil pública (lei 7.347/85), como o ajuizamento de feitos para obtenção de decisões de indenização por dano moral coletivo ou de cessação de infrações etc; No caso de pessoas indígenas, o Estatuto da Pessoa Indígena (lei 6.001/73) estabelece diversas regras destinadas à sua proteção; No caso de combate a racismo, há diversas investidas legislativas. Uma delas é a lei 7.716/89, que prevê, como crime, condutas discriminatórias resultantes da raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional; Para a proteção à mulher diante de violência doméstica e familiar, a lei Maria da Penha (lei 11.340/06) estabelece um rito processual multidisciplinar destinado a garantir uma medida protetiva; Verbas trabalhistas, tributários e de investimento na forma da lei 6.858/80 podem ser objeto de pagamento direto. Em outras palavras, não dependem de prévio procedimento judicial ou extrajudicial de inventário ou de arrolamento, o que facilita o acesso dos herdeiros mais vulneráveis a bens essenciais à sua sobrevivência; No caso de internação psiquiátrica de pessoas com transtornos mentais, a lei 10.216/01 assegura garantias mínimas para evitar abusos. Uma dessas garantias é a de, no caso de internação involuntária, o Ministério Público tem de ser notificado para fiscalizar (art. 8º, § 1º); O ordenamento disponibiliza diversos institutos de amparo para viabilizar que pessoas vulneráveis possam praticar atos da vida civil com a maior segurança possível. É o caso, por exemplo, da tutela, curatela, guarda, tomada de decisão apoiada e poder familiar. Há diversas leis destinadas à proteção de pessoas mais vulneráveis em relações contratuais, de modo a prevenir abusos contra elas pela parte mais forte. É o caso do Código de Defesa do Consumidor (lei 8.078/90), da lei do inquilinato (lei 8.245/91), da lei de incorporação imobiliária (lei 4.591/64) etc. Há vários outros exemplos. Deixamos apenas estes, com o objetivo de ilustrar a progressiva preocupação do ordenamento jurídico em efetivar uma sociedade mais justa, que proporcione aos grupos mais vulneráveis uma proteção proporcional e razoável.
O objetivo deste artigo é, de modo sucinto, tratar do que chamamos de princípio da estabilização das situações jurídicas no Direito Civil. A identificação de princípios ou regras fundamentais do Direito Civil são úteis para definir lugares comuns (topoi) que ancoram o legislador, a jurisprudência, a academia e os profissionais do Direito e que colaboram a manter a coerência das soluções jurídicas. Passemos a expor o princípio. O Direito prestigia a segurança jurídica e, consequentemente, a estabilização das situações jurídicas. É excepcional a permissão de desfazimento dessas situações. Trata-se do princípio da estabilização das situações jurídicas. Daí decorrem diversas consequências. Focaremos esse princípio no âmbito do Direito Civil. No caso de situações jurídicas criadas por ato de uma pessoa, a regra geral é a irretratabilidade: a pessoa não pode voltar atrás de sua conduta. Trata-se de regra resumida no brocardo latino electa una via altera non datur (eleita uma via, não é dado alterá-la)1. No jargão popular, a hipótese é espelhada por expressões idiomáticas como "ajoelhou, vai ter de rezar" ou "desceu no play, vai ter de brincar". A retratabilidade é exceção. Além disso, mesmo no caso de invalidade ou ineficácia do ato jurídico, a regra é a tentativa de preservação dos efeitos práticos do ato jurídico, conforme o princípio da conservação do negócio jurídico (um princípio conectado ao princípio da conservação do negócio jurídico). Também decorrem do princípio da estabilização das situações jurídicas as hipóteses de regularização de irregularidades por força do transcurso do tempo ou até mesmo de conceitos abertos, como a boa-fé, a socioafetividade, a prescrição etc. Há diversos exemplos, inclusive em outros ramos do Direito. No Processo Civil, citamos a preclusão consumativa, que impede que a parte refaça um determinado ato processual. Se ela interpôs um recurso, não pode ela querer substituir esse recurso por outro com argumentos adicionais, ainda que o prazo recursal não tenha se esgotado. No Direito Administrativo, há a famosa teoria do fato consumado (também chamada de teoria da consolidação da situação de fato) a desaconselhar o desfazimento de atos administrativos irregulares que, no caso concreto, já tenha consolidado alguma situação fática. No Direito Civil, citamos estes exemplos: escolhido um objeto nas obrigações de dar coisa incerta ou alternativas com cientificação da outra parte (fase da concentração), é vedado alterar o objeto, salvo consentimento da outra parte. O texto do Código Civil é silente, mas a doutrina é pacífica nesse ponto. O fundamento é o princípio da estabilização das situações jurídicas; o herdeiro não pode voltar atrás da aceitação nem da renúncia à herança por força do art. 1.812 do CC; ao celebrar um contrato, a pessoa não pode desfazê-lo por sua mera vontade unilateral, salvo nos casos de permissão legal, ainda que implícita, da lei (resilição unilateral; art. 473, CC), observado eventual dever de pagar multa compensatória ou indenização; as várias aplicações do princípio da conservação do negócio jurídico, como a conversão substancial do negócio jurídico (art. 170, CC), a conversão formal (art. 183, CC), a redução do negócio jurídico (art. 184, CC) e a substituição de fundamento do ato de vontade (tema que detalhamos em outro artigo2). a prescrição e a decadência são exemplos também de estabilização de situações jurídicas diante da inércia do titular de um direito ou de uma pretensão pelo transcurso do tempo. os diversos corolários da boa-fé objetiva, como a proibição do venire contra factum proprium, também respaldam a censura a condutas que contrariam a expectativa gerada por condutas anteriores da pessoa. o usucapião e a costumeira edição de leis de regularização fundiária retratam a estabilização de situações fáticas de ocupações irregulares em razão do transcurso do tempo, da função social e de outros valores jurídicos. ________ 1 Com o mesmo significado, são usuais os seguintes brocardos: electa una via non datur regressus ad alteram ou electa una via non datur recursus ad alteram. 2 OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Considerações sobre os planos dos fatos jurídicos e a "substituição do fundamento do ato de vontade". Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, fevereiro/2020 (Texto para discussão nº 270). Disponível aqui.
Resumo Para facilitar ao leitor, resumimos, em tópico, as principais ideias deste artigo: 1. DIVÓRCIO EXTRAJUDICIAL COM FILHO INCAPAZ OU NASCITURO: só pode ocorrer após as questões conexas do filho incapaz ou do nascituro terem sido resolvidas previamente na via judicial (art. 34, § 2º, Resolução nº 35) (capítulo 2.1.). 1.1. Apesar de essa solução tender a ficar em desuso, trata-se daquilo que o CNJ, dentro do quadro legal atual, considera possível disciplinar por ato infralegal. 1.2. Convém o legislador avançar para afastar a exigência de prévia solução judicial das questões conexas dos filhos incapazes e permitir a solução extrajudicial das questões conexas do filho quando houver manifestação favorável do Ministério Público. 2. ESCRITURA PÚBLICA DE DECLARAÇÃO DE SEPARAÇÃO DE FATO: é título hábil para averbação no assento de casamento e em outros registros públicos ((arts. 3º e 52-A e seguintes da Resolução nº 35). A omissão nessa averbação não pode prejudicar terceiros de boa-fé que, confiando nos registros públicos, ignorem a separação de fato (capítulos 2.2.1. e 2.2.2.). 2.1. Pode tratar de questões conexas do casal (partilha de bens e alimentos entre os consortes separados de fato). 2.2. A separação de fato pode ser provada por outros meios, sem, porém, ensejar averbação no assento de casamento ou em outros registros públicos. 2. ESCRITURA PÚBLICA DE DECLARAÇÃO DE RESTABELECIMENTO DA SOCIEDADE CONJUGAL: é título hábil para averbação no assento de casamento, se tiver havido previamente a averbação da separação de fato (arts. 52-B e 52-C da Resolução nº 35). A omissão nessa averbação não pode prejudicar terceiros de boa-fé que, confiando nos registros públicos, tenha considerado o casal separado de fato (capítulo 2.2.3.). 3. INVENTÁRIO EXTRAJUDICIAL COM TESTAMENTO: só é cabível se a sentença definitiva da ação do testamento tiver autorizado expressamente (art. 12-B da Resolução nº 35) (capítulo 3.1.). 3.1. Tendo em vista o prazo de 2 meses para a instauração do inventário (art. 611, CPC), cabe aos interessados ou instaurar o inventário judicial (e, com o término da ação do testamento, migrar para a via extrajudicial na forma do art. 2º da Resolução nº 35), ou obter uma tutela de urgência do juízo da ação do testamento para a instauração do inventário extrajudicial. 3.2. Se as partes tiverem se esquecido de pedir a autorização do juízo da ação do testamento, a saída é postulá-la no próprio processo judicial de inventário e partilha (art. 2 da Resolução 35) ou, se não houver, em um procedimento atípico de jurisdição voluntária (art. 719, CPC). 3.3. A exigência de prévia autorização do juízo da ação do testamento merece vir a ser suprimida posteriormente por nova lei. O CNJ, porém, a manteve, porque, dentro da elevada prudência de seus Conselheiros, essa foi a solução possível dentro dos limites legais atuais. 4. INVENTÁRIO EXTRAJUDICIAL COM INTERESSADO INCAPAZ: depende de dois requisitos adicionais: (1) manifestação favorável do MP, ou, no caso de impugnação dele ou de terceiro, decisão de juízo em procedimento jurisdicional; e (2) partilha cartesiana em cada bem integrante do espólio (art. 12-A da Resolução nº 35) (capítulo 3.2.). 4.1. O CNJ atuou dentro do que era viável nos limites do poder regulamentar, neste momento histórico. Convém o legislador avançar, para afastar o segundo requisito adicional (o da falta de margem de manobra na partilha). 5. ALVARÁ EXTRAJUDICIAL DE VENDA DE BENS: só pode ocorrer para custeio das despesas de transação do inventário e da partilha e depende de prestação de garantia pelo inventariante (art. 11 da Resolução nº 35) (capítulo 3.2.). 5.1. O CNJ atuou dentro do que era viável nos limites do poder regulamentar, neste momento histórico. Convém o legislador avançar, para permitir o alvará extrajudicial para pagamento de outras dívidas do espólio e para permitir aos herdeiros dispensar a garantia. 1. Introdução Recentemente, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) fez o que foi viável dentro dos limites do poder regulamentar, alterando a Resolução nº 35/2007 por meio da Resolução nº 571/2023. Fê-lo sob a proatividade de um dos mais destacados Corregedores Nacionais de Justiça da história - o Min. Luis Felipe Salomão - e ao abrigo das mais brilhantes composições de Conselheiros presididos pelo prolífico Min. Luís Roberto Barroso. O CNJ, dentro dos limites delineados pela legislação atual, avançou na extrajudicialização dos clássicos procedimentos escatológicos dos Direitos de Família e das Sucessões, nomeadamente os que versam sobre: divórcio, separação de fato, extinção da união estável e inventário e partilha. No Direito de Família, os limites legais são dados pelo art. 733 do Código de Processo Civil (CPC)1, que admite os referidos procedimentos extrajudiciais se o casal moribundo não tiver nascituro nem filho incapaz. No Direito das Sucessões, a fronteira infralegal é delineada pelo art. 610 do CPC2, que disponibiliza a via extrajudicial do inventário e partilha quando inexistir estes dois elementos: testamento ou interessados incapazes. Como regras básicas de hermenêutica ensinam, a lei, por vezes, pode dizer menos do que queria ("minus scripsit quam voluit"), pois a infinitude da casuística nem sempre é captada ex ante pelo legislador. A correção e o esclarecimento interpretativos da lei podem ser feitos por meio de ato infralegal, caso das supracitadas resoluções do CNJ. Com notável prudência, o CNJ avançou bastante na extrajudiciais ao alterar a Resolução nº 35. Desde logo, indagamos: o CNJ poderia ter avançado mais? Entendemos que foi muito prudente a solução da Corte Administrativa nesse momento histórico e talvez, no futuro, possa-se encontrar amparo para maiores avanços na regulamentação. Mas a verdade é que o bastão para novos avanços está atualmente nas mãos do legislador, que deveria expandir as fronteiras da extrajudicialização dos supracitados procedimentos dos Direitos de Família e das Sucessões. 2. Avanços na extrajudicialização dos Procedimentos Escatológicos de Direito de Família No Direito de Família, passamos a destacar os principais avanços do CNJ nos referidos procedimentos extrajudiciais. 2.1. Divórcio ou extinção da união estável com filhos incapazes ou nascituro O divórcio ou a extinção da união estável podem ser realizados mesmo quando houver nascituro ou filhos incapazes, com uma condição: as questões conexas dessas pessoas vulneráveis já têm de estar resolvidas na via judicial (art. 34, § 2º, Resolução nº 35). Estamos a nos referir às questões de alimentos e de guarda (incluindo visitação) dessas pessoas vulneráveis. De fato, quando tratamos de divórcio ou extinção da união estável, temos 3 tipos de questões jurídicas envolvidas: (1) a questão principal, que diz respeito à mudança do estado civil; (2) a questão conexa do casal, que alude à partilha dos bens e aos alimentos entre os ex-consortes; e (3) a questão conexa dos filhos incapazes, que se reporta à guarda e aos alimentos dos filhos. Acrescemos que filhos incapazes aí envolvem não apenas os incapazes por menoridade, mas também os maiores incapazes, por força do art. 1.590 do Código Civil - CC3. O avanço foi importante e foi obtido ao sopro da notável prudência do CNJ no presente momento histórico. O CNJ fez o que era razoável dentro dos limites do poder regulamentar. Infelizmente, porém, entendemos que haverá pouca utilidade prática quotidiana nessa opção. É que, como os consortes têm de se socorrer da via judicial para tratar das questões conexas relativas aos filhos incapazes, a eficiência aconselhá-los-á a pegar carona nessa via para resolver as demais questões. Afinal de contas, não faz sentido deixar a questão principal (o divórcio ou a extinção da união estável) e as questões conexas do casal (partilha e alimentos) à espera do término do procedimento judicial prévio de interesse dos filhos incapazes. Seja como for, aplaudimos a solução do CNJ, que foi a viável dentro do quadro legal atual neste momento histórico. Apesar da provavelmente baixa aplicação prática, esse avanço do CNJ é um sonoro alerta para o legislador apressar-se em eliminar as travas legais à extrajudicialização nesse ponto. 2.2. Escritura Pública de Declaração de Separação de Fato e Escritura Pública de Restabelecimento da Sociedade Conjugal 2.2.1. Separação de direito vs separação de fato e separação (de direito) judicial vs separação (de direito) extrajudicial Antes de expor os avanços do CNJ, é preciso tomar cuidado ao tratar das nomenclaturas envolvendo o instituto da separação. Na prática, observamos haver certa confusão no uso das expressões. De um lado, quanto à natureza, a separação pode ser dividida em duas espécies: separação de direito e separação de fato. A separação de direito é a dissolução formal da sociedade conjugal por meio de um ato jurídico-formal. O STF entendeu que a separação de direito foi revogada pela Emenda à Constituição nº 66, ressalvadas as separações de direito anteriores à decisão do STF (STF, Tema nº 1.053). A separação de fato: é a dissolução informal da sociedade conjugal por meio da cessação, de fato, da convivência more uxorio (que também pode ser chamada de comunhão plena de vida, expressão utilizada no art. 1.511 do CC). Essa separação de fato ocorre quando o casal deixa de, na prática, compartilhar plenamente a vida. Essa cessação da convivência pode acontecer por conduta espontânea do casal (ex.: um dos cônjuges sai "de casa") ou por eventual decisão judicial. Quando se trata de uma decisão judicial, esta geralmente ocorre em duas hipóteses principais: (a) uma decisão cautelar ou definitiva conhecida como separação de corpos, expressão forense mencionada pelo art. 1.562 do CC; ou (b) uma decisão de medida protetiva de afastamento do lar, com fundamento na Lei Maria da Penha. De outro lado, a separação de direito (e não a separação em geral!) pode ser classificada em duas espécies quanto à sua constituição: (1) separação judicial: quando a separação de direito se constitui por uma decisão judicial; e (2) separação extrajudicial: quando a separação de direito se constitui por uma escritura pública. Ambas as hipóteses não mais subsistem à vista da supracitada decisão do STF (STF, Tema nº 1.053). Como se vê, atualmente existe apenas a separação de fato, que é um ato jurídico-informal, e não um ato jurídico-formal. A principal utilidade prática da separação de fato é que ela faz cessar os efeitos do regime de bens. Assim, se o casal se separou de fato, não haverá mais comunicação de bens que vierem a ser adquiridos por qualquer dos consortes separados. Trata-se de aplicação analógica do art. 1.576 do CC, que atecnicamente apenas se refere à separação judicial. Diante disso, para evitar litígios futuros, é conveniente que a data da separação de fato esteja devidamente comprovada, por ser o marco temporal a partir do qual não haverá mais comunicação de bens. A prova dessa data pode ser feita por qualquer meio (conversa de whatsapp, testemunhas etc.). Todavia, é conveniente que haja uma prova mais estável e unívoca. Quando a separação de fato decorre de uma decisão judicial (como a de separação de corpos ou de medida protetiva de afastamento do lar), a prova estável e unívoca é esse ato formal do Poder Judiciário. Quando, porém, a separação de fato deriva de conduta espontânea do casal (ex.: o consorte "saiu de casa"), é preciso certa margem de criatividade para buscar provas estáveis e unívocas a fim de reduzir riscos de litígios futuros. É nesse contexto que está um dos recentes avanços normativos do CNJ, que trata da Escritura Pública de Declaração de Separação de Fato, sobre a qual discorreremos mais abaixo. 2.2.2. Escritura Pública de Declaração de Separação de Fato O CNJ disciplinou a Escritura Pública de Declaração de Separação de Fato. Veja que se trata de uma declaração de separação de fato, pois ela apenas atesta um fato que já pode ter ocorrido: a restauração da convivência more uxorio do casal. Essa escritura é título hábil para os registros públicos (Registro Civil das Pessoas Naturais e o Registro de Imóveis, por exemplo) e para outras instituições públicas ou privadas pertinentes (arts. 3º e 52-A e seguintes da Resolução nº 35). Na prática, a referida escritura poderá lidar com todas as questões conexas do casal (partilha de bens e alimentos), à semelhança do que se dá com o divórcio extrajudicial. Prova disso é que as partes, entre outros documentos, têm de apresentar prova da titularidade dos bens do casal a serem partilhados (art. 52-B4). Além disso, a referida escritura poderá ser averbada no assento de casamento, de modo a publicizar a situação de separação de fato. Não há obrigatoriedade na averbação, embora ela seja aconselhável para fins de publicidade a terceiros. A omissão nessa averbação não pode prejudicar terceiros de boa-fé que, confiando nos registros públicos, ignorem a separação de fato Em princípio, nada impede que o casal faça um instrumento particular de declaração de separação de fato. Todavia, esse título não será averbável no assento de casamento, porque a Resolução do CNJ exige escritura pública. Também nada impede que o casal deixe de celebrar qualquer instrumento para atestar a separação de fato. Todavia, essa conduta poderá gerar futuros litígios para comprovação, por outros e-mails, da data da separação de fato. Esse tipo de litígio pode acontecer especialmente se, com base nas regras do regime de bens do casamento, algum dos cônjuges separados de fato vir a pleitear a comunicação de algum bem adquirido pelo outro. Cabe um alerta: em regra, a Escritura de Separação de Fato não é cabível quando existirem filhos incapazes ou nascituro do casal (art. 52-B, "h"). Entendemos, porém, que, apesar do silêncio da Resolução nº 35, é cabível a aplicação analógica da exceção prevista para o divórcio extrajudicial no § 2º do art. 34: é cabível a escritura pública de declaração de separação de fato se as questões conexas do filho já tiverem sido resolvidas judicialmente. Nesse sentido, indaga-se: por qual razão o casal faria uma Escritura de Separação de Fato, e não uma de Divórcio? A resposta está na questão principal envolvida: o estado civil. Quando o casal opta pela separação de fato, é por que eles apenas querem "dar um tempo" do casamento, para refletir se realmente querem romper ou não o vínculo matrimonial. Se eles quiserem restaurar a sociedade conjugal, não haverá necessidade de celebrar um novo casamento; basta o casal voltar a, de fato, conviver de modo more uxorio. A restauração da convivência more uxorio é chamada de restabelecimento da sociedade conjugal. Trata-se de expressão que é plenamente extensível para a separação de fato, apesar de ter sido tradicionalmente utilizada em caso de separação de direito. Afinal de contas, ambos os tipos de separação representam a ruptura da sociedade conjugal. 2.2.3. Escritura Pública de Declaração de Restabelecimento da Sociedade Conjugal No caso de separação de fato, a sociedade conjugal, ou seja, a convivência more uxorio (ou a comunhão plena de vida) cessou de fato. O casal está apenas casado "no papel": há apenas o vínculo matrimonial. Popularmente, isso ocorrerá quando o marido ou a esposa "sai de casa". Para restabelecer a sociedade conjugal, basta o casal voltar a, de fato, ter a convivência more uxorio. Popularmente, é quando o marido ou a esposa "volta para casa". Trata-se, pois, de um fenômeno fático. O casal pode comprovar esse restabelecimento da sociedade de fato por qualquer meio. Uma das opções é a Escritura Pública de Declaração de Restabelecimento da Sociedade Conjugal (arts. 52-B e 52-C da Resolução nº 35). Destacamos o verbete "declaração", porque essa escritura apenas atesta um fato que já pode ter ocorrido: o ato tem efeito meramente declaratório. Embora os arts. 52-B e 52-C da Resolução não tenha utilizado esse verbete, recomendamos seu uso pelos tabeliães na escritura para realçar a natureza declaratória do ato. Se o casal tiver averbado a separação de fato no assento de casamento, a averbação do restabelecimento da sociedade conjugal só poderá ocorrer mediante Escritura Pública de Declaração de Restabelecimento da Sociedade Conjugal. Cabe ao casal promover essa averbação para fins de publicidade a terceiros. A omissão nessa averbação não pode prejudicar terceiros de boa-fé que, confiando nos registros públicos, tenha considerado o casal separado de fato. Seja como for, ao menos no âmbito do cartório de notas, é dever do próprio tabelião anotar, na anterior escritura pública de separação de fato, a lavratura da escritura de restabelecimento da sociedade conjugal (art. 52-D). 3. Avanços na extrajudicialização dos Procedimentos Escatalógicos de Direito das Sucessões No Direito das Sucessões, passamos a destacar os principais avanços do CNJ nos referidos procedimentos extrajudiciais. 3.1. Inventário extrajudicial com testamento Quando o falecido houver deixado testamento, é obrigatória a ação judicial de abertura, confirmação, registro e cumprimento desse testamento, a qual chamamos apenas de ação do testamento (arts. 735 a 737, CPC). O objetivo é sujeitar o testamento a uma fiscalização judicial que descarte riscos de fraudes (ex.: testamentos falsos) e ateste a validade e a eficácia do testamento (ex.: o testamento ter observado as formalidades legais, não ter incorrido em caducidade, ruptura, desrespeito à legítima etc.). Paralelamente a isso, dentro do prazo de 2 meses do falecimento, o inventário tem de ser iniciado (art. 611, CPC). Daí se indaga: é cabível o uso da via extrajudicial para o inventário e partilha nessa hipótese de testamento? O CNJ só a admite se a sentença transitada em julgado naquela ação do testamento tiver autorizado ou tiver declarado extinto o testamento (por inexistência, invalidade ou ineficácia) (art. 12-B da Resolução nº 35). Portanto, as partes interessadas não podem se esquecer de pedir, na petição inicial da ação de testamento, a autorização para utilizar a via extrajudicial para o inventário. Parece-nos que a razão de ser dessa exigência feita pelo CNJ é que o juízo da ação do testamento teria mais condições de avaliar se o caso concreto envolveria maiores riscos de burlas à vontade do testador se o inventário se processasse fora da supervisão judicial. Há dois problemas práticos. O primeiro é para cumprir o prazo de 2 meses para a abertura do inventário (art. 611, CPC), considerando que a ação do testamento pode vir a demorar. Não há dispositivo expresso na Resolução sobre isso. Nessa hipótese, entendemos há duas opções. A primeira é instaurar o inventário judicial dentro do prazo e, com o advento da sentença definitiva da ação de testamento, pedir a extinção do inventário judicial para se valer da via extrajudicial (art. 2º da Resolução nº 35). A segunda opção é obter do juízo da ação do testamento uma tutela de urgência para autorizar, ainda que precariamente, a instauração do inventário por meio de escritura pública. Convém que o juízo autorize a nomeação de inventariante e a prática de todos os atos necessários à partilha, sem, porém, autorizar a conclusão desta enquanto não sobrevier o trânsito em julgado da ação de testamento. Na prática, porém, notadamente nos Estados em que não há multa administrativa por atraso na abertura do inventário, antevemos que prevalecerá a informalidade quando as partes quiserem a via extrajudicial: as partes aguardarão o término da ação do testamento, ainda que venha a extrapolar o prazo do art. 611 do CPC. O segundo problema prático é que as partes podem ter se esquecido de pedir a autorização para o juízo da ação de testamento. Nesse caso, entendemos que as partes podem pedir essa autorização no próprio processo judicial de inventário e partilha (art. 2 da Resolução 35) ou, se não houver, em um procedimento atípico de jurisdição voluntária (art. 719, CPC). A solução acima foi a que o CNJ, dentro de seu elevado grau de prudência neste momento histórico, pôde avançar. Esperamos que, em um futuro breve, o legislador avance não apenas na extrajudicialização do inventário e partilha, mas também no procedimento de abertura e confirmação do testamento. É que este procedimento deveria poder ser realizado por escritura pública mediante manifestação favorável da instituição incumbida de velar pelos interesses dos vulneráveis: o Ministério Público - MP. Com isso, eliminaríamos uma redundância desnecessária: a intervenção judicial quando o Ministério Público e o tabelião de notas são favoráveis. Lembramos que o tabelião também é profissional do Direito (art. 2º, Lei nº 8.935/1994). Quiçá, em outro momento histórico, esse avanço poderá até vir por ato do CNJ, caso o legislador siga omisso. 3.2. Inventário extrajudicial com interessado incapaz Conforme art. 12-A da Resolução nº 35, se houver herdeiro ou meeiro incapaz, o inventário e partilha extrajudicial dependerá de dois requisitos adicionais: (1) a manifestação favorável do MP, que é a instituição incumbida fiscalizar os interesses dos incapazes (art. 127, Constituição Federal - CF; art. 178, II, CPC); e (2) partilha cartesiana em cada bem integrante do espólio (=falta de margem de manobra na partilha). Em relação ao primeiro requisito adicional, se o MP discordar ou se houver impugnação de terceiro interessado, o caso deve ser encaminhado ao juízo competente. Temos que aí não se está a falar do juízo correcional em um procedimento administrativo, e sim do juízo em um procedimento jurisdicional. Isso, porque a própria Resolução é expressa quando alude à via administrativa (ex.: art. 12, § 2°, Resolução 35). Entendemos, ainda, que o parecer ministerial é exarado antes da subscrição da escritura por todos os interessados, com base em minuta enviada pelo tabelião. Com o parecer favorável, o tabelião concluirá a escritura, acrescentando a notícia do parecer ministerial, arquivando o parecer e coletando as assinaturas das partes. No tocante ao segundo requisito adicional, não há margem de manobra ao herdeiro incapaz na partilha dos bens na via extrajudicial. Em outras palavras, necessariamente, na partilha extrajudicial, o herdeiro incapaz terá de ficar com uma fração ideal sobre cada bem do espólio, vedada qualquer compensação. Por exemplo, se o falecido tiver deixado dois herdeiros (um capaz e outro incapaz) e dois apartamentos (de valores iguais), o herdeiro incapaz necessariamente ficará com 50% de cada um dos apartamentos. É vedado que, na escritura de partilha, o herdeiro incapaz fique com um apartamento, e o outro herdeiro fique com o outro apartamento. Com essa solução, o CNJ impede que seja utilizada a regra da máxima comodidade dos coerdeiros e do viúvo na partilha dos bens, prevista no art. 648 do CPC. A razão de ser da restrição é a de que, sem a intervenção judicial, haveria maior risco de o herdeiro incapaz, ao final da partilha, ficar em uma posição desvantajosa. Afinal de contas, é sabido que muitos bens, apesar de formalmente terem uma determinada expressão econômica à luz de uma avaliação pericial, são de difícil liquidação ou de deterioração ou desvalorização rápidas. Imagine, por exemplo, o espólio seja composto de um carro avaliado em R$ 500.000,00 e de um apartamento de R$ 500.000,00. Há dois herdeiros: um incapaz e outro capaz. É intuitivo que o carro é um bem pouco vantajoso para o herdeiro incapaz: além de ser um bem que rapidamente desvaloriza, há pouca utilidade prática ao herdeiro que sequer tem autorização estatal para dirigir. A solução do CNJ acima foi a que os seus Conselheiros entenderam viável dentro do figurino legal atual. Talvez, em outro momento histórico, o CNJ possa encontrar apoio para avançar mais. Seja como for, entendemos que cabe ao legislador eliminar o segundo requisito adicional acima: o da falta de manobra para o herdeiro incapaz na partilha. Isso, porque o Ministério Público é a instituição vocacionada à tutela do interesse dos incapazes. Parece-nos desnecessário ser redundantes ao exigir a intervenção judicial, ainda mais porque, segundo se sabe da praxe forense, é muito raro que - ao menos, em matéria de partilha de bens envolvendo menores - os juízes adotem solução diversa da preferida pelo Ministério Público. Além disso, a solução de formar condomínio tradicional sobre todos os bens do espólio pode criar entraves burocráticos desnecessários até contra o herdeiro incapaz. Pense, por exemplo, que o espólio seja composto de dois apartamentos, de igual valor: um na Alemanha, outro no Brasil. Há dois herdeiros: um herdeiro é incapaz e mora no Brasil; o outro é capaz e vive na Alemanha. Em situação como essa, a regra da máxima comodidade da partilha (art. 648, CPC) recomendaria o herdeiro incapaz ficar com o imóvel no Brasil, dada a maior facilidade de sua gestão para ele sem os transtornos próprios da gestão transnacional de bens. Várias outras hipóteses poderiam ser cogitadas. O ponto é que, se o Ministério Público entende vantajoso para o herdeiro incapaz uma determinada partilha, parece-nos que o legislador deveria afastar a necessidade de intervenção judicial. 3.3. Alvará Extrajudicial de Venda de Bens É comum o espólio ser composto apenas de bens diversos de dinheiro. Isso representa um problema operacional, porque, se os herdeiros não se dispuserem a desembolsar dinheiro do próprio bolso, a concretização do inventário e partilha será inviável por falta de dinheiro para pagar as despesas de transação. Chamamos de despesas de transação as necessárias à conclusão do inventário e partilha, como os honorários advocatícios, emolumentos, tributos etc. A solução é a alienação de bens do espólio para, com o dinheiro obtido, pagar as despesas de transação. Para alienar bens do espólio, o inventariante precisa de uma autorização (a que chamaremos de "alvará"). Esse alvará pode ser judicial, se tiver decorrido de decisão judicial, ou extrajudicial, quando decorrer de escritura pública. O alvará extrajudicial dá-se por escritura pública nos termos do art. 11-A da Resolução nº 35. A escritura pública exige consentimento unânime dos demais herdeiros e só pode ser realizada para uma finalidade: o custeio das despesas de transação do inventário e partilha. A escritura deverá vincular o dinheiro obtido com a venda ao custeio das referidas despesas. Além disso, o inventariante tem o dever de prestar garantia de que, no caso de malversação das verbas obtidas com a alienação, reembolsará o espólio. Diante disso, há dois grandes problemas práticos a enfrentar. Em primeiro lugar, indaga-se: o alvará extrajudicial poderia ocorrer para pagamento de dívidas do próprio espólio, sem relação com a formalização do inventário e partilha (ex.: dívida de um empréstimo bancário não pago pelo falecido)? A resposta é negativa, porque o art. 11-A, I, da Resolução nº 35 não as contemplou. Cabe aos herdeiros obterem um alvará judicial para tanto. Em segundo lugar, pergunta-se: os herdeiros, de modo unânime, poderiam dispensar o inventariante de prestar garantia no âmbito do alvará extrajudicial? A resposta é negativa, porque o art. 11-A, VI, da Resolução nº 35 não deu essa margem de manobra. Cabe aos herdeiros buscar a via judicial para obter um alvará sem exigência de garantia do inventariante. Como se vê, o alvará extrajudicial possui esses dois pontos que o podem tornar desinteressante para as partes, o que as remeterão para a via judicial. Foi a solução que o CNJ entendeu viável dentro dos limites legais, neste momento histórico. Entendemos que cabe ao legislador, com urgência, avançar e eliminar esses dois entraves, pois não nos parece razoável obrigar a intervenção judicial para lidar com atos de disposição patrimonial feitos com amparo na unanimidade dos interessados. A tendência é a atuação do juiz ser meramente a de chancelar a vontade dos interessados. Quiçá, se o legislador se mantiver inerte, o CNJ - em outro momento histórico - possa vir a encontrar suporte para, por ato infralegal, eliminar esses entraves. ___________ 1 Art. 733. O divórcio consensual, a separação consensual e a extinção consensual de união estável, não havendo nascituro ou filhos incapazes e observados os requisitos legais, poderão ser realizados por escritura pública, da qual constarão as disposições de que trata o art. 731 . § 1º A escritura não depende de homologação judicial e constitui título hábil para qualquer ato de registro, bem como para levantamento de importância depositada em instituições financeiras. § 2º O tabelião somente lavrará a escritura se os interessados estiverem assistidos por advogado ou por defensor público, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial. 2 Art. 610. Havendo testamento ou interessado incapaz, proceder-se-á ao inventário judicial. § 1º Se todos forem capazes e concordes, o inventário e a partilha poderão ser feitos por escritura pública, a qual constituirá documento hábil para qualquer ato de registro, bem como para levantamento de importância depositada em instituições financeiras. § 2 o O tabelião somente lavrará a escritura pública se todas as partes interessadas estiverem assistidas por advogado ou por defensor público, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial. 3 Art. 1.590. As disposições relativas à guarda e prestação de alimentos aos filhos menores estendem-se aos maiores incapazes. 4 Art. 52-B. Para a lavratura da escritura pública de declaração de separação de fato consensual, deverão ser apresentados: a) certidão de casamento; b) documento de identidade oficial e CPF/MF; c) manifestação de vontade espontânea e isenta de vícios de não mais manter a convivência marital e de desejar a separação de fato; d)pacto antenupcial, se houver; e) certidão de nascimento ou outro documento de identidade oficial dos filhos, se houver; f) certidão de propriedade de bens imóveis e direitos a eles relativos; g) documentos necessários à comprovação da titularidade dos bens móveis e direitos, se houver; h)inexistência de gravidez do cônjuge virago ou desconhecimento acerca desta circunstância. (incluido pela Resolução n. 571, de 26.8.2024)
segunda-feira, 16 de setembro de 2024

A complexidade do júizo notarial nas "novas" atas

A autenticação de fatos é atividade intrínseca à prestação dos serviços notariais. Quando um tabelião de notas reconhece como verdadeira a assinatura aposta na sua presença em um documento, ele autentica um fato. Da mesma forma, quando certifica que a reprodução de um documento confere com o original ou quando constata objetivamente um determinado acontecimento e o descreve em uma ata notarial, tornando-o perene.1   A lavratura de ata notarial é ato de competência exclusiva do tabelião de notas, com previsão expressa na lei que regulamentou os serviços notariais e de registro - lei 8.935/94. Contudo, é possível afirmar que a comunidade jurídica despertou para a ata notarial quando a lei que instituiu o CPC - lei 13.105/15 -, a incluiu como um meio de prova típico, conforme o artigo 384: "A existência e o modo de existir de algum fato podem ser atestados ou documentados, a requerimento do interessado, mediante ata lavrada por tabelião". A esta ata notarial, a doutrina estrangeira atribui o nome de "ata de constatação", pois é exatamente isso que o tabelião faz, ele constata um fato e o consigna em um instrumento público, revestido de valor probante cuja veracidade e autenticidade somente é afastada por declaração judicial de falsidade (art. 427, CPC), incumbindo à parte que a arguir o ônus probatório (art. 429, CPC). A ata de constatação pode ter por objeto qualquer fato (acontecimento) objetivamente percebido pelo tabelião de notas, que o traduzirá na forma escrita com a estrutura gramatical de uma narrativa. Não é à toa que a ata notarial é referida como uma "fotografia em palavras", afinal, a partir da captação dos sentidos, o notário apurará um fato e, sequencialmente, o descreverá em palavras, arquivando o instrumento em livro próprio, tudo isso sem a emissão de juízos de valor2. Ainda assim, é de salientar a inequívoca subjetividade, própria da condição de ser de cada indivíduo, que proporciona a produção textual com nuances distintas a partir de uma mesma constatação, caso dois tabeliães sejam chamados para presenciar o mesmo fato. A doutrina sinaliza diversos exemplos de situações passiveis de aferição pelos sentidos do notário, como: a existência ou o conteúdo de uma mensagem publicitária; a verificação do estado de imóveis, no caso de o locatário não honrar as prestações locatícias e o abandoná-lo; o uso indevido de imagem; disposições em assembleias societárias e condominiais; a demissão de funcionário;  a abertura forçada de cofre particular.3Como é perceptível, objeto da ata notarial pode variar, no entanto, sempre será um fato (ou ato-fato) jurídico captado e descrito pelo notário, através dos seus sentidos.4 Todas essas atas, de algum modo, fazem parte do conoscere dos operadores do Direito. Mas, as atas notariais vão além da mera descrição objetiva de fatos. Amparada nos ensinamentos estrangeiros, a doutrina brasileira identifica diferentes espécies de atas notariais, como a "ata de presença", "ata de notificação", "ata de subsanação" e a "ata de notoriedade". Compreender a distinção entre elas é fundamental, especialmente a partir do momento em que a legislação passou a prevê-las em certos procedimentos. O primeiro caso é a usucapião extrajudicial, introduzida no ordenamento jurídico pelo Código de Processo Civil. O legislador trouxe, como primeiro requisito para requerimento junto ao registro de imóveis, a ata notarial de atestação da posse. Na sequência, a Lei 14.382/22 disciplinou o procedimento de adjudicação compulsória extrajudicial, e a ata notarial figura como requisito para provar o pagamento do preço e a mora na obrigação de outorga ou recebimento do título de propriedade. Mais recentemente, a lei 14.711/23 incluiu um novo artigo na lei 8.935/94 e deu competência expressa aos tabeliães de notas para lavratura de atas de certificação do implemento ou frustração das condições negociais. Em todos esses procedimentos, as atas notariais não são de constatação, porque a tarefa do tabelião de notas transcende a mera constatação objetiva de um fato. Nessas atas haverá um o juízo notarial, sim, que envolve a apuração sobre a realidade de um fato ser considerado certo em determinado contexto, para, então, certificá-lo. No caso da usucapião extrajudicial, a ata notarial tem por finalidade atestar o exercício da posse, com as características necessárias e durante determinado período de tempo. Para isso, é indispensável que ao tabelião de notas seja fornecido os elementos suficientes, aqui compreendidos por documentos, depoimentos de vizinhos, confrontantes, diligências no local e, em suma, tudo para que se forme o convencimento de que aquele fato (posse) é certo naquele contexto e por aquele período de tempo (o necessário de acordo com a espécie de usucapião). Esse é conteúdo a ser atestado. Até porque não é possível uma constatação objetiva de posse pretérita, e toda posse que legitima usucapião, é pretérita. Enquanto na ata de constatação, espécie mais conhecida e amplamente utilizada, o tabelião de notas consigna de forma objetiva os fatos que foram por ele presenciados ou as evidências observadas, como a presença de pessoas em determinados locais, o conteúdo de páginas na internet, mensagens de texto ou o estado físico de bens e imóveis, na ata de notoriedade ou certificação, a atuação notarial envolve um processo mais aprofundado de investigação, análise e decisão. Diferentemente do que acontece na ata de constatação, na ata de certificação, é inequívoco o juízo de valor pelo tabelião de notas, e por isso é fundamental a compreensão pelo advogado que representa o interessado no procedimento de que os elementos probatórios apresentados são decisivos para que a finalidade da ata notarial seja alcançada. No caso da ata de certificação do implemento ou frustração das condições ou outros elementos negociais, a atividade notarial pode alcançar um impacto ainda maior, definindo os rumos da relação contratual sem a necessidade de atuação do Poder Judiciário. Nela, o notário realiza um juízo valorativo acerca do direito, o que demandará uma análise técnica e jurídica minuciosa, condizente com os fundamentos balizadores da função notarial (de caráter jurídico, preventivo, pacificador, imparcial, público, rogatório e técnico da atividade notarial).5 Com efeito, a fim de se extrair todo o potencial existente nas atas notariais, é preciso compreender que o papel do tabelião de notas vai além da verificação, autenticação e documentação de fatos objetivos - limitação histórica que se explica, em parte, por sua recente descoberta pela comunidade jurídica. Os novos procedimentos que iniciaram com a usucapião extrajudicial no Código de Processo Civil expandem os horizontes da ata notarial, trazendo-lhes novos contornos, inclusive com funções mais analíticas e valorativas. Nessas "novas atas", como as de notoriedade, o notário exerce uma função que se aproxima de um juízo técnico, no qual sua interpretação e análise dos fatos têm consequências diretas para a segurança jurídica dos atos praticados. A confiança depositada no tabelião de notas pelo legislador reflete uma expectativa de que ele seja capaz de manejar complexidades jurídicas com precisão e imparcialidade, afinal "el registro notarial consagra la seguridad preventiva mediante formalismos que garantizan la validez de los contratos y propician un ambiente de confianza para la actividad económica"6. A responsabilidade do tabelião é garantir que as atas reflitam fielmente os fatos e condições, certificando, em certos casos o próprio direito, minimizando riscos de litígios e incertezas jurídicas. A evolução do direito notarial exige um alto nível de conhecimento técnico e jurídico, para o desempenho das funções com a diligência e competência necessárias. A ampliação das espécies de atas notariais e a complexidade a algumas delas intrínsecas refletem as demandas sociais e jurídicas contemporâneas. Não se trata de mera extensão das antigas práticas, mas, com efeito, de uma reconfiguração do próprio conceito de juízo notarial, exigindo dos tabeliães de notas uma atuação cada vez mais qualificada e multidimensional. Isso reforça a sua presença como um garantidor da segurança jurídica e da efetividade dos atos e negócios jurídicos na sociedade moderna. ________ 1 FERREIRA, Paulo Roberto Gaiger. LEONARDO, Felipe Rodrigues.Ata Notarial - Doutrina, Prática e Meio de Prova. 2. ed. rev, ampl. E atual., Salvador: Editora JusPodivm, 2020, pp. 161. 2 GUÉRCIO NETO, Arthur Del; GUÉRCIO, Lucas Barelli Del. Teoria geral do direito notarial e registral. CASSETTARI, Christiano (Coord.). 1 ed. Indaiatuba, SP: Foco, 2023.  3 FERREIRA, Paulo Roberto Gaiger. LEONARDO, Felipe Rodrigues.Ata Notarial - Doutrina, Prática e Meio de Prova. 2. ed. rev, ampl. E atual., Salvador: Editora JusPodivm, 2020, pp. 200-201. 4 BRANDELLI, Leonardo. Atas Notariais. In: SILVA NETO, Amaro Moraes et. al. Ata notarial. BRANDELLI, Leonardo (Coord.). Porto Alegre: Instituto de Registro Imobiliário do Brasil, 2004, pp. 45-47. 5 BRANDELLI, Leonardo. Teoria Geral do Direito Notarial. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, pp. 127-133 6 GUTIERREZ CABAS, Willy. El notario de Fe pública como garante de la seguridad jurídica preventiva en los documentos notariales. Rev. Jur. Der., La Paz,  v. 11, n. 16, p. 129-142,  jun.  2022. Acesso em:  26  ago.  2024.
sexta-feira, 13 de setembro de 2024

SINTER 2.0: A ressurreição de um fantasma

O texto aborda os desafios da modernização do Registro de Imóveis no Brasil, destacando a implementação da DOI-WEB e a volta do SINTER. A falta de integração entre sistemas, a redundância de cadastros e a dependência de processos arcaicos são obstáculos a serem superados. A criação do SINTER, embora centralizadora, pode auxiliar na apuração do valor de referência dos imóveis, mas sua efetividade dependerá da cooperação entre as instituições envolvidas. Introdução O processo de modernização do Registro brasileiro tornou-se acidentado e seus resultados ainda pífios e insuficientes. Fiquemos num só exemplo: a nova DOI-WEB, prevista na Instrução Normativa 2.186, de 12/4/24, da RFB - Receita Federal do Brasil. Eis a curiosa solução avant la lettre da futura LC que hoje tramita no Congresso Nacional e que integra o plexo da reforma tributária.1 Nesta nova modalidade de DOI, os cartórios são convocados a interagir com o órgão estatal por intermédio de plataformas de WebService que deverão ser concebidas pelas próprias serventias extrajudiciais e/ou por seus proxies registrais. Outra alternativa, oferecida pelo órgão fazendário, seria prover informações por intermédio de página disponibilizada pela própria RFB. Entretanto, muitos dos dados que agora são exigidos pelo órgão não se acham disponíveis nos sistemas tradicionais dos cartórios - e isto por uma razão bastante singela: são elementos não previstos e exigidos pelo art. 176 da LRP. Para completar o bloco de declarações, será necessário coletar elementos de várias fontes e promover a inserção manual na plataforma estatal - ou em bloco, no formato JSON.2 O certo é que haverá um retrabalho (em regra manual) para a complementação de informações de acordo com o novo layout da DOI-Web, salvo se houver um algoritmo inteligente para racionalizar o processo de formação da planilha informativa. O elenco de dados obrigatórios se acha especificado no documento publicado pela RFB - Manual de Operações - DOI.3 No item 8 - campos do arquivo JSON - encontra-se a especificação do registro, com a indicação dos campos tornados obrigatórios. A especificação do conjunto de dados não deixa de representar uma indução tendente a reestruturar o próprio sistema ontológico do registro de Imóveis brasileiro. A modelagem dos dados, que nasce de uma instância extrarregistral, não se acha coordenada com a especificação do próprio SREI, que tarda lamentavelmente. Este descompasso é ruinoso para todos os órgãos e instâncias envolvidos. O § 3º do art. 1º e art. 7-A da LRP preveem a "escrituração por meio eletrônico", fazendo pressupor a existência de um registro inteiramente eletrônico que ainda não existe. A especificação do SREI, estabelecida no ano de 20124 e recomendada pelo CNJ em 20145, não passou da POC (prova de conceito) levada a efeito em 20196. Sem uma base estruturada do SREI, pergunta-se: de onde virão os dados exigidos pela RFB de modo que o SREI possa interagir de maneira eficiente com a Fazenda Federal por meios eletrônicos? De quais fontes serão extraídos os dados? Como vimos, os dados exigidos pela administração tributária não se acham elencados como requisitos legais obrigatórios para a prática dos atos de registro (art. 176 da LRP). Como conciliar os dados exigidos pela RFB com os gerados no âmbito do próprio registro? Como estruturar os dados espraiados de forma narrativa (inc. I do art. 231 da LRP) nas matrículas e em fontes acessórias dos cartórios? Eis a ressureição do velho SINTER - Sistema Nacional de Gestão de Informações Territoriais, redivivo pelo decreto Federal 11.208, de 26.9.22, que criou o CIB - Cadastro Imobiliário Brasileiro (art. 5º), regulamentado pela IN RFB 2.030, de 24/6/21, e pela IN RFB 2.186, de 12/4/24. Regulamentação premonitória de LC que ainda não existe. O SINTER é um cadastro imobiliário com a ambição de abarcar e conciliar aspectos cadastrais e jurídico-reais de todo o território brasileiro, substituindo-se, em parte, aos próprios municípios na gestão e ordenação territoriais. O projeto em tramitação prevê a recriação, em grande estilo, do SINTER, atraindo e concentrando dados em sua usina informacional. Busca-se criar referências objetivas para apurar e divulgar o valor de referência dos bens imóveis, dados que deverão ser divulgados e disponibilizados no SINTER. Entretanto, como se fará isto? Responde-nos o projeto: "para fins de determinação do valor de referência, os serviços registrais e notariais deverão compartilhar as informações das operações com bens imóveis com as administrações tributárias por meio do Sinter" (art. 251 do projeto aprovado na Câmara). Coerentemente com o modelo centralizado da reforma tributária, o PLC 68/2024 consolida o CIB - Cadastro Imobiliário Brasileiro no âmago da administração federal (inc. III, § 1º do art. 43 do PLC). Os serviços notariais e registrais deverão, no prazo de 12 meses, adequar seus sistemas "para adoção do CIB como código de identificação cadastral dos bens imóveis" ("b", I, art. 266). Fosse um modelo de coordenação entre duas instituições reconhecidamente singulares - Cadastro e Registro - ambas intercambiando dados, seria uma ideia extraordinária. Entretanto, parece que a RFB constrói um espelho do Registro, com a chave geral do sistema - CIB -, com a qual se abrem as portas para os dados registrais concentrados no órgão estatal. Novas demandas - velhas soluções - novos desafios Neste cenário, antevê-se o fenômeno já apontado por mim: dão-se soluções anacrônicas a demandas digitais que se originam da sociedade da informação. Na impossibilidade de utilizar as ferramentas tecnológicas concebidas para dar respostas eficientes a tais exigências, tendemos a resolver os novos problemas e desafios com processos arcaicos, disfuncionais, sabendo-se, de antemão, que a solução passaria, simplesmente, pela assimilação de novas tecnologias, reservando aos humanos tarefas muito mais dignas e importantes. Em suma: novas demandas - velhas soluções - novos desafios. O SREI tarda e este descompasso marginaliza o sistema registral do processo de digitalização da sociedade brasileira. Redundância informativa Por fim, o Conselho Nacional de Justiça, por sua Corregedoria Nacional, vem de instituir um canal direto de comunicação entre os registros prediais e a administração pública municipal, a fim de informar as mudanças de titularidades de imóveis e municiá-los com dados recolhidos dos registros prediais. Diz a norma que os dados "serão anonimizados pelo CNB/CF e pelo ONR, quando de seu recebimento, antes de qualquer tratamento estatístico" (§ 7º do art. 184-A da CNN/CN/CNJ-EXTRA). Como disse alhures, ou bem o ato normativo trata do envio de dados para os municípios ou cuida da geração de dados estatísticos, lembrando-se que os dados eventualmente necessários para a atualização cadastral da administração municipal não devem ser anonimizados. A propósito registrei em recente artigo: "O apoio do Registro Imobiliário na 'atualização cadastral dos contribuintes das Fazendas Municipais' (art. 4º da Resolução CNJ 547 de 22/2/24) é típica atividade de coordenação entre o cadastro e registro, ideia propugnada e defendida há décadas pelos registradores.7 O Provimento CNJ 174/24 foi feliz em estabelecer como se dará o 'intercâmbio de dados estruturados entre as serventias extrajudiciais e as municipalidades' (§ 6º do art. 184-A do CNN/CN/CNJ-Extra), fazendo presumir que a relação a ser construída é P2P (peer-to-peer), sem a concentração de dados em centrais eletrônicas extrarregistrais (proxies registrais), sabendo-se, de sobejo, que a concentração de dados em plataformas extrarregistrais é sempre problemática e os episódios de ataques hacker lamentavelmente tornaram-se bastante comuns. Data is the new oil - rezam os cânones da economia digital. Além disso, a expressão intercâmbio pode (na verdade deve) ser interpretada no sentido de reciprocidade na entrega da informação, uma via de mão dupla. Muitos dados albergados na administração pública são igualmente relevantes para aperfeiçoar o registro, favorecendo a mais perfeita coordenação entre o registro e o cadastro.8 Seja como for, espera-se que os responsáveis pela redação do manual técnico para especificação dos dados e padrão da API levem em consideração a necessidade de se preservar a privacidade na troca de informações, somente possível pelo uso de criptografia assimétrica".9 De fato, os municípios poderão acessar as bases de cada unidade com o uso da chave privada do agente responsável (certificado digital). Os dados serão criptografados na origem (serventias) com o uso da chave pública do agente. Com isso preserva-se, ponta a ponta, a privacidade dos dados pessoais. Entretanto, não deixa de ser impressivo o fenômeno de redundância informativa no âmbito de vários cadastros, sejam eles municipais, estaduais ou federais, mantidos e suportados pela administração pública.10 Com a iminente criação do CIB, do qual os cartórios serão um ramal ancilar, deveríamos concretizar o que há décadas se propugna - a interconexão entre cadastro e os registros públicos. Apocalípticos e integrados Há mais de dez anos escrevíamos sobre os perigos representados pelo SINTER. A iniciativa da RFB nascia com uma clara ambição: instituir o registro de imóveis eletrônico previsto na Lei 11.977, de 7/7/09. O esboço do decreto trazia consignado em sua epígrafe o seguinte dístico: "Regulamenta o Sistema de Registro Eletrônico e institui o Sistema Nacional de Gestão de Informações Territoriais - SINTER".11 Os objetivos que inauguraram o SINTER acham-se bem assentados e consagrados no documento - Projeto Rede de Gestão Integrada de Informações Territoriais12, que fundamentava o esboço do decreto regulamentador. As discussões acerca do SINTER, travadas no âmbito do IRIB e do CNJ - com a oposição de alguns setores da própria atividade13-, visavam reconduzir o tema ao leito natural da interconexão entre o registro de direitos e o cadastro imobiliário técnico multifinalitário. Afinal, havia o precedente exitoso da infraestrutura criada pela Lei 10.267/01, marco legal que promoveu a sincronia entre ambas as instituições - o cadastro e o registro de direitos - criando uma infovia virtuosa e de mão dupla. Na mesma época divulgávamos um pequeno estudo acerca das transformações sofridas pelos paradigmáticos sistemas registrais francês e belga, descontinuados e assimilados pela administração fazendária de seus países.14 Era uma advertência lançada à reflexão dos registradores, acautelando-os para os possíveis cenários que ainda se desenham no horizonte. A tokenização de ativos e garantias imobiliárias e a blockchain, as reformas constitucionais que abrem espaço para regulação pelo Banco Central de registros de garantias (PEC 65), esses fenômenos devem ser percebidos como tendências e impulsos de transformação do ecossistema de registro de direitos.15 O esvaziamento de atribuições de notários e registradores não é novidade e bastaria o exemplo do RTD, que vem progressivamente perdendo atribuições para outros órgãos. Aproveitando-nos do mote de Umberto Eco, o que a muitos pode soar uma advertência alarmista ("apocalíptica") e a outros, simplesmente mais prudentes, as notícias do front podem servir de preciosos elementos para reflexão e estudos e, quiçá, provocar mudanças estratégicas e oportunas. Conclusões O ecossistema notarial e registral acha-se em processo de profundas transformações, algumas disruptivas, o que não significa que sejam necessariamente proveitosas; disrupção pode vir a ser simplesmente ruptura da tradição, destruição do edifício da fé pública. A RFB e a Corregedoria Nacional de Justiça poderiam ser provocadas pelo ONR ou mesmo pelo IRIB (ou por qualquer das várias entidades que pululam por aí) para implementar processos de intercâmbio de informações entre os órgãos públicos de maneira mais eficiente, menos onerosa e, se possível, cumprindo as normas e orientando-se a princípios consagrados na tradição do nosso Direito. O novo SINTER poderá ser uma ferramenta útil para a dificuldade histórica de apuração do valor real das transações imobiliárias, mas não deve assimilar dados que não são necessários para a realização de seus propósitos originais de administração tributária, controle aduaneiro e gestão de informações econômico-fiscais. Resta-nos aguardar para ver como o sistema se articulará com todas as instituições, agentes e atores envolvidos, e, especialmente, como serão construídas as infovias que permitirão o intercâmbio racional e inteligente entre todos eles. __________ 1 PLC 68/2024. Institui o Imposto sobre Bens e Serviços - IBS, a Contribuição Social sobre Bens e Serviços - CBS e o Imposto Seletivo - IS e dá outras providências. 2 JSON (JavaScript Object Notation) é um código e linguagem utilizados para troca de dados entre sistemas e máquinas. Ele é amplamente utilizado para transmitir dados estruturados entre um servidor e um aplicativo web, assim como para armazenar dados de forma organizada. Referência aqui. 3  Disponível aqui. 4 Vide SREI - especificação aqui. 5 Recomendação 14/14, de 2/7/14, Cons. Guilherme Calmon. Dita recomendação foi revogada pelo Provimento 180/24, o que nos pareceu inteiramente descabido, já que toda a especificação do SREI, atualmente em desenvolvimento no ONR - Operador Nacional do SREI, baseia-se inteiramente na documentação original da qual fará parte integrante e indissolúvel. A própria documentação atualmente produzida colocará em evidência tal fato. Acesso aqui. 6 Para uma visão panorâmica do trabalho desenvolvido, acesse aqui. 7 Tive ocasião de editar um livro seminal sobre o assunto: CARNEIRO, Andrea Flávia Tenório. Cadastro Imobiliário e Registro de Imóveis. Porto Alegre: IRIB/safE, 2003. A partir da década de 1990, os registradores passaram a colaborar com os estudos sobre a interconexão entre os registros e os cadastros, firmando convênio com a Universidade Federal de Santa Catarina, sob a coordenação do pranteado mestre Prof. Dr. Jürgen Philips e, posteriormente, na Federal de Pernambuco, sob a coordenação da Profa. Dra. Andrea Carneiro. Para conhecer esta bela história de cooperação interinstitucional, indico o documentário GEOirib - 20 anos. Disponível aqui. 8 O exemplo paradigmático é a lei do Georreferenciamento dos imóveis rurais (lei 10.267/01) em que se estabelece o intercâmbio de informações entre os cartórios e o INCRA. 9 JACOMINO, Sérgio. A IA e o Registro de Imóveis. Pequenas digressões vestibulares - Parte I. São Paulo: Observatório do Registro, 2024, disponível aqui. 10 No ano de 2015 o TCU enfrentava o problema de profusão de cadastros de imóveis rurais entre as várias instâncias do Governo Federal. V. Acórdão TC 011.713/2015-1 que trata da governança de solos em áreas não urbanas e critica a grande quantidade de legislações sobre o tema e vasta gama de instituições governamentais dispersas sem clara delimitação de funções. Disponível aqui. 11 REZENDE, LuÍs Orlando Rotelli. TREVISAN, Antônio Carlos. Projeto Rede de Gestão Integrada de Informações Territoriais. Anexo I - Proposta de Minuta do Decreto de Regulamentação do Sistema de Registro Eletrônico. Brasília: RFB, 18/4/2013. Disponível aqui. 12 Vide os documentos vestibulares e estruturantes do SINTER, projeto iniciado no ano de 2013. Disponível aqui. 13 Cfr. rico painel crítico no dossiê disponível aqui.  14 JACOMINO, Sérgio. Registros de documentos - crônica de uma morte anunciada. São Paulo: Observatório do Registro, 9/12/2013. Disponível aqui. 15 A PEC 65 assombra a ANOREG-BR e CNR, que lançaram nota à imprensa em que manifestam suas preocupações com a ampliação das "as atribuições do BACEN incluindo funções típicas do Estado, atualmente exercidas por notários e registradores". Segundo as entidades, a "hipótese de o BACEN assumir funções delegadas aos notários e registradores, essenciais para a garantia da segurança jurídica e proteção dos direitos de propriedade, ameaça a confiança pública em sua atuação como autoridade monetária, em um momento no qual ela está colocada em xeque". Disponível aqui. [mirror].
1. Brevíssima referência histórica sobre o Registro Civil1 A necessidade de se saber quem são as pessoas, qual é o seu nome, a sua filiação, o seu estado civil e o seu último momento na vida - o óbito - foi sentida desde a antiguidade. Mas, é no Direito Romano que os especialistas identificam o berço do Registro Civil, atualmente em vigor nos países europeus e latino-americanos da civil law. De fato, no Direito Romano já se previam determinadas inscrições públicas sobre o estado da pessoa, ainda que com um fim meramente estatístico e militar. Para o demonstrar, basta recordar o episódio do nascimento de Jesus Cristo que, diz-se, só aconteceu em Belém porque um Imperador Romano havia determinado um recenseamento, para saber quantas eram as pessoas nascidas - e quais as suas particularidades -, naquele remoto recanto do seu Império. Depois da oficialização da religião cristã e durante a Idade Média e Moderna o Registro Civil foi ficando, praticamente em toda a Europa, a cargo da Igreja. Consequentemente, os não católicos foram, naturalmente, excluídos dos registros eclesiásticos. Tal realidade, com o passar dos séculos, passou a ser vista como uma fragilidade do Registro Civil ou como uma falha das monarquias, que não providenciavam um serviço de Registro Civil aos não católicos. Os ideais iluministas, em oposição ao poder absoluto dos monarcas e da igreja católica, advogavam, como se sabe, a rutura entre a religião e o Estado e conduziram a que despontasse a convicção de que os direitos decorrentes do nascimento, do casamento e do óbito tinham de surgir, modificar-se, transmitir-se e extinguir-se independentemente da religião professada pelos indivíduos, devendo de ser o Estado a promover, para efeitos jurídicos, a constatação de tais factos, através de órgãos próprios. Tal ideia, como se sabe, acabou por vingar com a Revolução Francesa2, tendo-se, então, determinado que a função do Registro Civil tinha de ser pública, pertencendo ao Estado ou aos municípios, pois apenas um sistema sob incumbência do Estado seria capaz de garantir o acesso de todos os cidadãos ao Registro Civil e aos direitos dele decorrentes, independentemente da religião professada. Em Portugal, foi com o decreto de 16/5/1832, que o Registro Civil conheceu a primeira providência legislativa. Através dele o Estado reconheceu a vantagem de tornar extensiva a todos os indivíduos a prática da Igreja relativamente aos católicos, subordinando a realização do registro a princípios jurídicos uniformes, que assegurassem a sua regularidade e fiscalização. A este decreto seguiram-se outros diplomas elaborados com objetivo de secularização do Registro Civil. No entanto, o Registro Civil em Portugal só foi oficialmente instituído, após o fim da Monarquia (ou com a implantação da República), pelo Código do Registro Civil de 18/2/1911. O mesmo ocorreu no Brasil, onde a proeminência da Igreja Católica e a sua boa organização administrativa conduziu a que fosse a única responsável pelo Registro Civil - cujos assentos eram realizados nos livros paroquiais - durante todo o período colonial. Mantendo tal competência, em exclusividade ou não, mesmo após a independência, até 1888. Em virtude da laicização do Estado, em 1888, foi publicado o decreto 9.886, o qual fez cessar os efeitos civis dos registros eclesiásticos dando origem ao Registro Civil destinado à certificação do nascimento, casamento e óbito. Portanto, quer em Portugal quer no Brasil, no século XIX, tornou-se evidente que o Registro Civil tinha de ser parte integrante da potestas do Estado sobre a população. E, até à atualidade, é manifesto que o Estado Português e o Brasileiro continuam a encarar o Registro Civil como parte da sua soberania, uma vez que é ele - o Registro Civil - que fixa autenticamente a individualidade jurídica de cada cidadão e serve de base aos seus direitos. 2. Da Relevância do Registro Civil O Registro Civil faz parte da vida de todos. Os fatos mais importantes da existência humana - do nascimento com a aquisição da personalidade civil, à morte, que é o último momento da existência da pessoa natural, perpassando pelos fatos mais relevantes da trajetória dos indivíduos, como o casamento e eventuais alterações do estado da pessoa (emancipação, medidas de apoio a maior acompanhado, etc.), apenas são reconhecidos juridicamente se forem publicitados pelo Registro Civil e só podem ser devidamente comprovados através dos seus assentos e averbamentos. Em consequência, o exercício da cidadania depende do Registro Civil. De fato, sem registro de nascimento, uma pessoa, oficialmente, inexiste para o Estado - como coloca em evidência uma ONG angolana, intitulada Handeka, no seu projeto "Sem Registro, Não Existo". Só com o registro de nascimento uma pessoa passa a existir juridicamente e a poder exercer a sua cidadania. Quem não tem registro de nascimento não pode obter diversos documentos, tais como o NIF ou CPF, a carteira de trabalho, o número de segurança social, o cartão de eleitor. Consequentemente, vê-se privado da possibilidade de exercer os direitos e de cumprir os deveres que aos mesmos estão associados (de trabalhar; de contribuir com parte dos seus rendimentos para a segurança social e para o Estado em geral, de beneficiar dos sistemas de ensino e de saúde públicos, bem como de reforma ou aposentadoria). Acresce que sem registro de nascimento uma pessoa não pode abrir conta num banco, nem adquirir imóveis. Por fim, quem não existe no Registro Civil não tem liberdade de locomoção, pois, pelo menos, não se pode ausentar para o exterior do país onde nasceu. Ora, a liberdade de locomoção ou de movimento constitui a primeira forma de liberdade física que o ser humano teve de conquistar - a ela opõe-se à prisão. Recordamos ainda que o Registro Civil é o suporte que garante a efetividade de direitos constitucionalmente consagrados, tais como: À identidade pessoal (abrangendo a identidade de gênero), à filiação, à capacidade civil, à maternidade e à paternidade, à tutela da família, ao casamento. Em síntese, para cada pessoa, individualmente considerada, o Registro Civil representa o veículo de acesso ao "mundo dos direitos". Mas, o Registro Civil não assume relevância apenas individual, sendo inquestionável a sua importância para o Estado. O acabado de afirmar é inegável quando se tem presente que a população é o primeiro elemento de um Estado, desde logo, porque não é possível conceber um sem população. Acresce que qualquer Estado necessita de informações sobre a sua população para, adequadamente, gizar e concretizar políticas públicas. Por fim, recordamos que a existência de não registados gera desigualdade social, econômica, cultural, política, etc. e, portanto, consubstancia um problema da sociedade, o mesmo é dizer, do Estado. Ainda a propósito da importância do Registro Civil, cumpre referir que nas últimas décadas, em virtude do fenômeno da desjudiciarização, múltiplos processos e procedimentos deixaram de ser da competência do Poder Judiciário e passaram a ser dos cartórios do Registro Civil, com evidentes ganhos quanto à acessibilidade, simplificação procedimental, celeridade e efetividade, sem que fosse descurada a segurança jurídica, necessária à tutela dos interesses em causa. De fato, sob fio condutor da efetividade social3, muitos e importantes papéis passaram a ser desempenhados pelo Registro Civil: O reconhecimento voluntário de paternidade, a realização de casamentos homoafetivos, a alteração do nome próprio e/ou do sobrenome, a alteração do sexo mencionado nos documentos, etc. Ora, o que mais se destaca nestas novas atribuições, sem desprestigio das demais que compõem o expediente dos serviços de Registro Civil, é que promovem a liberdade de se ser o que se é, bem como, a igualdade de todos, entre si e perante o Estado, assim combatendo o preconceito e a discriminação. Em suma, estas novas atribuições do Registro Civil sobressaem porque asseguram ou realizam, efetivamente, a dignidade humana! Porque assim é, não se pode questionar a potencialidade de os serviços de Registro Civil virem a assumir novas competências. 3. Três antigas questões a propósito do Registro Civil: A) Por que razão o valor acrescentado pelo Registro Civil não se evidencia de forma notória? - Em face das vantagens proporcionadas pelo Registro Civil, numa primeira reflexão, tende-se a considerar estranho o fato de Este ser subvalorizado. Não obstante, a resposta à questão colocada - Por que razão o valor acrescentado pelo Registro Civil não se evidencia de forma notória? - é simples: A mais-valia gerada pelo Registro Civil é subvalorizada porque é um dado adquirido! Explicitemos o afirmado, com uma comparação: A baixa de Lisboa está toda ela assente em grandes vigas de madeira enterradas a grande profundidade. Sem estas vigas invisíveis tal parte da cidade afundar-se-ia. E, no entanto, a generalidade das pessoas que por ela passeia ou que nela vive não têm real consciência da importância vital de tais vigas. O mesmo acontece com o Registro Civil! Enquanto existe quase que não se não se dá conta dele, se faltasse todos notariam! B) O Registro Civil deve continuar a cargo do Estado? - Tendo em conta todo o exposto, a resposta a esta questão parece-nos inequivocamente afirmativa. Mais, na nossa perspectiva, a prestação de serviços de Registro Civil deve competir exclusivamente ao Estado, não devendo ser repartida com entidades privadas.4 Designadamente, tendo em conta a imensa base de dados existente nos serviços de Registro Civil e a imperiosa necessidade de a mesma ser gerida de modo muito cauteloso. A propósito do acabado de defender, recordamos que Arnold Toynbee5, um dos historiadores europeus mais importantes do século XX, escreveu como na Alemanha e no regime de Hitler, os judeus foram sistematicamente isolados da vida económica e política, antes de serem eliminados fisicamente, e como tal só foi possível por o regime ter beneficiado da informação que proporcionava um sistema "eficiente" de Registro Civil - em pouco tempo foi possível identificá-los, determinar, com precisão, o número das suas propriedades e empresas, tendo-se, assim, iniciado a perseguição econômica com a publicação de leis que os proibia de, por exemplo, exercer medicina, enfermagem ou advocacia, subscrever seguros, constituir empresas ou aceder à propriedade. Um ano foi suficiente, naquela época, para conseguir centralizar toda a informação sobre os judeus e empreender a perseguição. É claro que não foi a perfeição do Registro Civil germânico que esteve na base da espoliação dos judeus. Todos sabemos que a verdadeira causa esteve na doutrina que os considerava seres a exterminar. Mas, o exemplo revela a enorme importância da base de dados existente nos serviços de Registro Civil e a necessidade de ela ser utilizada de modo extremamente prudente, maxime em um século no qual os dados são o novo petróleo, mas, ou por isso, se tornou inegável o direito fundamental à proteção dos dados pessoais.  C) Devem determinados atos do Registro Civil ser gratuitos? Como anteriormente afirmamos, o Registro Civil garante o acesso de todas as pessoas  ao "mundo dos direitos", promove a liberdade de se ser o que se é, a igualdade de todos - entre si e perante o Estado -, combatendo o preconceito e a discriminação e realizando, efetivamente, a dignidade humana! Ora, assim sendo, a gratuidade, reduzindo o sub-registro e a informalidade, é imprescindível para cada pessoa em si e por si, para a sociedade e para o Estado. Sendo, para nós, tal incontestável, também consideramos inquestionável que sempre que as funções registais não sejam exercidas directamente pelo Estado, mas por entidades privadas em regime de delegação ou concessão, estas devem receber a contraprestação correspondente à sua actividade, devendo a gratuitidade ser assegurada a expensas do Estado, o mesmo é dizer, de todos os seus cidadãos.6 4. Alguns desafios do Registro Civil na Atualidade No mundo pós-moderno e globalizado ocorreu e ocorre um fenómeno de convergência entre a evolução da tecnologia e a modificação do direito substantivo aplicável ao Registro Civil. Tal fenômeno caracteriza-se por duas particularidades: Grande amplitude; Extrema rapidez. Quanto à evolução da tecnologia, escusamos de tecer qualquer comentário, pois é um facto inegável. A propósito das mudanças do direito substantivo aplicável ao Registro Civil limitamo-nos a recordar: a admissibilidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo7; o reconhecimento de efeitos à união de facto/união estável; o reconhecimento do direito à mudança do nome próprio e do sobrenome; o reconhecimento do direito a ver alterada a menção do sexo feita nos documentos; a admissibilidade da gestação de substituição/"barriga de aluguer".8 A evolução da tecnologia impõe um Registro Civil Digital - como já existe, por exemplo, na Suíça, na Estónia e na Rússia  -, no entanto, inegavelmente, envolve riscos, tais como: Erros de transcrição; fraude; possibilidade de "hackeamento". As mudanças no direito substantivo, por seu turno, têm, necessariamente, de ser espelhadas no Registro Civil, mas, como se sabe, ambas podem ser indevida e abusivamente utilizadas.  Designadamente: ¾ a mudança do nome próprio em um País e do sobrenome em um outro pode verificar-se com o intuito de dificultar a identificação. ¾ a mudança da menção do sexo nos documentos pode, em abstrato, ocorrer para se  obter gratuitamente a alteração do nome (assim, onde a mudança de nome próprio tem um custo, mas a mudança da menção do sexo e nome é gratuita) ou porque se intenta cometer violência de gênero e por ela não ser punido ou, ainda, porque se pretende garantir que em caso de prisão se cumprirá pena em um instituto prisional feminino. Em face do acabado de afirmar são, inequivocamente, múltiplos os desafios com que se depara o Registro Civil na atualidade. Acresce que, temos por certo, muitos outros reptos surgirão. A título de mero exemplo, basta recordar o facto de a abordagem binária estar a ser repudiada tendo já conduzido a que: ¾ A Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, através da Resolução 2.191 (2017), apelasse aos Estados Membros do Conselho da Europa, no que diz respeito aos estado civil e ao reconhecimento legal de género, que assegurem - sempre que as classificações de gênero sejam utilizadas pelas autoridades públicas - que esteja disponível, para todas as pessoas (incluindo as pessoas intersexuais que não se identificam nem como homens nem como mulheres), um leque de opções de marcadores de gênero. Sugerindo, em consonância com o que tem vindo a ser defendido na comunidade internacional, como alternativa à criação de marcadores não-binários, vir a tornar-se opcional, para todos, o registro do sexo nos assentos de nascimento e noutros documentos de identidade. ¾  A ordem jurídica Alemã  introduzisse a "categoria" diversificado ou diverso (cfr. § 22 (3) Personenstandgesetz). ¾ Em março de 2024, no Brasil, fosse emitida uma certidão de nascimento declarando que a pessoa é intersexo. __________ 1 Por todos, vide: Carlos Ferreira de Almeida, Publicidade e Teoria dos Registos, Coimbra, Almedina, 1966, pág. 137 e ss.; J. Seabra LOPES, Direito dos Registos e do Notariado, 3.ª edição, Almedina, 2005, p. 37 e ss.; Donato Sarno, Storia dei Registri dello Stato Civile, Halley Editrice, 2010; Hércules Aghiarian, Da constitucionalização da atividade notarial e registral. In Moderno Direito Imobiliário, Notarial e Registral. São Paulo: Quartier Latin, 2011; Mouteira Guerreiro, Manual de Registo Civil, da Identidade Civil e da Nacionalidade, Almedina, 2023, p. 25 e ss. e Noções Básicas de Registo Civil, in Temas de Registos e de Notariado, Almedina, Janeiro de 2010, pág. 137 e ss.; Marcelo gonçalves Tiziani, Uma Breve História do Registro Civil na Antiguidade, disponível in: https//jus.com.br/artigos/42691/uma-breve-historia-do-registro-civil-na-antiguidade, consultado a 1 de Julho de 2024. 2 Recordamos que no art. 7, Título II, da Constituição Francesa de 1791, podia ler-se: A lei considera o matrimônio como um contrato civil. O Poder Legislativo estabelecerá para todos os habitantes, sem distinção, o modo em que se constatarão os nascimentos, matrimônios e falecimentos e designará os oficiais públicos que receberão e conservarão os atos. 3 Efetividade traduz-se na junção de eficácia e de eficiência, pois representa a capacidade de se fazer uma coisa (eficácia) da melhor maneira possível (eficiência), atingindo os objetivos visados, que geram impactos sociais ou individuais. 4 Questão diversa é a de saber as funções registais devem ser exercidas directamente pelo Estado - como ocorre, por exemplo, em Portugal e em Espanha - ou, ao invés, por entidades privadas em regime de delegação ou concessão - como acontece no Brasil. Isto porque, quer numa hipótese quer noutra, a ordenação dos Registros é da competência exclusiva do Estado, sendo inquestionável a natureza pública dos Registros. 5 ARNOLD TOYNBEE, La Europa de Hitler, Sarpe,1985, p. 119 e 120. 6 Por todos, vide: José Renato Nalini, Registro Civil das Pessoas Naturais: usina de cidadania. In: DIP, Ricardo Henry Marques (Org.). Registros Públicos e Segurança Jurídica. 1. ed. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1998. 7 Recorde-se que na Grécia, o casamento entre pessoas do mesmo sexo apenas foi legalmente admitido a15 de Janeiro de 2024. 8 Sublinhe-se que, por exemplo, em França, o artigo 16-7 do Código Civil, ainda proíbe qualquer acordo relativo à gestação de substituição.
No ano de 1946 duas decisões foram publicadas no Diário Oficial da Justiça do dia 17/9 (p. 3). Ambas versavam sobre a modernização do sistema de lavratura de atos notariais. As representações foram feitas pelo 15º Tabelionato da Capital e pelo Tabelião Vampré. No Processo CG 4.063 (15 TN) requeria-se autorização para o uso de máquinas de escrever especiais (Elliot-Fischer) para lavrar escrituras em livros de notas. O corregedor geral, des. Amorim Lima, autorizaria o emprego da técnica, "desde que a tinta seja indelével e a impressão seja feita diretamente no livro, sem danificar a encadernação". Já no Processo CG 4.071, no pedido formulado pelo Tabelião Vampré, seria negada a autorização para lavratura dos atos notariais em folhas avulsas. "Há grandes inconvenientes na lavratura de notas em papéis avulsos, para encadernação posterior", diz o mesmo corregedor. A melhor solução estaria no emprego de máquinas de impressão direta, conforme já autorizado. As duas decisões marcam um importante momento de renovação dos meios tecnológicos postos à disposição dos notários brasileiros. Militão Antônio dos Santos, que foi escrevente habilitado do 22º Tabelionato da Capital de São Paulo (depois serventuário, cargo no qual se aposentou pelo IPESP) escreveu opúsculos muito interessantes na décadas de 50. Ademar Fioranelli me presentou o "Coisas de Cartórios", edição de junho de 1951, muito caprichada. Há nele uma dedicatória ao Dr. Daphnis de Freitas Valle, antecessor do querido Ademar. Diz ele nesta preciosidade: "Muitos dos atuais Serventuários e escreventes ainda se recordam dos velhos tempos em que, nos cartórios, os traslados de escrituras, as certidões, públicas-formas, e todos os atos processuais só podiam ser manuscritos. Lembram-se, também, de quanto tempo e esforço foi necessário para que as vantagens e a perfeição do serviço mecanografado pudessem dominar o velho preconceito de que, para autenticidade e segurança daqueles instrumentos notariais e papeis judiciais, os mesmos só deveriam ser escritos do próprio punho dos Serventuários ou de seus escreventes e copistas. Entretanto, apesar do progresso alcançado nos tabelionatos de notas, por motivos vários, a lavratura de escrituras e procurações continua, como antigamente, a ser feita do próprio punho. Por se tratar de atos que só podem ser lavrados em livros, devendo, estes, por determinação legal, serem abertos, rubricados e encerrados pelo Juiz competente, tem sido mais difícil, quanto a eles, a generalização da mecanografia. Surgem, porém, aos poucos, graças à inteligente iniciativa de alguns Serventuários progressistas, novas ideias para modernização daquele serviço". (SANTOS, Militão Antônio dos. Coisas de Cartórios. São Paulo: Ed. Autor, junho de 1951, p. 53). _________ Militão cita duas decisões cujas íntegras podem ser acessadas na Kollemata. Disponível aqui.
O direito à herança, assegurado pelo artigo 5º, inciso XXX, da Constituição Federal de 1988, é um dos direitos fundamentais. O Código Civil brasileiro, em seus artigos 1.784 a 2.027, estabelece as regras e procedimentos para o exercício desse direito. Quando um herdeiro aceita uma herança, pode fazê-lo de maneira expressa, por meio de um documento formal, ou tácita, através de ações que evidenciem a aceitação. Em ambas as formas, ele assume tanto os direitos quanto as responsabilidades da herança, com o mesmo efeito legal. Por isso, a aceitação deve ser expressa é formalizada por uma declaração escrita, enquanto a aceitação tácita resulta de comportamentos que mostram a aceitação dos bens e das obrigações da herança, disposto no artigo 1.805, §1º e §2º do Código Civil.   Conforme Luiz Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira1 Se o herdeiro aceita a herança, quer de forma expressa ou tácita, posterior renúncia é ineficaz. Aliás, uma aceitação expressa, por escrito, dificilmente é encontrada. Comum, porém, é a aceitação tácita, e o herdeiro outorga procuração ao advogado, entra no processo ou requer a abertura do inventário e já aceitou a herança de forma definitiva. O Código menciona as duas formas de aceitação: expressa e tácita. Ir ao funeral, à missa de sétimo dia, pagar uma conta hospitalar de seu falecido pai não pode ser considerada como aceita a herança. É preciso que ele pratique um ato inerente, como, por exemplo, contratar um advogado para defender um bem que tenha sido invadido, ou, até mesmo, cobrar alugueis do inquilino. A aceitação é ato jurídico simples, sem maiores formalidades. Segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo aceita a herança, tácita ou expressa, não pode mais haver renúncia a ela. Jurisprudência: INVENTÁRIO Herança Renúncia Descabimento Herança aceita inequivocamente pela agravante, que ajuizou o inventário declarando-se herdeira universal aceita a herança, tácita ou expressamente, não pode mais haver renúncia a ela Arts. 1805 e 1812 do CC Decisão mantida Recurso desprovido. (TJSP2 - (Relator(a): Rui Cascaldi; Comarca: São Paulo; Órgão julgador: 1a Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 06/08/2013; Data de registro: 13/08/2013).                          No âmbito tributário, após a aceitação da herança, o herdeiro deve declarar os bens recebidos e pagar o Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD), conforme as normas e alíquotas estipuladas pela legislação do estado onde o falecido residia. A aceitação da herança é um passo essencial no processo sucessório, mas não constitui, por si só, o fato gerador do imposto. Noutro giro, temos o artigo 1.806 do Código Civil aborda a renúncia de direitos hereditários, que é quando um herdeiro decide não aceitar a herança por qualquer motivo, nesse caso, a renúncia pode ser feita de forma abdica­tiva, ou seja, o herdeiro desiste da herança, e a parte que lhe caberia é incorporada ao total a ser dividido entre os outros herdeiros. A renúncia também é definitiva e jamais poderá o herdeiro arrepender-se. No contexto tributário, a renúncia à herança não acarreta obrigação tributária para o renunciante, pois não há transferência ou alienação da herança; ele apenas deixa de ser herdeiro, como resultado, os demais herdeiros, que permanecem na mesma linha de descendência ou que se tornam herdeiros devido à renúncia e assumem a responsabilidade tributária. De acordo com Luiz Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira3 A lei prevê duas formas de renúncia: abdicativa e translativa. Aquele é a renúncia pura e simples e este é um ato complexo, porque implica em aceitação e transferência do direito para outrem. A renúncia abdicativa deve ser feita "em benefício do monte", isto é, a pessoa renúncia e os remanescentes (aceitantes) recolherão a herança. Quando a renúncia é abdicativa não gera tributo, A lei não consagra a renúncia tácita, deve ela ser expressa e cumprir o renunciante as formalidades legais. Faz-se por escritura pública ou instrumento autêntico. Na prática do dia a dia, os herdeiros outorgam ao advogado uma procuração por instrumento público, conferindo-lhe poderes para renunciar a herança. O herdeiro já disse ao magistrado que não quer, e será lavrado, no processo de inventário, um termo de renúncia, que deverá ser assinado pelo advogado, que recebeu os poderes em instrumento público. Há muitos anos, e acontece, também, em pequenas comarcas do interior, o advogado colhe a assinatura do renunciante em procuração por instrumento particular. Se o juiz for mais rígido, mandará que seja lavrada a renúncia formal, exigindo que o herdeiro a assine. Nesse ínterim, a Jurisprudência do Tribunal de Justiça de Santa Catarina é condição sine qua non à validade da renúncia da herança a sua formalização na forma pública, isto é, através de escritura pública, ou mediante termo nos autos de inventário. Jurisprudência: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE NULIDADE DE PARTILHA. RENÚNCIA DA HERANÇA. FORMALIZAÇÃO POR TERMO NOS AUTOS. RENUNCIANTES REPRESENTADOS POR PROCURADOR MUNIDO DE PROCURAÇÃO PARTICULAR. INVALIDADE DO ATO. NECESSIDADE DE INSTRUMENTO PÚBLICO DE MANDATO, COM PODERES ESPECÍFICOS, OU O COMPARECIMENTO PESSOAL DE TODOS OS HERDEIROS RENUNCIANTES EM JUÍZO, OU, AINDA, A CONFECÇÃO DE ESCRITURA PÚBLICA DE RENÚNCIA (ART. 806 DO CC/2002). PARTILHA NULA. SENTENÇA REFORMADA. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. É condição sine qua non à validade da renúncia da herança a sua formalização na forma pública, isto é, através de escritura pública, ou mediante termo nos autos de inventário, neste caso, com o comparecimento pessoal de todos os herdeiros renunciantes em juízo, ou, se representados, que o procurador esteja munido de instrumento público de mandato, com poderes específicos, não sendo suficiente a procuração particular.(TJ-SC - AC: 20111028065 SC 2011.102806-5 (Acórdão), Relator: Stanley da Silva Braga, Data de Julgamento: 15/08/2012, Sexta Câmara de Direito Civil Julgado). O Superior Tribunal de Justiça (STJ) também se manifestou no sentido de que a renúncia é um ato solene. A renúncia da herança é ato solene, exigindo o artigo 1.806 do CC, para o seu reconhecimento, que conste "expressamente de instrumento público ou termo judicial", sob pena de nulidade (CC, artigo 166, IV), não produzindo nenhum efeito, sendo que "a constituição de mandatário para a renúncia à herança deve obedecer à mesma forma, não tendo validade a outorga por instrumento particular (REsp 1.236.671/SP, Rel. p/ acórdão Ministro SIDNEI BENETI, Terceira Turma, julgado em 09/10/2012, DJe de 04/03/2013). Na hipótese, o Tribunal de origem não considerou válida a constituição de mandatário por instrumento particular pela viúva-meeira do falecido para o fim de renúncia translativa à sua parte da herança. Incidência da Súmula 83/STJ. Agravo interno a que se nega provimento. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da QUARTA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, negar provimento ao recurso, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Luis Felipe Salomão, Maria Isabel Gallotti, Antonio Carlos Ferreira e Marco Buzzi votaram com o Sr. Ministro Relator. Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Luis Felipe Salomão. Brasília, 11 de abril de 2022. Ministro RAUL ARAÚJO Relator. Agora, vamos explorar a complexa Cessão de Direitos Hereditários, um dos temas mais intrincados e relevantes desse artigo, esse mecanismo é essencial para herdeiros que desejam transferir sua parte antes da conclusão do inventário, a cessão envolve questões jurídicas e sociais complexas e requer uma atenção meticulosa dos requisitos legais para assegurar a validade do acordo. Dessa forma, ocorrendo o falecimento de uma pessoa, dá-se início ao processo sucessório, no qual os bens deixados são divididos e transferidos aos herdeiros, que assumem tanto os direitos quanto as responsabilidades associadas ao patrimônio. Oportuno mencionar, o registrado pela professora Diniz4, que: O princípio da Saisine, em um sistema de direito civil, o possuidor tem um bem que é presumido como o seu legítimo proprietário, a menos que se prove o contrário, ou seja, a posse de um bem é suficiente para que o possuidor seja considerado como seu proprietário, até que se demonstre a existência de um direito de propriedade conflitante. A professora Diniz5, ensina que: O princípio da Saisine discutido no âmbito das sucessões, afirma que a transferência da propriedade ocorre automaticamente com o falecimento do proprietário, o princípio da Saisine é a regra que estabelece que, com o falecimento do titular, a propriedade é transferida imediatamente para os herdeiros, dispensando qualquer formalidade adicional para a efetivação da transferência imediatamente para os herdeiros. Ademais, vale a pena relembrar ainda, o conceito do pacto de corvina, ou "pacta corvina", que é sendo um acordo que se refere à herança de uma pessoa ainda viva. A expressão, derivada do latim, traduz-se como "acordo do corvo", aludindo aos hábitos alimentares dessa ave que aguarda a morte de suas vítimas para se beneficiar dos restos mortais. Tal acordo é explicitamente proibido pelo Código Civil, conforme disposto no artigo 426, evidenciando sua natureza antiética e a necessidade de respeitar as disposições legais sobre a sucessão. Passando-se por essas considerações, a renúncia e a cessão de direitos hereditários fazem-se necessário a manifestação de vontade relativa à herança que deve ser formalizada por meio de instrumento público ou por termo judicial nos autos para garantir sua validade, o prazo para essa formalização inicia-se a partir do momento do falecimento do titular da herança e se estende até a efetiva partilha dos bens. Ademais, é relevante destacar que, na cessão de direitos hereditários, há a incidência de impostos, o que deve ser considerado no processo de transmissão que veremos a frente. Desse modo, a cessão de direitos hereditários constitui um procedimento jurídico pelo qual um herdeiro transfere a outra pessoa os direitos que lhe cabem sobre a herança de um falecido. Em termos práticos, isso significa que o cessionário a pessoa que recebe os direitos adquire o direito de receber a parte da herança que originalmente pertencia ao cedente o herdeiro que está transferindo os direitos. Esse processo pode ser formalizado por meio de escritura pública ou por termos nos autos, conforme estipulado pelos artigos 1.793 e 1.806 do Código Civil, sob pena de nulidade. Sublinhamos e grifamos. Veja bem, o Código Civil em vigor, estabelece o artigo 1.793, §1º, §2º e §3º "o direito à sucessão aberta, bem como a quota-parte do co-herdeiro, pode ser objeto de cessão por escritura pública". Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira6 ensina como elaborar cessão de escritura pública, vejamos: A cessão do direito pode ser alienado pelo herdeiro a outrem, obedecidas as regras para tal. Em primeiro lugar, somente pode ser feita por escritura pública, dando-se preferência aos demais coerdeiros. Se houve abertura de inventário, necessária, também, a prévia autorização do juiz do feito. A cessão é genérica, não podendo o cessionário determinar o bem alienado, porque todos são titulares da universalidade, até que a partilha seja ultimada e homologada por sentença. Ocorre a cessão, a miúdo, quando o interessado quer "dinheiro" e o processo demora mais que o devido. Deve, então, oferecer aos outros, diretamente ou por intermédio de petição no curso do processo. Se o juiz deferir o requerimento, estará habilitado o herdeiro ceder parte ou a totalidade do seu direito. O estranho deve ser evitado, porque dificultará concluir o processo, ddesejoso de receber um certo bem. Deixando de requerer a prévia autorização do juiz, ineficaz será a cessão, pois todos os bens estão arrolados no inventário. Em face disso, no caso da escritura será necessário que todos os herdeiros estejam presentes e concordes para que o cessionário possa realizar o inventário extrajudicial, ele deve apresentar a escritura de cessão de direitos hereditários no momento da lavratura da escritura pública de inventário para habilitação, e se for caso o caso adjudicação, com a presença e anuência de todos os herdeiros, que devem ser maiores e capazes, o cessionário poderá receber a parte do acervo hereditário a que tem direito conforme estabelecido, nos termos do art. 16 da Resolução nº 35, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Na parte da herança e de sua administração o co-herdeiro não está autorizado a transferir sua parte da herança para uma pessoa que não faz parte da sucessão, caso outro co-herdeiro tenha interesse em adquirir essa parte nas mesmas condições. Por outro lado, o co-herdeiro que não for informado sobre a cessão pode adquirir a quota transferida a um terceiro, desde que pague o valor correspondente à parte cedida e faça a solicitação dentro de cento e oitenta dias após a cessão, esse prazo assegura que todos os co-herdeiros tenham a oportunidade de exercer o direito de preferência e garante uma distribuição justa das partes da herança. Segundo o artigo 1.794 do Código Civil brasileiro, quando um herdeiro pretende ceder sua parte da herança a um terceiro, os co-herdeiros têm o direito de preferência para adquirir essa parte nas mesmas condições oferecidas ao terceiro, isso significa que os co-herdeiros podem adquirir a quota cedida antes que ela seja transferida para alguém de fora da sucessão. Se vários co-herdeiros estiverem interessados em exercer o direito de preferência sobre a quota cedida, a divisão dessa parte será feita conforme a proporção das quotas hereditárias de cada um. Ou seja, a parte cedida será repartida entre os co-herdeiros interessados de acordo com a participação de cada um na herança, garantindo que a divisão respeite a participação de cada herdeiro no espólio. Nesse cenário, o direito de preferência na cessão de direitos hereditários, surge como um elemento crucial do instituto, assegurando aos herdeiros já envolvidos no processo sucessório a prioridade na aquisição dos direitos transferidos, garantindo a proteção dos interesses de todos os participantes. Nesse ínterim, a jurisprudência tem consolidado o entendimento de que é nulo o negócio jurídico que não observe a exigência legal de anuência no instrumento público para a cessão onerosa de direitos hereditários. Jurisprudência: Agravo de instrumento. Inventário. Cessão de direitos hereditários declarada inválida por desrespeitar forma expressa prevista em lei que exige instrumento público. Discordância do agravado. Impossibilidade de reduzir a termo nos autos. Recurso improvido. (TJSP- Relator (a): Pedro de Alcântara da Silva Leme Filho; Comarca: São Paulo; Órgão julgador: 8a Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 20/10/2015; Data de registro: 20/10/2015). EMENTA: DECLARAÇÃO DE NULIDADE DO NEGÓCIO JURÍDICO- CESSÃO ONEROSA DE DIREITOS HEREDITÁRIOS - DIREITO DE PREFERÊNCIA - CIÊNCIA DOS HERDEIROS NÃO CEDENTES - INÉRCIA - DECADÊNCIA. Nos termos do art. 1.795 do CC, "o coerdeiro, a quem não se der conhecimento da cessão, poderá, depositado o preço, haver para si a quota cedida a estranho, se o requerer até cento e oitenta dias após a transmissão." O Código Civil não veda que se demonstre a ciência a respeito da cessão por qualquer meio de prova. (TJMG - Apelação Cível 1.0011.08.020032-9/001, Relator (a): Des. (a) Evangelina Castilho Duarte, 14a CÂMARA CÍVEL, julgamento em 01/09/2014, publicação da súmula em 10/11/2014). Com efeito, é importante reafirmar que a herança é classificada como bem imóvel de acordo com o art. 80, II, do Código Civil, e pode ser transmitida de forma gratuita ou onerosa. Quando a transmissão ocorre de maneira gratuita, assemelha-se à doação, estando sujeita ao Imposto sobre a Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD). Em contraste, na transmissão onerosa, que se equipara à compra e venda, incide o Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis Inter vivos (ITBI). É imperativo considerar essas distinções para assegurar a correta aplicação dos tributos conforme a modalidade de transmissão do bem. Noutro giro, passando por todas as considerações, fazemos a pergunta mais importante, é possível registrar a escritura de cessão de direitos hereditários, aceitação ou renúncia no registro de imóveis? A resposta é clara, não, a doutrina e jurisprudência também diz que não! Assim sendo, importante observar que a lei de registros públicos nº 6.015/73, não prevê expressamente que a aceitação, cessão ou renúncia dos direitos hereditários seja considerada um título hábil para o registro de imóveis.   Posto isto, tal escritura não consta do rol taxativo de documentos estabelecidos pelo artigo 167 da referida lei, não fica de forma expressa na parte dos atos de registro/averbação da referida lei, muito menos no Código Civil ou qualquer outra legislação esparsa que fundamente a prática de considerar termo ou escritura como título hábil para o registro de imóveis. Pois bem, dito isso não poderia faltar as sábias palavras do registrador paulista Ademar7  Fioranelli sobre CESSÃO DE DIREITOS HEREDITÁRIOS em sua obra de Direito Registral Imobiliário. Os contratos versando sobre herança, de forma geral, são instrumentalizados como sendo de "cessão de direitos hereditários", estipulando a respeito da massa hereditária ou objetivando imóvel certo e determinado integrante de determinado monte partível. É inerente a esses tipos de contratos relevante aspecto jurídico, que os submete aos mesmos princípios reguladores da compra e venda, o que tem merecido, no decorrer dos tempos, ampla e considerável discussão por parte dos doutrinadores - e não menor apreciação pelos nossos julgadores no sentido de se fixar o seu acesso, ou não, ao Registro Imobiliário. A matéria já foi enfrentada pelo C. Supremo Tribunal Federal, que defendeu a posição da recepção do título no assento registral (RF 110/77 e 122/134). Hoje, a nosso ver, não há mais dúvida a respeito, tendo a jurisprudência administrativa registral solidificado ? entendimento da impossibilidade do seu ingresso, por ferir princípios básicos do direito imobiliário, tais como os da continuidade, especialidade, disponibilidade, e, também, por ausente no elenco taxativo do inc. I do art. 167 da Lei 6.015/73. Consagra o entendimento, ainda, que o direito à herança é considerado imóvel apenas por ficção legal, cabendo ao cessionário de tais direitos pleitear no inventário o pagamento em partilha do que coubesse ao cedente, como sub-rogado nos direitos deste último. Resumindo: o direito do herdeiro só se materializa com a partilha. Sua cota é ideal, e só se torna certa pela partilha, faltando, assim, os elementos que permitam o lançamento no Registro Imobiliário. O registro, se permitido, desprezaria os já citados princípios registrários, que, rigorosamente, devem ser preservados, fato não observado nas decisões prolatadas pelo C. Supremo Tribunal Federal. Neste sentido: "Direitos hereditários não são suscetíveis de registro, consoante a jurisprudência pacifica do Conselho; e o compromisso de compra e venda não tem objeto determinado, precisamente porque ainda não houve partilha e especificação dos bens inventariados... Além disso, o registrador, em seu artigo, continua apresentando argumentos que estão em consonância com sua visão predominante na jurisprudência e na doutrina, no que diz respeito à impossibilidade do registro da cessão de direitos hereditários... (Ap. civel 6.861-0, São Caetano do Sul, 13.4.87, CSMSP, Rel. Des. Sylvio do Amaral) "Depois, oportuno é salientar que direitos hereditários não são passíveis de ingresso no Registro de Imóveis." "Cabe ao interessado ultimar os inventários nos quais possui direitos e providenciar o registro do formal de partilha." (Ap. cível 4.258-0, Jacupiranga, 15.7.85, CSMSP, Rel. Des. Nélson Pinheiro Franco) O ilustre Magistrado Kioitsi Chicuta, ao decidir dúvida por mim suscitada no proc. 382/90, em 6.9.90, perante a 1.a Vara de Registros Públicos da Capital de São Paulo, assim decidiu: "A herança, como é cediço, constitui uma universitas juris, um complexo ideal, composto de direitos e obrigações, móveis e imóveis. E. enquanto não solidificado o direito do herdeiro sobre determinado bem, através da partilha, não se pode dar acolhida a título que instrumenta cessão de direito sobre parte ideal de um bem integrante do monte, sob pena de ofensa aos princípios da continuidade e da especialidade." Claro que, figurando na matrícula ou transcrição anterior o de cujus como proprietário disponente, diverso do que, no título, figura como transferente (o cedente dos direitos hereditários), o ato pretendido, sem a prévia mudança da titulariedade, vulnera a consecutividade do registro, conforme regra expressa continuada nos arts. 195 e 237 da Lei 6.015/73, interligado ao da disponibilidade, que se vincula ao enunciado de que ninguém pode transmitir o que não detém, ou no dizer dos latinos: "nemo dat quot non habet". A impossibilidade do registro das aquisições do direito à sucessão aberta é reconhecida, também, pela maioria dos doutrinadores, destacando-se os seguintes: Afrânio de Carvalho (Registro de Imóveis, forense, 1976, p. 49 e 270); Walter Ceneviva (Normas do Registro de Imóveis, Freitas Bastos, 1988, p. 102). Nesta linha, destacamos as palavras do mestre Serpa Lopes, que salienta: "[...] em relação à cessão de direitos hereditários cumpre salientar que, nada obstante ser considerado imobiliário o direito à sucessão aberta, não está subordinada ao Registro de Imóveis." (Tratado dos Registros Públicos, 1955, vol. III, p. 295) O autor deste trabalho não descarta a possibilidade do registro de escritura de cessão de direitos hereditários quando, no momento da sua apresentação a registro, já tiver sido registrado o formal de partilha do falecido, no qual tenha sido tocado ao herdeiro cedente o mesmo imóvel objeto do título. Este, então, será recepcionado como compra e venda, já que a simples denominação dada ao negócio jurídico não altera a sua essência, como, aliás, dispõe o art. 85 do CC. Neste caso, se a cessão era antes tida como condicional, deixou de sê-lo no instante em que o imóvel passou a figurar, in tabula, em nome do cedente e que passou a ter a disposição da coisa. Contudo, a escritura serve apenas como um título para que o cessionário possa se habilitar no processo de inventário judicial ou extrajudicial, assumindo, para todos os efeitos legais, a condição de herdeiro, consequentemente, o cessionário pode requerer a abertura da sucessão e a partilha dos bens, conforme previsto no artigo 1.772, parágrafo primeiro, do Código Civil. Após a habilitação no inventário, é o formal de partilha que concede ao cessionário o direito de propriedade sobre o imóvel. Este documento formal de partilha constitui o título que deve ser apresentado para registro no cartório de imóveis, conforme preconizado no artigo 167, inciso I, da Lei nº 6.015/73. Portanto, a formalização da cessão de direitos hereditários exige escritura pública, todavia, reafirmamos que não encontra guarida no Registro de Imóveis, refletindo a especificidade e fala as limitações previstas pela legislação vigente. Segundo os artigos 16, 17, 18 e 19 da Resolução nº 35 do CNJ, a renúncia deve ser feita de forma clara e inequívoca para garantir seu reconhecimento formal, quando houver renúncia ou partilha que implique em transmissão, os cônjuges dos herdeiros devem comparecer à lavratura da escritura pública de inventário e partilha, exceto no regime de separação absoluta de bens. Dito isso, o(a) companheiro(a) com direito à sucessão deve ser incluído, podendo ser necessário recorrer à decisão judicial se não houver consenso sobre a união estável ou sobre outros herdeiros. A meação do(a) companheiro (a) pode ser reconhecida na escritura pública, desde que todos os herdeiros e interessados, plenamente capazes, estejam presentes e concordes. Para concluir, é evidente que os pontos abordados, destacam a análise das escrituras públicas de aceitação, renúncia e cessão de direitos hereditários, e revela a complexidade e a especificidade dos procedimentos relacionados à herança no direito brasileiro, apesar de sua importância na formalização e regulamentação dos direitos sucessórios, essas escrituras não são aptas para registro diretamente no Cartório de Registro de Imóveis. Isso se deve ao fato de que a Lei de Registros Públicos e o Código Civil brasileiro não incluem explicitamente tais escrituras no rol de atos aceitos para registro. O registro de imóveis é regido por princípios específicos, como continuidade, especialidade e disponibilidade, que não se aplicam diretamente às transações de direitos hereditários antes da partilha formal dos bens. A aceitação da herança, embora crucial para o processo sucessório, não resulta automaticamente na transferência de propriedade dos bens. A aceitação apenas confirma o status do herdeiro como titular dos direitos sobre a herança, sendo que a transferência real dos bens ocorre somente após a partilha. A renúncia à herança deve ser feita de forma expressa e formal, conforme o artigo 1.806 do Código Civil, através de escritura pública ou termo judicial. A jurisprudência é clara ao exigir a formalização pública da renúncia, visto que o ato deve ser reconhecido formalmente para que produza efeitos legais. O mesmo princípio se aplica à cessão de direitos hereditários, que deve ser realizada por escritura pública e não pode ser registrada diretamente no Cartório de Registro de Imóveis. Todavia, no que tange à cessão de direitos hereditários, é importante destacar que, apesar de ser formalizada por escritura pública, a transferência de direitos hereditários não é imediatamente registrável no Cartório de Imóveis. O direito de preferência dos co-herdeiros e as exigências de formalização garantem que a cessão seja realizada de acordo com as normas legais, mas a efetiva transferência de propriedade só ocorre após a conclusão do inventário e a emissão do formal de partilha. Em conclusão, a formalização dos atos de aceitação, renúncia e cessão de direitos hereditários deve observar rigorosamente as exigências legais, distinguindo-se claramente do processo de registro de imóveis. O formal de partilha e a escritura de inventário são os documentos exclusivamente capacitados para efetivar a transferência de propriedade no Cartório de Imóveis. Por outro lado, embora as escrituras de aceitação, renúncia e cessão desempenhem um papel crucial na abertura, habilitação e conclusão do inventário, elas não têm a validade necessária para o registro de imóveis. __________ 1 Silva Paulo Cotrim e Samuel Mezzalira. Artigo 1805 do Código Civil Come. Direitocompontocom. Disponível aqui. Acesso em: 06 de agosto de 2024. 2 TJSP - Relator (a): Rui Cascaldi; Comarca: São Paulo; Órgão julgador: 1a Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 06/08/2013; Data de registro: 13/08/2013). 3 Silva Paulo Cotrim e Samuel Mezzalira. Artigo 1805. Direitocompontocom. Disponível aqui. Acesso em: 06 de agosto de 2024. 4 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Volume: 3 (Direitos Reais) 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2021. Volume: v. 3. p. 174. 5 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito das Sucessões. São Paulo: Saraiva, 2020. 6 Silva Paulo Cotrim e Samuel Mezzalira. Artigo 1805. Direitocompontocom. Disponível aqui. Acesso em: 06 de agosto de 2024. 7 Fioranelli, Ademar. Direito Registral Imobiliário. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2001. p. 515/517.
quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Multipropriedade mobiliária no mundo e no Brasil

Introdução A multipropriedade, também conhecida como propriedade compartilhada ou time-sharing, é um instituto jurídico que permite a múltiplos titulares compartilhar o domínio de um mesmo bem, de forma que cada um possa usar e gozar da coisa durante um período de tempo determinado (TEPEDINO, 2019, p. 5). Esse modelo de propriedade tem ganhado relevância nas últimas décadas, especialmente no setor imobiliário como uma alternativa para o acesso a bens de alto valor agregado, a exemplo dos imóveis de veraneio (OLIVEIRA, 2019, p. 23). No entanto, a multipropriedade não se restringe a bens imóveis, podendo incidir também sobre bens móveis, dando origem à denominada multipropriedade mobiliária. Essa modalidade, embora menos difundida que a imobiliária, apresenta grande potencial de expansão na medida em que permite o compartilhamento de bens como embarcações, aeronaves, veículos e equipamentos de alto custo (MARCATO, 2018, p. 15). O presente artigo tem por objetivo analisar o instituto da multipropriedade mobiliária, abordando seu conceito, características e regulamentação em diferentes países, com especial ênfase no tratamento conferido pelo projeto de lei 3.801/20, em tramitação no Congresso Nacional brasileiro. Conceito de Multipropriedade Mobiliária 2.1. Definição A multipropriedade mobiliária, à semelhança da imobiliária, pode ser definida como um regime de condomínio especial, no qual cada coproprietário é titular de uma fração de tempo, correspondente a um direito real de propriedade sobre um bem móvel corpóreo. Essa fração confere ao multiproprietário as faculdades de usar, gozar, fruir e dispor do bem com exclusividade, de forma alternada com os demais titulares, segundo as regras estabelecidas no memorial de instituição e na convenção do condomínio (MARCATO, 2018, p. 17). 2.2. Características A multipropriedade mobiliária apresenta algumas características distintivas em relação à propriedade tradicional. Em primeiro lugar, há uma dissociação entre a titularidade do direito e o uso do bem, uma vez que cada multiproprietário só pode exercer seus poderes durante o período correspondente à sua fração de tempo (TEPEDINO, 2019, p. 8). Além disso, o objeto da multipropriedade é indivisível, não se sujeitando a ações de divisão ou extinção de condomínio. Cada fração de tempo é, por sua vez, uma parte indivisível, à qual se vincula uma fração ideal do patrimônio condominial como um todo (MARCATO, 2018, p. 19). Outra característica relevante é a possibilidade de instituição da multipropriedade sobre um conjunto de bens da mesma espécie, e não apenas sobre um único bem. Nessa hipótese, os multiproprietários terão direito a usar os bens de forma alternada, segundo critérios predefinidos, o que confere maior flexibilidade e eficiência ao aproveitamento dos bens (OLIVEIRA, 2019, p. 27). 2.3. Direitos dos Multiproprietários Os multiproprietários têm direito a usar, gozar e fruir do bem durante o período correspondente à sua fração de tempo, com exclusividade. Podem, ainda, ceder sua fração em locação ou comodato, bem como aliená-la ou onerá-la livremente, independentemente da anuência dos demais multiproprietários (MARCATO, 2018, p. 22). No entanto, os multiproprietários também estão sujeitos a algumas obrigações, como o dever de contribuir para as despesas de conservação e manutenção do bem, proporcionalmente à sua fração ideal e de usar o bem segundo sua destinação, abstendo-se de atos que possam prejudicar os demais titulares (TEPEDINO, 2019, p. 12). 3.0. Multipropriedade Mobiliária no Mundo 3.1. França 3.1.1. Histórico A França foi um dos primeiros países a regulamentar a multipropriedade, inicialmente no setor imobiliário. A lei 86-18, de 6/1/86, disciplinou a multipropriedade imobiliária, estabelecendo regras para sua constituição, administração e extinção (SAINT-ALARY-HOUIN, 2019, p. 35). Posteriormente, a multipropriedade mobiliária também passou a ser admitida com base nas regras gerais do Direito Civil Francês. Embora não haja uma lei específica sobre o tema, a doutrina e a jurisprudência têm reconhecido a validade dessa modalidade de propriedade compartilhada (ATIAS, 2018, p. 42). 3.1.2. Regulamentação Legal Na ausência de uma lei específica, a multipropriedade mobiliária na França é regida pelas disposições gerais do Código Civil sobre a propriedade e o condomínio, com as adaptações necessárias. Aplicam-se, ainda, as normas de proteção ao consumidor, especialmente em relação aos contratos de aquisição de frações de tempo (SAINT-ALARY-HOUIN, 2019, p. 38). A doutrina francesa tem defendido a necessidade de uma regulamentação própria para a multipropriedade mobiliária, a fim de conferir maior segurança jurídica e transparência às relações entre os multiproprietários e destes com terceiros (ATIAS, 2018, p. 45). 3.1.3. Natureza Jurídica Segundo a doutrina majoritária francesa, a multipropriedade mobiliária constitui um direito real de propriedade sobre a fração de tempo, atribuindo ao multiproprietário as prerrogativas de usar, gozar e dispor do bem durante o período correspondente (SAINT-ALARY-HOUIN, 2019, p. 41). Trata-se, portanto, de uma forma de propriedade plena, ainda que limitada no tempo, e não de um direito real sobre coisa alheia. Nesse sentido, o multiproprietário pode alienar ou onerar sua fração de tempo, sem necessidade de anuência dos demais titulares (ATIAS, 2018, p. 48). 3.2. Alemanha 3.2.1. Regulamentação Legal Na Alemanha, a multipropriedade mobiliária é regulada pela lei de contratos de habitação temporária (teilzeit-wohnrechtegesetz), de 20/12/96. Essa lei estabelece normas específicas para a celebração de contratos que tenham por objeto o direito de uso temporário de bens móveis, como embarcações e veículos recreativos (SCHMIDT, 2019, p. 52). A lei alemã impõe uma série de requisitos formais e materiais para a validade desses contratos, visando a proteger os adquirentes de frações de tempo. Entre outras disposições, a lei prevê um direito de arrependimento em favor do adquirente, exercível no prazo de 14 dias após a celebração do contrato (SCHMIDT, 2019, p. 55). 3.2.2. Natureza Jurídica De acordo com a doutrina alemã prevalente, a multipropriedade mobiliária configura um direito real limitado, que confere ao titular o uso e gozo do bem durante o período de sua fração, mas com restrições quanto à faculdade de disposição (OECHSLER, 2018, p. 61). Isso porque, segundo essa corrente, a alienação ou oneração da fração de tempo depende da anuência dos demais multiproprietários, uma vez que pode afetar a destinação comum do bem. Trata-se, assim, de um direito real sui generis, que não se confunde com a propriedade plena (OECHSLER, 2018, p. 63). 3.3. Inglaterra 3.3.1. Aplicação da Multipropriedade Mobiliária Na Inglaterra, a multipropriedade mobiliária tem sido utilizada principalmente em relação a bens como iates e aeronaves, permitindo o compartilhamento dos elevados custos de aquisição e manutenção desses bens (SMITH, 2019, p. 68). A prática tem se disseminado por meio de arranjos contratuais variados, que vão desde a copropriedade tradicional até a constituição de clubes ou sociedades de proprietários, passando pela celebração de contratos de locação de longa duração (SMITH, 2019, p. 71). 3.3.2. Regulamentação Legal Não há, na Inglaterra, uma legislação específica sobre a multipropriedade mobiliária. Aplicam-se, assim, as regras gerais do direito contratual e do direito de propriedade, com as adaptações necessárias a cada caso concreto (SMITH, 2019, p. 74). Os tribunais ingleses têm reconhecido a validade e a eficácia dos arranjos de multipropriedade mobiliária, desde que observados os requisitos legais para a constituição e transferência da propriedade sobre bens móveis, bem como as normas de proteção ao consumidor (SMITH, 2019, p. 77). 3.3.3. Natureza Jurídica Na Inglaterra, prevalece o entendimento de que a multipropriedade mobiliária constitui um direito de propriedade pleno sobre a fração de tempo, incluindo os poderes de usar, gozar, fruir e dispor do bem durante o período correspondente (SMITH, 2019, p. 80). Esse direito é oponível erga omnes e pode ser livremente cedido ou transferido pelo multiproprietário, independentemente do consentimento dos demais titulares. Trata-se, portanto, de uma forma de propriedade individual, ainda que temporalmente limitada (SMITH, 2019, p. 83). 3.4. Espanha 3.4.1. Regulamentação Legal A Espanha conta com uma regulamentação específica para a multipropriedade mobiliária, introduzida pela lei 4/12, de 6/7, que estabelece normas sobre os contratos de aproveitamento por turno de bens móveis (GARCÍA GARNICA, 2019, p. 88). Essa lei define os requisitos para a celebração e execução desses contratos, os direitos e deveres das partes, as regras de publicidade e informação ao consumidor, entre outros aspectos. Aplica-se tanto aos contratos celebrados na Espanha quanto àqueles firmados no exterior, desde que envolvam bens situados em território espanhol (GARCÍA GARNICA, 2019, p. 91). 3.4.2. Natureza Jurídica Segundo a doutrina espanhola majoritária, a multipropriedade mobiliária configura um direito real de aproveitamento por turno, que atribui ao titular o uso e gozo do bem durante sua fração de tempo, mas com limitações quanto à faculdade de disposição (GARCÍA GARNICA, 2019, p. 94). Isso porque a lei espanhola condiciona a alienação ou oneração da fração de tempo à concordância dos demais multiproprietários, visando a preservar a destinação comum do bem. Trata-se, assim, de um direito real autônomo, distinto da propriedade plena (GARCÍA GARNICA, 2019, p. 97). 3.5. Portugal 3.5.1. Regulamentação Legal Em Portugal, a multipropriedade mobiliária é regulada pelo decreto-lei 275/93, de 5/8, que disciplina o direito real de habitação periódica. Embora essa norma se refira expressamente a imóveis, a doutrina e a jurisprudência têm admitido sua aplicação, por analogia, aos contratos de direito de habitação temporária em bens móveis (CARVALHO FERNANDES, 2018, p. 102). O decreto-lei português estabelece as regras para a constituição, exercício e extinção do direito de habitação periódica, bem como os requisitos de validade dos contratos que tenham por objeto esse direito. Prevê, ainda, normas de proteção aos adquirentes, como o direito de arrependimento e a proibição de práticas comerciais abusivas (CARVALHO FERNANDES, 2018, p. 105). 3.5.2. Natureza Jurídica De acordo com a doutrina portuguesa dominante, a multipropriedade mobiliária configura um direito real de habitação periódica, que confere ao titular o poder de usar e fruir do bem durante o período correspondente à sua fração de tempo (CARVALHO FERNANDES, 2018, p. 108). No entanto, esse direito está sujeito a limitações quanto à faculdade de disposição, uma vez que a alienação ou oneração da fração de tempo depende da anuência dos demais titulares. Trata-se, portanto, de um direito real limitado, distinto da propriedade plena (CARVALHO FERNANDES, 2018, p. 111). Confira aqui a íntegra da coluna
Resumo: Este micro opúsculo pretende demonstrar a ingente importância do provimento 180 de 2024 do CNJ, em especial no registro de imóveis, no tocante à aceitação de títulos com assinaturas eletrônicas avançadas, criando um "elo de sintonia" com os títulos das instituições financeiras, inclusive quando grande parte dos clientes utiliza a plataforma gov.br, a partir de um comparativo com a legislação anterior, que ensejou um dilema jurídico aos cartórios de imóveis, atualmente superado pelo citado provimento. 1. Introdução A questão das assinaturas válidas em documentos digitais é tema de grande importância na atualidade para o registro de imóveis. Isso porque hoje a maioria dos documentos recebidos para registro ou averbação são eletrônicos. Tal realidade é inescapável nos grandes centros e mesmo nas cidades de porte médio. Nas cidades pequenas, entretanto, os documentos físicos ainda são maioria, embora tal fato esteja em rápida mutação para os títulos nato-digitais e digitalizados com assinaturas eletrônicas, devido em grande parte ao agronegócio. Quão importante as assinaturas eletrônicas ao registro de imóveis na atualidade que, enquanto os autores do presente texto terminavam de redigir uma crítica a não-aceitação por parte do registro de imóveis da assinatura avançada, por ausência normativa nacional, a Corregedoria Nacional de Justiça (CNJ) publicava uma norma suprindo tal crítica: O provimento 180 de 2024. Desta forma, a primeira versão do presente artigo já "nasceu velha" porque tratou de um tema em concomitante regulamentação pela CNJ. Entretanto, mesmo "nascido velho", este artigo revela a importância daquela normativa e a analisa, tendo sido o mesmo atualizado. Por fim, este artigo também poderá servir como argumentação às eventuais situações ocorridas antes do referido provimento. 2. A natureza jurídica e o conteúdo do Provimento 180/2024 da CNJ O provimento 180/24 da CNJ é uma norma administrativa de natureza abstrata com efeito reflexo, ou seja, é uma norma que atinge não somente os tabeliães e oficiais de registro, mas também a sociedade em geral. Ademais, sua força normativa decorre do § 2º do art. 17 da lei 6.015/73, incluído pela lei 14.383/22, que delega à Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ estabelecer hipóteses de uso de assinatura avançada em atos que envolvam imóveis. Aquele provimento alterou o Código Nacional de Normas (provimento 149/23) em diversos pontos, referente às várias especialidades extrajudiciais. No tocante ao cerne da presente matéria, interessa dizer que ocorreu a revogação expressa do art. 324 do citado código que tratava da recepção pelos registros de imóveis de títulos digitais, tanto aqueles nato-digitais (§ 1º da norma revogada), quando os digitalizados (§ 2º da norma revogada). Tal artigo revogado se encontrava topograficamente na parte de registro de imóveis. Agora, a recepção de documentos pelo registro de imóveis em forma eletrônica não se encontra mais na parte específica do código de normas, porém, na parte geral. Isso significa que a recepção de títulos eletrônicos pelo registro de imóveis agora segue a mesma normativa da recepção de títulos pelas demais serventias. Diferentemente do que ocorria na regulamentação anterior, existe agora previsões a respeito de recepção de títulos que possuam assinaturas avançadas. Tais previsões estão no art. 208 do Código Nacional de Normas (prov. 149/23). O inciso I do § 1º do art. 208 do Código Nacional de Normas, prevê a possibilidade de recepção de documento público ou particular gerado eletronicamente em PDF/A e assinado por todos os signatários por meio de assinatura qualificada ou com assinatura eletrônica avançada admitida perante os serviços notariais e de registro. (grifos nossos). Logo em seguida, o inciso II do mesmo parágrafo prevê a recepção de documento público ou particular que exija a assinatura apenas do apresentante, com os mesmos requisitos do documento citado no inciso I, tendo inclusive permissão de uso de assinatura qualificada ou avançada (grifos nossos). Note-se que a diferença entre os incisos do § 1º do art. 208 do código nacional de normas é a seguinte: enquanto o seu inciso I trata de assinatura por todos os signatários, o seu inciso II, ao contrário, trata de assinatura apenas do apresentante. Outra previsão é o inciso IV do supracitado art. 208, no qual se permite a aceitação de assinaturas qualificadas ou avançadas (grifos nossos) em documentos desmaterializados por qualquer notário ou registrador, desde que gerados em PDF/A e assinados pelos próprios, substitutos ou prepostos. Avançando-se na norma, encontramos o § 2º do art. 208 do Código Nacional de Normas, que trata de títulos digitalizados em conformidade com o art. 5º do decreto 10.278/20. Agora, tais títulos podem utilizar também de assinaturas eletrônicas do tipo avançado, além das qualificadas. Portanto, ciente das dificuldades dos cartórios brasileiros ante os dilemas normativos, a Corregedoria Nacional de Justiça atualizou o Código de Normas Nacional, a fim de permitir a sintonia normativa entre os cartórios de imóveis e as instituições financeiras. Dessa maneira, e nos termos do § 2º do art. 17 da lei 6.015/73, o provimento 180/24 da CNJ foi o "elo de sintonia" entre o art. 17-A da lei 14.063/20 e o seu art. 5º, § 2º, inciso IV, da lei 14.063/20. Em resumo, é possível afirmar que os cartórios de imóveis poderão aceitar os "títulos nato-digitais públicos ou privados", os "documentos desmaterializados" por notários ou registrador, além dos "títulos digitalizados" (nos termos do art. 5º do decreto 10.278/20), contendo "assinatura eletrônica avançada ou qualificada". Ocorre que, antes da publicação do provimento 180/24, caso tenha havido eventual ingresso equivocado nos fólios reais de títulos com assinatura avançada, seria importante conhecer a presente proposta de conservação dos negócios jurídicos, à luz da teoria de "A obrigação como processo". 3. Origem, classificação e extensão normativa de assinatura eletrônica A assinatura eletrônica foi instituída inicialmente pela MP 2.200-2/01, cujo seu art. 1º define bem o seu conceito legal: "a Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, para garantir a autenticidade, a integridade e a validade jurídica de documentos em forma eletrônica (...), bem como a realização de transações eletrônicas seguras". O certificado digital ICP-BR garante autenticidade, integridade e validade jurídica de documentos (públicos e privados) em formato eletrônico, bem como as declarações constantes nesses documentos presumem-se verdadeiros em relação aos signatários, nos termos do § 1º do art. 10 da MP 2.200-2/01 c/c o art. 219 do Código Civil. Aliás, o conceito normativo de certificado digital ICP-BR é muito semelhante ao conceito normativo de assinatura eletrônica notarizada prevista no inciso I do art. 285 do prov. 149/23 da CNN/CN/CNJ-Extra1, ao dizer que se considera "assinatura eletrônica notarizada: qualquer forma de verificação de autoria, integridade e autenticidade de um documento eletrônico realizada por um notário, atribuindo fé pública". Note-se que as normas da CNJ e da MP 2.200-2/01 pretendem garantir a segurança na autoria, autenticidade, integridade e validade jurídica aos documentos (públicos e privados) em formato eletrônico. A validade da certificação digital dar-se-á pela certificadora raiz da ICP-BR, por meio de ITI - Instituto Nacional de Tecnologia da Informação (art. 12 da MP 2.200-2/01), disponível no site. Por outro lado, não se olvide que, no tocante às certidões dos atos de constituição e de alteração de empresários individuais e de sociedades mercantis, fornecida pelas juntas comerciais, nos termos do art. 68 da lei 8.934/94, será confirmada sua autenticidade no site, na parte de "verificação de documentos do empreendedor - certidão online". Por meio da lei 14.063/20, foram criadas as assinaturas eletrônicas simples, avançada e qualificada (art. 4º, incisos I, II e III), conforme o nível de confiança sobre a identidade e a manifestação de vontade de seu titular, sendo que a assinatura eletrônica qualificada - que utiliza certificado digital ICP-BR (art. 4º, inciso III) - é a que possui nível mais elevado de confiabilidade a partir de suas normas, de seus padrões e de seus procedimentos específicos (§ 1º do art. 4º). Nos atos de transferência e registro de imóveis, será obrigatório o uso de assinatura eletrônica qualificada (art. 5º, § 2º, inciso IV, da lei 14.063/20). Entretanto, o § 2º do art. 17 da lei 6.015/73, alterado pela lei 14.382/22, autorizou a Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ estabelecer hipóteses de uso de assinatura avançada para atos que envolvam imóveis. Outrossim, o art. 38 da lei 11.977/09, alterado pela lei 14.382/22, também permitiu que os documentos eletrônicos apresentados aos serviços de registros públicos ou por eles expedidos deverão atender aos requisitos estabelecidos pela Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ, com a utilização de assinatura eletrônica avançada ou qualificada. No tocante ao registro de imóveis, o § 2º do art. 38 da lei 11.977/09, também permitiu ao CNJ estabelecer hipóteses de admissão de assinatura avançada em atos que envolvam imóveis. Até então, antes do provimento 180/24 da CNJ, os títulos imobiliários (transferência de titularidade ou ônus reais) precisam de assinatura eletrônica qualificada, que ensejava, por conseguinte, um dilema jurídico nas serventias de imóveis, quando recebiam títulos com assinatura avançada. 2. Assinatura eletrônica nas instituições financeiras antes do Prov. 180/2024 As instituições financeiras, que atuam com crédito imobiliário autorizadas a celebrar instrumentos particulares com caráter de escritura pública, e os partícipes dos contratos correspondentes poderão fazer uso das assinaturas eletrônicas nas modalidades avançada e qualificada (art. 17-A da lei 14.063/20 alterado pela lei 14.620/23). É importante ressaltar que o art. 17-A da lei 14.063/20 fala expressamente em "celebração", em vez de "registro" ou "averbação", implicando, por conseguinte, que se trata de formalização de contrato entre a instituição financeira e o seu partícipe, em momento anterior ao registro de imóvel. Na prática, as instituições financeiras solicitam ao cliente o uso de plataforma gov.br para assinar eletronicamente. Ocorre que em grande parte das vezes quando da utilização desta plataforma, utiliza-se de assinatura eletrônica avançada, e não da qualificada. As identidades digitais da plataforma gov.br estão classificadas em três tipos: i) Identidade Digital Bronze; ii) Identidade Digital Prata; e iii) Identidade Digital Ouro, sendo que a bronze usará assinatura simples, ao passo que as duas últimas (prata e ouro), usaram as assinaturas simples e avançada (art. 1º, § 3º, da portaria SEDGGME 2.154/21), salvante para os atos de transferência e de registro de bens imóveis, que somente poderá usar assinatura qualificada (art. 1º, § 4º, da portaria SEDGGME 2.154/21 c/c o art. 4º, inciso III, alínea "a", do decreto federal 10.543/20). Dessa maneira, percebe-se que a plataforma gov.br permite dois tipos de assinaturas eletrônicas: uma avançada e outra qualificada. No entanto, os clientes na maioria das vezes, por não possuírem certificado digital ICP-Brasil (assinatura eletrônica qualificada), se utilizam da assinatura avançada, que ensejava um dilema registral. 3. Dilema registral antes do Prov. 180/2024: Assinatura eletrônica versus cartório de imóveis Sucede que, à luz da doutrina de Clóvis V. do Couto e Silva, no seu livro "A obrigação como processo", ao dizer, em suma, que a boa-fé contratual vai desde a celebração até o registro de imóveis, tudo indica que o art. 17-A da lei 14.063/20 criou um hiato jurídico com a regulamentação jurídica de assinatura eletrônica no registro de imóveis. O art. 38 da lei 11.977/09 determina que atos de registros públicos deverão ser inseridos no registro eletrônico2, permitindo a criação da plataforma mantida pelo ONR - Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis, integrado atualmente pelo ON-RCPN - Operador Nacional do Registro Civil das Pessoas Naturais, pelo ON-RTDPJ - Operador Nacional do Registro de Títulos e Documentos e Civil das Pessoas Jurídicas. O § 2º do art. 17 da lei 6.015/73, incluído pela lei 14.393/22, permite a Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ estabelecer hipóteses de uso de assinatura avançada para atos envolvendo registro de imóveis. Eis aí o aparente dilema registral: Enquanto uma norma permite à instituição financeira atuante com crédito imobiliário o uso de assinatura eletrônica avançada (art. 17-A da lei 14.063/20); outra norma não permitia aceitá-la no registro de imóveis (art. 5º, § 2º, inciso IV, da lei 14.063/20), até regulamentação em contrário da Corregedoria Nacional de Justiça (§ 2º do art. 17 da lei 6.015/73). 4. Uma ideia resolutiva ao dilema registral antes do Prov. 180/2024 Uma ideia resolutiva ao dilema normativo sobre assinaturas eletrônicas - à luz da teoria de Clóvis V. do Couto e Silva ("A obrigação como processo") - seria a aplicação do princípio da conservação dos negócios jurídicos3, positivado em nosso Código Civil. Por exemplo, "em caso de cláusula testamentária for suscetível de interpretações diferentes, prevalecerá a que melhor assegure a observância da vontade do testador" (art. 1.899); "na dúvida entre as provas favoráveis e contrárias, julgar-se-á pelo casamento, se os cônjuges, cujo casamento se impugna, viverem ou tiverem vivido na posse do estado de casados" (art. 1.547); "não pode ser objeto de venda com reserva de domínio a coisa insuscetível de caracterização perfeita, para estremá-la de outras congêneres. Na dúvida, decide-se a favor do terceiro adquirente de boa-fé" (art. 523). Desse modo, seria possível interpretar as leis 14.063/20 (assinaturas eletrônicas) e 6.015/73 (lei de registros públicos) à luz do princípio da conservação dos negócios jurídicos, afastando-se, portanto, da regra tempus regit actum, a qual significa que o título se sujeita às condições vigentes ao tempo de sua apresentação a registro, sendo irrelevante a data de sua celebração. Então, uma vez iniciada a obrigação contratual com instituição financeira contendo assinatura avançada, tudo indica que a serventia de imóveis poderia aceitá-la, com o intuito de terminar a referida obrigação, à luz da teoria de "A obrigação como processo", mais conhecida como princípio da boa-fé objetiva contratual, positivado no art. 422 do Código Civil e também previsto no enunciado 25 da I Jornada de Direito Civil do CJF4, sem implicar, d'outro lado, violação normativa à legislação específica sobre registro de imóveis. Nesse contexto, entendemos que, até a publicação do prov. 180/24 do CNJ, seria possível aceitar apenas assinaturas eletrônicas qualificadas no registro de imóveis. Entrementes, em caso de eventual ingresso equivocado no fólio real, tal argumentação jurídica é uma proposta de conservação dos negócios jurídicos com assinaturas avançadas, à luz da teoria de "a obrigação como processo". 4.1 Da situação específica dos títulos do agronegócio Antes mesmo do provimento 180/24 do CNJ já existia legislação complementar ao art. 17-A da lei 14.063/20, no tocante especificamente a legislação sobre cédula de crédito que parecia permitir o uso de assinatura eletrônica avançada. Aqui se adentra nos títulos do agronegócio. Na cédula de crédito bancário - CCB, por exemplo, foi permitida assinatura eletrônica de maneira genérica (§ 5º do art. 20 da lei 10.931/04, alterada pela lei 13.986/20), condicionando apenas a garantia de identificação inequívoca de seu signatário, sem qualquer remissão à observância da lei 14.063/20 ou da MP 2.200-2/01, como fizeram expressamente outras leis e legislações (lei 6.015/73 e decreto federal 10.543/20). Outrossim, na cédula de crédito rural hipotecária e/ou pignoratícia, também foi permitida ao emitente ou representante (com poderes especiais) a assinatura eletrônica, desde que garantida a identificação inequívoca de seu signatário, nos termos inciso IX do art. 14 c/c o inciso IX do art. 20, ambos do decreto-lei 167/67, sem qualquer tipo de remissão à observância da lei 14.063/20 ou da MP 2.200-2/01. Nesse contexto, ante a ausência de remissão normativa expressa, o prov. 180/24 da CNJ praticamente espancou qualquer dúvida sobre as classificações de assinaturas eletrônicas permissivas nas cédulas de crédito bancário e rural, ou seja, os oficiais de imóveis podem aceitá-las com assinatura avançada e qualificada. Na cédula de produto rural - CPR (lei 8.929/94), por sua vez, já foi bem mais específica, permitindo expressamente assinatura eletrônica avançada ou qualificada para registro e averbação constituída por bens móveis e imóveis, nos termos do inciso II do § 4º do art. 3º da lei 8.929/94, incluído pela lei 13.986/20. Ou seja, antes do provimento já existia uma regulamentação específica para tais títulos. Como a lei específica delegou à Corregedoria Nacional de Justiça estabelecer hipóteses de uso de assinatura avançada em atos que envolvam imóveis, praticamente o prov. 180/24 da CNJ serviu para ratificar a força normativa do inciso II do § 4º do art. 3º da lei 8.929/94. Assim, quando se analisa os atos normativos de títulos envolvendo o agronegócio em sintonia com o prov. 180/24, é possível concluir que a exceção tornou-se a regra, ou seja, antes eram poucas normas permitindo expressamente a assinatura eletrônica avançada ou qualificada, mas agora, após a citado provimento, tornou-se uma regra tal permissão, incluindo os títulos emitidos por instituições financeiras que atuam com crédito imobiliário. 5. Conclusão A partir do provimento 180/24 da Corregedoria Nacional de Justiça se tornou possível a utilização de assinaturas eletrônicas avançadas perante os serviços de registro de imóveis para diversos títulos, nas hipóteses agora regulamentadas no art. 208 do Código Nacional de Normas, merecendo elogios essa regulamentação da CNJ, pois tratou de tema de extrema importância ao registro de imóveis e que carecia de regulamentação. Ocorre que, antes daquele provimento, em que pese a grande evolução tecnológica nos negócios privados e públicos, a exemplo de assinaturas eletrônicas e de Serp - Sistema Eletrônico dos Registros Públicos, tudo indicava que, ante a ausência de normas sistemáticas, era até possível a celebração contratual com assinatura eletrônica avançada, mas não se permitia o seu ingresso no registro de imóveis. Após criação jurídica de chave digital ICP-BR (MP 2.200-2/01), sendo classificada como assinatura eletrônica qualificada para os atos de registro de imóveis (art. 5º, § 2º, inciso IV, da lei 14.063/20), representou um grande avanço aos negócios jurídicos, notadamente a criação de meios para uso de documentos nato-digitais. Acontecia que, para celebração de contratos com instituição financeira atuante com crédito imobiliário, foi permitida a assinatura eletrônica avançada e qualificada (art. 17-A da lei 14.063/20, incluído pela lei 14.620/23), sem qualquer ressalva expressa ao § 2º do art. 17 da lei 6.015/73, que permite à Corregedoria Nacional de Justiça estabelecer hipóteses de uso de assinatura avançada em atos que envolvam imóveis. Para piorar, quando a instituição financeira solicitava ao cliente assinatura pela plataforma gov.br, ainda que a finalidade seja a segurança da celebração contratual, ensejava um problema registral, qual seja, na maioria das vezes, por não ter ICP-Brasil, o cliente assina através da assinatura avançada. Dessa maneira, antes do prov. 180/24, ocorria o seguinte dilema jurídico: Conquanto permitida a celebração de contrato bancário com assinatura avançada, não seria permitido o seu ingresso no fólio real. Assim, com o intuito de resolver tal dilema às situações anteriores àquele provimento da CNJ, propomos a aplicação do princípio da conservação dos negócios jurídicos - já positivado em nosso direito civil (art. 422 do Código Civil), em vez de aplicar a regra tempus regit actum, a qual significa que o título se sujeita às condições vigentes ao tempo de sua apresentação a registro. A situação se encontra hoje normatizada de maneira correta pelo CNJ, terminando com a situação jurídica de insegurança que existia anteriormente. Por fim, é deveras importante frisar que, havendo eventuais situações antes do provimento 180/24, será prudente interpretar cum grano salis as normas de assinaturas eletrônicas no registro de imóveis, a fim de manter em sintonia a boa-fé objetiva contratual com o sistema de registro de imóveis. __________ 1 Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça - Foro Extrajudicial (CNN/ CN/CNJ-Extra). 2 Cf. o art. 76 da Lei nº 13.465/2017 c/c o Provimento nº 89/2019, da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça. Em seguida, foi publicada a Lei n.º 14.382/2022, que dispõe sobre o Sistema Eletrônico dos Registros Públicos (SERP) c/c o Prov. 149/2023 do CNN/ CN/CNJ-Extra. 3 BUZAR, Maurício. A invalidade do negócio jurídico. 3. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023, p. 181-183. 4 "Art. 422. [do Código Civil]. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé". No mesmo sentido, diz o enunciado 25 da I Jornada de Direito Civil do CJF: "O art. 422 do Código Civil não inviabiliza a aplicação pelo julgador do princípio da boa-fé nas fases pré-contratual e pós-contratual"
Introdução Na primeira parte deste trabalho, meu colega de pesquisas, Sérgio Jacomino, lançou algumas questões envolvendo a assimilação da IA nas rotinas de um cartório de Registro de Imóveis. A mim coube, no âmbito do NEAR-lab - Núcleo de Estudos Avançados do Registro de Imóveis eletrônico, desenvolver algumas rotinas a fim de testar a funcionalidade da ferramenta aplicada à solução de alguns problemas bastante comuns nas serventias imobiliárias. Criamos uma área de trabalho (workspace) na qual interagem alguns pesquisadores para desenvolvimento e especialização da ferramenta de IA e aplicando seus recursos em tarefas próprias dos cartórios de Registro de Imóveis. Nos últimos três meses buscamos simular a execução das rotinas mais complexas e trabalhosas do processo de registro, considerando a aplicação da IA para ganho de eficiência e desempenho. A breve demonstração levada a efeito, e referida abaixo, abre um horizonte de grandes possibilidades e oportunidades, mas revela, igualmente, imensos riscos. Boas perguntas - melhores respostas De partida, percebe-se que a maior precisão da resposta da máquina está vinculada à qualidade da pergunta, vale dizer: o prompt da máquina deve receber demandas bem estruturadas e afinadas para obtenção de respostas qualificadas. Assim, para cada espécie de título apresentado, há um script específico que foi convertido pela máquina para interagir com a plataforma. POC SREI-GEN O projeto denominado "POC SREI-GEN" ou "Prova de Conceito do SREI Generativo" teve por objetivo testar o uso de agentes virtuais especializados para automatizar tarefas repetitivas e complexas do processo de registro de imóveis, considerando alguns de seus desafios atuais: Título em conteúdo desestruturado, em papel e em forma narrativa; Matrícula e atos escriturados em papel em forma narrativa; Exame de grande volume de documentos acessórios dos títulos; Exame de requisitos complexos, como por exemplo identificação de operações para comunicações para comunicar ao Siscoaf - Sistema de Controle de Atividades Financeiras; Necessidade de coordenação de dados entre as diversas fontes e etapas do processo. Durante o projeto, desenvolvemos alguns chats de IA, denominados agentes virtuais especialistas, para desempenhar e automatizar tarefas específicas em cada etapa do processo. A esses agentes demos o nome de agentes registrais. A partir da aplicação de técnicas de engenharia de prompts, especializamos os agentes registrais para receber o título e os documentos comprobatórios apresentados para registro, bem como a matrícula do imóvel, fornecendo como saída resultados específicos esperados em cada interação do processo. Considerando a metodologia de notação BPMN - Business Process Model and Notation1, mapeamos e selecionamos algumas rotinas presentes nos principais processos do registro, como a recepção, pré-qualificação de títulos e a qualificação registral. Buscou-se testar o uso do modelo de linguagem natural nestas rotinas, para leitura e compreensão dos conteúdos dos títulos e da matrícula do imóvel. Testamos alguns dos modelos de IA disponíveis atualmente, como, por exemplo, o ChatGPT-4o, um modelo de linguagem desenvolvido pela OpenAI baseado na arquitetura GPT-4 (Generative Pre-trained Transformer 4). Esse modelo foi treinado usando uma grande quantidade de dados textuais, permitindo que ele compreenda e gere texto de forma coerente e contextual. No evento de Coimbra, apresentamos alguns vídeos práticos da atuação dos agentes registrais especialistas em cada etapa do processo. Por exemplo, as etapas iniciais de recepção e pré-qualificação do título exigem atualmente um enorme esforço de leitura e identificação das informações do título. O primeiro agente registral demonstrado visou fornecer os dados estruturados do título, considerando: Título e negócio jurídico; Imóvel; Pessoas envolvidas; Valores e condições de pagamento; Cláusulas contratuais obrigatórias. Exemplo de atividades dos processos "Recepcionar" e "Pré-qualificar título" Além dos desafios atuais do processo, a implantação do SREI - Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis exigirá dos registradores a adoção de novos parâmetros e rotinas operacionais estabelecidos principalmente no art. 10 do provimento CNJ 89/19.2 Dentre as novas práticas, será necessário realizar a atividade de "primeira qualificação eletrônica" com o objetivo de permitir a migração de um registro de imóvel existente efetuado no livro em papel, seja transcrição ou matrícula, para o formato de registro eletrônico denominado matrícula eletrônica. Exemplo de atividades do processo de "Qualificação Registral": Em relação ao processo de qualificação eletrônica, especializamos agentes registrais para desenvolver rotinas como: Análise da matrícula para consolidação da situação jurídica; Exame do título e de documentos comprobatórios; Exame de requisitos exigidos para comunicação ao Siscoaf; Estruturação de dados para auxiliar o exame e qualificação; Comparativo de elementos do título com a matrícula do imóvel; Consulta às leis e jurisprudência especializada sobre a matéria; Também foi possível integrar os agentes registrais em um único processo de registro, sendo necessário fazer o upload do título e da matrícula apenas uma vez. a) Os principais resultados do projeto foram: A eficiência da automação de tarefas complexas ou trabalhosas; Especialização de agentes registrais especialistas por etapa do processo; Maior coordenação entre as etapas dos processos; Precisão e controle de saída; Instruções e base de conhecimento aprovadas pelo registrador; Verificação de integridade dos resultados; b) Pontos de atenção ao uso da IA no RI: Privacidade e segurança de dados; Dependência tecnológica; Responsabilidade legal; Decisão final será sempre do registrador. Uma das importantes conclusões do projeto, foi identificar um aspecto essencial e indispensável do processo registral que é a necessidade do registrador realizar a devida conferência e revisão escrupulosa dos resultados gerados pelos agentes registrais. As ferramentas de IA proporcionam rapidez, agilidade, eficiência e precisão, permitindo que o registrador se concentre em aspectos mais complexos e subjetivos do processo de registro, porém não o substituindo em seu poder decisório, nem exonerando-o das responsabilidades inerentes à atividade. Um aspecto que deve merecer toda a nossa atenção é relacionado com o tema da privacidade e segurança de dados no uso da IA, além das responsabilidades legais e éticas que implicam o uso da IA nos processos de registro. A questão da transparência e da não discriminação nos sistemas de IA é crucial para garantir que a tecnologia seja utilizada de maneira justa e ética. Outro tema relevante é a necessidade de regulamentação específica para a IA, especialmente em áreas que envolvam direitos de personalidade. É necessária e urgente a regulamentação sobre o uso da inteligência artificial no Brasil. O projeto do Novo Código Civil3 inaugura o Livro VI sobre o Direito Civil Digital e, em seu capítulo III, define como "situação jurídica digital toda interação no ambiente digital de que resulte responsabilidade por vantagens ou desvantagens, direitos e deveres entre: Entidades digitais como robôs, assistentes virtuais, inteligências artificiais, sistemas automatizados e outros." O capítulo VII dedica-se especificamente a temas relativos à inteligência artificial. Também estão em tramitação o PL 6.119/234, que trata da alteração do Código Penal para punir fraudes publicitárias utilizando IA, e o PL 2.338/235, que estabelece normas gerais para o desenvolvimento, implementação e uso responsável da IA com foco na proteção de direitos fundamentais, transparência e mitigação de riscos. Conclusões - Uma ruptura paradigmática do sistema registral? Progressivamente, os meios eletrônicos foram se insinuando no processo registral, transformando-o profundamente. Na era digital, deparamo-nos com um ambiente totalmente novo, interdependente, interconectado, interligado full time, gerando impulsos que são percebidos e assimilados por sofisticados sistemas de IoT, gerando padrões estatísticos que nos revelam, por exemplo, distorções que possam ocorrer no processo registral. As novas ferramentas capturam detalhes que os humanos já não podem assimilar, interpretar e processar, especialmente no contexto de avulsão de dados (big data). Já as máquinas podem diagnosticar, de modo automatizado, desconformidades com padrões normativos, legais ou até mesmo com a praxe consolidada nos cartórios. Além disso, é possível identificar ocorrências suscetíveis de especial atenção (Siscoaf, indisponibilidades etc.), robustecendo a segurança do sistema. A partir da especialização de ferramentas de IA é possível obter resultados mais consistentes com o intuito de acelerar a assimilação de conhecimento sobre matérias complexas e extensas, incluindo temas exigidos para análise e qualificação de títulos apresentados para registro. Entretanto, a resposta da máquina depende diretamente da instrução que lhe é fornecida (prompt). Um prompt cuidadosamente elaborado orienta o modelo com mais eficiência na produção da resposta ou do conteúdo almejado, elevando tanto a pertinência quanto a exatidão do resultado. A engenharia de prompts aplicáveis ao Registro de Imóveis fornecerá uma interação mais eficiente com as aplicações de IA. A partir da uniformização e padronização de termos aplicáveis ao registro de imóveis é possível "ensinar" a máquina a assimilar com maior precisão os significados das informações e fornecer resultados muito mais consistentes e adequados. Enfim, são inúmeras as possibilidades de aplicação da IA aos processos de registros. A ferramenta deverá operar como uma espécie de AVR - assistente virtual registral, oferecendo ao registrador apoio em atividades práticas como exame e qualificação do título ou, ainda, na consolidação da situação jurídica atual do imóvel. __________ 1 Business Process Model and Notation (BPMN) é um modelo internacional de representação gráfica de especificação de processos, desenvolvido pela Business Process Management Initiative (BPMI) e mantido pelo Object Management Group (OMG), sendo ratificado também pela International Organization for Standardization (ISO), Norma ISO/IEC 19510 (ISO, 2013). 2 Provimento CNJ 89/2019. Disponível aqui. Acesso em 11/06/2024. 3 Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil. Disponível aqui. Acesso em 11/06/2024. 4 Projeto de lei 6.119/2023. Disponível aqui. Acesso em 11/06/2024. 5 Projeto de lei 2.338/2023. Disponível aqui. Acesso em: 11/06/2024.