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Migalhas Notariais e Registrais

Questões práticas e teóricas envolvendo o Direito Notarial e de Registro.

Izaías G. Ferro Júnior, Carlos Eduardo Elias de Oliveira, Hercules Alexandre da Costa Benício, Flauzilino Araújo dos Santos, Ivan Jacopetti do Lago e Sérgio Jacomino
Introdução Neste trabalho procura-se demonstrar que a usucapião extrajudicial já é uma realidade no direito brasileiro, tratando-se de um procedimento relativamente rápido realizado perante o próprio Registro de Imóveis com a participação essencial de  três profissionais do direito: Registrador, Tabelião e Advogado, e, ainda, quando houver algum tipo de dissenso, também conta com a atuação de outros agentes jurídicos tais como Juízes e Promotores nas chamadas dúvidas registrais; Desembargadores e Procuradores de Justiça nos recursos de apelação e, eventualmente, Ministros do Superior Tribunal de Justiça, os quais, de forma reiterada, em processos de dúvidas, pronunciam-se pelo não conhecimento do apelo extraordinário, tornando o procedimento tão seguro quanto aquele realizado na via judicial. Entretanto, a pesquisa vai além do simples fato da demonstração existencial da usucapião extrajudicial no ordenamento jurídico do país, abordando, também, as provas que devem ser produzidas durante o procedimento, essenciais ao acolhimento ou rejeição do pedido, com destaque principal entre essas provas para a ata notarial, a qual, quando bem elaborada contribui de forma indiscutível em favor do pleito do usucapiente. Da usucapião Extrajudicial Pois bem, a propriedade pode ser adquirida mediante diversos mecanismos criados por lei, entre os quais, no que interessa especialmente a este trabalho, a usucapião. Trata-se de forma de aquisição originária que tradicionalmente tem sido declarada por órgãos judiciários mediante processos algumas vezes demorados até que a declaração seja registrada no Ofício Imobiliário, deixando o bem de raiz no limbo enquanto a questão não é definitivamente resolvida, fato que diminui o valor econômico do imóvel pela incerteza gerada com a ausência do registro, que uma vez realizado traz maior segurança jurídica e oponibilidade erga omnis. Instrumento bastante conhecido pelos profissionais do direito, a usucapião agrega segurança jurídica ao imóvel usucapiendo, permite melhor aproveitamento econômico, facilita o crédito, sem contar que pacifica a convivência social. Entretanto, apesar de ganhar divulgação a partir da Lei das XII Tábuas, que data do século V antes de Cristo, na maioria das nações, ainda nos dias de hoje a usucapião encontra-se submetida a um processo tormentoso, carecendo ser flexibilizado, a fim de acompanhar o desenvolvimento da sociedade contemporânea, onde o fator tempo, mais que nunca, toma conta da vida das pessoas. Com efeito, a máquina judicial perante a qual habitualmente se desenvolve o processo de usucapião, por estar afeta às inúmeras contendas e submetida a uma densa ritualística que admite diversos recursos, muitas vezes utilizados pelas partes para procrastinar uma decisão final, não só desencoraja boa parte das pessoas que poderia fazer uso do instituto, mas, também, concorre para que os processos sejam morosos, demandando mais tempo até que finalmente transitem em julgado. Conhecendo essa realidade, o legislador brasileiro tem procurado outros meios menos penosos, desjudicializando, ou como preferem outros, extrajudicializando certas medidas que, longe de desprestigiar a magistratura, que ficará com mais tempo livre para apreciar questões de alta indagação postas em discussão pelo sistema democrático e de direito, deixa que a própria sociedade resolva os casos nos quais não existam conflitos de interesses, como por exemplo o da usucapião extrajudicial trazida para o ordenamento jurídico brasileiro com o Código de Processo Civil (lei 13.105/2015), o qual introduziu o art. 216-A à Lei dos Registros Públicos (lei 6.015/73), permitindo, quando não houver litígios e, mediante um procedimento simplificado, que os interessados socorram-se do Registro Imobiliário, para que o próprio Registrador, com o poder que lhe fora delegado pelo Estado, reconheça e declare a usucapião em qualquer de suas modalidades. Vale lembrar, que no Brasil, com a nova moldura que fora dada aos denominados serviços extrajudiciais pela Constituição Federal de 1988, a maioria das Serventias Extrajudiciais é titularizada por profissionais vocacionados após aprovação em concursos bem concorridos e com o mesmo grau de dificuldade das demais carreiras jurídicas, tornando, em tese, que os serviços sejam prestados de forma mais adequada. Feita essa breve introdução, resta ver como o instituto da usucapião está disciplinado no ordenamento jurídico brasileiro, para tanto, parte-se da própria norma contida no art. 1.2381 do Código Civil, conforme se poderá verificar na nota de referência de nº 1. No plano doutrinário, leciona SANCHEZ2 "A usucapião configura-se na aquisição de propriedade, ou seja, domínio da propriedade por sua utilização prolongada e ininterrupta, desde que seja constatada a continuidade dessa utilização e a tranquilidade na posse".  Também doutrinariamente, importante trazer à baila, algumas considerações feitas por BOCZAR, LONDE, CHAGAS E ASSUNÇÃO3,  segundos os quais "A partir do dispositivo legal acima transcrito [...] podemos extrair os seguintes elementos: posse, contínua (sem interrupção), mansa e pacífica (sem oposição), com animus domini (possuir como seu), propriedade, título e boa-fé [...]". Por sua vez, e como já mencionado, o Código de Processo Civil acrescentou à Lei 6.015/73 o art. 216-A4,  estabelecendo que "Sem prejuízo da via jurisdicional, é admitido o pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, que será processado diretamente perante o cartório de registro de imóveis da comarca em que estiver situado o imóvel usucapiendo, a requerimento do interessado [...]", já estando a matéria, também, regulamentada pelo Provimento n. 149/2023 do CNJ, que instituiu o Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça relativo ao Foro Extrajudicial, o qual em seu Título III, Capítulo Único, dispõe de forma didática sobre as normas estabelecidas pelo legislador. Esse regulamento da usucapião extrajudicial expedido pela Corregedoria Nacional de Justiça carece ser bem estudado por todos os atores que de uma forma ou de outra lidam com a usucapião extrajudicial, a fim de que este procedimento não seja utilizado como meio de burla da forma ordinária de transmissão da propriedade imobiliária, pois na prática tem-se visto que algumas pessoas mesmo podendo dispor dos instrumentos ordinários para essa transmissão utilizam-se do instituto da usucapião quando poderiam valer-se da forma ordinária de transmissão da propriedade imóvel, sem prejuízo da Fazenda Pública, que arrecadaria o imposto de transmissão da propriedade. Da ata notarial como instrumento indispensável e importante meio de prova  Dito isso, necessário também trazer à discussão a questão da ata notarial como meio de prova e ato indispensável na usucapião extrajudicial, considerando se tratar de elemento chave para o deferimento ou rejeição do pedido.  Porém, antes salutar trazer-se ao leitor o entendimento doutrinário desse importante instrumento para o desfecho da usucapião no âmbito extrajudicial. Segundo RODRIGUES e FERREIRA5, "Ata notarial é o instrumento público pelo qual o tabelião, ou preposto autorizado, a pedido de pessoa interessada, constata fielmente fatos, coisas, pessoas ou situações para comprovar a sua existência ou o seu estado". Esse mesmo autor, embora reconhecendo a natureza pública da ata notarial, faz importantes diferenças entre esta e as demais escrituras lavradas por Tabelião de Notas, segundo o qual, entre outras diferenças "As atas e as escrituras têm objetos distintos: a ata descreve o fato no instrumento; a escritura declara os atos e negócios jurídicos, constituindo-os. Na ata notarial, o tabelião escreve a narrativa dos fatos ou materializa em forma narrativa tudo o que presencia ou presenciou, vendo e ouvindo com seus próprios sentidos. [...]". Percebe-se, assim, que a ata notarial é um indiscutível meio de prova no procedimento da usucapião extrajudicial e, tendo em vista a sua grande importância, deve ser cautelosamente elaborada preferencialmente pelo próprio Notário, o qual, deve, como regra, comparecer ao local do imóvel, a fim de que nada fique fora do alcance de sua percepção, eis que a lei, no particular, exige grande zelo, tanto que nessa fase do procedimento exigiu não apenas a presença do Notário, mas também de um Advogado ou, se for o caso, de um Defensor Público para orientação daquelas pessoas que não possam pagar as despesas do feito sem prejuízo de seu próprio sustento e familiar. Entretanto, no dia a dia dos Registros Imobiliários, verifica-se, apesar de serem casos isolados, que alguns aspectos importantes deveriam ser melhor tratados nas atas notariais, tais como as características da posse do requerente e de seus antecessores,   depoimento de testemunhas e a justificação motivada das razões pelas quais foi dispensada a forma ordinária da aquisição, fatos que interferem na qualificação do Registrador, podendo, a ausência de justificação, ser motivo para a rejeição do pedido, até porque existem situações nas quais a via extraordinária é utilizada como atalho para o não pagamento dos tributos que seriam pagos quando da utilização da via ordinária. Demais disso, a ata notarial não pode ser considerada mais um elemento formal do checklist do Registrador, devendo ser entendida como uma prova por excelência, daí a razão de o Notário ter o dever de tomar o máximo de cautela na sua elaboração, devendo, juntamente com o Advogado representante do usucapiente, realizar diligências, observando e tomando nota de tudo que possa ser útil ao deferimento do pedido, preferencialmente eles próprios, pois a usucapião ainda é algo relativamente novo, não sendo um fato muito corriqueiro no trabalho das Serventias. Cabe ainda observar, no particular aspecto, que  a prática tem demonstrado que algumas atas notariais têm sido substituídas por verdadeiras escrituras declaratórias, em que pese ostentarem o nome de "ata notarial", pois seus conteúdos representam meras declarações do usucapiente, quando, para maior credibilidade, o Notário ou, excepcionalmente, seu preposto, deveriam dar fé a cada fato narrado, dispensando, inclusive, assinaturas dos interessados, somente exigindo essa providência nas cláusulas justificativas de posse ou quando o transmitente de seus direitos sejam herdeiros de um posseiro originário, nesses casos, a fim de receber o compromisso dos declarantes sob as penas da lei ou para evitar que o cessionário não seja surpreendido por outrem que reivindique igual direito sucessório. Dos outros meios de prova além da ata notarial  Ainda que este trabalho tenha como foco principal a importância da ata notarial no procedimento da usucapião extrajudicial, relevante mencionar que, para o livre convencimento do Registrador, assim como ocorre na esfera das ações judiciais para os Magistrados, se avalie o conjunto probatório. No caso do procedimento de usucapião extrajudicial, poder-se-ia mencionar declaração do imposto de renda com menção ao tempo da posse no imóvel usucapiendo; alteração de nome no cadastro das Secretarias Municipais da Fazenda, quanto aos impostos imobiliários; das companhias de abastecimento de água e luz; no cadastro de endereço do usucapiente em diversos lugares, tudo com certificação do tempo; provas testemunhais; as diversas certidões negativas; e outras que o caso concreto revele ser importante. Conclusão A usucapião é um instrumento jurídico de aquisição originária da propriedade imobiliária e a modalidade extrajudicial foi criada como meio de desjudicialização, a teor do que estabelece o art. 216-A da lei 6.015/73 (lei dos Registros Públicos), inserido por força do Código de Processo Civil (lei 13.105/2015).  Nessa desjudicialização, ao Notário se outorgou a missão de lavrar o instrumento que o legislador quis que fosse um dos mais importantes, e por isso mesmo inserido na norma como documento indispensável, que é a ata notarial. E quis o legislador que fosse mesmo uma ata notarial, acreditando que da essência desse ato resultaria a materialização dos elementos necessários, pois como bem lembrando por Rodrigues e Ferreira, nesse instrumento público "o tabelião escreve a narrativa dos fatos ou materializa em forma narrativa tudo o que presencia ou presenciou, vendo e ouvindo com seus próprios sentidos. A partir disso, lavra um instrumento qualificado com fé pública legal e mesma força probante de uma escritura pública". Observa-se que a ata notarial não pode, e não deve apresentar conteúdo de mero ato declaratório, unilateral, posto que a ideia é certificar, sob o olhar atento e competente do Notário, verdadeiros elementos de prova, com análise de documentos, oitiva de testemunhas e diligências in loco, daí não ser o caso de se formalizar apenas uma singela redução a termo daquilo que vier a relatar o usucapiente. Nesse aspecto, compete ao Registrador de Imóveis, responsável pelo procedimento de usucapião extrajudicial em si, verificar se da ata notarial se extrai todos os elementos necessários que o legislador quis, cotejando-os com outras provas carreadas aos autos, a fim de que a sua decisão seja justa e produza a segurança jurídica desejada por toda a sociedade. __________ Referências Bibliográficas: 1 Art. 1238 do Código Civil. Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e de boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro do Cartório de Registro de Imóveis. 2 SANCHEZ, Júlio Cesar. Usucapião. 2. ed.- Leme-SP, Mizuno, 2023, p. 21. 3 BOCZAR, Ana Clara Amaral Amarantes et al. Usucapião extrajudicial: questões notariais, registrais e tributárias. - 4. Ed. - Leme-SP: Mizuno, 2023, p. 16. 4 Art. 216-A da Lei de Registros Públicos. Sem prejuízo da via jurisdicional, é admitido o pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, que será processado diretamente perante o cartório do registro de imóveis da comarca em que estiver situado o imóvel usucapiendo, a requerimento do interessado, representado por advogado, instruído com: I - ata notarial lavrada pelo tabelião, atestando o tempo de posse do requerente e de seus antecessores, conforme o caso e suas circunstâncias, aplicando-se o disposto no art. 384 da Lei no 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil)        5 RODRIGUES, Felipe Leonardo/FERREIRA, Paulo Roberto Gaiger. Tabelionato de notas. - São Paulo, Saraiva, 2013, p. 15.
No coração da civilização grega antiga, filósofos como Sócrates buscavam desvendar os mistérios do mundo e compreender o papel do ser humano em meio à constante transformação da realidade. Suas palavras ecoam através dos séculos, lembrando-nos da importância de abraçar a mudança e direcionar nossa energia para a construção do novo. Hoje, em um mundo marcado pela revolução tecnológica, somos desafiados a aplicar esse princípio fundamental ao campo dos direitos humanos.  À medida em que nos encontramos imersos na era digital, onde a tecnologia permeia todas as esferas de nossas vidas, torna-se cada vez mais evidente a necessidade de proteger não apenas nossos direitos tradicionais, mas também outros direitos que nunca estiveram em voga até então, como nossa integridade mental e cognitiva. Os neurodireitos emergem como uma resposta a essa demanda, representando um novo paradigma na proteção dos direitos humanos na era digital.  Nesta era de avanços tecnológicos rápidos e incessantes, é essencial que as sociedades reconheçam novos desafios que surgem com essas tecnologias que afetam diretamente o padrão pré-existente, nos forçando a olhar com novos olhos para áreas como à integridade mental das pessoas, por exemplo. Este artigo se propõe à uma análise desses "novos direitos" relacionados à neurociência e às tecnologias, e a urgência de sua inclusão na legislação nacional, com foco na atualização do Código Civil de 2002.  No início do século XX, os avanços na compreensão do cérebro humano abriram novas perspectivas para a neurociência, proporcionando insights sem precedentes sobre o funcionamento da mente humana, como por exemplo descobertas fundamentais sobre a estrutura do sistema nervoso1, mapeamentos cerebrais e técnicas de estimulação2, desenvolvimentos de técnicas de imagem cerebral3 e também na segunda metade do século XX, os cientistas começaram a identificar e estudar os neurotransmissores4.  Essas descobertas levantaram diversas questões éticas e legais sobre o uso de tecnologias que afetam diretamente o funcionamento neural, dando origem aos "neurodireitos", que se conceitua por um quadro normativo voltado para a proteção e a preservação do cérebro e da mente humana frente aos avanços das neurotecnologias.5  O termo "neurodireitos", surgiu em 20176 por pesquisadores (IENCA e ANDORNO), que constataram de que o sistema internacional de proteção dos direitos humanos não estava preparado para lidar adequadamente com os desafios decorrentes do avanço e uso das tecnologias neurocientíficas. Esse conceito ganhou destaque na comunidade científica internacional com a publicação de um artigo liderado por Rafael Yuste e Sara Goering na revista Nature7, no artigo eles identificaram quatro importantes áreas, e hoje com o avanço dos estudos no tema, a Neurorights Foundation8 traz cinco importantes neurodereitos a serem considerados. E são eles: (tradução livre)  1 - O direito à Privacidade Mental Qualquer NeuroData obtido através da medição da atividade neural deve ser mantido em sigilo. Se armazenado, deve haver o direito de excluí-lo a pedido do sujeito. A venda, transferência comercial e uso de dados neurais devem ser estritamente regulamentados.  2 - O direito à Identidade pessoal Devem ser estabelecidos limites para proibir que a tecnologia perturbe o senso de identidade. Quando a neurotecnologia liga indivíduos a redes digitais, pode confundir a linha entre a consciência de uma pessoa e os inputs tecnológicos externos.  3 - O direito ao Livre Arbítrio Os indivíduos devem ter o controlo final sobre a sua própria tomada de decisão, sem manipulação desconhecida de neurotecnologias externas.  4 - O direito ao Acesso justo à ampliação mental Devem ser estabelecidas diretrizes tanto a nível internacional como nacional que regulamentem a utilização de neurotecnologias de melhoramento mental. Estas orientações devem basear-se no princípio da justiça e garantir a igualdade de acesso.  5 - Proteção contra vieses Contramedidas para combater vieses deveriam ser a norma para algoritmos em neurotecnologia.  E muito embora pareça que estejamos nos referindo aos neurodireitos como conceitos futurísticos, a verdade é que já estamos vivenciando sua aplicação e impacto na sociedade contemporânea.  O uso das neurotecnologias, especialmente no campo das Interfaces Cérebro-Computador, conhecidas como "BCI" (sigla em inglês para Brain-Computer Interfaces), está se tornando cada vez mais tangível e relevante. As BCIs permitem a comunicação direta entre o cérebro humano e dispositivos tecnológicos, abrindo um vasto leque de possibilidades em áreas como saúde, reabilitação, entretenimento e até mesmo aprimoramento cognitivo.  No contexto das BCIs, os avanços recentes na neurociência e na tecnologia têm permitido o desenvolvimento de sistemas cada vez mais sofisticados e acessíveis. Hoje em dia, querem tornar cada vez mais possível controlar próteses robóticas, realizar tarefas computacionais, interagir com ambientes virtuais, o céu é o limite, ou melhor, não o é, pois, não há limites quando falamos do mundo digital.  Por exemplo, pesquisadores têm explorado o uso de BCIs para ajudar pessoas com deficiências físicas severas a recuperar a mobilidade e a independência. Por meio de implantes cerebrais ou eletrodos externos, esses indivíduos podem aprender a controlar dispositivos, utilizando apenas sinais cerebrais.9-10 Empresas como a Neuralink, fundada por Elon Musk, estão explorando ativamente o potencial das interfaces cérebro-computador para permitir a comunicação direta entre o cérebro humano e dispositivos tecnológicos. O objetivo é oferecer soluções para pessoas com deficiências físicas e neurológicas, além de explorar novas formas de interação homem-máquina. Recentemente em 29 de janeiro de 2024, a empresa anunciou ter implantado seu primeiro chip cerebral.11 Outro exemplo notável deste desenvolvimento foi a empresa Apple, que em 2023 patenteou uma nova linha de airpods capazes de ler ondas cerebrais.12  Embora as neurotecnologias ofereçam inúmeros benefícios e promessas de avanços significativos em várias áreas da vida humana, também é importante reconhecer os ônus e os riscos associados. Entre esses desafios estão questões relacionadas à privacidade e segurança dos dados neurais, potenciais usos indevidos ou manipulativos das informações cerebrais, bem como preocupações éticas sobre o consentimento informado e a autonomia individual. Além disso, o surgimento de desigualdades sociais e econômicas no acesso e na utilização das neurotecnologias também é uma preocupação legítima.  Sendo assim, à esta altura já se faz evidente que o rápido avanço das neurotecnologias e a crescente integração da neurociência em nosso cotidiano, torna imperativa a proteção dos neurodireitos para garantir o bem-estar e a dignidade das pessoas na era digital. Tornado-se fundamentais para proteger a privacidade, a autonomia e a liberdade de pensamento e expressão das pessoas em um contexto cada vez mais influenciado pela tecnologia. Sem regulamentação adequada, existe o risco de abusos e violações dos direitos humanos, incluindo a manipulação da atividade cerebral, uso indevido de dados neurais, dentre outros.  Além disso, a regulamentação dos neurodireitos é crucial para garantir a equidade e a justiça no acesso às neurotecnologias, assim como aos seus benefícios. Ao estabelecer políticas e regulamentações sólidas para protegê-los, podemos promover a inovação responsável e o uso ético dessas tecnologias, maximizando seus benefícios potenciais enquanto minimizamos seus riscos e impactos negativos. Isso requer um esforço colaborativo entre governos, instituições acadêmicas, empresas e sociedade civil para desenvolver e implementar estruturas legais e éticas que garantam a proteção em todas as etapas do desenvolvimento e uso.  Em última análise, a regulamentação é essencial para preservar a dignidade humana, a integridade mental e a liberdade individual em um mundo cada vez mais permeado pela tecnologia. É hora de reconhecer e proteger os neurodireitos como parte integrante dos direitos humanos universais, garantindo que todos possam se beneficiar dos avanços da neurociência e da tecnologia de maneira justa, equitativa e ética. Isto posto, ressalta-se que os neurodireitos foram lembrados quando da elaboração do parecer da subcomissão de direito digital da Comissão de atualização do Código Civil de 2002, do Senado Federal, que está propondo em um novo livro dentro do Código Civil, o seguinte texto:  "Art. x Os neurodireitos são parte indissociável da personalidade e recebem a mesma proteção desta, não podendo ser transmitidos, renunciados ou limitados. I - São considerados neurodireitos as proteções que visam a preservar a privacidade mental, a identidade pessoal, o livre arbítrio, o acesso justo à ampliação ou melhoria cerebral, a integridade mental e a proteção contra vieses, das pessoas naturais, a partir da utilização de neurotecnologias. II - São garantidos a toda pessoa natural os seguintes neurodireitos: a) direito à liberdade cognitiva, sendo é vedado o uso de neurotecnologias de forma coercitiva ou sem consentimento; b) direito à privacidade mental, concebido como direito de proteção contra o acesso não autorizado ou não desejado a dados cerebrais, vedada a venda ou transferência comercial; c) direito à integridade mental, entendido com o direito à não manipulação da atividade mental por neurotecnologias, sendo vedada a alteração ou eliminação do controle sobre o próprio comportamento sem consentimento; d) direito de continuidade da identidade pessoal e da vida mental, com a  proteção contra alterações na identidade pessoal ou coerência de comportamento, sendo vedadas alterações não autorizadas no cérebro ou nas atividades cerebrais; e) direito ao acesso e equitativo a tecnologias de aprimoramento ou extensão das capacidades cognitivas que deve ser guiado pelos princípios da justiça e da equidade; f) direito à proteção contra práticas discriminatórias, enviesadas a partir de dados cerebrais. Parágrafo Único - Os neurodireitos e o uso ou acesso a dados cerebrais poderão ser regulados por normas específicas, desde que preservadas as proteções e as garantias conferidas aos  direitos fundamentais e aos direitos de personalidade."  A proposta desta atualização legislativa com foco em direito digital visa posicionar o Brasil também na vanguarda da proteção dos direitos humanos na era digital. Nesse contexto, é imperativo que a legislação reflita os avanços e desafios trazidos pelas neurotecnologias, incluindo a proteção dos neurodireitos.  Ao reconhecer a importância dos neurodireitos e incorporá-los à legislação de direito digital, estamos garantindo que nossa legislação esteja alinhada com os princípios fundamentais de justiça, equidade e respeito pelos direitos humanos. Estamos também demonstrando nosso compromisso em enfrentar os desafios emergentes e aproveitar as oportunidades oferecidas pelas neurotecnologias para promover o bem-estar e o progresso da sociedade como um todo, mas com responsabilidade e ética.  A OCDE em 2019 editou a "Recomendação do Conselho sobre Inovação Responsável em Neurotecnologia"13, com o objetivo orientar os governos e os "inovadores" a antecipar e enfrentar os desafios éticos, legais e sociais levantados pelas novas neurotecnologias, ao mesmo tempo que promove a inovação neste campo. Tendo como recomendações: Promover a inovação responsável, priorizar a avaliação de segurança Promover a inclusão, Promover a colaboração científica, Habilitar a deliberação social, Capacitar os órgãos de supervisão e consultivos, Proteger dados cerebrais pessoais e outras informações, Promover culturas de gestão e confiança em todo o setor público e privado, Antecipar e monitorar o potencial uso não intencional e/ou uso indevido.  Vale neste momento ressaltar, que o Brasil não seria o primeiro a tratar sobre o tema, em 29 de setembro de 2021, o Chile se tornou o primeiro país do mundo a instituir proteção legal aos neurodireitos com a aprovação da lei 21.38314, incluindo expressamente esta proteção em sua Constituição.  Também a Espanha e França em 2021, tomaram medidas regulatórias para proteção destes direitos com as Carta de Derechos Digitales, instituindo "Derechos digitales en el empleo de las neurotecnologi´as"15 e French charter for the responsible development of neurotechnologies16, respectivamente.  Após, organismos internacionais como a ONU em 2022 em Paris, abordou a questão com o Ethical Issues of Neurotechnology: Report17 e em 2023 a OEA publicou a Declaração Interamericana de Princípios sobre Neurociências, Neurotecnologias e Direitos Humanos18.  Também há debates em andamento na Argentina e no México, solidificando ainda mais a posição da América Latina no tema.  Em resumo, a proteção dos neurodireitos e o desenvolvimento ético das neurotecnologias são desafios essenciais que temos que enfrentar, pois já são uma realidade. Ao reconhecer e proteger os neurodireitos, estamos defendendo os princípios fundamentais da dignidade humana, da privacidade e da liberdade individual em um mundo cada vez mais permeado pela tecnologia. Ao mesmo tempo, ao desenvolver e utilizar as neurotecnologias de maneira ética e responsável, podemos aproveitar seu potencial para melhorar a qualidade de vida das pessoas e promover o progresso da sociedade como um todo.  A proposta de regulamentação dos neurodireitos apresentada neste artigo representa um passo significativo na direção certa, mas é apenas o primeiro de muitos passos necessários para garantir uma proteção abrangente e eficaz dos direitos humanos na era digital e "biotecnológica", por assim dizer, mas a implementação efetiva dessa proposta exigirá um compromisso contínuo com a ética e a transparência.  À medida que avançamos em direção a um futuro cada vez mais dominado pela tecnologia, é crucial que não deixemos de lado nossos valores e princípios fundamentais como sociedade. Devemos lembrar que, no cerne de todas as inovações tecnológicas, estão as pessoas e suas necessidades e direitos. Somente ao garantir que a tecnologia sirva ao bem comum e ao progresso humano, podemos verdadeiramente colher os frutos do nosso avanço tecnológico e construir um futuro mais justo, inclusivo para todos. __________  1 "Golgi recebeu as mais altas honras e prêmios em reconhecimento ao seu trabalho. Ele compartilhou o Prêmio Nobel de 1906 com Santiago Ramón y Cajal por seu trabalho sobre a estrutura do sistema nervoso." Disponível aqui. Acesso em 12 de março de 20242 Técnica desenvolvida por Wilder Penfield, que tratava pacientes com epilepsia.  Disponível aqui. Acesso em 12 de março de 2024 3 No início da década de 1970, Allan McLeod Cormack e Godfrey Newbold Hounsfield introduziram a tomografia computadorizada ou tomografia computadorizada e imagens anatômicas cada vez mais detalhadas do cérebro se tornaram disponíveis para fins de diagnóstico e pesquisa. Cormack e Hounsfield ganharam o Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina de 1979 por seu trabalho. Logo após a introdução do CAT no início dos anos 80, o desenvolvimento de radioligandos permitiu a tomografia computadorizada de emissão de fótons (SPECT) e a tomografia por emissão de positrons (PET) do cérebro. Disponível aqui. Acesso em 12 de março de 2024  4 Loewi, Otto 1921 5 Disponível aqui. Acesso em 12 de março de 2024 6 Disponível aqui. Acesso em 12 de março de 2024 7 Disponível aqui. Acesso em 12 de março de 2024> 8 Disponível aqui. Acesso em 12 de março de 2024> 9 Disponível aqui. Acesso em 12 de março de 2024> 10 Disponível aqui. Acesso em 12 de março de 2024> 11 Disponível aqui. Acesso em 12 de março de 2024> 12 Disponível aqui. Acesso em 12 de março de 2024> 13 Disponível aqui. 14 Disponível aqui. Acesso em 12 de março de 2024> 15 Disponível aqui. 16 Disponível aqui. 17 Disponível aqui. 18 Disponível aqui.
1 - Introdução O trabalho das serventias extrajudiciais com atribuição de casamento civil revela diversos problemas relacionados ao direito de família, em especial ao casamento e ao seu procedimento, com muitas peculiaridades e implicações no direito de filiação e patrimonial, não perceptível em uma única leitura, apesar de aparentemente fácil. A leitura normativa de casamento eclesiástico, previsto no art. 75, da Lei n.º 6.015/73 (Lei de Registros Públicos), é um texto de fácil compreensão, ao dizer que "o registro produzirá efeitos jurídicos a contar da celebração do casamento". Em uma primeira leitura, essa norma diz que o registro terá efeito pretérito. A título de ilustração, duas pessoas casaram-se religiosamente no dia 5 de janeiro de 2024, sem prévia habilitação civil na serventia extrajudicial. Ocorre que, após as formalidades legais, com o registro de casamento religioso no dia 15 de março de 2024, exsurge o efeito civil retroativo até 5 de janeiro de 2024, para fins de parentesco e patrimonial. O problema acontece quando o casamento religioso ocorre na vigência do Código Civil de 1916, mas o seu registro é requerido apenas em 2002. Daí surge dúvida quanto ao regime de bens de casamento aplicável; quanto ao modelo de preenchimento de certidão de casamento padronizada pelo Conselho Nacional de Justiça; quanto à natureza jurídica do prazo para o registro de casamento etc. Tais perguntas surgiram em um pedido de casamento religioso na serventia extrajudicial de Sucupira do Riachão/MA, que só aumentaram ao procurar respostas. Na Comarca de Imperatriz do Estado do Maranhão, descobriu-se a existência de registros antigos com autorização judicial. Ademais, também havia dúvida quanto à data do registro de casamento religioso na certidão, quando a celebração fosse muito antiga, ou seja, a celebração ocorreu na década de 70, mas o requerimento de atribuição de efeito civil ao casamento religioso seria apenas em 2024. Na prática, encontrou-se duas maneiras feitas pelos cartórios: enquanto uns colocam a "data da celebração [de casamento]" na parte de anotações da certidão de casamento, outros colocam essa data na parte da "data de registro de casamento (por extenso)", conforme imagem abaixo do modelo padrão anexado ao Provimento 63/2017, do Conselho Nacional de Justiça, mantido pelo Provimento n.º 149/2017, que institui o Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça -  Foro Extrajudicial (CNN/ CN/CNJ-Extra) Para piorar, no bojo das pesquisas, encontrou-se um consorte eclesiástico falecido, mas o outro se considerava "casado" (e não solteiro). Por outro lado, a jurisprudência não é favorável ao requerimento de registro por apenas um dos nubentes sobrevivente, em razão do art. 74 da lei 6.015/73 (Lei de Registros Públicos), ao dizer que "o casamento religioso, (...), poderá ser registrado desde que apresentados pelos nubentes, com o requerimento de registro (...)" (grifos nosso). Dessa divergência prática, percebeu-se que decorria, na realidade, de dificuldade interpretativa das normas jurídicas sobre casamento religioso e sua evolução legislativa, que atrapalha muito a sua aplicação prática pelos cartórios e autoridades públicas. Por fim, este trabalho discutirá apenas o casamento religioso sob o aspecto civil, sem adentrar em discussão teológica ou interpretativa do direito canônico, embora este seja utilizado neste trabalho. Clique aqui e confira a coluna na íntegra.
INTRODUÇÃO O Provimento 141/23 da Corregedoria do CNJ1 veio regulamentar as disposições da lei 14.382/22 relativas à união estável, trazendo muitas inovações. No presente artigo trataremos da questão da exigência ou não de pacto antenupcial quando da conversão da união estável em casamento, apresentando decisão proferida pela MMª juíza da Vara de Registros Públicos de Belo Horizonte/MG. Sobre a escolha do regime de bens que vigorará no casamento, o Código Civil estabelece a necessidade de pacto antenupcial quando a escolha do casal for de regime de bens diverso do legal. O regime legal no Brasil desde a lei do divórcio, que entrou em vigor em 27/12/77, é a comunhão parcial de bens, podendo ser o caso também de a lei estabelecer a separação obrigatória de bens.  Ambos, comunhão parcial de bens e separação obrigatória de bens são regimes que decorrem da lei, logo, dispensam o pacto, devendo ainda ser considerado que, para o maior de 70 anos de idade, poderá ser lavrado pacto antenupcial ou escritura ou termo declaratório de união estável afastando o regime da separação de bens, tendo em vista o Tema 1.236 da repercussão geral do STF.2  O PACTO ANTENUPCIAL NA CONVERSÃO DA UNIÃO ESTÁVEL EM CASAMENTO O Código Civil determina que poderão os nubentes, no processo de habilitação, optar por qualquer regime de bens, sendo que, quanto à forma, será reduzida a termo a opção pela comunhão parcial, fazendo-se o pacto antenupcial por escritura pública nas demais escolhas. Já no art. 1.653, o Código estabelece que é nulo o pacto antenupcial se não for feito por escritura pública, e ineficaz se não lhe seguir o casamento. O tema abordado neste artigo envolve a conversão da união estável em casamento, procedimento no qual a celebração é dispensada e que tem por fundamento legal o disposto no art. 226, § 3º, da Constituição da República, segundo o qual, para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. A determinação constitucional foi regulamentada pelo art. 8º da lei 9.278/96 e pelo art. 1.726 do Código Civil. A forma administrativa de conversão da união estável em casamento, que se dá mediante requerimento feito pelos conviventes ao Oficial do Registro Civil, não foi disciplinada pelo Código Civil, mas a lei 9.278/96 não foi revogada no que se refere ao procedimento administrativo, razão pela qual permanece a opção. DA NÃO EXIGÊNCIA DE PACTO ANTENUPCIAL QUANDO FOR MANTIDO O REGIME DE BENS EXISTENTE DURANTE A UNIÃO ESTÁVEL No que se refere à conversão da união estável em casamento, o Provimento 141/CNJ, hoje 149/CNJ, inovou, dispensando em certos casos o pacto antenupcial. O mencionado provimento estipulou que a "conversão da união estável em casamento implica a manutenção, para todos os efeitos, do regime de bens que existia no momento dessa conversão, salvo pacto antenupcial em sentido contrário." Foi esclarecido pelo Provimento do CNJ que somente será exigido pacto antenupcial quando na conversão for adotado "novo regime, salvo se o novo regime for o da comunhão parcial de bens, hipótese em que se exigirá declaração expressa e específica dos companheiros nesse sentido". Entendemos que a mesma regra da comunhão parcial se aplica aos casos de separação obrigatória de bens, ou seja, os nubentes manifestarão ciência, em termo, de que o regime legal está sendo aplicado. O Provimento do CNJ ordena que o regime de bens a ser indicado no assento de conversão de união estável em casamento, quando a opção for por manter o mesmo regime escolhido quando da união estável e esse regime for diverso do legal, deverá ser o mesmo consignado em um dos títulos a seguir indicados: I - sentenças declaratórias do reconhecimento da união estável; II - escrituras públicas declaratórias de reconhecimento da união estável; III - termos declaratórios de reconhecimento de união estável formalizados perante o oficial de registro civil das pessoas naturais. Assim, desde a publicação do Provimento 141/CNJ, cujas disposições atualmente estão o Provimento 149/CNJ, somente esses três títulos são hábeis a definir o regime de bens na união estável e, muito importante ressaltar, esses títulos têm força de pacto antenupcial quando o regime de bens escolhido na convivência tiver sido diverso do regime legal e os nubentes optarem pela manutenção do regime no casamento.  Somente se houver opção, após a conversão da união estável em  casamento, por outro regime, diferente, pois, daquele que vigorou na união estável, deverá ser lavrado pacto antenupcial, sendo recomendada pelo provimento a partilha de bens. Caso concreto foi apresentado à exma. sra. juíza da Vara de Registros Públicos de Belo Horizonte. Um casal que já vivia em união estável e que já tinha, por escritura pública, definido que o regime naquela união seria o da separação consensual de bens, requereu que, na conversão, fosse mantido o mesmo regime, sem apresentar pacto antenupcial. Foi suscitada dúvida pelo Registrador Civil, posto que o atual Código de Normas de Minas Gerais ainda exige o pacto antenupcial. A MMª juíza, em decisão publicada em 20/6/23, interpretando o Provimento do CNJ, proferiu a seguinte sentença3: É certo que o Código Civil estabelece a obrigatoriedade de realização de pacto antenupcial no caso de opção dos nubentes por regime de bens diverso do legal, o que aqui se verifica. Todavia, não há como ignorar que, em face da edição da lei 14.382/22, que tratou da conversão da união estável em casamento, o CNJ publicou o recente Provimento 141, justificando-o, dentre outros motivos, para "facilitar aos companheiros a declaração de existência da união estável, a sua conversão em casamento", estabelecendo, de forma clara e objetiva que: Art. 9º-D. O regime de bens na conversão da união estável em casamento observará os preceitos da lei civil, inclusive quanto à forma exigida para a escolha de regime de bens diverso do legal, nos moldes do art. 1.640, parágrafo único, da lei 10.406/02 (Código Civil). § 1º A conversão da união estável em casamento implica a manutenção, para todos os efeitos, do regime de bens que existia no momento dessa conversão, salvo pacto antenupcial em sentido contrário. § 2º Quando na conversão for adotado novo regime, será exigida a apresentação de pacto antenupcial, salvo se o novo regime for o da comunhão parcial de bens, hipótese em que se exigirá declaração expressa e específica dos companheiros nesse sentido. Ora, a regulamentação previu que somente será exigido pacto antenupcial no caso de conversão de união estável em casamento "se for adotado novo regime" e se não for ele o legal - comunhão parcial de bens. No caso em tela, os nubentes firmaram escritura de união estável em 11/4/23 e nela estabeleceram como regime da relação deles o da separação e bens, pretendendo, agora, manter o mesmo regime, de modo que, nos termos daquele Provimento, não se faz mesmo necessário firmar o pacto, já que não estão alterando o regime anteriormente estabelecido. Aliás, seria mesmo muito preciosismo e um ônus desnecessário para o cidadão, obrigá-lo a firmar escritura pública para nela estabelecer o que já está estabelecido em idêntico instrumento. É certo que a ausência do pacto poderia acarretar problemas futuros em especial no caso de transação imobiliária pelos nubentes, mas, para tal, basta a informação no assento de casamento de que o pacto foi suprido, nos termos do art. 9º-D, do Provimento 141/23 do CNJ, pela escritura pública de união estável. CONCLUSÃO Perfeita a sentença que, reconhecendo a exceção prevista na norma expedida pela Corregedoria do CNJ, afastou a necessidade de pacto antenupcial apenas no caso da conversão da união estável em casamento em que mantido o regime anterior,  diverso do regime legal, escolhido por título qualificado4 durante a união estável. Portanto, desde a publicação do Provimento 141/CNJ e atualmente na vigência do Provimento 149/CNJ, nas hipóteses em que na união estável já existir um dos três títulos qualificados previstos naquele Provimento, fixando regime de bens diverso do legal, e o casal pretender manter esse mesmo regime quando da conversão da união estável em casamento, não será necessária a lavratura de pacto antenupcial. Como bem afirmou a MMª juíza da Vara de Registros Públicos de Belo Horizonte/MG, o pacto foi suprido, pelo título no qual foi escolhido regime de bens para a união estável. -------------------------------- 1 O referido Provimento foi revogado em setembro 2023 tendo em vista o surgimento do novo Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça -  Foro Extrajudicial (CNN/ CN/CNJ-Extra), Provimento nº 149, mas o conteúdo das suas normas permanece o mesmo, somente compiladas no novo Código Nacional. 2 Para aprofundamento ver artigo de nossa autoria disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/401508/a-separacao-obrigatoria-para-o-maior-de-70-anos-nao-e-mais-obrigatoria 3 Na sentença são mencionados os artigos do Provimento 37/CNJ, pois a decisão foi proferida antes da publicação do Provimento nº 149/CNJ 4 Os títulos qualificados são: sentença judicial, escritura pública lavrada por tabelião de notas ou termo declaratório lavrado perante registrador civil das pessoas naturais
Introdução Neste pequeno ensaio, vamos nos deter no tema das distinções entre original e cópia e seus consectários - autoria, autenticidade, integridade. Com o perdão do trocadilho, qual o papel que o título digitalizado "com padrões técnicos" desempenha no processo registral? São equivalentes - o título original e o digitalizado - em ordem a sustentar a inscrição e promover a mutação jurídico-real?  Os espelhos nos assombram, assim como as cópias digitais. Desde o Mito de Narciso, cujo trágico desenlace todos conhecemos, cumprindo a profecia de Tirésias - si non se uiderit - a realidade e as suas representações sempre intrigaram o homem.1 Borges cravou uma passagem perturbadora em Tlön, Uqbar, Orbis Tertius: "os espelhos têm algo de monstruoso" porque "multiplicam o número dos homens".2 Em Tlön, as idealizações e as representações qualificam, de certo modo, os fatos e a materialidade substancial das coisas. O mundo não é um concurso de objetos no espaço, nem há substantivos na Ursprache de Tlön... Magritte, em seu La reproduction interdite (1937), nos convida à reflexão acerca da realidade e de suas representações. O que é real? O que é surreal?3 Com o advento das novas tecnologias, muitos de nós não conseguem distinguir de modo seguro um original de sua cópia reprográfica; um objeto real de um simulacro; um fato substancial de sua representação digital. A questão torna-se ainda mais perturbadora quando pensamos que, no âmbito dos documentos natodigitais, já não se verifica a summa divisio que vinca os originais e suas cópias; todas as cópias são originais e vice-versa... As recentes reformas legais são surpreendentes. Causam-nos perplexidade. Pensemos nos contratos digitalizados "com padrões técnicos". O que são propriamente? Assombram-nos os extratos - emanação especular que se desprende dos negócios jurídicos pela via da novilíngua digital, errando por hubs, centrais eletrônicas e cartórios; assalta-nos a ideia de infalibilidade e fidedignidade das redes de blockchain, tokens, artefatos criptográficos e de seus protocolos divinos. O que é real? O que é surreal? O que é meta-real? A realidade ultrapassa as mais ousadas distopias. Vivemos o tempo de avanços na digitalização da administração pública e judiciária, mas também testemunhamos o surgimento de simulacros que buscam suplantar a realidade e a materialidade das coisas, cedendo passo a representações complexas que se projetam no grande écran da hiper-realidade. Voltando-nos ao microcosmo dos Registros Públicos, as reformas recentes da Lei nº 6.015/1973, consumadas pelo advento da Lei nº 14.382/2022, colocam-nos diante de velhas questões no confronto com as tendências que se verificam na sociedade da informação. A discussão acerca das mudanças - e o impacto que terão na atividade registral - é tarefa imperiosa e que ganha especial relevo quando consideramos que a Lei nº 14.382/2022 pende de regulamentação pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Sabemos que o impulso essencial das mudanças foi a "modernização" do sistema registral pátrio, embalado por slogans e narrativas de jaez tecnocrático, o que, na opinião de uma pequena, mas qualificada, comunidade de juristas não se deu de modo satisfatório e adequado.4 Houve açodamento e uma certa dose de improviso e precipitação, fatos que podem inocular o germe da insegurança jurídica no sistema, além de instaurar uma barafunda sistemática, interditando os esforços despendidos em décadas de trabalho dedicado à modernização e ao aperfeiçoamento do modelar sistema registral pátrio.5 Divido essas meditações em dois pequenos artigos dedicados ao enfrentamento de três questões que se precipitaram na arena doutrinária pelas novas disposições legais: (a) O que são títulos digitalizados "com padrões técnicos" que agora podem acessar o Registro de Imóveis? Quais são seus pressupostos e requisitos técnicos e de validade jurídica? (b) Qual é o alcance do § 4º do art. 221 da Lei de Registros Públicos (LRP) na dispensa da reapresentação do título em algumas hipóteses, bastando mera referência ou certidão de atos já praticados? e finalmente (c) As certidões de documentos registrados no Ofício de Títulos e Documentos podem ser admitidas no Registro Imobiliário? Clique aqui e confira a íntegra da coluna. __________ 1 BRANDÃO, Junito. Mitologia Grega. Vol. II, Petrópolis: Vozes, 1987, p. 176. "Foi ao grande profeta grego, ao mais célebre mántis, que Liríope consultou: Narciso viveria muitos anos? A resposta do adivinho foi lacônica e direta: si non se uiderit, se ele não se vir". Narciso debruçou-se sobre o espelho d 'água e viu-se, e o vaticínio do velho Tirésias se cumpriria. 2 LUÍS BORGES, Jorge. Tlön, Uqbar, Orbis Tertius. O jardim dos caminhos que se bifurcam. Obras completas. Lisboa: Teorema, 1998. p. 447. 3 MAGRITTE, René. La reproduction interdite. (1937). Museum Boijmans van Beuningen - Rotterdam - Holanda. 4 MELO, Marcelo Augusto Santana de; MATUSZEWSK, Lorruane. Brevitatis causa. São Paulo: Migalhas, 12 abr. 2023. Disponível aqui. CRAMBLER, Everaldo Augusto. A Lei 14.382/2022, o sistema eletrônico de registros públicos e os negócios imobiliários. Ensaios sobre Direito Constitucional, Processo Civil e Direito Civil. Uma homenagem ao Professor José Manoel de Arruda Alvim. Curitiba: EDV, 2023, p. 239 passim. CAMPOS, Ricardo. Extratos eletrônicos, microssistemas e o Poder Judiciário. São Paulo: Migalhas, 24 mar. 2023. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/383616/. MARQUES, Cláudia Lima; MIRAGEM, Bruno. A raposa e o galinheiro: a MP 1.085/2021 e os riscos ao consumidor. In: Blog do Fausto Macedo, ed. de 1º maio 2022, atual. 28 ago. 2023. A carta aberta de civilistas brasileiros merece ser conhecida: Carta aberta de civilistas sobre trecho da Medida Provisória nº 1.162, de 14 de fevereiro de 2023 (Programa Minha Casa, Minha Vida). In: São Paulo: CONJUR, 2023. Disponível aqui. V. substancioso parecer subscrito pelos professores Cláudia Lima Marques e Bruno Miragem elaborado a pedido do Colégio Notarial Brasileiro - Conselho Federal e o Conselho Notarial Brasileiro - Seção São Paulo acerca das repercussões da MP nº 1.085/2021 nos direitos do consumidor. A CGJSP produziu um verdadeiro libelo crítico a respeito das inovações da Lei nº 14.382/2022. V. Processo CG 100.217/2022, São Paulo, dec. de 16/1/2023, Dje 16/1/2023, Des. Fernando Antônio Torres Garcia. Disponível aqui. 5 Sobre o açodamento e a falta de aprofundamento da matéria, é bastante impressivo o testemunho de seus principais atores: "Já era noite quando o Ofício 196/2022 do Senado chegou à Câmara, e o Relator, Deputado Isnaldo Bulhões Jr., apresentou prontamente o relatório relâmpago (Parecer Preliminar de Plenário 3) votando pelo acolhimento das alterações promovidas pelo Senado". ABELHA, André; CHALHUB, Melhim. VITALE, Olivar. Sistema eletrônico de registros públicos: Lei nº 14.382, de 27 de junho de 2022 comentada e comparada. Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. XVII. Tratou-se de verdadeira blitzkrieg empreendida por alguns setores do Governo Federal aliados a grupos interessados.
É nítida a aproximação das execuções fiscais e a atividade extrajudicial na recente resolução 547 do CNJ, de 22 de fevereiro de 2024, que institui medidas de tratamento voltadas à racionalização e eficiência na tramitação de execuções fiscais pendentes no Poder Judiciário em observância à tese fixada no julgamento do Tema 1184, de Repercussão Geral, do STF, no seguinte sentido: "É legítima a extinção de execução fiscal de baixo valor pela ausência de interesse de agir tendo em vista o princípio constitucional da eficiência administrativa, respeitada a competência constitucional de cada ente federado". A tese determinou, também, que o ajuizamento de execuções fiscais dependerá de duas providências prévias: 1) a tentativa de conciliação ou adoção de solução administrativa; e, 2) o protesto do título, salvo motivo de eficiência administrativa, mediante comprovação da inadequação da medida ou nos casos de dispensa.1  A Resolução remete à análise dos dados do Relatório Justiça em Números 2023 (ano-base 2022), que aponta mais uma vez as execuções fiscais como um dos principais fatores de morosidade do Poder Judiciário, correspondendo a 34% do acervo pendente, com taxa de congestionamento de 88% e tempo médio de tramitação de 6 anos e 7 meses até a baixa. O mesmo levantamento estimou que 52,3% das execuções fiscais têm valor de ajuizamento inferior a R$10.000,00, enquanto o custo mínimo de uma execução fiscal alcança a quantia de R$9.277,00 (Cf. Notas Técnicas 06 e 08 de 2023, do Núcleo de Processos Estruturais e Complexos do STF).2 Nesse contexto, a norma administrativa legítima, em seu art. 1°, a extinção do feito executivo de baixo valor sob fundamento da inexistência de interesse de agir, desde que o valor seja inferior ao valor de R$10.000,00, quando da data do ajuizamento da execução, observados, para apuração, a soma de valores de processos apensados e ações propostas em face do mesmo executado (§2º). A extinção depende da inexistência de "movimentação útil" há mais de um ano sem citação do executado ou, ainda que citado o devedor, que não conste notícia de localização de bens penhoráveis (§1º) sendo possível ao ente requerer suspensão do feito por 90 (noventa) dias, caso demonstrada a possibilidade de localização de bens do devedor (§5º).3 O ajuizamento da execução fiscal de baixo valor, a teor do disposto no art. 2°, dependerá do atendimento de dois requisitos cumulativos. O primeiro é a prévia tentativa de conciliação ou a adoção de solução administrativa do conflito. A resolução estabelece que a existência de lei geral de parcelamento ou oferecimento de vantagem na via administrativa é suficiente para caracterizar a tentativa de conciliação (§1º). Tal circunstância não exclui a possibilidade de atuação dos tabeliães de notas na conciliação, como previsto no art. 7º-A, II, da lei 8.935/94, incluído pela lei 14.711/23, previsão que tornaria mais eficaz o propósito de evitar o ajuizamento da demanda.4 A adoção de solução administrativa resta configurada pela simples notificação do executado para pagamento antes do ajuizamento da ação (§2º), situação que já acontece. Ademais, caso a providência tomada pelo ente exequente esteja prevista em ato normativo do ente, opera-se presunção de cumprimento desses requisitos.5 O segundo requisito para ajuizamento da execução é o protesto do título (art. 3º). No entanto, a norma apresenta um rol exemplificativo para sua dispensa em três hipóteses: (1) comunicação da inscrição em dívida ativa aos órgãos que operam bancos de dados e cadastros de proteção de crédito; (2) averbação, inclusive eletrônica, da CDA nos órgãos de registro de bens e direitos sujeitos a arresto e penhora e, por fim; (3) indicação, no ato do ajuizamento, de bens ou direitos penhoráveis de titularidade do executado.6 O protesto é dispensado quando se mostrar medida inadequada, por motivo de eficiência administrativa. Percebe-se a intenção de evitar o ajuizamento da ação executiva pela adoção de mecanismos extrajudiciais que tutelam o exercício do direito do credor. Depreende-se, também, que a despeito da "ausência de interesse de agir em execuções fiscais de baixo valor" (Cf. Tema 1184) associada ao critério custo-benefício, as execuções fiscais de valor abaixo de R$10.000,00 continuarão a existir - dentro dos parâmetros delineados pela Resolução.  O texto normativo poderia ter terminado aqui. Porém, o último artigo da resolução dispõe: "Art. 4º. Os cartórios de notas e de registro de imóveis deverão comunicar às respectivas Prefeituras, em periodicidade não superior a 60, todas as mudanças na titularidade de imóveis realizadas no período, a fim de permitir a atualização cadastral dos contribuintes das Fazendas Municipais". Salta mais uma conexão com o extrajudicial, agora com os tabelionatos de notas e os registros de imóveis, envolvendo compartilhamento de dados. Gize-se que o ato de comunicação de "todas as mudanças na titularidade de imóveis" [sic.] caracteriza tratamento de dados pessoais, a teor do disposto no art. 5º, inc. X, da lei 13.709/18, podendo a situação ser enquadrada como operação de transmissão ou distribuição, sujeita aos princípios norteadores das atividades de tratamento, entre eles, o da finalidade, da adequação, e da necessidade.7 Tendo em vista a previsão do compartilhamento de dados entre os tabeliães de notas, os registradores de imóveis e as prefeituras, não há dúvida de que o dispositivo demanda uma análise sob o escopo protetivo da Lei Geral de Proteção de Dados - LGPD - cuja observância é crucial, diante da previsão de submissão à lei tanto pelo Poder Público quanto pelas serventias extrajudiciais. Portanto, é de questionar-se: a exigência de comunicação dos dados relativos às mudanças na titularidade de imóveis por notários e registradores atende aos princípios da LGPD? De acordo com o art. 23, caput, da LGPD, o tratamento de dados pessoais por pessoas jurídicas de direito público e pelos notários e registradores deverá ser realizado para o atendimento da finalidade pública, persecução do interesse público, execução das competências legais ou cumprimento das atribuições legais do serviço público, além de observar os princípios insculpidos nos incisos do art. 6º, logicamente.8 Quanto à finalidade, a lei determina propósitos legítimos, específicos, explícitos e informados ao titular para realização do tratamento, sendo vedada operação posterior de forma incompatível com essa finalidade. No âmbito do Poder Público, o tratamento dos dados pessoais deve atender a uma "finalidade pública", a qual, conforme orienta a Autoridade Nacional de Proteção de Dados - ANPD, precisa ser (i) legítima, o que significa dizer, lícita e compatível com o ordenamento jurídico, além de estar amparada em uma base legal que autorize o tratamento; ser (ii) específica, permitindo delimitar o escopo do tratamento e estabelecer as garantias necessárias à proteção dos dados pessoais; (iii) explícita, ou seja, expressa com clareza e precisão; e (iv) informada, por meio de linguagem simples e fácil compreensão.9 Da leitura do art. 4º, caput, da Resolução extrai-se que, em suma, o tratamento previsto consistente na transmissão dos dados pessoais pelos notários e registradores, tem por finalidade a atualização cadastral dos contribuintes das Fazendas Municipais. De início, constata-se a inobservância ao princípio da finalidade, na medida em que a norma não delimitou o escopo do tratamento, ou seja, não define como será feita a transmissão dos dados, aliás, sequer indicou quais são os dados pessoais que seriam objeto da comunicação, o que tem reflexo direto em outro princípio da LGPD: o da necessidade. Segundo o princípio, o tratamento deverá ser limitado ao mínimo necessário à realização de suas finalidades, abrangendo os dados (i) pertinentes, (ii) proporcionais e (iii) não excessivos em relação a ela. Mais do que isso. Nas palavras da própria ANPD: "Da mesma forma, esse princípio desaconselha o próprio tratamento de dados pessoais quando a finalidade que se almeja pode ser atingida por outros meios menos gravosos ao titular de dados.". 10 É justamente aqui que a atenção fica voltada, pois tal comunicação, na forma prevista, é desnecessária e inadequada. Desnecessária, porque a finalidade apontada da norma pode ser alcançada por outros meios menos gravosos, na exata medida em que os sistemas utilizados pelas Prefeituras armazenam as informações relativas às transmissões de titularidade de imóveis antes mesmo do ato notarial ou do registro do título. Inadequada, porque consequentemente inexiste compatibilidade do tratamento com as finalidades almejadas, mormente em razão dos dados serem coletados na ponta, pela própria municipalidade.  Explica-se: para lavrar uma escritura pública que tenha por objeto a transmissão de direito real sobre bem imóvel, a lei determina que seja apresentado ao tabelião de notas o comprovante do recolhimento do imposto de transmissão, o que será consignado no ato notarial (Cf. lei 7.433/85).11 No caso de transmissões onerosas, inter vivos, as partes interessadas declaram o valor do imóvel e o município procede à avaliação, sendo essa a base de cálculo para cobrança do imposto de transmissão. O tabelião preenche o formulário para avaliação do bem objeto da transmissão, informando dados do adquirente, do transmitente, nome completo e número do CPF, e do imóvel, tudo no sistema do próprio município, que depois de apurado o valor, gera uma guia de recolhimento. Somente após o pagamento da guia é que a escritura será lavrada e registrada no Registro de Imóveis.  Assim, inequívoco que o município detém os dados pessoais necessários e suficientes para atender à finalidade do tratamento previsto no art. 4º, caput, da Resolução, não havendo sequer que se falar em princípio da minimização. Basta que o município realize uma operação de tratamento dos dados existentes no seu banco, classificando-os.  Outro aspecto a ser observado é que, assim como os tabeliães formalizam títulos aptos ao registro para transmissão da propriedade, também são títulos as sentenças judiciais, as cartas de arrematação, de adjudicação, os formais de partilha. Se a intenção é obter ter acesso aos dados de transmissão de titularidade, o mesmo dever de comunicação deveria recair sobre o Poder Judiciário. Com efeito, jargões do gênero "quanto mais melhor" fortalecem velhos ideais enciclopédicos, que podem não mais corresponder à eficiência da máquina pública; ao contrário, podem ensejar a criação de procedimentos onerosos e riscos desnecessários.  Não à toa o sociólogo Ulrich Beck sinalizava os riscos da exposição demasiada de dados pessoais em um estado de vigilância.12 O tratamento previsto no art. 4º, caput, da Resolução 457 do CNJ é inadequado, na medida que duplicará os dados nos sistemas dos municípios, podendo gerar redundância não controlada e assíncrona, lembrando que os mesmos dados serão tratados quando do preenchimento do formulário de avaliação pela Prefeitura para gerar a guia, pelo tabelião de notas quando da lavratura da escritura e pelo registrador de imóveis quando do registro, aumentando o risco de incidente de segurança e exigindo a adoção de medidas de segurança, técnicas e administrativas adequadas para proteger os dados pessoais de acessos não autorizados e de situações acidentais ou ilícitas de destruição, perda, alteração, comunicação ou difusão tanto pelos notários e registradores quanto pelos municípios. Sob a perspectiva da eficiência da administração pública (art. 37, CF), sobrecarregar o sistema com informações já existentes nos bancos de dados do município é um contrassenso e uma exposição desnecessária.  ---------------------------- 1 STF. Tema 1184. Extinção de execução fiscal de baixo valor, por falta de interesse de agir [...]. Disponível aqui. 2 CNJ. Resolução 547, de 22 de fevereiro de 2024. Institui medidas de tratamento racional e eficiente na tramitação das execuções fiscais pendentes no Poder Judiciário, a partir do julgamento do tema 1184 da repercussão geral pelo STF. Disponível aqui. 3 CNJ. Resolução 547, de 22 de fevereiro de 2024. Institui medidas de tratamento racional e eficiente na tramitação das execuções fiscais pendentes no Poder Judiciário, a partir do julgamento do tema 1184 da repercussão geral pelo STF. Disponível aqui. 4 Art. 7º-A Aos tabeliães de notas também compete, sem exclusividade, entre outras atividades: [...] II - atuar como mediador ou conciliador. In: BRASIL. Lei 8.935, de 18 de novembro de 1994. Regulamenta o art. 236 da Constituição Federal, dispondo sobre serviços notariais e de registro. (Lei dos cartórios). Disponível aqui. 5 CNJ. Resolução 547, de 22 de fevereiro de 2024. Institui medidas de tratamento racional e eficiente na tramitação das execuções fiscais pendentes no Poder Judiciário, a partir do julgamento do tema 1184 da repercussão geral pelo STF. Disponível aqui. 6 CNJ. Resolução 547, de 22 de fevereiro de 2024. Institui medidas de tratamento racional e eficiente na tramitação das execuções fiscais pendentes no Poder Judiciário, a partir do julgamento do tema 1184 da repercussão geral pelo STF. Disponível aqui. 7 Art. 5º Para os fins desta Lei, considera-se: [...] X - tratamento: toda operação realizada com dados pessoais, como as que se referem a coleta, produção, recepção, classificação, utilização, acesso, reprodução, transmissão, distribuição, processamento, arquivamento, armazenamento, eliminação, avaliação ou controle da informação, modificação, comunicação, transferência, difusão ou extração. In: BRASIL. Lei 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Disponível aqui. 8 BRASIL. Lei 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Disponível aqui. 9 ANPD. Guia Orientativo: Tratamento de dados pessoais pelo Poder Público. Versão 2.0. Jun/2023. Disponível aqui. 10 ANPD. Guia Orientativo: Tratamento de dados pessoais pelo Poder Público. Versão 2.0. Jun/2023. Disponível aqui. 11 Art 1º - Na lavratura de atos notariais, inclusive os relativos a imóveis, além dos documentos de identificação das partes, somente serão apresentados os documentos expressamente determinados nesta Lei. [...] § 2º O Tabelião consignará no ato notarial a apresentação do documento comprobatório do pagamento do Imposto de Transmissão inter vivos, as certidões fiscais e as certidões de propriedade e de ônus reais, ficando dispensada sua transcrição. In: BRASIL. Lei 7.433, de 18 de dezembro de 1985. Dispõe sobre os requisitos para a lavratura de escrituras públicas e dá outras providências. Disponível aqui. 12 BECK, Ulrich. A metamorfose do mundo: novos conceitos para uma nova realidade. Tradução Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2018, p. 193: "em vez de procurar uma só agulha no palheiro, a abordagem era 'vamos recolher o palheiro todo'".
Introdução Com o advento da lei 14.382, de 2022, alterou-se a Lei de Registros Públicos (LRP) para inclusão do § 4º do art. 221, inovando o processo de registro. O dispositivo se coordena com o § 6° do art. 19 da mesma lei. Ambos têm a seguinte redação:   Art. 19. A certidão será lavrada em inteiro teor, em resumo, ou em relatório, conforme quesitos, e devidamente autenticada pelo oficial ou seus substitutos legais, não podendo ser retardada por mais de 5 (cinco) dias. (...) § 6° O interessado poderá solicitar a qualquer serventia certidões eletrônicas relativas a atos registrados em outra serventia, por meio do Sistema Eletrônico dos Registros Públicos (SERP), nos termos estabelecidos pela Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça. ... Art. 221 - Somente são admitidos registro: (...) § 4º Quando for requerida a prática de ato com base em título físico que tenha sido registrado, digitalizado ou armazenado, inclusive em outra serventia, será dispensada a reapresentação e bastará referência a ele ou a apresentação de certidão. Quais serão as repercussões da mudança legislativa na praxe cartorária? Vamos no deter nesse ponto, buscando formular algumas questões para debate e aprofundamento desse e de outros temas conexos. Rogação pelo interessado... A lei exige requerimento do interessado. Não cabe ao registrador diligenciar, sponte propria, a ocorrência de registro do título no cartório ou em outra serventia. O impulso (instância ou rogação) deve ser do interessado (inc. II do art. 13 c.c. § 6º do art. 19 da LRP). A expressão interessado é significativa no contexto da lei. Não será qualquer apresentante que mobilizará o processo de registro. O interessado deve justificar o pedido, autorizando o oficial a proceder às diligências para consumação do registro com base em títulos registrados alhures.1 Título físico... A previsão da lei é a prática de ato de registro com base em título físico apresentado anteriormente. À parte a expressão equívoca (não existirão, tanto quanto saiba, títulos metafísicos), com base na estrita literalidade da lei, não se admitirá o aproveitamento de título natodigital ou digitalizado, nos estritos termos da lei. Certo que, no caso dos títulos natodigitais, o conceito de original e cópia perde completamente o sentido (original = original). Já no caso dos títulos digitalizados, além dos requisitos aos quais já se aludiu extensamente2, paira certa dúvida se eles deverão ser mantidos nas Serventias, a teor estrito e literal do disposto no defectivo art. 194 da LRP3. Pode-se cogitar de se admitir certidões eletrônicas relativas a atos registrados em outra serventia (§ 6° do art. 19 c.c. § 4º do art. 221 da LRP) constituindo-se, ela mesma, em eventual título inscritível. Cresce o grau de insegurança jurídica em todo este processo, já que, por definição, o Oficial qualifica o título em toda a sua extensão, não o extrato registral (que pode vir a ser o extrato do extrato...).  Além disso, o que se aproveita é o título em si mesmo considerado, não outros documentos acessórios, embora o Oficial possa admitir prova produzida em outro processo de registro, por analogado do art. 372 do CPC - desde que, evidentemente, os documentos tenham sido anteriormente arquivados na Serventia4. Além disso, própria LRP ("g", I, art. 213) autoriza o aproveitamento dos dados oficiais para colmatar lacunas5. Note-se, por fim, a dicção da lei: poderá, isto é, cada caso deverá ser apreciado com autonomia e independência pelo registrador competente nos limites e atribuições legais. Clique aqui e confira a íntegra da coluna. __________ 1 JACOMINO, Sérgio. Interessado e apresentante na vigente LRP. São Paulo: Observatório do Registro, 15 jul. 2021. Disponível aqui. Após o advento da Lei nº 14.382/2022 eu retornaria ao tema em JACOMINO, Sérgio. Instrumentos particulares, títulos digitalizados - requisitos técnicos. As reformas sucessivas da lei 14.382/2022, loc. cit., 23/9/2023. Disponível aqui. 2 JACOMINO, Sérgio. Original e cópia - o inebriante efeito especular da digitalização. Velhas questões, novos desafios. São Paulo: Observatório do Registro, 19.fev.2024. Disponível aqui. 3 Aqui calha uma nótula: quando se alude a títulos digitalizados, teve-se em mira os títulos assim apresentados na serventia, não os títulos "físicos" digitalizados pelo próprio cartório. Embora as críticas assacadas em face da digitalização atécnica ab origine se apliquem inteiramente aos títulos cartáceos ("físicos") digitalizados pelas serventias. 4 Ap. Civ. 77.859-0/8, Bragança Paulista, j. 2/8/2001, DJ 5/9/2001, Rel. Des. Luís de Macedo. Disponível aqui. Ap. Civ. 10.697-0/8, Osasco, j. 12/3/1990, DJ 25/4/1990, Rel. Des. Onei Raphael Pinheiro Oricchio. Disponível aqui. 5 Processo CG 933/2005, São Paulo, decisão de 27/3/2006, Des. Gilberto Passos de Freitas. Disponível aqui.
Nos idos da década de 60, passou pela comarca um juiz muito rigoroso que, tempos depois, viria a ocupar o cargo de presidente do antigo e honorável 2º Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo, chegando à desembargadoria no início da década de 80. Naquele tempo, os escreventes dos Cartórios de Registro de Imóveis, assim como seus oficiais, eram dublês de escrivães e escreventes do judicial e do extrajudicial. Assim previam as Ordenações do Reino e foi assim até bem pouco tempo em São Paulo. Valtinho Leite, escrevente de sala, funcionário do Registro de Imóveis, era um bom datilógrafo, muito atento a todos os detalhes da audiência, qualificava as partes e as testemunhas, colhia suas assinaturas, sempre sob o olhar vigilante do magistrado. Um certo dia, viu que o juiz enrubescia à medida que folheava um processo posto sobre a mesa. O escrevente conhecia-o muito bem e sabia quando se apoquentava: suas bochechas se tornavam róseas, ofegava, os dedos tamborilavam nervosamente sobre o vidro posto sobre a bandeira do Estado de São Paulo e a imagem de São Judas Tadeu. Depois de folhear os autos, disse, pigarreando e apagando o cigarro no cinzeiro de cristal: - Como pode, senhor Valtinho, como pode o advogado do autor distribuir a ação e ao mesmo tempo contestá-la em nome do réu? Era uma ação de despejo por falta de pagamento. Valtinho conhecia o advogado, um homem de boa índole, pai de família, advogado conhecido e respeitado na comarca. Terá se equivocado? Decidiu interceder. Saiu da sala de audiências e foi ao encontro do advogado. Disse-lhe que deveria apresentar-se perante o juiz para se desculpar. Alegaria acúmulo de serviço, equívoco no peticionamento e coisa e tal. "O homem é brabo", advertiu. Assim combinaram e no dia seguinte foram ter à presença do magistrado. Valtinho pediu licença e introduziu o advogado, que logo tomou a palavra: - Excelência, foi culpa do excesso de trabalho. O locador é amigo pessoal de longa data. Somos confrades no Círculo do Pensamento Esotérico. Já o inquilino é meu contraparente e, sabe como é, Doutor, não se pode negar um pedido da minha mulher... Tossiu, coçou a ponta do nariz. O juiz observava os dois atentamente. Valtinho sentou-se num canto da sala e fingia mexer na caixa de papel-carbono, o causídico suava, parecia sufocar com a gravata que ajeitava nervosamente. - Pois bem, disse o magistrado depois de meditar e ponderar. Façamos o seguinte: vamos marcar uma audiência de conciliação e conhecer as razões das contrapartes, inquiri-las acerca dessa original pretensão deduzida em juízo. Dito isso, o juiz encerrou o colóquio. O advogado percebeu que se metia numa bela enrascada e logo tratou de desistir da ação, subscrevendo uma petição datilografada às pressas na sala dos advogados. No dia seguinte, compôs-se com o autor e saldou a dívida do réu, diligenciando para que desocupasse o imóvel o mais rapidamente possível. O magistrado promoveu-se para a comarca da capital. Valtinho Leite recebeu o novo juiz e inaugurou nova fase no cargo de escrevente responsável pelo anexo do Júri, Menores e Corregedoria Permanente. Na corregedoria, conheceria ainda histórias dramáticas, mas algumas hilárias - como as artes de Pedro Faceto, o escrevente que virou desembargador. Um dia, manuseando a arma do crime - uma Beretta automática -, Faceto disparou no teto do cartório, fazendo desabar a estrutura de gesso e causando um início de pânico no fórum. Deixemos este caso para a próxima certidão. Nada mais. Todo o referido é verdade e dou fé. 
Este artigo trata de uma prática que nos parece equivocada: a de condicionar a averbação do georreferenciamento na matrícula do imóvel ao prévio consentimento de entes públicos (ainda que por meio de entidades da Administração Indireta). A prática parece só existir no Distrito Federal, por força do art. 18 do Provimento nº 2, de 19 de abril de 2010, da Corregedoria-Geral de Justiça do TJDFT1. Consultamos registradores de outros Estados, mas não identificamos similar posicionamento. Antes de enfrentar o tema, convém lembrar que, desde 20 de novembro de 2023, todos os imóveis rurais de tamanho superior a 25 hectares estão obrigados a serem georreferenciados. O prazo para os imóveis de tamanho inferior esgotará em 20 de novembro de 2025. Esses prazos estão no Decreto nº 4.449/2002. O georreferenciamento é fundamental, porque permite que a matrícula do imóvel contenha uma descrição perimetral do imóvel com altíssimo grau de precisão, de modo a evitar um dos problemas mais comuns no meio fundiário brasileiro: a sobreposição de áreas. Detalhando esse assunto, tivemos a oportunidade de escrever artigo dividido em duas partes na Coluna Migalhas Notariais e Registrais sob o título Cartório de imóveis e georreferenciamento: exigência de consentimento de confrontantes para averbar o georreferenciamento. Recomendo-lhes a leitura: (1); (2). As matrículas dos imóveis rurais cuja descrição perimetral não seja atualizada com o georreferenciamento estão sujeitas a um bloqueio legal: nenhum ato pode ser praticado nessa matrícula enquanto não houver a averbação do georreferenciamento. É o § 2º do art. 10 do decreto 4.449/20022. O objetivo desse bloqueio legal é induzir todas as matrículas dos imóveis rurais brasileiras a serem higienizadas das imprecisões perimetrais próprias da precária linguagem de agrimensura até então utilizada. Averbar o georreferenciamento é, metaforicamente, traduzir a descrição precária atual para uma linguagem mais precisa de agrimensura. Acontece que há quem defenda a necessidade de uma prática - a nosso ver - descabida: entes públicos estão tentando "pegar carona" nesse bloqueio legal para exigir que a averbação do georreferenciamento seja condicionada ao seu prévio consentimento. O argumento brandido por esses entes públicos é de que há muitos imóveis rurais que estariam em áreas públicas, de modo que essa prévia anuência serviria como uma forma de fiscalização prévia. Trata-se, ao nosso ver, de procedimento inadequado não apenas sob o aspecto jurídico-formal, mas também sob a orbe jurídico-material. Sob o prisma jurídico-formal, não há nenhum respaldo legal nessa oitiva prévia de entes públicos para a averbação do georrefenciamento. O procedimento para tanto é o disciplinado pelo art. 213, II, da Lei nº 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos - LRP)3, o qual não prevê nada nesse sentido. Aliás, se o legislador entendesse por obrigatória a oitiva dos entes públicos, ele o teria sido expresso, à semelhança do que ele fez ao disciplinar o procedimento de usucapião extrajudicial (art. 216-A, § 3º, da LRP). À luz de um lado jurídico-material, igualmente é descabido condicionar a averbação do georreferenciamento à prévia anuência de entes públicos. Não há razão de ser para tanto. É que, no caso do procedimento de averbação do georreferenciamento na forma do art. 213 da LRP, o objetivo é apenas retificar ou atualizar uma informação registral referente à descrição da poligonal do imóvel. Não se objetiva realizar qualquer check-up (profilaxia jurídica) da titularidade tabular do imóvel. Para esse tipo de profilaxia jurídica, há vias próprias, como o procedimento de autotutela registral do art. 214 da LRP nos casos de vícios tabulares4 ou a pertinente ação judicial na hipótese de vício extratabular. A propósito desses procedimentos, reportamo-nos a artigo nosso publicado na Coluna Migalhas Notariais e Registrais sob o título Procedimento de autotutela registral (art. 214 da Lei de Registros Públicos): limites objetivos. No caso de discussão de titularidade pública do imóvel, cabe ao ente público - se se entender o verdadeiro proprietário - valer-se da via judicial pertinente com provas de seu direito, pois aí estaríamos diante de um vício extratabular. Além do mais, lembramos que a legislação federal já estabeleceu um mecanismo de segurança para evitar sobreposição de áreas, seja em relação a outros imóveis privados, seja no tocante a imóveis públicos. Trata-se da exigência de prévia atuação do Incra, que mantém o controle de disponibilidade do território rural brasileiro e que emite a pertinente certificação da ausência de sobreposição. O Certificado de Cadastro de Imóvel Rural (CCIR), emitido pelo Incra, é de presença obrigatória na matrícula do imóvel (art. 176, § 1º, II, "3", "a", e § 3º, da lei 6.015/1973 - Lei de Registros Públicos - LRP5). Sobre o tema, reportamo-nos às alterações legislativas feitas pela lei 10.267/2001 e ao seu regulamento (decreto 4.449/2002). Não pode nenhum ato infralegal criar um outro mecanismo de fiscalização prévia de sobreposição de áreas como condição para a averbação do georreferenciamento, por falta de respaldo legal. Além disso, entendemos que padeceria de inconstitucionalidade formal leis estaduais ou municipais que assim procedessem, pois somente lei federal pode disciplinar registros públicos (art. 22, XXV, da Constituição Federal). Enfim, não podem os Cartórios de Imóveis - de lege ferenda - dar "carona" aos entes públicos no bloqueio legal imposto às matrículas de imóveis rurais não georreferenciados após o transcurso do prazo de tolerância do decreto 4.449/2002. O mais grave dessa indevida "carona" é que, além da falta de arrimo jurídico-formal-material, essa prática é um desserviço aos esforços de redução da informalidade fundiária. Com a "carona", a tendência é a multiplicação de "contratos de gaveta", com a transmissão de cadeias de transmissão de direitos à margem dos registros públicos, a causar transtornos para a economia e a sociedade. Afinal de contas, os entes públicos, de modo abusivo, poderiam simplesmente recusar a dar consentimentos com motivações genéricas, por terem "suspeitas" de que o imóvel objeto da matrícula pode vir a ser de sua titularidade. Cuida-se de medida abusiva, que acabam conduzindo os particulares à informalidade fundiária. Se o Poder Público tem provas de que as áreas representadas por matrículas atualmente ativas lhe pertencem, cabe-lhe vale-se das vias judiciais adequadas. É, porém, ilícito que ele tente "pegar carona" no bloqueio legal do decreto 4.449/2002. No máximo, o que os Cartórios de Imóveis poderiam fazer - por mera cortesia - é comunicar os entes públicos após a prática de qualquer ato de averbação de georreferenciamento, para eventual conferência a posteriori pelo Poder Público, o qual poderá servir-se da via judicial se enxergar alguma usurpação de área pública. Argumentos como os da existência de ocupações irregulares nos locais são insuficientes para, sem respaldo em lei federal, burocratizar o procedimento de averbação do georreferenciamento pelos particulares que querem se livrar do bloqueio legal do decreto 4.449/2002. Uma opção disponível ao Poder Público para uma fiscalização ex ante legalmente viável é fornecer ao Incra as suas áreas com o devido georreferenciamento, a fim de que essa autarquia federal negue a certificação de georreferenciamento que avance sobre áreas públicas. O que não é admissível é que o bloqueio legal do decreto 4.449/2002 seja desvirtuado de sua finalidade original (a de atualizar as descrições perimetrais dos imóveis) para dar "carona" a pretensões burocratizantes de fiscalizações ex ante do Poder Público baseadas em presunções indevidas de má-fé do particular. Essa presunção de má-fé, inclusive, contraria expressamente o princípio da boa-fé do administrado, sediado no art. 3º, II, da Lei da Liberdade Econômica6, que objetivou desburocratizar a Administração Pública. Em poucas palavras, não se pode criar - de lege ferenda - uma exigência indevida para destravar as matrículas congeladas pelo bloqueio legal do decreto  4.449/2002. __________ 1 Art. 18 A Companhia Imobiliária de Brasília - TERRACAP será consultada pelo registrador sobre a retificação, devendo emitir laudo técnico no prazo de trinta dias acerca de eventual sobreposição total ou parcial com imóveis públicos ou quaisquer outras informações consideradas relevantes de que tenha conhecimento, tais como os imóveis desapropriados por ela ou por pessoas jurídicas de direito público, assim como bens públicos de uso comum do povo. Parágrafo único. A critério do registrador, outros órgãos ou entidades da Administração Pública poderão ser ouvidos no prazo de sessenta dias. 2 Art. 10, § 2o: "Após os prazos assinalados nos incisos I a IV do caput, fica defeso ao oficial do registro de imóveis a prática dos seguintes atos registrais envolvendo as áreas rurais de que tratam aqueles incisos, até que seja feita a identificação do imóvel na forma prevista neste Decreto: (...)" 3 Art. 213, II: "a requerimento do interessado, no caso de inserção ou alteração de medida perimetral de que resulte, ou não, alteração de área, instruído com planta e memorial descritivo assinado por profissional legalmente habilitado, com prova de anotação de responsabilidade técnica no competente Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura - CREA, bem assim pelos confrontantes. (...)" 4 Sobre o tema, reportamo-nos a este artigo. 5 Lei 6.015/1973 - Lei de Registros Públicos - LRP 6 Lei 13.874/2019 (Lei da Liberdade Econômica). Art. 2º  São princípios que norteiam o disposto nesta Lei: I - a liberdade como uma garantia no exercício de atividades econômicas; II - a boa-fé do particular perante o poder público; III - a intervenção subsidiária e excepcional do Estado sobre o exercício de atividades econômicas; e IV - o reconhecimento da vulnerabilidade do particular perante o Estado. Parágrafo único.  Regulamento disporá sobre os critérios de aferição para afastamento do inciso IV do caput deste artigo, limitados a questões de má-fé, hipersuficiência ou reincidência.
Aldemário Silveira foi um escrevente habilitado de uma pequena serventia de Registro de Imóveis. Apesar de ser admirado e reconhecido por ser um colega leal, bom datilógrafo, exímio nas contas, acabou não passando disso. Ele sabia tudo de geometria e aritmética, calculava a área de complexas figuras geodésicas, sabia como ninguém lidar com as frações ideais, extraía raízes quadradas e cúbicas, mas não dominava com destreza o principal instrumento de um bom cartorário: a linguagem. Passados mais de cinco anos, Aldemário foi elevado automaticamente a escrevente habilitado, sem submeter-se ao exame de habilitação que àquela época era exigido. Temia ser reprovado pela banca composta pelo juiz, um tabelião e um registrador da comarca. A partir de então, Aldemário se especializaria em examinar e registrar títulos judiciais. Fazia rapidamente os cálculos de frações, verificava a exatidão do recolhimento do imposto, era mais preciso e rigoroso que o partidor da comarca. Gostava de ler especialmente os formais de partilha, queria saber detalhes que cercaram a vida do de cujus. Do que morreu? Foi morte súbita ou doença crônica? Deixou filhos? Brigavam entre si? Se o velho deixara amante, o assunto lhe atraía especialmente. Quanto mais grosso o litígio, mais ele se entretinha. Diziam que era "braço curto", mas isso era uma injustiça, já que ele sempre acabava cumprindo suas tarefas no prazo. Havia, no entanto, um aspecto pitoresco de sua personalidade: Aldemário era um incorrigível troca-letras. Tinha uma inteligência brilhante, é verdade, mas às vezes nos revelava pérolas, como "atende o telofone" (em vez de telefone), "troca as tocoveleiras" (em vez de cotoveleiras). Todos ríamos das situações engraçadas nas quais ele se metia e das expressões que todo cartorário sabia de cor e logicamente evitava, mas Aldemário repetia inocentemente: "certidão de objeto em pé; "mandato de penhora"... Deixava escapar, vez por outra, numa nota devolutiva, um "retifique-se o formol de partilha", ou "não se respeitou a meiação do cônjuge supérstite", pedia a "certidão negativa de anos e alienações" e outras coisas do gênero. Todos mofavam de suas escorregadelas. Às vezes, quando líamos para ele em voz alta uma transcrição, nos interrompia: "confronta com quem?" E todos, à volta, repetíamos em uníssono: "confronta com quem de direito". Para ele essa expressão, tipicamente cartorária, não fazia o menor sentido, "imóvel confronta com imóvel, não com pessoas... Coisas não podem ser sujeitos de direito", resmungava, e seguia datilografando. Um dia, porém, ele se excedeu. Ao registrar um formal de partilha oriundo de um inventário litigioso, no qual os herdeiros e uma concubina, insinuante atriz de teatro, disputavam o acervo, Aldemário deixou escapar no ato de registro: o "espírito de fulano de tal" - em vez de o "espólio de fulano de tal". Ele lavrou e subscreveu tranquilamente o ato, o escrevente autorizado lhe seguiu como de costume, o Oficial emitiu a certidão do ato praticado e a parte retirou o título no balcão. Tudo seguia seu curso remansoso até que, dias depois, um advogado muito conhecido na comarca - homem falastrão, muito sagaz e espirituoso -dirigiu uma petição sardônica ao Oficial do Registro, requerendo providências nos seguintes termos:  "Sr. Oficial. Na qualidade de advogado e representante de Fulano e de Cicrano, herdeiros do falecido pai Beltrano, venho requerer a V. Sa. que retifique o ato de registro praticado, por representar engano evidente cometido, nos termos do art. 228 do Regulamento. Em nome dos herdeiros, da legatária, e atendendo especialmente a um chamamento do além, requeiro as providências cabíveis antes que a diatribe se traslade dos tribunais para um centro espírita, ou para um ringue de Telecatch. Como de costume, exigimos que admita o erro e suporte a corrigenda e que o retifique imediatamente."  A petição irritou profundamente o Oficial. Ele não era dado a gracejos e tinha um mau-humor temível. Jamais sorria, odiava piadas, abominava comédias. Até mesmo juízes e promotores que passaram pela comarca o temiam. Sua ranzinzice fez fama além da comuna. Com os bofes virados, recebeu a petição e deu o andamento cabível. Os filhos e a amante se odiavam, e esse pequeno acidente acabou por acirrar as controvérsias. Difamavam-se mutuamente. Os legitimários a chamavam de "barregã lasciva e lúbrica"; a legatária devolvia com "janotas arrivistas e idiotas espanéficos". As expressões provinham certamente do vocabulário prolixo do chicaneiro que parecia divertir-se açulando o conflito Entretanto, o assunto realmente explodiu quando o editor de um conhecido jornal sensacionalista manchetou, entre fotos de mulheres a pelo e assassinatos à queima-roupa: "Espírito de falecido desce para fazer justiça no cartório de imóveis". Durante uma semana inteira não se falava de outra coisa. Aldemário chegava em silêncio e saía mudo do cartório. Os colegas riam à sorrelfa, faziam troça do pobre escrevente habilitado. Pouco a pouco, ele perdia o interesse pelos rumorosos processos litigiosos, tornava-se taciturno e triste. Não tardou e se exoneraria do cartório. Abandonou a velha máquina de escrever, os carimbos, a almofada violeta com seu nome cinzelado, o Código Civil puído e foi dedicar-se ao cultivo de orquídeas e avencas. Viveu solitariamente até o seu derradeiro dia. Diziam que decifrava o código secreto da natureza inscrito nas flores e discernia os mistérios da proporção divina nos pequenos fetos que se lançavam ao sol preguiçosamente. Nunca mais vi o pobre Aldemário troca-letras. Os velhos escreventes, já aposentados, diziam que partira há algum tempo e hoje descansa numa pequena campa do Recanto da Paz, cercado de glicínias e ipomeias. Todo o referido é verdade e dou fé.
As facilidades e vantagens da internet são inegáveis, e a conexão digital transformou a maneira de consumir. Produtos e serviços, dos mais simples aos mais sofisticados, estão disponíveis a um clique em sites e aplicativos online. O impacto é tão significativo que estabelecimentos tradicionais migraram para o digital e ao lado deles estão os sites e aplicativos dedicados a intermediar a venda de produtos e serviços ofertados por pessoas físicas ou jurídicas, nacionais ou internacionais, por meio da publicação de anúncios com o objetivo de aproximar quem vende de quem compra, denominados marketplaces, de modo semelhante aos antigos (e quase extintos) cadernos de classificados dos jornais ou o shopping center. Para os estabelecimentos tradicionais, as vantagens são a ampliação do leque de ofertas sem a necessidade de estoque, a redução do preço e o acesso para compra a qualquer hora. Para os marketplaces, a superexposição gera alcance a um número maior de potenciais interessados, propiciando a comercialização por profissionais ou não, trazendo praticidade para quem compra, na comparação e escolha dos produtos e preços. Um novo ambiente para o consumo, que está em constante aprimoramento e crescimento, exigindo do comprador cuidados e atenção específicos, pois os riscos do mundo virtual nem sempre são visíveis aos olhos. Por vezes, camuflam-se em anúncios sedutores e irresistíveis, que visam lesar o cidadão, ou se escondem no caminho percorrido pelos bytes, que viajam por roteadores e servidores. Navegar por sites que intermedeiam a venda é uma experiência que envolve a exposição massiva a ofertas promovidas por anunciantes cadastrados na plataforma. É possível que os anúncios sejam falsos, que os produtos oferecidos sejam falsificados, ilícitos ou sequer existentes. Esquemas de fraude envolvendo a compra e venda de veículos em plataformas online são um exemplo muito comum. Conforme o estudo conduzido pela AllowMe, icarros Itaú, OLX, Unico, Who e Zoop para terceira edição da semana da segurança: "No Brasil, 80 mil pessoas já foram vítimas de golpes online em 2023". O estudo revelou, também, que os golpes mais aplicados são de falso pagamento, invasão de conta e, no terceiro lugar, os anúncios falsos.1 Neste contexto, surgem indagações sobre qual o padrão de comportamento que o cidadão, usuário, consumidor deve adotar, e o que é exigível do provedor de aplicação responsável por viabilizar a publicização dos anúncios. É possível responsabilizar o provedor no caso de um anúncio falso? Existe possibilidade de redução do risco de prejuízo relacionado a anúncio falso nas negociações online? Antes mesmo da vigência do Marco Civil da Internet, em meados de 2013, a Terceira Turma do STJ enfrentou discussão relativa à propagação da violação de uma determinada marca em site quando do julgamento do REsp 1.383.354/SP. A Corte Superior assentou entendimento de que serviços de intermediação virtual de compra e venda (marketplaces) são caracterizados por proverem espaço para criação de conteúdo, o qual não é gerenciado, organizado ou editado pela plataforma online, razão pela qual não caberia lhe impor a fiscalização preventiva sobre a origem dos produtos postos em circulação. De acordo com o julgado, o serviço é de caráter informativo, promovendo a aproximação de pessoas com interesses comuns e a obtenção do histórico de vendedores e compradores. Por outro lado, foi ressaltado o dever do provedor, de adotar providências para individualização dos anunciantes2. O precedente oferece reflexões interessantes quanto ao dever (ou não) de fiscalização pelos sites e quanto à obrigação de individualização do anunciante infrator.3 Transcorridos dez anos daquele julgamento, o STJ recentemente examinou tema semelhante, agora sob a vigência do Marco Civil da Internet, em caso envolvendo a perpetuação de violações de direitos autorais dentro de uma plataforma online. O AgInt nos EDcl nos EDcl no REsp 1.890.786/DF, julgado pela Quarta Turma do STJ, em 30 de outubro de 2023, reafirmou o entendimento de que (a) "não se pode impor aos sites de intermediação de venda e compra a prévia fiscalização sobre a origem de todos os produtos anunciados, na medida em que não constitui atividade intrínseca ao serviço prestado" e que (b) é necessária a indicação precisa do localizador URL do conteúdo ilícito como condição para a validade de comando judicial que ordene sua remoção da internet.4 O caso concreto envolvia a violação de direitos autorais por meio da oferta de comercialização não autorizada de um curso em plataforma online mantida pelo provedor de aplicação. O debate convida ao estudo da intersecção entre diplomas legais como a Lei n°. 9.610/98 (direitos autorais), a Lei n°. 9.279/96 (propriedade intelectual), a Lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), a lei 12.965/14 (Marco Civil da Internet) e a lei 14.711/23 (Marco Legal das Garantias). O texto se aterá a esses dois últimos. Apenas para evitar equívocos quanto aos conceitos e obrigações legais, convém  distinguir (a) provedor de conexão e (b) provedor de aplicação. O primeiro tem um papel ativo no fornecimento de acesso à internet, estabelecendo a lei o dever de guarda de registros de conexões (art. 13, Marco Civil da Internet), enquanto o segundo oferece seus serviços em rede, tendo o dever de guarda dos registros de acesso das aplicações (art. 15, Marco Civil da Internet). O comércio eletrônico realizado nos marketplaces é feito por provedores de aplicação.5 A distinção é importante, pois, a teor do 18, caput, do Marco Civil da Internet, o provedor de conexão não responde pelo conteúdo gerado por terceiros, diversamente do que acontece com o provedor de aplicação, que poderá ser responsabilizado na hipótese descrita no art. 19, caput, do Marco Civil da Internet.6 Considerando que os sites de intermediação são provedores de conteúdo (portanto, de aplicação), como dito, o STJ tem alinhado seu entendimento no sentido de que é inviável imputar-lhes a prévia fiscalização, visto que não é atividade intrínseca ao serviço prestado. Interessante mencionar que os julgados adotam o critério da diligência média para aferição de responsabilidade, que assim se traduz: a) na dimensão do provedor, pela adoção de providências para individualização do usuário sob pena de culpa in omitendo7, e; b) na dimensão do usuário, pela adoção de cuidados mínimos, considerados normais ou esperados (aqueles exigíveis do homem médio) para garantir o sucesso de sua negociação8. De acordo com a legislação vigente, a publicação de anúncio online falso e exponencialmente lesivo, somente gera responsabilidade para o provedor de aplicação no caso de não adoção das providências para tornar indisponível o conteúdo após ordem judicial - que deverá conter a identificação clara e específica do conteúdo, conforme o art. 19, do Marco Civil da Internet. A necessidade da ordem judicial se justificaria na garantia de assegurar a liberdade de expressão e a vedação à censura. Todavia, é inequívoco que, quanto mais tempo o anúncio estiver no site, mais pessoas poderão ser suas vítimas. Assim, diante da escolha do legislador, é preciso reforçar os mecanismos de proteção para que golpes ou fraudes não se concretizem. Neste contexto é que entra a lei 14.711/23, trazendo uma novidade capaz de contribuir com a segurança dos negócios online. Trata-se da atuação do tabelião de notas como agente de garantia (escrow agent). O art. 7-A, § 1º, da lei 14.711/23 prevê a possibilidade de recebimento ou consignação do preço pelo tabelião de notas, que ficará responsável por seu repasse à parte devida depois de constatada a ocorrência ou a frustração das condições negociais aplicáveis. Nas vendas online a utilização do serviço notarial do agente de garantia pode oferecer segurança para quem vende e para quem compra, tendo em vista que o valor permanece sob custódia do tabelião de notas, somente sendo liberado a quem de direito de acordo com as condições negociadas. Com isso, o risco de prejuízo pela não localização do vendedor depois de pagar e não receber, ou pelo recebimento de coisa diversa da esperada, para citar alguns, desaparece. O agente de garantia também afasta a prática lesiva de utilização da plataforma para atrair o negócio e depois levar o interessado para fora dela na hora de fazer o pagamento, o que muitas vezes impossibilita a recuperação do valor pago em conta de terceiro. Mas não é só isso, para os provedores de aplicação, em razão da responsabilidade de individualização dos anunciantes, a utilização do serviço notarial torna a identificação do cadastrante mais precisa, minimizando os riscos de fraude no cadastro. O que se observa hoje é que para anunciar em sites de marketplace são coletados alguns dados pessoais, sem que haja a conferência, o que certamente não atende (em completo) ao dever de individualização que tem por objetivo evitar que eventuais ilícitos não caiam no anonimato. Por fim, é preciso advertir que a verificação de cadastros dos usuários transmite maior confiança ao usuário adquirente, contudo, não elimina totalmente riscos de esquemas fraudulentos  - afinal, um usuário verificado, com várias vendas realizadas e feedbacks positivos pode ter sua conta invadida. Além disso, criminosos por vezes se valem de sites falsos (scam websites) para ludibriar usuários, fazendo crer que estão no marketplace que desejavam acessar. Atenção e cuidados por parte do usuário são indispensáveis, sempre. __________ 1 LUCIO, Amanda. No Brasil, 80 mil pessoas já foram vítimas de golpes online em 2023. 27/10/2023. E-commercebrasil. Disponível aqui. Acesso em: 20 jan. 2024. 2 STJ. REsp n. 1.383.354/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 27/8/2013, DJe de 26/9/2013. 3 Por pertinente, é possível referir outros precedentes do STJ que debateram essa matéria. Cf. REsp 1.308.830/RS, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJe de 19.06.2012. No mesmo sentido: AgRg no AREsp 308.163/RS, 4ª Turma, Rel. Min. Marco Buzzi, DJe de 21.05.2013; AgRg no AREsp 137.944/RS, 4ª Turma, Rel. Min. Antônio Carlos Ferreira, DJe de 08.04.2013; e 1.300.161/RS, 3ª Turma, minha relatoria, DJe de 26.06.2012 4 STJ. AgInt nos EDcl nos EDcl no REsp n. 1.890.786/DF. Relator Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 30/10/2023, DJe de 3/11/2023. 5 HAIKAL, Victor Auilo. Da significação Jurídica dos conceitos integrantes do art. 5º: [...]. In: Marco Civil da Internet. LEITE, George Salomão; LEMOS, Ronaldo (Coord.). São Paulo: Atlas, 2014, p. 323. 6 CABELLO, Marcos Antonio Assumpção. Da guarda de acesso à registro de aplicações na internet. In: Marco Civil da Internet. LEITE, George Salomão; LEMOS, Ronaldo (Coord.). São Paulo: Atlas, 2014, p. 719. 7 STJ, REsp 1193764/SP, rel. Min. Nany Andrighi, j. em 14.12.2010 e REsp 1383354/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 27/08/2013, DJe 26/09/2013. 8 STJ, REsp n. 1.217.171/RJ, relator Ministro Marco Buzzi, relator para acórdão Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 10/3/2020, DJe de 4/8/2020.
Diante da morte de sócio de uma sociedade contratual (o exemplo mais comum é a sociedade limitada), o caput do art. 1.028 do Código Civil prevê que, em regra, haverá a liquidação da quota do falecido, com a consequente dissolução parcial da sociedade. Contudo, o mesmo dispositivo legal prevê exceções à liquidação da quota: i) o contrato social pode dispor de forma diferente; ii) os sócios remanescentes podem optar pela dissolução total da sociedade; e iii) o sócio falecido pode ser substituído, por acordo dos sócios remanescentes com os herdeiros. Sendo decidido pela liquidação da quota do falecido (dissolução parcial) ou pela dissolução total da sociedade, não existem controvérsias: a deliberação será realizada pelos sócios remanescentes, hipótese em que, para fins de registro na Junta Comercial, não haverá a necessidade de apresentação de alvará judicial ou formal de partilha; ademais, tampouco será necessária a ciência ou anuência dos herdeiros do falecido ou a participação do inventariante. Entretanto, as outras duas hipóteses previstas no Código Civil dependem da existência de um acordo, que tanto pode ser prévio quanto posterior ao falecimento do sócio. A primeira situação está prevista no inciso I do art. 1.028 do CC, e ocorre quando os sócios, em vida, estipulam no contrato social como aquela sociedade irá prosseguir diante da morte de algum deles. Já a segunda encontra previsão no inciso III do mesmo artigo do CC, possibilitando que, sendo silente o contrato social, os sócios remanescentes e os herdeiros regulem a forma de substituição do sócio falecido. Ambas as situações estão pautadas na autonomia privada e na liberdade contratual, que ganharam mais força após a publicação da Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019, que instituiu a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica. Mas será que após a edição dessa lei há mesmo liberdade absoluta para que os sócios regulem a eventual morte de um sócio no contrato social? O dispositivo que julgamos ser um dos mais importantes da Lei da Liberdade Econômica (LLE) é o art. 3º, que estabelece os direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, que são essenciais para o desenvolvimento e crescimento econômico do País. No inciso V do art. 3º há expressa previsão de que é um "direito de liberdade econômica" a presunção de boa-fé nos atos praticados no exercício da atividade econômica, sendo que em casos de dúvidas de interpretação no direito civil e empresarial deve prevalecer a autonomia privada das partes, exceto se houver expressa disposição legal em contrário. Além dessa regra, destacamos o inciso VIII do mesmo artigo, que traz a garantia de que os negócios jurídicos empresariais paritários serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes, de forma a aplicar todas as regras de direito empresarial apenas de maneira subsidiária ao avençado, exceto normas de ordem pública. Ou seja, nos negócios empresariais deve prevalecer a vontade das partes. Portanto, poderíamos concluir que o contrato social poderia trazer qualquer disposição para regular as consequências societárias diante da morte de um sócio. Mas essa conclusão é equivocada, porque é importante se ter em mente que não se pode analisar a legislação de forma isolada, e a própria LLE, apesar de garantir a liberdade contratual, como regra, faz ressalvas quanto a situações em que há normas de ordem pública ou expressa vedação legal. Além disso, a Lei nº 8.934, de 18 de novembro de 1994, que regula o Registro Público de Empresas Mercantis, prevê que não podem ser arquivados pelas Juntas Comerciais os documentos que não obedecerem às prescrições legais ou regulamentares ou que contiverem matéria contrária aos bons costumes ou à ordem pública. Assim, tem-se que o limite da liberdade contratual é a própria lei. Se não houver vedação legal em contrário ao que se objetiva pactuar, é lícito aos sócios dispor em contrato social sobre os efeitos que o falecimento de um deles gerará sobre suas quotas. Os sócios podem tratar de forma diversa para cada um dos sócios; prever que os herdeiros serão admitidos na sociedade, independentemente do consentimento dos sócios remanescentes; regular a substituição do falecido pelos sócios supérstites ou por um terceiro, de forma a manter incólume o capital social etc. Sobre a liberdade contratual, há um precedente julgado pelo Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração (DREI) - Recurso ao DREI nº 14022.116144/2022-5 - que defendeu a autonomia privada e a validade de cláusula que previa, no caso de falecimento de sócio, que a sociedade continuaria com o sócio remanescente, o qual iria adquirir as quotas do sócio falecido de forma automática. Em suma, o contrato social permitiu a cessão e transferência automática das quotas do falecido. Nesse ponto, é importante destacar que não há vedação legal expressa proibindo tal disposição de vontade, visto que os herdeiros não são sócios e não fazem jus aos direitos pessoais de sócio, cabendo-lhes apenas o direito patrimonial em relação às quotas do sócio falecido. Alfredo de Assis Gonçalves Neto, em comentários ao art. 1.028 do CC1, explica que "os direitos pessoais do sócio não se transmitem aos sucessores do autor da herança e, por isso, no interregno entre o falecimento e o recebimento dos respectivos haveres, àqueles não é dado participar da sociedade, deliberando, impugnando ou fiscalizando os negócios sociais. (...) Sucessores ou herdeiros não são sócios, mas credores de haveres". No entanto, há quem defenda que, no âmbito do Registro Público de Empresas Mercantis, uma barreira para a liberdade contratual nas cláusulas sobre falecimento de sócio estaria no 426 do CC, que dispõe que "não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva", ou seja, o contrato social não poderia estipular a forma de sucessão do sócio falecido, prevendo quem dos herdeiros ou sucessores receberia o seu percentual de participação na sociedade, porque nesse caso se estaria realizado um testamento por via transversa. Essa corrente defende que cláusulas de contrato social ou de acordo de sócios que, de antemão, disciplinam regras sucessórias desrespeitam à proteção da herança, tida como um direito fundamental pelo art. 5º, inciso XXX, da Constituição Federal. Bevilaqua2 sustenta que os pactos sucessórios, "ainda que contassem com a concordância da pessoa de quem a sucessão se trata, contrariariam o princípio da liberdade essencial às disposições de última vontade, que devem ser revogáveis, até o momento da morte do disponente. Assim, a justificativa do dispositivo superaria a tradicional noção de votum alicujus mortis e passaria a cuidar do interesse do herdeiro e até mesmo do disponente de quem a sucessão se tratará". Ocorre que, tendo por base a Lei da Liberdade Econômica, há quem defenda que o contrato social pode prever regras acerca da sucessão empresarial, desde que se respeite, por óbvio, quanto ao aspecto patrimonial, a disciplina do Direito de Família. Assim, com base no inciso I do art. 1.208 do CC, o contrato social poderia prever a transmissão de quotas a um determinado sucessor ou terceiro, quando da eventual morte de sócio, de modo que o art. 426 do CC não seria aplicável, em decorrência da existência de previsão específica. Em que pese no Direito de Família existir a necessidade de observância das regras de sucessão, não podemos confundir os institutos. Conforme vimos, a morte não transmite de forma automática os direitos pessoais dos sócios, mas os direitos patrimoniais, de modo que não haveria vedação para que um herdeiro fosse sucessor do sócio falecido, enquanto aos outros fossem garantidos os direitos patrimoniais relativos aos seus respectivos quinhões, conforme o caso. Nessa situação, o contrato social teria, inclusive, a função de estabilizar a situação societária, visto que nem todos os herdeiros possuem condições ou interesse de se tornarem sócios. No que tange ao registro, importante consignar que, ao órgão executor do Registro Empresarial compete arquivar os instrumentos produzidos pelas sociedades empresárias que se apresentarem formalmente em ordem, não sendo cabível interferir na relação jurídica interna da sociedade. Devem-se examinar somente os aspectos formais dos atos e documentos levados a arquivamento, velando-se pelo fiel cumprimento da lei (inciso I do art. 35 da lei 8.934, de 1994). Por fim, cabe ressaltar que, sendo o caso de acordo para substituição do sócio falecido - quer seja em decorrência de previsão contratual prévia ou de ajuste posterior entre os sócios remanescentes e os herdeiros -, para fins de registro na Junta Comercial haverá a necessidade de apresentação de alvará judicial e/ou formal de partilha, na medida em que o art. 619, inciso I, do Código de Processo Civil prevê que, no inventário, depende de autorização do juiz a alienação de bens de qualquer espécie. __________ 1 Disponível aqui. 2 SIMÃO, José Fernando. Direito civil: contratos. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2008 - Série Leituras Jurídicas, p. 56.
O regime da separação de bens, em sua face obrigatória por razões etárias, não é novidade no sistema brasileiro. Esteve presente no Código Civil de 1916, a princípio tornando compulsório o regime de separação para o homem maior de sessenta e a mulher maior de cinquenta anos (CC/2016, art. 258). O legislador de 2002 manteve o critério, apenas igualando a idade de ambos para sessenta anos, até que a lei 12.344 de 09/12/2010, elevou a idade base para setenta anos, alterando o inciso II do art. 1.641. A separação obrigatória de bens já suscitava desconforto no Supremo Tribunal Federal (STF), razão pela qual o Pretório Excelso, ainda quando cumulava as funções de instância recursal, guardião da legislação federal e da Constituição, sintetizou sua jurisprudência sobre o tema na súmula 377, aprovada na sessão plenária de 03 de abril de 1964, oriunda de decisões que tiveram como referências legislativas os artigos 258 e 259 da Lei 3.071/1916 (código civil revogado), o art. 7º, § 5º do decreto-lei 4.657/1942, art. 3º da lei 883/1949, e, art. 18, do decreto-lei 3.200/1941, que sustentaram os precedentes RE 10951 (DJ de 26/09/1963), RE 7243 EI (DJ de 16/08/1957), RE 8984 EI ( DJ de 11/01/1951) e  RE 9128 (DJ de 17/12/1948). O texto da súmula - "no regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento" - mitigava, por força pretoriana, o principal efeito do regime se separação - o de estabelecer incomunicabilidades - ao permitir a comunhão de aquestos. A súmula 377 do STF ganhou recentemente uma versão dada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), aplicável à união estável de pessoas com idade igual ou maior de setenta anos. Trata-se da súmula 655 do STJ, cujo conteúdo, além de revigorar a súmula do STF, assegura seus efeitos também na união estável e consolida a exigência de prova do esforço comum para a comunhão de aquestos: "Aplica-se à união estável contraída por septuagenário o regime da separação obrigatória de bens, comunicando-se os adquiridos na constância, quando comprovado o esforço comum". (SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 09/11/2022, DJe 16/11/2022) O STF, que desde a década de 1960 não tinha mais voltado ao tema, no dia 1º de fevereiro de 2024, no julgamento da matéria objeto do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1309642, que teve a repercussão geral reconhecida pelo Plenário (Tema 1.236), faz inserir no sistema uma novidade de grande impacto social e jurídico, principalmente no Direito de Família e no Direito das Sucessões. Segundo o guardião da constituição, o regime estabelecido em razão do art. 1.641, II, do Código Civil é constitucional, mas pode ser afastado por convenção entre as partes, mediante a lavratura de pacto antenupcial. A tese de repercussão geral fixada pelo STF é a seguinte: "Nos casamentos e uniões estáveis envolvendo pessoa maior de 70 anos, o regime de separação de bens previsto no artigo 1.641, II, do Código Civil, pode ser afastado por expressa manifestação de vontade das partes mediante escritura pública". Assim, o regime de bens conhecido por "separação obrigatória de bens" nega seu próprio nome e não será mais tão obrigatório, pelo menos para os maiores de 70 anos de idade. Com essa interpretação o STF reconhece que a questão do art. 1.641 não é de ordem pública, porque passível de modificação pela vontade das partes, característica das normas dispositivas, seja para quem protagoniza casamento ou união estável. O Plenário do STF entendeu que manter a obrigatoriedade da separação de bens, prevista no Código Civil, desrespeita o direito de autodeterminação das pessoas idosas. A interpretação é saudável porque se ergue contra a discriminação em função da idade das pessoas, cuja vedação tem sede constitucional. Aliás, não há no sistema jurídico relativização da capacidade jurídica de fato, como um deletério efeito colateral da graça de se alcançar uma idade provecta. A interpretação conforme à Constituição Federal dada pelo STF ao art. 1.641, II, do Código Civil não inibe a existência ou os efeitos do regime da separação obrigatória, nem nega a súmula 377, posto que, no silêncio das partes, o regime continuará a ser aplicado para todas as hipóteses em que tem previsão expressa na legislação infraconstitucional, inclusive para o casamento ou união estável de pessoas com idade igual ou maior que setenta anos. O estado de coisas somente muda se houver manifestação expressa das partes. Com a decisão, a pessoa maior de setenta anos de idade pode afastar o regime da separação legal por pacto antenupcial, no casamento, e por escritura ou termo de união estável, com a escolha de qualquer outro regime de bens pelo maior de 70 anos de idade, inclusive o "trágico" regime da comunhão universal de bens. Se o casal não optar por lavrar pacto antenupcial, escritura ou termo de união estável, vale o regime da "separação legal". A decisão traz uma ampliação das possibilidades, no exercício da autonomia privada no que se refere ao regime da separação obrigatória de bens, que pode ser assim sintetizada, considerando o julgado do STF e o estado da arte sobre o assunto: a) Se as partes desejam o regime da separação e que seus efeitos sejam aqueles definidos na súmula 377 do STF ou na súmula 655 do STJ, no casamento ou na união estável, basta o silêncio dos interessados para assegurar as consequências esperadas, sendo que eventual esforço comum deverá ser demonstrado no futuro, para garantir a aplicação da súmula. b) Se as partes admitem o regime de separação de bens, mas não desejam os efeitos das súmulas, também podem realizar o casamento ou a união estável, manifestando sua vontade em pacto antenupcial ou termo declaratório, no sentido de afastar aqueles efeitos (REsp n. 1.922.347/PR, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 7/12/2021, DJe de 1/2/2022.) c)  Se as partes não desejam o regime da separação de bens, nem os efeitos das súmulas, então podem pactuar o regime de sua preferência, sem as amarras da restrição imposta pelo art. 1.641, II, do Código Civil. A opção volitiva de alteração do regime de bens, oportuno lembrar, implica em efeitos que se espraiam durante o casamento ou a união estável, mas também, e principalmente, nos efeitos sucessórios. Embora não haja ainda acesso aos votos escritos, pensamos que a eventual adoção de regime típico ou customizado pelas partes leva consigo os efeitos sucessórios inerentes ao novo regime, ficando completamente descartado qualquer efeito residual do regime da separação obrigatória. Uma interessante questão está relacionada com a terminologia adequada à nova perspectiva do regime, que perde sua virtude (ou vício) de obrigatório. Nesse primeiro momento, entendemos que o mais adequado é denominá-lo "regime da separação legal de bens", para diferenciá-lo do regime da separação convencional de bens, que é aquele decorrente de pacto antenupcial ou de escritura pública ou termo declaratório de união estável. Reiteramos que continua existindo o regime da separação de bens que decorre da lei - regime que até dia 1º de fevereiro de 2024 denominávamos "separação obrigatória", permanecendo íntegras as hipóteses descritas no art. 1.641 (É obrigatório o regime da separação de bens no casamento: I - das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento; II - da pessoa maior de 70 (setenta) anos; III - de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial). Esse regime é diferente do regime da separação convencional, pois, pelo art. 1.829, I, do Código Civil, em concorrência com descendentes, na "separação legal" o cônjuge não é herdeiro nem meeiro. Como já dito, cabe ressaltar, também, que a Súmula 377/STF ainda é aplicável e pode ser reconhecido judicialmente o direito à meação dos bens adquiridos onerosamente na constância do casamento ou da união estável no regime da "separação legal" se provado esforço comum pelo interessado. Outro tópico que merece atenção é que esse direito de escolha, pelo menos por enquanto, vale apenas para o maior de setenta anos de idade. Para os outros casos do art. 1.641 do Código Civil o regime da separação legal de bens continua sendo obrigatório. Exceto para o maior de 70 anos de idade, nos casos previstos no art. 1.641 do Código Civil, cabe a lavratura de pacto antenupcial, escritura ou termo de união estável apenas com o objetivo de afastar a Súmula 377/STF, mas não pode ser escolhido outro regime de bens. Seja como for, é sempre oportuno celebrar as normas e decisões que fortalecem a autonomia existencial e negocial das pessoas, o que equivale a respeitar suas opções de vida e o caminho que escolheram trilhar.
Introdução No presente trabalho tratar-se-á sobre a forma de transmissão da propriedade imobiliária por ato entre vivos, não se adentrando nas outras hipóteses de aquisição e perda da propriedade imóvel, tais como as decorrentes do Direito de Família, usucapião, desapropriação ou qualquer outra modalidade de aquisição originária. De início, far-se-á uma breve síntese da história da propriedade e da sua importância para a vida do homem e do tratamento que lhe dispensou o legislador do Brasil e da Argentina, olhando-se, também, por ser de grande importância para o mundo moderno, o Registro Imobiliário desses dois países, não se esquecendo, contudo, de se fazer aos sistemas registrais aos quais se vinculam. Noção de propriedade imobiliária Difícil seria falar de transmissão da propriedade sem que antes se faça, por mais breve que seja, uma resenha de sua evolução no transcorrer da História. Demais disso, é de se esclarecer que no presente texto utilizar-se-á, indistintamente, o termo propriedade ou domínio como sinônimos, em que pese se admitir que técnica e juridicamente há de se fazer distinção, haja vista que o vocábulo propriedade, é mais amplo, englobando o domínio. Aquele seria o gênero, enquanto este a espécie. Feitos os esclarecimentos devidos, passa-se desde logo à questão central do estudo. Com efeito, o homem desde os primórdios de sua história demonstrou ter uma perfeita noção da apreensão material das coisas e o desejo de tomá-las para si. Contudo, a propriedade imóvel somente em um período mais recente da História passou a ser vista como se enxerga na atualidade. Enquanto nômade, o homem estava preocupado apenas com os bens que pudesse remover durante suas intermináveis viagens, tais como o vestuário e os objetos de caça e pesca, pouco ou nenhum valor dando ao solo, pois após esgotar os recursos naturais de determinada região ele partia com os seus utensílios, deixando para trás uma terra que ainda não aprendera a explorar. No período neolítico, fixando-se à terra, o homem deixa de ser apenas um predador e passa a colaborar com a natureza, cultivando o solo e produzindo seus alimentos, enquanto domestica animais e assim produz sua própria fonte de sustento e de sua família. Todavia, nessa época ainda não se tinha a noção de propriedade privada e a terra era compartilhada pelos membros da família ou do clã. Com o tempo essas famílias passaram a ocupar o mesmo território, estabelecendo limites individuais respeitados por toda a comunidade, surgindo-se, assim, a ideia de propriedade privada. Não se sabe com precisão o momento em que a propriedade passou a ser usada de forma individual. De acordo com VENOSA1 somente a partir da Lei das XII Tábuas concebeu-se a ideia de propriedade individual e nessa época o Direito Romano permitia que fosse outorgado ao pater famílias o direito a uma porção de terra, a fim de que ele a cultivasse. Porém, realizada a colheita a propriedade voltava a ser coletiva, ou seja, a propriedade privada, surgida com as ideias trazidas da Lei das XII Tábuas, era exercida de forma absoluta, sendo essencial às práticas da religião doméstica onde se cultuava os antepassados e, como demonstra o filme o Gladiador, o domínio somente veio a encontrar limites na época clássica do Direito Romano, quando ao se reconhecer o direito de vizinhança, começou-se a impor sanções ao uso abusivo da propriedade, muito embora, o direito individual ainda fosse preponderante. Nessa esteira, leciona VENOSA que2 "[...] a concepção romana de propriedade é transmitida pelos glosadores para a cultura jurídica da Europa continental", migrando-se, para outros continentes a partir daí, em especial, para o continente americano. Depreende-se ainda das lições desse conhecido doutrinador brasileiro que na Idade Média a propriedade perde o seu caráter unitário e exclusivista e que em face das culturas bárbaras modificou-se os conceitos jurídicos, passando o território a ser sinônimo de poder, por sua ligação com a soberania nacional. Por sua vez, FARIAS e ROSENVALD3 lecionam que: O viés funcionalizado da propriedade romana permaneceu na Idade Média, pois as relações de vassalagem exigiam que o poder, político e absoluto do senhor feudal não sofresse qualquer espécie de restrição. A propriedade medieval, de acordo com JOHN GILISSEN, assenta-se no feudo e na concessão do senhor em favor de seu vassalo de uma porção de terra e proteção militar em troca de respeito e fidelidade. Já o Direito Canônico divulgou a ideia de que o homem estaria legitimado a adquirir bens e que a propriedade privada seria um meio de expressão dessa liberdade. Nos séculos XVIII e XIX irrompeu-se o formato clássico do direito de propriedade, triunfando a racionalidade humana onde o contrato e a propriedade brotam como sustentáculos do domínio privado. Nesse sentido, o Código de Napoleão recepcionou a ideia romana de propriedade, estabelecendo que seu uso e disposição poderia ser de forma absoluta, desde que se respeitasse as leis e os regulamentos. Essas ideias migraram para todos os ordenamentos jurídicos que se espelharam no Código Civil francês perdendo força a partir do século XIX com a revolução industrial e doutrinas socializantes. No momento atual do século XXI a grande questão que se coloca é quanto a capacidade do homem para resolver o seu problema habitacional. Daí o destaque merecido pela propriedade imóvel, essencial à estrutura socioeconômica dos Estados. Nesse contexto, a forma de transmissão da propriedade imobiliária, por ato inter vivos, de particular interesse para este trabalho, é um bem jurídico tão importante quanto a própria propriedade em si, pois por meio dela, dá-se publicidade, segurança e garante-se a paz social. Transferência da propriedade imóvel Não existe uma teoria geral sobre a transferência de imóveis que seja aplicada universalmente, pois cada país, em que pese adotar princípios que se verificam nos diversos ordenamentos jurídicos, mescla esses princípios criando regras compatíveis com as suas peculiaridades e com o seu nível de desenvolvimento. Por isso, tratar-se-á em tópicos distintos a forma de transmissão da propriedade imóvel no Brasil e na Argentina, adentrando-se, onde couber, nos princípios e teorias desenvolvidos em outros países quando eles tenham direta relação com o tema abordado. Transmissão da propriedade no Brasil por ato entre vivos A propriedade imóvel encontra-se ligada umbilicalmente à economia e à política de um país, de forma que, os legisladores, e disso não foge o legislador brasileiro, têm procurado fórmulas que garantam o seu uso pacífico, estabelecendo critérios para a sua transmissão. Dispõe a Constituição da República Federativa do Brasil em seu art. 5, XXII que é garantido o direito de propriedade, prescrevendo o art. 1.228 do Código Civil que " O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha". Além desses diplomas encontram-se no Direito Processual os mecanismos de sua defesa em Juízo e no Direito Penal os tipos punitivos, também, como forma de tutela. Como meio de proteção e de segurança jurídica o ordenamento jurídico brasileiro disciplina diversas formas de aquisição e, por consequência, de transmissão da propriedade imóvel, como a usucapião, a acessão e a decorrente do Direito de Família. Contudo, e como já consignado anteriormente, discorrer-se-á unicamente sobre transmissão de imóveis por ato inter vivos, como a compra e venda e a doação. Com efeito, discorrer sobre a forma de transmissão da propriedade imobiliária requer, por si só, um aprofundamento desse tema que tem gerado enormes conflitos, não sendo de fácil apreensão, pois remonta aos primórdios da humanidade. Todavia, esta proposta tem como marco o Brasil atual, de maneira que, acredita-se, torna a tarefa menos árdua. O Código Civil brasileiro, em seu art. 1.245, reza que "Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis". Antes disso, no art. 108 esse diploma legal prescreve que "Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição. transferência, modificação ou renúncia de direitos sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário-mínimo vigente no País. Reforçando esse entendimento, que é seguido pela maioria dos doutrinadores que estuda a forma de transmissão da propriedade imóvel no Brasil, transcreve-se abaixo trecho da obra de PEREIRA4, o qual esclarece que: No sistema jurídico brasileiro, com efeito, a propriedade não se adquire solo consensu isto é, pelo contrato exclusivamente (Clóvis Beviláqua, Espínola, Serpa Lopes, Orlando Gomes, Philadelpho Azevedo). É certo que alguns autores, ou por desconhecerem as raízes históricas do fenômeno aquisitivo, ou pelo gosto de mera inovação, pretendem que o domínio das coisas possa adquirir-se pelo contrato, a símile do que se passa com o direito francês e com os sistemas filiados àquela corrente. Para o nosso direito o fenômeno aquisitivo, não obstante tais opiniões isoladas e inconsistentes, requer a ocorrência de um fato cuja materialidade determina a transmissão da propriedade. Neste passo, como em tantos outros, a tônica de nosso direito reside na inspiração romana, que informa o jogo de princípios. Ali se dizia que pela tradição e pela usucapião é que o domínio das coisas se transfere, não pelo contrato: traditionibus et usucapionibus, non nudis pactis, dominia rerur transferuntur. Também para nós não se efetua pelo pactus nus. isso tanto para as coisas móveis quanto para os imóveis.". Retomaremos o tema quando tratarmos do sistema de registro da    propriedade imobiliária atualmente-vigente no Brasil, passando-se agora a cuidar da transmissão de imóveis na Argentina por ato entre vivos, a fim de darmos uma maior coesão ao texto. Transmissão da propriedade imóvel na Argentina O sistema jurídico argentino, quanto à transmissão da propriedade imóvel por ato inter vivos vincula-se à teoria do título e modo, exigindo, em regra, uma escritura pública lavrada perante um Notário, bem como a tradição da propriedade, isto é, a entrega e  recepção voluntárias da coisa por meio de atos materiais com a participação do transmitente e do adquirente ou de apenas um deles com o consentimento do outro, como, citando Gatti, Leciona Clerc5 que: Para que la tradición translativa de la posesión haga adquirir el dominio de la cosa que se entrega, debe ser hecha por el proprietario que tenga capacidad para enajenar, y el que la reciba ser capaz de adquirir", esclarecendo o artigo seguinte, ou seja, o de número 2602 que "La tradición deve ser por título suficiente para transferir el dominio. Portanto, esses dois requisitos (título e tradição) são indispensáveis para a transmissão da propriedade imóvel na argentina, a ausência de um ou de outro invalida o negócio jurídico, como se observa do artigo 2.505 do Código Civil, in verbis: La aquisición o transmisión de derechos reales sobre inmuebles, solamente se juzgará perfeccionada mediante la inscripción de los respectivos títulos en los registros inmobiliarios de la jurisdicción que corresponda. Esas aquisiciones o transmisiones no serán oponibles a terceros mientras no estén registradas. O dispositivo legal acima transcrito cria uma aparente contradição, levando- se a acreditar que o Código Civil da Argentina, na sua redação atual, estaria exigindo o registro como forma de transmissão da propriedade imobiliária. Contudo, assim não deve ser interpretado, tendo em vista que é próprio do direito real sua oponibilidade contra todos e não seria de nenhuma praticidade que a transferência do domínio surtisse efeitos somente entre as partes contratantes, pois, como é notório, é característico da propriedade valer erga omnes, possibilitando o direito de sequela. Se a transferência da propriedade operasse apenas entre os contratantes, o título e a tradição, efetivamente, não teriam o condão de transmitir o domínio e o registro seria constitutivo, o que não é caso, pelo menos, no que se refere ao sistema jurídico argentino. Também, seguindo a máxima de que o legislador não utiliza palavras inúteis, deve-se considerar que na parte final do art. 2.505 se objetivou proteger terceiros de boa-fé, de forma que, o registro uma vez realizado gozará de presunção de veracidade, não podendo ser alegado o seu desconhecimento. Do exposto, conclui-se que a transmissão da propriedade imobiliária no direito argentino, por ato entre vivos, encontra fundamento jurídico no título suficiente, em regra, no instrumento público, e no modo (tradição ou entrega efetiva da coisa), não sendo necessário o registro para a tradição da propriedade imóvel. Registro da propriedade imobiliária O registro da propriedade imobiliária, como concebido nos dias atuais, finca suas raízes no direito germano, pois o mundo antigo e a sociedade romana tinham no registro de imóveis apenas um mecanismo de controle para cobrança de impostos, não vendo no registro uma forma de publicidade. Aliás, por ser um povo essencialmente prático, em um primeiro momento o romano transmitia a propriedade com a simples tradição, dispensando qualquer outro ato, sendo-lhe estranho a ideia de título suficiente e de registro como meios de transmissão da propriedade imobiliária. Quando se tratou da transmissão da propriedade imóvel deixou-se a entender que cada país tem a sua forma de transmissão, dada suas peculiaridades locais, em que pese a mesclagem de diversas regras e princípios de outros ordenamentos jurídicos. Dessa forma, no particular aspecto, também serão tratados separadamente os sistemas do registro da propriedade imobiliária do Brasil e da Argentina, antes discorrendo, em apertada síntese, sobre os principais sistemas de registro de imóveis conhecidos na atualidade. Registros pessoais ou reais Na primeira hipótese o centro de referência é a pessoa, enquanto no segundo caso tem-se como parâmetro o próprio imóvel. O sistema de registros pessoais torna mais difícil as buscas, que se realizam em nome do titular do domínio, enquanto no sistema de fólio real a busca é facilitada, tendo em vista que nesse sistema cada imóvel dispõe de uma matrícula que é única, na qual se registra os ônus e as mutações. A Argentina adotou o sistema de fólio real em 1968, com a publicação da lei 17.801 e o Brasil somente aderiu a esse sistema após entrar em vigor a lei 6.015/73. Registros de transcrição ou de inscrição Esse sistema mostra o grau de desenvolvimento do país em termos de registro da propriedade imobiliária. Na primeira hipótese, o registrador sequer pode ser considerado um profissional do direito, pois sua função fica limitada a transcrever em livros, verbum ad verbum os títulos que lhes são apresentados. No segundo caso, o registro é feito após a qualificação do título pelo oficial público, que inclusive, poderá rejeitá-lo se entender não terem sido atendidas as formalidades legais. É próprio dos países que dominam a técnica registral. Registros declarativos ou constitutivos Considera-se sistema declarativo aquele onde o direito real já existia antes do registro e esse serve somente como forma de disponibilidade ou de oponibilidade contra terceiros. É o sistema adotado na Argentina. Por outro lado, diz sistema constitutivo quando a existência do direito real nasce com o próprio registro, como acontece no Brasil, em regra. Registros que convalidam ou não o título De acordo com o Professor CLERC6"Tal clasificación depende de si la inscripción es o no agente de depuración de los vicios que puedan llegar a tener los títulos que ingresan al registro. Así los registros de Alemania, Suiza, etcétera, pertencem al primer, grupo; al segundo pertencen los registros de Argentina, España, Francia, etcétera". Outras classificações bem conhecidas são o sistema francês, alemão e, alternativamente, o registro torrens que foi adotado no Brasil em relação aos imóveis rurais, mas que na prática não tem demonstrado resultados. Registro Imobiliário no Brasil O sistema de registro imobiliário brasileiro é misto ou eclético, pois a maioria dos atos perante ele praticados tem efeitos constitutivo, cuja origem remonta ao sistema alemão, onde o registro é modo suficiente para transmissão da propriedade imóvel, e, uma vez realizado, desvincula-se do título causal. Contudo, o legislador no que se refere à transferência da propriedade imóvel, exigiu não apenas o registro como modo suficiente, mas também a existência de um título causal, como por exemplo, a escritura pública de compra e venda, o formal de partilha extraído dos autos de um processo de inventário entre outros, mas não é só, no caso de transferências decorrentes de direito sucessório o registro tem natureza declaratória, dele não se prescindindo para a disponibilidade do bem e para oponibilidade contra terceiros, haja vista a transferência da propriedade ter ocorrido no momento da morte do autor da herança, o mesmo ocorrendo com a usucapião, quando a própria sentença ou ato do Registrador de Imóveis que a reconhece, por si só, já transmite o domínio, servindo o registro apenas para que se possa obter os efeitos acima citados. Sistema de Registro de Imóveis na Argentina Na Argentina o registro da propriedade imóvel tem natureza declaratória, tendo em vista que se pratica o ato registral a fim de que o domínio anteriormente já constituído possa ser oponível em relação a terceiros, em consonância com disposto no art. 2.505 do Código Civil. O título e a tradição bastam para a aquisição da propriedade imobiliária. Aparentemente o legislador argentino teria adotado o sistema de registro alemão. Todavia, quando realizada uma interpretação contextual nota-se que essa forma de pensar não procede, pois um dos efeitos do domínio é poder valer contra todos e isso se consegue com a sua transmissão que é anterior ao registro. Conclusão A propriedade imóvel é um bem pelo qual o homem tem lutado ao longo de sua história desde que se fixou à terra e passou a cultivar o solo, estando arraigada no subconsciente social. Em decorrência disso, criou-se instrumentos e formas de sua transmissão, evitando-se disputas desnecessárias para a sua obtenção, pois o desejo de novos domínios tem sido fonte de opressão para a humanidade, mas também é causa de pacificação social. No Brasil, o direito de propriedade é constitucional, algo quase que sagrado e que se encontra positivado em outros regramentos, inclusive com mecanismos de defesa bem construídos e aprimorados constantemente, com sua transmissão, inter vivos, se dando, via de regra, por meio de agentes detentores de fé pública plena (tabeliães e oficiais registradores), com segregações de funções e formalidades para se alcançar a necessária e indispensável segurança jurídica. Na Argentina, o direito de propriedade também encontra amparo em normas centrais, com sua transmissão inter vivos se vinculando à teoria do título e modo, com necessidade, via de regra, da lavratura de uma escritura pública, além da ideia, como fator essencial, de oponibilidade contra todos, mas sem deixar de preservar direitos de terceiros de boa-fé. Os registros, pessoais ou reais, de transcrição ou de inscrição, declarativos ou constitutivos, que convalidam ou não o título, têm suas especificidades e, além de servir como elementos históricos, que demonstram a evolução da consolidação da propriedade, expressam a forma de aquisição em si, esta que vai sofrendo alterações no agir do legislador e no compasso da evolução social, além de outros fatores igualmente importantes.   Portanto, sendo a propriedade direito consolidado, e alçado entre os mais importantes, seja no Brasil ou na Argentina, o estudo de sua história e formalidades para transmissão, neste trabalho limitada aos atos inter vivos, se mostra de extrema relevância, em especial quando se vislumbra, mesmo diante de ritos bem definidos e positivados, espaço para alguns questionamentos, como se viu nas raízes teóricas em cada ponto enfrentado. __________ Notas e referências bibliográficas VENOSA, Silvio de Salvo. Direitos Reais. 10 Edição São Paulo: Ed. Atlas 2010. IB Idem ao ITEM 1. ROSENVALD, Nelson. FARIAS, Cristiano Chaves. Direitos Reais. 6. Ed. 3. Tiragem Lume Juris Rio de Janeiro: 2010. PEREIRA, Caio Mario Pereira da Silva. Direitos Reais. Volume IV. Ed. Forense. 20. Edição. 2009. CLERC, Carlos M. Derechos Reales e Intelectuales. 1. Ed. Volume1. Buenos Aires, Hammurabi, 2007. CLERC, Carlos M. Derechos Reales e Intelectuales. 2. Ed. Volume2. Buenos Aires, Hammurabi, 2007. __________ 1 VENOSA, Silvio de Salvo. Direitos Reais. 10 Edição São Paulo: Ed. Atlas 2010. p. 166. 2 VENOSA, Silvio de Salvo. Direitos Reais. 10 Edição São Paulo: Ed. Atlas 2010. p. 167. 3 ROSENVALD, Nelson. FARIAS, Cristiano Chaves. Direitos Reais. 6. Ed. 3. Tiragem Lume Juris Rio de Janeiro: 2010. p. 167. 4 PEREIRA, Caio Mario Pereira da Silva. Direitos Reais. Volume IV. Ed. Forense. 20. Edição. 2009. p.99 5 CLERC, Carlos M. Derechos Reales e Intelectuales. 1. Ed. Volume1. Buenos Aires, Hammurabi, 2007. p. 350 6 CLERC, Carlos M. Derechos Reales e Intelectuales. 2. Ed. Volume2. Buenos Aires, Hammurabi, 2007. p. 901.
Na sessão de 1º de fevereiro de 2024, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu: nos casamentos e uniões estáveis envolvendo pessoa maior de 70 anos, o regime de separação de bens previsto no art. 1.641, II, do Código Civil pode ser afastado por expressa manifestação de vontade das partes, mediante escritura pública. A propósito, veja o art. 1.641 do CC: Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento: I - das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento; II - da pessoa maior de 70 (setenta) anos;  III - de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial. Apesar de o inteiro dos votos ainda estar pendente de publicação, foi possível acompanhar os debates dos Ministros na sessão por meio da TV Justiça1. Diante disso, passamos a expor nossas considerações sobre o tema. No caso de septuagenário, o STF deu ao inciso II do art. 1.641 do CC interpretação conforme à Constituição Federal (STF, ARE 1.309.642/SP, Pleno, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, j. 1º/02/2024). Estabeleceu que o regime da separação legal pode ser afastado por escritura pública: o art. 1.641, II, do CC não é norma cogente, e sim norma dispositiva (ou supletiva). Decidiu ser inconstitucional privar a pessoa idosa da liberdade de gestão patrimonial, inclusive na escolha de regime de bens do casamento ou da união estável. O afastamento do regime da separação legal pode ocorrer destas formas: a) por escritura pública de pacto antenupcial ou - no curso do casamento - por meio do procedimento legal de alteração de regime de bens (art. 1.639, § 2º, CC; art. 734 do CPC); ou b) mediante escritura pública lavrada antes ou no curso da união estável. Sobre esse último ponto (o da união estável), não se aplica a regra geral do art. 1.725 do CC, que admite instrumento particular para a escolha de regime de bens no caso de união estável. O STF exige escritura pública, que é lavrada por um tabelião de notas. Isso, porque o tabelião tem o dever de apurar a capacidade dos declarantes (art. 215, § 1º, II, CC), fato que reduzirá os riscos de golpes contra a pessoa idosa. Trata-se de cautela importante diante da maior vulnerabilidade a que podem estar expostas as pessoas idosas. No caso de casamentos ou união estável anterior ao supracitado julgado do STF sob o regime da separação legal, é direito dos consortes mudar o regime de bens na forma acima. Há alguns pontos sensíveis a serem enfrentados à vista do supracitado julgamento do STF. Passamos a expor nossa posição. Em primeiro lugar, o STF não extinguiu o regime da separação legal. Este segue em vigor, com todas as suas particularidades. Não se confunde, portanto, com o regime da separação convencional. Citamos três exemplos de diferenças práticas: a) o viúvo não concorre com descendentes no regime da separação legal de bens, ao contrário do caso do regime da separação convencional (art. 1.829, CC); b) a outorga conjugal do art. 1.647 do CC é devida no regime da separação legal, e não no do regime da separação convencional; c) os aquestos se comunicam no regime da separação legal se houver prova do esforço comum e não existir pacto antenupcial em sentido contrário, conforme Súmula nº 655/STJ ("Aplica-se a união estável contraída por septuagenário o regime da separação obrigatória de bens, comunicando-se os adquiridos na constância, quando comprovado o esforço comum"). Em segundo lugar, o afastamento do regime da separação legal pelo septuagenário ocorre mediante a escolha de qualquer outro regime de bens, típico ou atípico. Até mesmo o regime da separação convencional pode ser pactuado, por ele ser diferente do regime da separação legal. É livre a estipulação do regime de bens (art. 1.639, CC). A única diferença entre o septuagenário e os demais é que o regime legal de bens é o da separação legal (art. 1.641, II, CC). Para as demais pessoas, o regime legal é o da comunhão parcial de bens (art. 1.640, CC). Em terceiro lugar, caso o septuagenário escolha outro regime de bens (inclusive o da separação convencional), essa escolha tem de ser respeitada para todos os fins, inclusive para a interpretação do art. 1.829, I, CC. Esse dispositivo não permite o viúvo concorrer com os descendentes na herança se era casado no regime da separação legal ou em alguns outros regimes de bens. Assim, se o septuagenário adotou outro regime de bens - diverso do da separação legal -, a interpretação do art. 1.829, I, do CC tem de levar em conta esse regime escolhido pelas partes. Interpretação diversa seria restringir a liberdade de escolha de regime de bens da pessoa idosa, em afronta ao supracitado julgado do STF. Em quarto lugar, o afastamento do regime da separação legal por ato de vontade é apenas para o caso de pessoa maior de 70 anos (art. 1.641, II, CC). O STF não estendeu essa liberdade de escolha para as demais hipóteses de regime da separação legal: violação a causa suspensiva ou exigência de suprimento judicial (art. 1.641, I e III, CC). Em quinto lugar, indaga-se: seria ainda tecnicamente valer-se da expressão regime da separação obrigatória como sinônima de regime da separação legal? Entendemos que sim, por dois motivos. De um lado, o adjetivo "obrigatória" qualifica o substantivo "separação", e não o verbete "regime". Isso significa que a obrigatoriedade está na incomunicabilidade dos bens (separação dos bens), e não propriamente na imposição do regime. De outro lado, nomenclatura tem de manter aderência à escolha legislativa: os arts. 496, parágrafo único, e 1.829, I, do CC valem-se da expressão regime da separação obrigatória. Seja como for, apesar da sinonímia, reputamos ser preferível valer-se da expressão regime da separação legal, para evitar incompreensões acerca do direito do septuagenário em afastá-lo por ato de vontade. Enfim, podemos resumir o ambiente patrimonial do regime de bens da seguinte maneira. Há dois regimes legais supletivos, assim batizados porque vigoram se não tiver havido escolha de outro regime pelos consortes pela forma legalmente cabível. São eles: a) o regime da separação legal de bens envolvendo septuagenário (art. 1.641, II, CC); b) o regime da comunhão parcial de bens, que se aplica aos demais casos em que se admite a liberdade de escolha do regime de bens. Além disso, há um regime legal cogente: o regime da separação legal envolvendo suprimento judicial ou violação de causa suspensiva (art. 1.641, I e III, CC). Nesses casos, os consortes não podem afastar esse regime por ato de vontade. Como se vê, o regime da separação legal pode ser cogente ou supletivo, a depender da sua origem. __________ 1 Disponível aqui. Também houve publicações nos noticiários jurídicos. Veja aqui.
A transação é um acordo entre as partes com o objetivo de prevenir ou encerrar uma disputa, conflito ou litígio. Trata-se de uma autocomposição em que as próprias partes envolvidas resolvem os seus desentendimentos, evitando a necessidade de uma demanda judicial. A transação pode ser relacionada a inúmeras questões e direitos, desde que sejam de caráter privado. Entre tais direitos, os mais comuns são os patrimoniais, familiares, contratuais, trabalhistas e sucessórios. A transação também pode ocorrer por questões relacionadas a prestação de serviço ou direito do consumidor. Desde que respeitadas as normas de ordem pública e as regras específicas previstas na legislação, inúmeras são as possibilidades de se utilizar a transação para solucionar ou evitar conflitos ou litígios. Nas palavras de Christiano Cassettari, em sua obra "Elementos de Direito Civil - Obra completa em Volume Único - 7º edição, p.363": O acordo de vontade entre os interessados (pois inexiste transação legal), o direito litigioso ou duvidoso (pois senão haverá renúncia ou reconhecimento de um direito) e a intenção de extinguir coisa litigiosa ou duvidosa (pois o objetivo é evitar riscos de uma futura demanda ou extinguir um litígio já instaurado, para transformar algo inseguro e incerto em seguro e certo) são elementos constitutivos de uma transação. As regras específicas que regulamentam a transação no ordenamento jurídico brasileiro estão previstas nos artigos 840 a 850 do Código Civil. O artigo 840 do CC, diz que "é lícito aos interessados prevenirem ou terminarem o litígio mediante concessões mútuas", trazendo a legalidade para esse tipo de acordo amigável. A transação pode ser realizada por instrumento particular ou escritura pública, a depender do caso específico. O artigo 842 do CC traz essa afirmação e o comando de que, se recair sobre direitos contestados em juízo, será feita por escritura pública, ou por termo nos autos, assinado pelos transigentes e homologado pelo juiz. A legislação traz o regramento de que a transação só é permitida sobre direitos patrimoniais de caráter privado justamente por não poder gerar prejuízos para aqueles que dela não participaram, assim como só poderá ser aproveitada por seus participantes. Tal regramento está previsto no artigo 844 do CC, que estatui: Art. 844. A transação não aproveita, nem prejudica senão aos que nela intervierem, ainda que diga respeito a coisa indivisível. § 1 o Se for concluída entre o credor e o devedor, desobrigará o fiador. § 2 o Se entre um dos credores solidários e o devedor, extingue a obrigação deste para com s outros credores. § 3 o Se entre um dos devedores solidários e seu credor, extingue a dívida em relação aos co-devedores. Carlos Eduardo Elias de Oliveira e João Costa-Neto, em "Direito Civil - Volume Único, p.710", ensinam que "a transação tem natureza declaratória: ela não gera transmissão de direitos, mas, apenas a declaração ou o reconhecimento deles por ficção do art.843 do CC". Seguindo, ainda, os ensinamentos dos autores acima citados, em referida obra (p.709), a transação pode ser: a) extrajudicial: dá-se quando o direito em litígio não está sendo discutido em processo judicial. Deve ser feita por escrito e, se a lei exigir escritura pública para a negociação de qualquer dos direitos envolvidos, também a transação abrangendo esse direito deverá ser por escritura pública (art. 842, CC). Assim, se a transação envolve um imóvel de valor superior a 30 salários mínimos, ela deverá ser por escritura pública por força dos arts. 108 e 842 do CC; b) judicial: dá-se quando o direito controvertido já é objeto de processo judicial. Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, na obra "Manual de Direito Civil - Volume Único (6º edição) p.838", explicam que "Com o advento do Código Civil de 2002, a transação passou a ser regulada como uma modalidade contratual típica e nominada, incluída expressamente no título dedicado às "várias espécies de contratos". Stolze e Pamplona, ainda na obra acima citada (p.838), explicam as demais características da transação: Trata-se, evidentemente, de um contrato bilateral, em função das concessões recíprocas; comutativo, na equivalência das obrigações assumidas; e oneroso, em que o benefício recebido por um deve corresponder a um sacrifício patrimonial do outro. A lógica de uma transação é de que ela seja um contrato paritário, tendo as partes iguais condições de negociação, para estabelecer livremente as cláusulas contratuais, sobretudo no que diz respeito às concessões de cada um. Outras regras importantes sobre a transação estão previstas, como já dito, nos arts. 840 a 850 do CC, as quais devem ser cuidadosamente analisadas diante de cada caso concreto. O crescimento da utilização da escritura pública para transações pelos advogados está cada vez mais intenso, e a justificativa é muito simples: entre realizar uma transação extrajudicial da qual não irão levar à homologação judicial, por instrumento particular ou por escritura pública, é evidente que a opção mais segura será o instrumento público. Primeiramente, é importante ressaltar que a transação sempre poderá ser feita por escritura pública, mesmo quando não seja obrigatória. Isso ocorre pela segurança que a escritura pública passa às partes por se tratar de um documento público, lavrada por um tabelião de notas, que atua com imparcialidade, dando a fé pública para a transação realizada, garantindo a validade do ato e a segurança jurídica necessária. Desse modo, a transação realizada por escritura pública tem todas as vantagens em relação ao instrumento particular, e o custo, diferentemente do que se imagina, é muito baixo, tendo em vista que nos casos em que a escritura pública é opcional, em muitas tabelas estaduais há um desconto, a exemplo de São Paulo, onde o desconto é de 40% (quarenta por cento). O custo-benefício da escritura pública de transação é gritante, quando se analisa com cautela toda a segurança que ela promove ao acordo, além do fato de que, se a transação não for judicial, ela não precisa ser levada para homologação em juízo. A escritura pública, por si só, já é um título executivo extrajudicial, conforme o inciso II do art. 784 do Código de Processo Civil (CPC). Na prática, o instrumento particular de transação em âmbito extrajudicial, mesmo que não seja obrigatória a homologação judicial, acaba sendo levado para a citada homologação, para que as partes possam ter mais segurança, mesmo que esta demanda judicial seja tecnicamente inapropriada, e, para que o instrumento particular possa se tornar um título executivo extrajudicial, precisa cumprir os demais requisitos exigidos pelos incisos III e IV do art. 784 do CPC, a depender do caso concreto. Por esse motivo é que a escritura pública de transação acaba contribuindo com o Poder Judiciário. E essa contribuição se dá de duas formas: a principal, que é própria da transação, ou seja, evita uma demanda judicial; e a acessória, que se dá pelas características inerentes ao ato notarial, onde a segurança jurídica se torna mais robusta, e as partes não necessitam, nem cogitam, levar para a homologação em juízo, uma vez não terem a mesma insegurança jurídica passada pelos instrumentos particulares. Assim como a transação tem o objetivo de prevenir litígios, uma das funções do tabelião também é a de prevenção de litígios, o que comprova ainda mais que a escritura pública é muito apropriada para realizar esse ato legitimado em nossa legislação, que é a transação. Atualmente a procura para se realizar transação por escritura pública está crescendo consideravelmente, e o número de advogados que estão procurando os tabelionatos de notas para realizarem transações de todo tipo, desde que em caráter privado, respeitando as normas cogentes e a legislação que rege a transação, está cada vez maior. Para o advogado, essa é uma ótima ferramenta de trabalho, pois, além de proporcionar segurança aos seus clientes, ele pode contar com o trabalho do tabelionato de notas, que normalmente redige a escritura pública de transação nos moldes do acordo realizado, o que acaba gerando economia de tempo para o advogado, que só precisa revisar e aprovar a minuta da escritura, verificando se está como por ele foi solicitado, e deixando para comparecer ao cartório somente quando a escritura pública de transação estiver pronta e seu conteúdo aprovado por todos. Além disso, atualmente os tabelionatos de notas possibilitam a assinatura eletrônica, por meio de videoconferência realizada na plataforma do e-notariado, podendo as partes e os advogados realizarem o ato em seu escritório ou em qualquer outro lugar, bastando, apenas, ter internet acessível no local onde se encontra. As partes também não precisam estar juntas no mesmo lugar, podendo cada uma delas estar no escritório de seu respectivo advogado, ou em qualquer outro lugar. Com toda essa facilidade e segurança jurídica, além do valor reduzido, fica evidente a vantagem de se utilizar a escritura pública para realizar todo e qualquer tipo de transação que esteja dentro das regras legais, o que justifica o aumento da procura dos advogados para a realização da transação por meio de escritura pública. Uma outra importante vantagem para o advogado em utilizar a forma pública é que, caso queira, ele pode contar com a ajuda do tabelião de notas, que também é um profissional do Direito, para trocar ideias e opiniões sobre o ato de transação que está a elaborar e os termos ideais para serem inseridos no ato, sem qualquer tipo de custo adicional. Acresça-se que, em alguns casos, a transação pode envolver a necessidade de registro no Cartório de Imóveis para que um imóvel passe a estar em nome de outrem. Antes da Lei do Marco Legal das Garantias, por uma interpretação (a nosso sentir, equivocada), não era viável o registro da transação por falta de previsão no rol de atos jurídicos registráveis estampado no art. 167, I, da Lei de Registros Públicos. Entretanto, essa interpretação indevida perdeu total amparo com o acréscimo feito ao referido inciso pela Lei do Marco Legal das Garantias: foi acrescido o item 48, que esclarece que qualquer ato jurídico de mutação jurídico-real imobiliário é registrável, ressalvadas as hipóteses legais de averbação1. Logo, a transação pode ser registrada. Basta que ela seja formalizada na forma legalmente exigida, conforme exposto neste artigo. Enfim, nunca é demais lembrar que ao notário compete lavrar escrituras, e a ele é concedida por lei a fé pública para os atos que pratica, além de ter o dever de promover a segurança jurídica, com imparcialidade, imprimindo segurança e prevenindo litígios. Além disso, o tabelião de notas responde com seu patrimônio por danos causados por dolo a terceiros. Por isso, o instrumento público lavrado por tabelião de notas é extremamente confiável e seguro. __________ 1 Art. 167 - No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos. (Renumerado do art. 168 com nova redação pela lei 6.216, de 1975). I - o registro:  (Redação dada pela lei 6.216, de 1975). (...) 48. de outros negócios jurídicos de transmissão do direito real de propriedade sobre imóveis ou de instituição de direitos reais sobre imóveis, ressalvadas as hipóteses de averbação previstas em lei e respeitada a forma exigida por lei para o negócio jurídico, a exemplo do art. 108 da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil).     (Incluído pela lei 14.711, de 2023)
Os burros são animais de boa memória e grande capacidade de aprendizado. A sua má fama sempre me intrigou. Dizem que veem anjos e demônios e se afeiçoam a seus donos, protegendo-os. Relendo a impressionante passagem em que um burro fala a Balaão, lembrei-me da história do burrinho que devorou o livro-protocolo de notificações do RTD de uma pequena serventia do interior. Este episódio tiraria o sono de Antônio Generoso, escrevente autorizado, um homem que era a expressão perfeita do seu nome próprio - generoso e gentil. Nomen est omen, diziam os antigos. Deixe-me contar esta história direito. O caso revela o lado humano dos pequenos cartórios espalhados nos mais distantes rincões deste país.  O cartório se achava sob intervenção. O Oficial titular havia sido afastado e o interventor buscava colocar as coisas no eixo. Superado o trauma inicial, verificou-se que os filhos do oficial afastado eram funcionários da serventia e que, além do mais, eram excelentes profissionais. Sempre colaboravam quando requisitados para as mais diversas tarefas e funções. E calhou que Toni Generoso, o mais velho deles, era um exímio motociclista, além de figura simpática, muito conhecida na comarca. Foi-lhe, então, atribuída a função de notificador do RTD e uma Honda CG-125, novinha em folha, lhe foi confiada. Com ela podia ir e vir ao trabalho e dedicar-se às tarefas ordinárias da especialidade agora sob seu mister. Àquela época, os interventores tinham grande autonomia. Podiam reorganizar o quadro de funcionários, atribuir novas funções, atuavam como longa manus da administração, revestiam-se, por empréstimo, da dignidade e da autoridade do poder censório. Na pequena comuna, era chamado de "Sr. Dr. Interventor", infundindo certo temor nos demais cartorários da comarca. Encarar o interventor era como estar diante do próprio Corregedor-Geral de Justiça em pessoa. Uma certa tarde, já no final do expediente, o Oficial-Maior adentrou os átrios do gabinete do interventor com o cenho franzido e o passo hesitante. Olhando fixamente para ele, disse secamente: "Doutor, o burro do Toni comeu o livro-protocolo". Fez-se um breve silêncio até que o interventor pudesse compreender exatamente o que tinha dito o seu oficial maior. "O burro do Antônio Generoso?", redarguiu finalmente, desatando uma sonora gargalhada, acompanhado pelo oficial maior ainda aflito. Parece ter sido assim: depois de entregar todas as notificações do dia, Toni foi até sua casa "para um café da tarde", como relatou na sindicância. Gazeteava, não avisara ninguém, a tarde deitava seus fachos alaranjados sobre a colina, o fim do dia modorrento convidava a uma breve soneca. Ele estacionou a moto à porta do sítio com o livro posto na "aranha" do bagageiro e descansou na varanda, deixando o tempo passar preguiçosamente. Entretanto, havia nas redondezas um burrinho que costumeiramente pastava nos baldios da vizinhança. Para azar do funcionário, o animal vira no livro-protocolo um saboroso acepipe. Diz Toni, ao relatar o episódio, que, ao sair de casa, viu o burrinho com o protocolo entre os dentes. Estremeceu. Bateu-lhe o desespero. Diz que se atracou com o animal, arrancando-lhe, a muito custo, o que sobrara do repasto. O escrevente autorizado, o oficial maior e o livro esgarçado se apresentaram diante do severo interventor. Foi determinada a abertura de um processo administrativo disciplinar para apurar o "caso do burrinho do cartório". Depois da oitiva do sindicado, da restauração dos comprovantes sobreviventes, o pobre Toni Generoso, além de sofrer uma dura carraspana, receberia a pena de advertência, visto que felizmente nenhum prejuízo sobreviera. A remansosa rotina do cartório retomaria seu curso ordinário. Dizem que o "burrinho do cartório" - como a ele nos referíamos desde então - era um presente que o escrevente recebera de um amigo. Sem saber o que fazer com o animal, deixou-o pelas redondezas. O burrinho era curioso, já tinha entrado no sítio e devorara as listas telefônicas que encontrara, além do lauto repasto representado por diários oficiais encadernados que o escrevente classificava e indexava para uso do cartório. Toni Generoso se foi. A última vez que o vi vestia um terno rosado, gravata bege e colete que realçava a barriga proeminente. Tinha o olhar triste, a barba por fazer, andava cabisbaixo e resignado. Com o tempo, ficara muito parecido com o finado pai, homem digno e honrado que experimentara um grave tropeço na vida e um duro golpe do destino. O cartório foi afinal provido pelo concurso e os filhos do velho oficial se perderam mundo afora. Antônio Generoso, escrevente autorizado, notificador de RTD partiu. Foi-se pelos caminhos das três colinas ao cair de uma tarde fresca e radiosa. Arrastava atrás de si as inúmeras histórias de cartorários ouvidas desde pequenino. Seguia-lhe de perto o burrinho curioso e faminto, o burrinho do cartório. O referido é verdade e dou fé.
Impossibilidade por ausência de previsão legislativa Como afirma o art. 189 do Código Civil, violado o direito, nasce a pretensão, o qual se extingue pelo decurso dos prazos prescricionais previstos em lei1. Contudo, como a lei existe para garantir os direitos subjetivos de quem não está inerte, no caso de tomada de providências pelo credor, o art. 202 do Código Civil permite - uma única vez - a interrupção do prazo prescricional nas taxativas hipóteses elencadas nos incisos do art. 202 do Código Civil2.   São estas: (i) por despacho do juiz, mesmo incompetente, que ordenar a citação, se o interessado a promover no prazo e na forma da lei processual; (ii) por protesto, nas condições do inciso antecedente; (iii) por protesto cambial; (iv) pela apresentação do título de crédito em juízo de inventário ou em concurso de credores; (v) por qualquer ato judicial que constitua em mora o devedor e (vi) por qualquer ato inequívoco, ainda que extrajudicial, que importe reconhecimento do direito pelo devedor3.   Portanto - em marcável omissão - o rol do art. 202 do Código Civil não prevê a possibilidade de interrupção de prazo prescricional por meio de notificação enviada por Cartório de Títulos e Documentos, que é o fundamento utilizado pela jurisprudência do STJ4 e a doutrina majoritária5 para refutarem essa modalidade como causa interruptiva do prazo prescricional. Esse posicionamento formalista, a despeito de frustrante para o credor que pretendeu conferir efeitos interruptivos à notificação extrajudicial, é acertado, pois, se a segurança jurídica é um dos pilares do ordenamento jurídico, os esforços para que sejam observadas as regras legais devem ser prestigiados6. Na verdade, a (única) crítica cabível é reservada à mora legislativa do Congresso Nacional em aprovar um projeto de lei que inclua essa possiblidade. Afinal, conquanto existam projetos de lei com iniciativas de desjudicialização que guardam relevante carga de controvérsia7, a inclusão legislativa defendida é lege ferenda com motivos de sobra para se tornar texto legal8. Motivos de sobra para a inclusão legislativa  Segundo a doutrina do Professor Caio Mário "como corolário de fundar-se a prescrição na inércia do credor por tempo predeterminado, considera-se toda manifestação dele, defensiva de seu direito, como razão determinante de se inutilizar a prescrição, ou seja, de interromper a sua contagem"9-10. Nessa linha ideias, o primeiro argumento em prol da inclusão legislativa para permitir a interrupção do prazo prescricional por meio de notificação extrajudicial é de natureza teleológica: uma comunicação formal que busque interromper a contagem do prazo prescricional é incontroversamente ato jurídico comprobatório de que o titular do direito violado não está inerte, encaixando-se na mens legis do art. 202, caput, do Código Civil11. Com efeito, o fato de o credor não ter ingressado com uma ação judicial de imediato é irrelevante para essa conclusão. A uma, o ingresso em juízo, muita das vezes, depende do pagamento de custas e da contratação de advogado, providências que podem atrasar o ajuizamento do feito, mas que não comprovam a inércia do credor.  A duas, a notificação extrajudicial configura ato de boa-fé na medida em que, ao cientificar o devedor de que medidas judiciais serão tomadas, permite com que as partes busquem uma solução extrajudicial (pré-processual) para o conflito. O segundo argumento é de natureza prática: a interrupção da prescrição por meio de notificação extrajudicial será procedimento seguro em razão da qualificação dos titulares das serventias extrajudiciais, que são submetidos a rigoroso concurso público para ingresso na carreira. Ademais, há fiscalização por parte do Poder Judiciário com relação aos atos praticados pelos tabeliães e seus prepostos, que serão pessoalmente responsabilizados em caso de defeito na prestação do serviço12. Ciente da eficácia desses mecanismos, a legislação confere aos titulares de serventias extrajudiciais o múnus de velarem pela autenticidade e veracidade dos atos jurídicos (arts. 1º e 3º da Lei Federal 8.935/94) e vem aumentando o leque de poderes destes13. Não é de se estranhar, portanto, que os titulares dos Cartórios de Protesto já possuem poderes para praticar atos que interrompem a prescrição, conforme as disposições dos incisos II e III do art. 202 do Código Civil.   Se essa faculdade legal é conferida aos Cartórios de Protesto, que possuem enxuta estrutura em razão de suas restritas atribuições, por qual motivo não a estender aos Cartórios de Títulos e Documentos, que já praticam atos jurídicos de relevância similar (ou superior) à interrupção da contagem de prazo prescricional?   Com efeito, dentre alguns exemplos, as notificações extrajudiciais enviadas por estes servem para (i) implementar condição resolutiva expressa (art. 474 do Código Civil); (ii) formalizar renúncia da prescrição (art. 191 do Código Civil) e (iii) constituir em mora o devedor fiduciante para pagamento da dívida e demais encargos, sob pena de consolidação da propriedade fiduciária em nome do credor fiduciário (art. 26 da lei 9.514/97)14. Quanto a este último ponto, haja vista que 97% dos financiamentos imobiliários no país são realizados pelo procedimento extrajudicial da Lei Federal nº 9.514/97, o que representa o envio anual de milhares de notificações extrajudiciais a devedores fiduciantes, conclui-se que os Cartórios de Títulos e Documentos desempenharão, com eficiência e segurança, o serviço consistente na interrupção de prescrição por meio de notificação extrajudicial15. Por fim, um argumento utilitarista: a inclusão legislativa, ajudará a desafogar o Poder Judiciário, eis que a parte interessada terá mais um meio (extrajudicial) para interromper o prazo prescricional, evitando o ajuizamento do protesto interruptivo judicial, previsto ao art. 202, V, do Código Civil. O momento oportuno para mudança é agora Pelos motivos apresentados, foi com surpresa que este colunista recebeu a notícia de que a Comissão de Atualização do Código Civil não acresceu essa possibilidade no Relatório Setorial enviado ao Congresso Nacional no início de dezembro de 202316. Com efeito, conquanto a Comissão de Atualização - composta por juristas que há muito defendem essa inclusão legislativa - tenha sugerido importantes alterações ao texto do art. 202 do Código Civil17, a ausência desse tema na minuta final dos trabalhos configura surpreendente desdobramento para os que acompanhavam os debates.   De todo modo, não se trata de desfecho preclusivo: o texto ainda será debatido e votado no Congresso Nacional, que terá a oportunidade de incluir ao art. 202 do Código Civil a possibilidade de interrupção do prazo prescricional por notificação extrajudicial enviada por Cartório de Títulos e Documentos. __________ 1 Nas palavras da Ministra Nancy Andrighi, "a prescrição tem por finalidade conferir certeza às relações jurídicas, na busca de estabilidade, porquanto não seria possível suportar uma perpétua situação de insegurança" (REsp 1.677.895/SP, Ministra Rel. Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. 6.2.2018). 2 A ratio da interrupção da prescrição é explicada pela doutrina do Prof. Carlos Eduardo Elias: "A prescrição destina-se a punir quem é negligente no exercício do seu direito, pois, conforme os romanos, o direito não socorre os que dormem (dormientibus non sucrrit jus). Por isso, caso o titular de um direito pratique um ato que demonstra não estar inerte no exercício no seu direito, é aplicável a interrupção do prazo prescricional" (OLIVEIRA, Carlos Elias e COSTA-NETO, João. Direito Civil, Volume Único. Editora Método. Brasília, 2022. p. 317). 3 O artigo 19 da lei 9.307/96 ("Lei de Arbitragem") aponta uma hipótese de interrupção da prescrição não prevista no rol do art. 202 do CC: "A instituição da arbitragem interrompe a prescrição, retroagindo à data do requerimento de sua instauração, ainda que extinta a arbitragem por ausência de jurisdição".                          4 "O entendimento deste Tribunal Superior é de que a notificação extrajudicial não é hábil a interromper o prazo prescricional". (AgInt no AResp nº 1.656.629/MT, Min. Rel. Antonio Carlos Ferreira, 4ª Turma, j. 22.11.2021). 5 Nas palavras do Prof. Flávio Tartuce "Deve ficar claro que a notificação extrajudicial, via cartório de títulos e documentos, não gera a interrupção da prescrição, pela ausência de previsão legal específica". (TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil - Volume Único. 7ª edição, São Paulo, 2017, p. 342). 6 Deve-se esclarecer que não se está a falar aqui de direito potestativo (não qual não haveria prescrição, mas decadência) ou de processos de jurisdição voluntária. Portanto, não se pode invocar a teoria das instrumentalidades das formas ou o art. 723, parágrafo único, do CPC, eis que se tratando da contagem de prazo prescricional, que é uma garantia do Estado Democrático de Direito conferida ao cidadão, é presumível que haveria prejuízo a este caso as regras legais não sejam fielmente observadas. 7 Em síntese, a projeto de alteração legislativa propõe a desjudicialização da execução civil, e concede aos tabeliães as funções de agente de execução, a quem caberia realizar os atos de citação, penhora e expropriação, entre outras atribuições descritas ao artigo 4º do PL nº 6.204/19 8 Nesse sentido, é a posição do Prof. Carlos Elias que afirma que "Recomendamos a edição de lei que passe a admitir a notificação extrajudicial como causa interruptiva, tudo em sintonia com o movimento de desjudicialização. Sem nova lei, porém, temos por usurpação do Legislativo forçar essa hipótese interruptiva" (OLIVEIRA, Carlos Elias e COSTA-NETO, João. Direito Civil, Volume Único. Editora Método. Brasília, 2022. p. 319). 9 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. v. 1. 34. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 598. 10 No mesmo sentido, "a interrupção da prescrição visa a amparar aquele que revela inequívoca intenção de perseguir o seu direito" (REsp 1.636.677/RJ, Min. Rel. Nancy Andrighi, Terceira Turma, j. 15.2.2018). 11 Os efeitos interruptivos da notificação devem retroagir à data do envio da notificação, não podendo se aceitar que o credor seja prejudicado pela demora dos serviços extrajudiciais em efetivarem a entrega ao devedor da notificação interruptiva de prazo prescricional.  Desse modo, deve-se invocar a mesma regra presente para a interrupção da prescrição por citação judicial (art. 202, I do CC, combinado com o art. 214, parágrafo único, do CPC). 12 Não por outro motivo, os serviços cartorários extrajudiciais são apontados como as instituições mais confiáveis do  Brasi Disponível em: Cartórios são a instituição mais confiável do Brasil, aponta pesquisa | Notícias - ANOREG/RN (anoregrn.org.br). Acesso em 19.12.2023. 13 Como se constata das alterações legislativas promovidas pelas Leis n.º 11.401/07, 14.382/22 e 14.711/23. 14 Para maiores considerações, recomenda a leitura do acórdão no REsp 1.906.475/AM, Min. Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. 18.05.2021. 15 Dados extraídos da Exposição de Motivos do Anteprojeto do PL 4.188/2021. 16 Disponível na página 135 do Relatório Setorial da Seção de Parte Geral da Comissão apresentado ao Congresso Nacional.  17 Um exemplo é a inclusão, no rol do art. 202 do CC, da causa interruptiva da prescrição já prevista pelo art. 19 da lei 9.307/96 ("Lei de Arbitragem"). A sistematização do texto legal é medida importante para o aumento da segurança jurídica.
Objetiva-se com o presente trabalho discutir a extensão da gratuidade de justiça no âmbito notarial e registral, diferenciando-se da isenção tributária. Discute-se o limite de sujeito de relação jurídica processual, em caso de impugnação de gratuidade. Objetiva-se analisar o pagamento antecipado de emolumento devido à gratuidade de justiça. Ao final, apresenta-se uma proposta de modelo de custeio de emolumento nos autos que tenham sido concedido gratuidade. O título deste trabalho até parece estranho, mas não é! Pois uma leitura fatiada das normas sobre justiça gratuita, induz a uma interpretação equivocada sobre a dispensa de emolumento dos atos notariais e registrais. Inicialmente, é importante esclarecer que o inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal de 1988, ao determinar que "o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos", implica as seguintes situações distintas1: i) assistência judiciária gratuita, que é um serviço prestado aos necessitados extrajudicialmente (mediações, conciliações etc.) pelo Estado; ii) assistência judiciária, que é um serviço prestado judicialmente, a defesa em juízo das partes (autor e réu); e, por fim, iii) a justiça gratuita ou gratuidade de justiça, que é a dispensa legal de adiantamento de pagamento de custas, despesas processuais e honorários advocatícios, ainda que o beneficiário tenha causídico contratado. No caso, o objeto deste trabalho será apenas com as normas de justiça gratuita extensiva ao serviço notarial e registral, prevista no art. 98 do Código de Processo Civil de 2015 (CPC/2015), interligado com outras normas jurídicas brasileiras. Ademais, a título de introito, para fins de delimitação do objeto deste trabalho, é importante deixar claro que a extensão de justiça gratuita aos atos notariais/registrais implica apenas uma dispensa legal de adiantamento de emolumento, sem força para tornar o tabelião/oficial sujeito de relação jurídica processual, atuando com parcialidade, passível de impedimento/suspeição (arts. 144, 145 e 148, todos do CPC/2015), inclusive o perito judicial (art. 156, § 4º, do CPC/2015). A gratuidade de justiça é uma dispensa legal de adiantamento de custas, despesas processuais e dos honorários advocatícios (art. 98, caput, do CPC/2015), inclusive de emolumento cartorário (art. 98, § 1º, inciso IX, do CPC/2015), que tem natureza de taxa tributária. Por outro lado, isso não significa uma isenção tributária (art. 175, inciso I, do Código Tributário Nacional - CTN) - que é uma dispensa legal de tributo -, porque o despacho da autoridade não gera direito adquirido (§ 2º do art. 179 do CTN), ao contrário da parte final do § 3º do art. 98 do CPC/2015, que gera direito adquirido ao beneficiário de justiça gratuita após o prazo quinquenal de exigibilidade. Com efeito, a gratuidade de justiça não é uma isenção tributária, salvante contrário em lei. Logo, será possível pagamento a priori ou a posterior após o trânsito em julgado, tirante o transcurso de prazo quinquenal de suspensão de exigibilidade, sem ter a demonstração de que o beneficiário deixou a situação de insuficiência de recursos, que justificou a concessão de gratuidade. Neste caso, após o quinquênio, sem qualquer impugnação, configura-se, de fato, uma verdadeira exclusão do crédito tributário (art. 175, inciso I, do CTN). No tocante ao aspecto processual, é importante frisar que o tabelião/oficial não são partes no processo, pois, embora tenha permissão legal para impugnar a concessão de gratuidade (art. 98, § 8º, do CPC/2015), essa conduta reflete, na realidade, um interesse econômico no feito, além de não incidir os efeitos da sentença e sequer, de sucumbência ou de causalidade processual. Logo, o referido ato de impugnação pelo tabelião/oficial não tem força para torná-los sujeito de relação jurídica processual. Em termos financeiros, a justiça gratuita não pode ser concedida em dimensão muito ampla, ainda que licitamente, sob pena de prejudicar o erário, bem como é vedada a renúncia de receita pública, exceto nos termos do art. 1º, § 1º, c/c o art. 14, incisos I e II, ambos da Lei Complementar Federal n.º 101/2000. Na prática notarial e registral, entretanto, a gratuidade de justiça é uma forma de isenção tributária de emolumento, embora exercida privativamente. Por exemplo, a cada concessão de justiça gratuita, ocorre dispensa de pagamento de taxa cartorária, mas não há, em regra, ressarcimento dos atos praticados. Ademais, é oneroso ao titular de serventia extrajudicial manter um custo com advogado para acompanhar a(s) situação(ões) de beneficiário de justiça gratuita, no prazo quinquenal de suspensão de exigibilidade, com o intuito de saber se ainda continua a situação de insuficiência de recursos, que justificou a concessão de gratuidade. Se não bastasse isso, é importante lembrar que, conquanto as isenções tributárias deveriam ser fixadas por leis específicas, conforme determina o art. 150, § 6º, da Constituição Federal de 1988 e o art. 97, inciso VI, c/c o art. 175, inciso I, do Código Tributário Nacional, não é esse o entendimento dos tribunais superiores, a exemplo do deferimento por maioria da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 194, referente ao Decreto-Lei 1.537/1977, que isenta a União do pagamento de custas e emolumentos aos ofícios e cartórios de registro de imóveis e de registros de títulos e documentos, a despeito do voto-vencido do então relator Min. Marco Aurélio, ao dizer que, "se a Constituição delegou à iniciativa privada o exercício do serviço notarial e de registro, não cabe à União criar isenções não previstas no texto constitucional" (portal de notícias do STF). Pois bem, voltando ao tema, é importante lembrar que a gratuidade de justiça não se encontra apenas no art. 98 do Código de Processo Civil de 2015, cujo § 1º desse artigo diz expressamente que os emolumentos devidos a notários ou registradores são dispensados provisoriamente, mas também no § 3º do art. 95 do CPC/2015, quando o pagamento de perícia for de responsabilidade de beneficiário de gratuidade da justiça. Note-se que o Poder Público (Fazenda Pública, Ministério Público e Defensoria Pública) deve tomar as devidas precauções na concessão da justiça gratuita, seja por limitação do erário - que pode ser utilizado como fundamento da reserva do possível no âmbito do direito administrativo sem prejuízo do mínimo existencial -, seja pela responsabilidade do ordenador de despesa (§ 1º do art. 80 do decreto-lei 200/67 c/c a Lei Complementar Federal n.º 101/2000). Por isso, a concessão de gratuidade de justiça não é absoluta, ainda que presumida em favor da pessoa natural, passível de impugnação na contestação, na réplica, nas contrarrazões de recurso ou, nos casos de pedido superveniente ou formulado por terceiro, por meio de petição simples. Ademais, as despesas dos atos processuais praticados a requerimento do Poder Público serão pagas ao final pelo vencido (art. 91 do CPC/2015). No tocante às perícias requeridas pelo Poder Público, poderão ser realizadas por entidade pública ou, havendo previsão orçamentária, ter os valores adiantados por aquele que requerer a prova (§ 1º do art. 91 do CPC/2015). Não havendo previsão orçamentária no exercício financeiro para adiantamento dos honorários periciais, eles serão pagos no exercício seguinte ou ao final, pelo vencido, caso o processo se encerre antes do adiantamento a ser feito pelo ente público (§ 2º do art. 91 do CPC/2015). No Estado do Maranhão - onde se tem conhecimento de cumprimento de decisão judicial em favor de beneficiário de justiça gratuita -, só há ressarcimento de atos praticados pelo registro civil de pessoas naturais (nascimento, casamento e óbito), em razão do Fundo Especial das Serventias de Registro Civil de Pessoas Naturais do Estado do Maranhão (Lei Complementar 130/2009), que os restitui parcialmente o valor dos emolumentos previstos em Tabela XIII anexa à Lei Estadual n.º 9.109/2009. Acontece que, conquanto dispensada antecipação de emolumento por causa da gratuidade de justiça, o próprio Código de Processo Civil determina expressamente o pagamento antecipado com recursos alocados no orçamento da União, do Estado ou do Distrito Federal, no caso de ser realizada por particular, hipótese em que o valor será fixado conforme tabela do tribunal [de custas e emolumentos de cada Estado] ou, em caso de sua omissão, do Conselho Nacional de Justiça, nos termos do inciso II do § 3º do art. 95 do CPC/2015, em razão do § 7º do art. 98 do CPC/2015. Ressalte-se que o texto do § 7º do art. 98 do CPC/2015 - cujo caput do artigo trata de gratuidade de justiça - diz expressamente que "aplica-se" o disposto no art. 95, §§ 3º a 5º, ambos do CPC/2015 - que trata de pagamento com recursos alocados no orçamento da União, do Estado ou do Distrito Federal -, "ao custeio dos emolumentos" previstos no § 1º, inciso IX, do artigo 98 do CPC/2015, o qual determina a prática de atos notarias e de registro necessário à efetivação de decisão judicial ou à continuidade de processo judicial no qual o benefício tenha sido concedida a dispensa de pagar custas, despesas processuais e honorários advocatícios. Nesse contexto, tudo indica que não se aplica subsidiariamente os parágrafos do art. 95 do CPC/2015 ao custeio de emolumento em favor do beneficiário de justiça gratuita, uma vez que o texto legal não tem a expressão "no que couber" ou similar. Refletindo o § 7º do art. 98 do CPC/2015, à luz da prática notarial/registral, enquanto um serviço público delegado exercido de maneira privada, será difícil uma serventia extrajudicial esperar até o final de processo para receber o seu valor, considerando que mensamente precisa reservar aproximadamente 50% da receita bruta mensal para pagamento de tributos federais, estadual e municipal, além de outras despesas necessárias ao funcionamento da serventia. Ademais, refletindo o § 7º do art. 98 do CPC/2015, à luz de direito processual civil, não é possível imaginar que, não havendo rubrica orçamentária ou reservas contingenciais para ressarcimento de atos cartorários, os emolumentos sejam reconhecidos pelo juiz na sentença, sob pena de violação do art. 492 do CPC/2015 (princípio da congruência, correlação ou da adstrição) e do art. 18 do CPC/2015 ("Ninguém poderá pleitear direito alheio em nome próprio, salvo quando autorizado pelo ordenamento jurídico").  Dessa maneira, e nos termos das normas adjetivas acima, não será possível aplicar o inciso V do art. 515 do CPC/2015, ou seja, o emolumento não poderá ser aprovado por decisão judicial, por ausência de pedido da parte, a fim de constituir um título executivo judicial em favor do tabelião/registrador, com o fito de ressarcimento de atos cartorários necessários à efetivação de decisão judicial ou à continuidade de processo judicial no qual o benefício tenha sido concedido gratuidade. Por outro lado, se o pagamento do emolumento for antecipado pelo erário, este não será prejudicado, pois, nos termos do § 4º do art. 95 do CPC/2015, o juiz oficiará a Fazenda Pública - após o trânsito em julgado da decisão final - para que promova contra quem tiver sido condenado ao pagamento das despesas processuais, a execução dos valores gastos com o ato notarial e registral. Desse modo, é possível afirmar - por dedução lógica - que o § 4º do art. 95 do CPC/2015 afasta a aplicação do § 3º do art. 98 do CPC/2015, que trata da suspensão quinquenal de exigibilidade sucumbencial do beneficiário da justiça gratuita, a fim de não causar prejuízo ao erário e, por conseguinte, a responsabilização do ordenador de despesas (Lei Complementar Federal n.º 101/2000). Dessa maneira, tudo indica que o procedimento judicial deveria ser feito da seguinte forma: uma vez concedida a justiça gratuita, e sendo necessária a prática de atos de notas e de registros, o erário deveria pagar - a priori e por meio de reservas contingenciais, caso não tenha rubrica orçamentária específica2 - o valor do emolumento cartorário, sendo posteriormente ressarcido por quem tiver sido condenado ao pagamento das despesas processuais (art. 98, §§ 2º e 3º, do CPC/2015), por meio de execução fiscal da Fazenda Pública. Nesse contexto, deveriam ser ressarcidos integralmente todos os atos notariais e registrais que dão efetividade às decisões judiciais em favor de beneficiário de justiça gratuita (art. 98, inciso IX, c/c o seu § 7º, do CPC/2015), por meio de rubrica orçamentária específica ou, do contrário, por reservas contingenciais, a despeito da existência de fundos específicos, a exemplo de Fundo Especial das Serventias de Registro Civil de Pessoas Naturais do Estado do Maranhão (Lei Complementar n.º 130/2009). No tocante ao Estado do Maranhão, a Tabela de Custas e Emolumentos, anexa à lei Estadual 9.109/2009, não dispõe expressamente sobre assistência jurídica gratuita ou justiça gratuita, mas apenas no item 17.8 da Tabela XVII relativa ao tabelionato de protesto, no qual consta expressamente uma previsão de isenção tributária em favor de parte beneficiária de assistência judiciária (e não de justiça gratuita), cuja interpretação será literal não somente por se tratar de exclusão de crédito tributário (art. 111, inciso II, c/c o art. 175, inciso I, ambos do Código Tributário Nacional), mas também por ser uma renúncia de receita (art. 14 da Lei Complementar Federal n.º 101/2000). Em relação aos atos de registros civis de pessoas naturais do Estado do Maranhão, serão objeto de ressarcimento, entre outros, os atos requisitados judicialmente, nos termos do art. 11, § 2º, da Lei Complementar Estadual n.º 130/2009 - que tem a finalidade de assegurar a gratuidade dos atos do Registro Civil das Pessoas Naturais no Estado do Maranhão (RCPN) -, independente de concessão de justiça gratuita. Note-se que a referida lei complementar não se trata de dispensa legal de adiantamento emolumento ­­- referente à justiça gratuita -, e sim, de restituição à exclusão de crédito tributário (dispensa legal de pagamento de tributo), ou seja, é uma forma de compensação aos oficiais de RCPN por seus atos gratuitos, em observância ao art. 8º da lei Federal 10.169/2000, que dispõe sobre o estabelecimento de normas gerais para a fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro. Portanto, é possível asseverar que a concessão de gratuidade de justiça não difere o pagamento de emolumento de serventia extrajudicial, mas, ao revés, - e nos moldes da perícia judicial - determina a antecipação de pagamento de emolumento por meio do erário, sendo este ressarcido posteriormente por quem tiver sido condenado ao pagamento das despesas processuais, para evitar seu prejuízo e responsabilização fiscal do ordenador de despesa. __________ 1 LOPES JR., Jaylton. Manual de Processo Civil. São Paulo: Ed. JusPodvium, 2023, p. 228. 2 Cf. o art. 5º, inciso III, da Lei Complementar Federal n.º 101/2000, e mais o art. 98, § 7º c/c o art. 95, §§ 3º ao 5º, ambos do CPC/2015.
Dando continuidade à exploração abrangente desse tema na primeira parte deste artigo, concentramo-nos agora em uma análise mais concentrada do artigo 440G §6º do Provimento 150 do CNJ, um tema de relevância no cenário jurídico contemporâneo. A adjudicação compulsória, ao envolver a transferência forçada de propriedade, implica desdobramentos intrincados que permitem as relações contratuais e patrimoniais. Nesta segunda e última parte, direcionamos nossa atenção para as especificidades desse mecanismo legal, explorando suas implicações práticas e as nuances que o envolve. Além disso, examinaremos o entendimento jurisprudencial atualizado sobre a adjudicação compulsória, proporcionando uma visão sistemática sobre esse tema.  Da adjudicação compulsória extrajudicial  A adjudicação compulsória é um instituto jurídico que se refere ao direito de uma parte em um contrato de compra e venda de imóvel de exigência que a outra parte cumpra com sua obrigação de transferir a propriedade do imóvel. Em outras palavras, quando uma das partes do contrato não cumpre com suas obrigações, a parte prejudicada pode recorrer ao judiciário para forçar a transferência do imóvel, desde que preenchidos os requisitos legais. Para que uma adjudicação compulsória seja concedida, geralmente é necessário que o comprador tenha cumprido todas as suas obrigações contratuais, como o pagamento do preço e o cumprimento de prazos. Além disso, é importante que o vendedor esteja em mora, ou seja, que tenha se recusado injustificadamente a transferir a propriedade do imóvel. A adjudicação compulsória é uma medida que visa proteger os direitos do comprador e garantir o cumprimento dos contratos de compra e venda de imóveis, garantindo que a parte prejudicada não fique desamparada diante do descumprimento da outra parte. Nessa seara, acompanhando a tendência da desjudicialização, a fim de proporcionar ao cidadão mais agilidade na busca de seu direito sem ter que recorrer ao Poder Judiciário, o CNJ editou o provimento nº150 de 19/09/23, para tratar desse assunto. Nesse provimento, chamo a atenção para o artigo 440-G que regulamenta algumas questões da adjudicação compulsória extrajudicial a ser processada perante um Tabelião de Notas combinado com Registrador Imobiliário. Ao analisar esse provimento, percebe-se que ele foi elaborado com o intuito de simplificar a vida das pessoas. No entanto, é claro que ele não abrange todas as possíveis situações factuais que possam surgir. É justamente nesse contexto que este artigo se propõe a fornecer elementos intelectuais para evitar que esse dispositivo significativo caia em desuso. Por isso, ressaltamos a relevância de flexibilizar o processo de comprovação da quitação de obrigações no âmbito da adjudicação compulsória extrajudicial. Dentre inúmeros dispositivos, ressalta-se o art.440-G, §6º : Para fins de prova de quitação, na ata notarial, poderão ser objeto de constatação, além de outros fatos ou documentos:  I - ação de consignação em pagamento com valores depositados; II mensagens, inclusive eletrônicas, em que se declare quitação ou se reconheça que o pagamento foi efetuado; III - comprovantes de operações bancárias; IV - informações prestadas em declaração de imposto de renda; V - recibos cuja autoria seja passível de confirmação; VI - averbação ou apresentação do termo de quitação de que trata a alínea 32 do inciso II do art. 167 da Lei n. 6.015, de 31 de dezembro de 1973; ou VII - notificação extrajudicial destinada à constituição em mora (DJe/CNJ n. 218/2023, de 15 de setembro de 2023, p. 5-13.  Ao interpretar cuidadosamente o texto legal, torna-se evidente que a lista apresentada não é exaustiva, mas sim exemplificativa, uma vez que inclui "outros fatos ou documentos" como meios de prova. Isso levanta a questão de se é viável utilizar a Prescrição e/ou a Decadência como meios para comprovar a quitação do preço. Embora não tenhamos uma resposta definitiva neste momento, ao analisar de maneira sistemática o conjunto de leis vigentes, identificamos diversas ocasiões que sugerem a possibilidade dessa abordagem. Nesse sentido, mesmo antes desse provimento, alguns Tribunais Superiores se manifestaram sobre o assunto, vejamos: Em consonância com essa perspectiva, é relevante destacar que determinados Tribunais Superiores, incluindo os de São Paulo, Rio de Janeiro, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, aceitam a prescrição e a decadência como fundamentos para presumir a quitação do preço na adjudicação compulsória, quando decorrem da inércia do credor: APEL.Nº: 1001968-10.2022.8.26.0606 COMARCA: SUZANO APTE. : ------ APDO. : ------ AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXIGIBILIDADE DE DÉBITO. DÍVIDA PRESCRITA. A prescrição atinge a pretensão, não implicando na inexistência do débito, pois não atinge o direito subjetivo a ele inerente, contudo, implica na impossibilidade de exigência por meio judicial ou administrativo, uma vez que tal pretensão deixou de ser oportunamente exercida pelo credor ou respectivo cessionário. Imposição de obrigação de não fazer consistente na abstenção de cobrança judicial ou extrajudicial das dívidas prescritas. Imposição de multa por ato de descumprimento. Precedentes deste E. TJSP. Recurso provido.  ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA - Improcedência pela ausência de prova de quitação do preço - Requisito necessário, mas superado no caso concreto, pela verificação da prescrição da pretensão de cobranças das parcelas contratadas e da ação de rescisão contratual em relação ao compromisso de compra e venda que remonta à década de 80 - Inteligência dos artigos 190 e 476 do Código Civil - Sentença reformada - Recurso provido.  (TJSP;  Apelação Cível 1002242-93.2021.8.26.0125; Relator (a): Moreira Viegas; Órgão Julgador: 5ª Câmara de Direito Privado; Foro de Capivari - 1ª Vara; Data do Julgamento: 11/09/2023; Data de Registro: 11/09/2023)  APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. Apelo da parte ré, por meio da Curadoria Especial. Art. 1418 do CC. Ação pessoal em que o promitente comprador, diante da recusa do promitente vendedor em lhe outorgar a escritura definitiva do imóvel, pretende substituir judicialmente a vontade do alienante para concretizar a transferência da propriedade. Requisitos da ação de adjudicação compulsória: (1) existência de compromisso de compra e venda de bem imóvel, (2) quitação integral do preço e (3) omissão do alienante quanto à outorga de escritura definitiva. Requisitos cumpridos. Quitação do preço presumida. Ausência de notícias de qualquer ação de cobrança em face do promitente comprador e indiscutível prescrição de eventual direito de cobrança (art. 203, §5º, I, do Código Civil). Posse do imóvel há mais de 30 anos, tempo suficiente, inclusive, para ser declarada a aquisição da propriedade pela usucapião. Presunção de quitação do preço não afastada pela apelante. Precedentes desta Corte. Cadeia registral do imóvel devidamente comprovada. Legitimidade ativa. Por fim, no que tange à alegada ilegitimidade passiva, assiste razão à apelante, motivo pelo qual extingue-se o feito, sem resolução do mérito, em face do referido réu. Art. 485, VI do CPC. Sentença que se reforma parcialmente. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.(0163789-85.2014.8.19.0001 - APELAÇÃO. Des(a). ANDREA MACIEL PACHA - Julgamento: 12/06/2023 - SEGUNDA CAMARA DE DIREITO PRIVADO (ANTIGA 3ª CÂMARA /TJRJ).  Tipo de processo: Apelação CívelTribunal: Tribunal de Justiça do RS Classe CNJ: Apelação Relator: Liege Puricelli PiresRedator:Órgão Julgador: Décima Sétima Câmara CívelComarca de Origem: CAMPO BOMSeção: CIVELAssunto CNJ: Promessa de Compra e Venda Decisão: Acordao. Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. PROMESSA DE COMPRA E VENDA. OUTORGA DE ESCRITURA PÚBLICA DE COMPRA E VENDA. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO. A adjudicação compulsória é o remédio jurídico colocado à disposição de quem, munido de promessa de compra e venda ou título equivalente, não logra êxito em obter a escritura definitiva do imóvel. É necessário, também, que o instrumento esteja devidamente quitado e que haja recusa do promitente-vendedor em outorgar a escritura pública definitiva de compra e venda. No caso, em que pese não haja prova da quitação, eventual pretensão de cobrança dos promitentes-vendedores contra o promitente-comprador já se encontraria prescrita. E isso porque a última parcela relacionada ao preço teve vencimento em março/1978, ou seja, há mais de quarenta anos, o que faz presumir o pagamento. Acolhimento do pleito de outorga da escritura pública definitiva de compra e venda. RECURSO PROVIDO À UNANIMIDADE.(Apelação Cível, Nº 70083960757, Décima Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Liege Puricelli Pires, Julgado em: 30-04-2020). Data de Julgamento: 30-04-2020. Publicação: 22-09-2020 APELAÇÃO CÍVEL. ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA. PROMESSA DE COMPRA E VENDA. CESSÃO. AUSÊNCIA DE PROVA DO PAGAMENTO. PRESUNÇÃO PELO LONGO TRANSCURSO DE TEMPO, NÃO É CRÍVEL QUE A QUITAÇÃO DO PRECO NÃO TENHA SE CONCRETIZADO, MESMO PORQUE, JÁ HAVERIA INCIDIDO A PRESCRIÇÃO EXTINTIVA DO DIREITO A COBRANÇA. IMÓVEL QUE NÃO CONSTA NO ROL DE BENS DO INVENTÁRIO. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. (TJSC, Apelação Cível n. 2010.081014-1, de Içara, rel. Cinthia Beatriz da Silva Bittencourt Schaefer, Primeira Câmara de Direito Civil, j. 23-10-2012).Gabinete Desa. Substa. Cinthia Beatriz da Silva Bittencourt Schaefer Diante disso, interessante transcrever trecho do voto da relatora Cinthia Beatriz da Silva Bittencourt Schaefer na Apelação Cível n. 2010.081014-1, proferido pelo Tribunal de Santa Catarina: "Ademais, sendo as parcelas do contrato inexigíveis, em razão da prescrição operada, é desarrazoada a exigência de apresentação de documentos que demonstrem o adimplemento das parcelas quando tais valores não poderão ser objeto de cobrança e discussão". Outrossim, também merece destaque Apelação Nº 0302608-42.2017.8.24.0038/SC RELATORA: Desembargadora Cláudia Lambert de Faria, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, quando a ilustríssima invoca as facetas da boa-fé objetiva: Trazendo referidos conceitos para o caso ora em análise, é fácil perceber que a conduta praticada pelos réus/apelantes caracteriza o instituto da supressio. O acordo previu o pagamento de 25 parcelas - com início em setembro/2011 e término, consequentemente, em setembro/2013 - e ficou estipulado que "não havendo denúncia no prazo de 15(quinze) dias será considerado cumprida a obrigação"(cláusula 03, primeira parte). Decorrido o prazo de 15 dias após o término previsto para o cumprimento total da obrigação, não houve qualquer manifestação dos apelantes a respeito de eventual descumprimento. Aliás, durante todo o período entre a homologação do acordo e o ajuizamento da presente demanda os recorrentes quedaram-se inertes. (.) transcorrido considerável lapso temporal após o fim do prazo estabelecido no acordo, os apelantes criaram a justa expectativa de que a obrigação estava totalmente adimplia, razão pela qual o silêncio, nesse caso, importante presunção de quitação total da dívida.  Por outro lado, em uma decisão monocrática, o Superior Tribunal de Justiça apresenta sua perspectiva, vejamos: A jurisprudência desta Corte é no sentido de que a prescrição apenas impede a pretensão à reparação, não tornando inexistente a dívida.Nesse sentido: AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. DECISÃO DA PRESIDÊNCIA. RECONSIDERAÇÃO. IMPUGNAÇÃO ESPECÍFICA CONSTATADA. AÇÃO DE ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA JULGADA IMPROCEDENTE PELO TRIBUNAL DE ORIGEM. COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL. DÉBITO PRESCRITO. RECONHECIMENTO DE QUITAÇÃO. INVIABILIDADE. AGRAVO INTERNO PROVIDO. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO.1. "A quitação do preço do bem imóvel pelo comprador constitui pressuposto para postular sua adjudicação compulsória, consoante o disposto no art. 1.418 do Código Civil de 2002" (REsp 1.601.575/PR, relator Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, TERCEIRA TURMA, DJe de 23.8.2016). 2. "A prescrição pode ser definida como a perda, pelo titular do direito violado, da pretensão à sua reparação. Inviável se admitir, portanto, o reconhecimento de inexistência da dívida e quitação do saldo devedor, uma vez que a prescrição não atinge o direito subjetivo em si mesmo" (REsp 1.694.322/SP, relatora MINISTRA NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, DJe de 13.11.2017).  Seguindo essa mesma linha de argumentação, o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, em sua decisão judicial, também rejeitou a aplicação do instituto da prescrição como uma alternativa para inferir a quitação do preço na adjudicação compulsória. Na ocasião, percebe-se que a respeitável corte limitou-se à interpretação literal do dispositivo legal, conforme o artigo: APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA - SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA DOS PEDIDOS INICIAIS - INSURGÊNCIA DO AUTOR - ALEGADO PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS NECESSÁRIOS - AFASTAMENTO - AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DA QUITAÇÃO TOTAL DO VALOR - RECIBOS APRESENTADOS QUE NÃO SE MOSTRAM SUFICIENTES -- PARTE QUE NÃO SE DESINCUMBIU DO ÔNUS DISPOSTO NO ART. 373, I DO CPC - ADEMAIS, DECURSO DO PRAZO PRESCRICIONAL QUE NÃO IMPLICA EM QUITAÇÃO - PRESCRIÇÃO QUE ATINGE APENAS A PRETENSÃO DE COBRANÇA DO PROMITENTE VENDEDOR E NÃO O DIREITO SUBJETIVO EM SI - REQUISITOS NÃO PREENCHIDOS - REVELIA DO RÉU - IMPERTINÊNCIA - PRESUNÇÃO DE VERACIDADE MERAMENTE RELATIVA - DOCUMENTOS QUE NÃO SÃO APTOS A SUSTENTAR A PROCEDÊNCIA DO PEDIDO - SENTENÇA MANTIDA - RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. (TJPR - 19ª Câmara Cível - 0001854-91.2021.8.16.0189 - Pontal do Paraná -  Rel.: DESEMBARGADOR RUY ALVES HENRIQUES FILHO -  J. 05.12.2022).  Nos dois casos mencionados anteriormente, é evidente que houve o reconhecimento da prescrição e decadência, contudo, essas decisões deixaram de considerar os seus impactos, possibilitando, assim, que as obrigações naturais sirvam como justificativa para a manutenção de propriedades irregulares. Ocorre que, recentemente, o Superior Tribunal de Justiça, em mais uma oportunidade de tratar do mesmo assunto, dessa vez, ao nosso sentir, caminhou de forma acertada, quando reconheceu a impossibilidade de cobranças de dívidas prescritas, vejam-se: DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXIGIBILIDADE DE DÉBITO PRESCRITO. PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO. INSTITUTO DE DIREITO MATERIAL. DEFINIÇÃO. PLANO DA EFICÁCIA. PRINCÍPIO DA INDIFERENÇA DAS VIAS. PRESCRIÇÃO QUE NÃO ATINGE O DIREITO SUBJETIVO. COBRANÇA EXTRAJUDICIAL DE DÍVIDA PRESCRITA. IMPOSSIBILIDADE. MANUTENÇÃO DO ACÓRDÃO ESTADUAL. 1. Ação de conhecimento, por meio da qual se pretende o reconhecimento da prescrição, bem como a declaração judicial de inexigibilidade do débito, ajuizada em 4/8/2021, da qual foi extraído o presente recurso especial, interposto em 26/9/2022 e concluso ao gabinete em 3/8/2023. 2. O propósito recursal consiste em decidir se o reconhecimento da prescrição impede a cobrança extrajudicial do débito. 3. Inovando em relação à ordem jurídica anterior, o art. 189 do Código Civil de 2002 estabelece, expressamente, que o alvo da prescrição é a pretensão, instituto de direito material, compreendido como o poder de exigir um comportamento positivo ou negativo da outra parte da relação jurídica. 4. A pretensão não se confunde com o direito subjetivo, categoria estática, que ganha contornos de dinamicidade com o surgimento da pretensão. Como consequência, é possível a existência de direito subjetivo sem pretensão ou com pretensão paralisada. 5. A pretensão se submete ao princípio da indiferença das vias, podendo ser exercida tanto judicial, quanto extrajudicialmente. Ao cobrar extrajudicialmente o devedor, o credor está, efetivamente, exercendo sua pretensão, ainda que fora do processo. 6. Se a pretensão é o poder de exigir o cumprimento da prestação, uma vez paralisada em razão da prescrição, não será mais possível exigir o referido comportamento do devedor, ou seja, não será mais possível cobrar a dívida. Logo, o reconhecimento da prescrição da pretensão impede tanto a cobrança judicial quanto a cobrança extrajudicial do débito. 7. Hipótese em que as instâncias ordinárias consignaram ser incontroversa a prescrição da pretensão do credor, devendo-se concluir pela impossibilidade de cobrança do débito, judicial ou extrajudicialmente, impondo-se a manutenção do acórdão recorrido. 8. Recurso especial conhecido e desprovido. (REsp n. 2.088.100/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 17/10/2023, DJe de 23/10/2023.)  Nesse julgamento, no voto da relatora, destaco o seguinte trecho: O instituto tem como finalidade conferir certeza e estabilidade às relações jurídicas e sociais, buscando evitar a manutenção indefinida de situações jurídicas pendentes por lapsos temporais prolongados". Além disso, fez citação precisa de Pontes de Miranda que apresentou notável analogia ao comparar o direito sem pretensão ao arqueiro sem arco, in verbis: "1. DÍVIDA E INADIMPLEMENTO. - Quem deve está em posição de ter o dever de adimplir. Pode não estar obrigado a isso. Então, há o dever, e não há a obrigação. [...] O crédito é como o arqueiro, o homem que peleja com o arco. Pode estar armado e pode não estar. A arma é a pretensão. Crédito sem pretensão é crédito mutilado, arqueiro sem arco. Existe o crédito, porém não se pode exigir.  Quem deve e não é obrigado não pode ser constrangido a adimplir, nem sofre conseqüências do inadimplemento. Quem faz o que o arqueiro quer, embora esteja êle desarmado, é como o devedor, que não é obrigado, mas paga, presta.  (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado: direito das obrigações, inadimplemento. Atualizado por Ruy Rosado de Aguiar Júnior e Nelson Nery Jr. São Paulo: RT, 2012, p. 57-58) [g.n.]  Nota-se que, a ilustre ministra, ao buscar verificação de certeza e estabilidade às relações jurídicas e sociais, demonstrou a crucial importância de evitar a manutenção indefinida de situações jurídicas pendentes por longos períodos. Como notavelmente apontado por Pontes de Miranda, em sua analogia, o direito desprovido de pretensão lembra-se a um arqueiro desarmado, onde existe o crédito, mas não se pode exigir o cumprimento. Nessa perspectiva, compreendemos que, embora quem não deva ser obrigado a agir, a existência da pretensão é o que confere a força necessária para garantir a concretização das obrigações e a harmonia nas relações sociais. Portanto, o instituto em análise representa um alicerce essencial na manutenção do equilíbrio e no desenvolvimento nacional. Por fim destacamos importante despacho sob nr. 46904484/ 2019, do então Corregedor Geral da Justiça do Paraná, Desembargador Luiz Cezar Nicolau em consulta formulada por oficial de Registro de Imóveis daquele Estado sobre a possibilidade de cancelamento de averbação de hipoteca após o prazo de 30 (trinta) anos, por requerimento da parte interessada sem anuência do credor. Mas além do caso que não se refere exatamente ao tema aqui tratado, refere-se hierarquicamente a garantia real expressa e por conseguinte superior a cláusula de parcela, extrai-se o princípio da chamada usucapião da liberdade da garantia real. Ressalte-se ainda que, sendo o adjudicante um possuidor de justo título, está no mínimo protegido pelo prazo de 10 anos (art. 1242 CC) sem prejuízo do art. 206,  VIII - I -  § 5° do Código Civil prevista  prescrição em 5 anos.  Análise Econômica do Direito Frente aos Imóveis Irregulares  Pesquisa do Banco Internacional de Desenvolvimento - BID, juntamente com a Universidade de Campinas -UNICAMP, promovida em 2018 constatou que 67% do imóveis dos imóvis da região metropolitana daquela cidade não possuem escritura e por conseguinte seu valor de mercado é reduzido em no mínimo 30%. O economista peruano Hernando de Soto, foi pioneiro dos estudos da economia informal na América Latina, em seu livro "O Mistério do Capital" demostra o quanto significa a legalização imobiliária no PIB dos países, na medida que seus proprietários usam esses imóveis como fomento para alavancar seus pequenos negócios, seja para fins comerciais ou em garantia real. Sem querer esgotar esse tema, mas apenas pincelar algumas questões, a interseção entre a economia e o Direito tem sido mostrada cada vez mais relevante na contemporaneidade, especialmente quando se trata de propriedade imobiliária. De acordo com Posner (2007), a Análise Econômica do Direito (AED) fornece uma lente analítica valiosa para compreender as implicações financeiras e sociais das decisões legais, sendo especialmente aplicável quando se trata de questões relacionadas à propriedade e ao mercado imobiliário. Neste contexto, torna-se crucial investigar como a AED pode ser empregada na análise dos imóveis irregulares, considerando os incentivos, os custos e as externalidades associadas a esse tipo de propriedade. A presença de imóveis irregulares gera uma série de entraves sociais que afetam não apenas os proprietários, mas também a comunidade como um todo. Coase (1960) argumenta que, em um cenário de transações custosas, uma alocação eficiente de recursos pode ser alcançada por meio de negociações entre as partes envolvidas. No entanto, quando se trata de imóveis irregulares, a existência de direitos de propriedade mal definidos e a dificuldade de se obter seu título definitivo, mensurar os danos causados ??por isso tornam esse processo complexo.(Fischel, 1995). Em suma, considerar a forma exemplificativa dos meios para demonstrar e/ou presumir a quitação da obrigação no cenário da adjudicação compulsória extrajudicial, permitindo, portanto, a regularização do imóvel,  apresenta-se como forte ferramenta essencial para o  desenvolvimento nacional, um dos objetivos fundamentais da República art.3, II da CF/88.  Considerações finais  A presunção de quitação de dívida quando o tempo para cobrança judicial já ultrapassou o limite legal é uma questão que envolve princípios fundamentais do Direito. O brocárdio "Dormientibus Non Sucurrit Ius" e a legislação, tanto o Código Civil de 1916 quanto o Código Civil de 2002, fornecem diretrizes importantes para abordar esse assunto. A redução do prazo de prescrição introduzida pelo Novo Código Civil reflete uma mudança na perspectiva legal em relação à proteção dos direitos dos devedores, tornando o período para cobrança mais restrito. Diante do cenário atual, a presunção de quitação de dívida após a transcurso do prazo legal é uma possibilidade que deve ser considerada como outros fatos ou documentos frente ao instituto da adjudicação compulsória extrajudicial de acordo com a legislação vigente. Referências  DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Teoria das Obrigações Contratuais e Extracontratuais. São Paulo: Saraiva, 2007. V 3.  GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Contratos e Atos Unilaterais. São Paulo: Saraiva, 2016. V 3.  PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: Teoria das Obrigações e Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2009. V 3.  BRASIL. Senádo Federal. Código civil brasileiro de 1916. Disponível aqui.  BRASIL. Senádo Federal. Lei Nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Novo Código Civil). Disponível aqui .  COASE, Ronald H. T. O problema do custo social. Revista de Direito e Economia, v. 3, p. 1-44, 1960. Disponível aqui. Acesso em: 28 jun. 2019.  Fischel, William A. Tomadas regulatórias: direito, economia e política. Imprensa da Universidade de Harvard, 1995.  POSNER, Richard A. Análise Econômica do Direito Aspen Casebook series, 8th edition. Aspen Publishers, 2007.
Introdução A prescrição de dívidas é um tema crucial no âmbito do Direito, uma vez que diz respeito à proteção dos direitos tanto do devedor quanto do credor. "Dormientibus Non Sucurrit Ius" é um princípio que ressalta a necessidade de agir de maneira correta para garantir e exercer direitos. Diante disso, surge a questão de se, quando o prazo para cobrança judicial de uma dívida já expirou, pode-se presumir a quitação? O Princípio "Dormientibus Non Sucurrit Ius": O brocárdio "Dormientibus Non Sucurrit Ius" tem raízes antigas no Direito Romano e ressalta que o direito não auxilia aqueles que negligenciam o exercício de seus direitos. No contexto das dívidas, isso significa que a inércia do credor em buscar uma cobrança dentro do prazo prescrito pela lei pode levar à perda de seu direito. Da boa-fé objetiva: Ela é um princípio fundamental no direito contratual que exige honestidade e liderança nas relações contratuais. Duas facetas importantes relacionados a ele: a "supressão" e a "surreção", que abordam situações em que uma parte pode ou não alegar o descumprimento de uma obrigação devido à inação da outra parte. A "supressão" envolve a perda de um direito devido à inação prolongada de uma das partes, indicando que ela não pretende mais o cumprimento da obrigação. A "surreção", por outro lado, permite o surgimento de um direito após um período de ação reiterada, desde que as condições contratuais e a boa-fé sejam respeitadas. Como disse o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Luis Felipe Salomão no julgamento do REsp 1.338.432, em 2017, na Quarta Turma, "a supressio inibe o exercício de um direito, até então reconhecido, pelo seu não exercício. Por outro lado, e em direção oposta à supressio, mas com ela intimamente ligada, tem-se a teoria da surrectio, cujo desdobramento é a aquisição de um direito pelo decurso do tempo, pela expectativa legitimamente despertada por ação ou comportamento reiterado" (STJ - REsp 1.338.432, 2017.). Em um contrato de compromisso de compra e venda de imóvel, se um comprador deixa de pagar por um longo período e o vendedor não toma medidas para cobrar, uma "supressão" pode ser aplicada. No entanto, se o vendedor cobrar antecipadamente as parcelas nesse novo prazo reduzido, sem o devedor reclamar, a "surreção" permite a retomada dos direitos de cobrança. Esses conceitos dependem das especificações de cada caso, e é crucial considerá-los ao analisar situações de inadimplência em contratos. Código Civil de 1916 e a Prescrição: O Código Civil de 1916, no seu artigo 177, estabelecia que a prescrição ocorreria em vinte anos, a menos que a lei determinasse um prazo menor. Isso fez com que, na ausência de um prazo especificado estipulado por outra lei, o credor pudesse buscar a cobrança no período de vinte anos. Após esse prazo, havia a possibilidade de se presumir a quitação da dívida. Novo Código Civil e Redução do Prazo: Com a entrada em vigor do Novo Código Civil em 2002, o prazo de prescrição foi reduzido para (cinco) 5 anos. Essa mudança reflete preocupação em equilibrar os interesses dos credores, evitando que o tempo excessivo prejudique a eficácia do direito de cobrança. Veja  esse acórdão que faz menção ao art. 206 § 5°  e o VIII  § 5°   TJ-MG - Agravo de Instrumento-Cv: AI XXXXX20803647001 MG: EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO - EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL - CONTRATO DE FINANCIAMENTO - PRESCRIÇÃO PARCIAL DAS PARCELAS - OBRIGAÇÃO DE TRATO SUCESSIVO. Tratando-se de cobrança de dívida líquida constante de instrumento particular, deve ser aplicado o prazo prescricional de 05 anos, nos termos do art. 206 , § 5º , inciso I , do Código Civil . A jurisprudência do STJ é firme no sentido de que, se tratando de obrigações de trato sucessivo, o prazo prescricional apenas tem início após a data de vencimento da última parcela do contrato, ainda que tenha sido convencionado o vencimento antecipado das prestações, na hipótese de inadimplemento. Estando diante de um contrato de prestação continuada, no qual há autonomia entre as parcelas cobradas e, por conseguinte, prestações autônomas a cada período, o credor somente poderá cobrar as parcelas que venceram dentro do quinquídio que antecede ao ajuizamento da demanda (TJMG, 2023, p. 1).  Obrigações Civis Transformadas em Obrigações Naturais  As obrigações civis são fundamentais no campo do direito, estabelecendo vínculos jurídicos entre as partes de um contrato ou imposições legais que obrigam-as o cumprimento de uma prestação. No entanto, em determinadas circunstâncias, essas obrigações podem sofrer uma transformação, assumindo a forma de obrigações naturais. O aspecto subjetivo das obrigações naturais é fundamental para compreender essa transformação. Quando uma obrigação civil se converte em obrigação natural, a exigibilidade judicial é perdida. Ou seja, o credor não pode obrigar legalmente o devedor a cumprir a prestação. Neste ponto, o sistema jurídico brasileiro não estar-se-ia à disposição eternamente do inerte. Muito embora, nesse caso, haverá essa mitigação da proteção jurídica ao jurisdicionado, não se pode negar que a obrigação será eterna no campo da ética e do inconsciente das partes envolvidas. Nada mais. Essa transformação ocorre muitas vezes devido à prescrição, decadência ou impossibilidade de cumprimento, fatores que tornam as obrigações não mais exigíveis perante o arcabouço jurídico. No entanto, o devedor, de forma voluntária e baseado no seu senso de justiça ou moral, ainda pode optar por cumprir a prestação. A situação descrita destaca a relevância da ética e da responsabilidade pessoal no contexto das obrigações naturais. Embora tais obrigações não possuam força legal vinculativa, os indivíduos têm a opção de cumprir essas obrigações em prol da sua própria integridade moral e respeito aos acordos previamente estabelecidos. Isso pode ser exemplificado em um cenário de compromisso de compra e venda, onde o credor opta por não fazer valer seus direitos legais dentro do prazo estipulado. Nesse contexto, a inércia do credor jamais pode ser alimento para o sistema jurídico permitir com que o proprietário do imóvel permaneça com ele irregular. Nos primeiros segmentos deste artigo, foram explorados aspectos fundamentais do universo jurídico, incluindo a aplicação do brocardo jurídico "dormientibus non Sucurrit Ius", a importância da boa-fé objetiva nas relações civis, a evolução da prescrição no código civil de 1916 para o código civil de 2002, e as nuances entre obrigações civis e naturais. Agora, ao avançarmos para a segunda parte, voltaremos nossa atenção à análise da adjudicação compulsória extrajudicial. Este tópico se torna crucial na compreensão das dinâmicas legais contemporâneas, trazendo questões específicas relacionadas à presunção de quitação na obrigação. Além disso, será ressaltado o posicionamento jurisprudencial atualizado sobre esse tema, proporcionando uma visão abrangente e informativa aos operadores do direito.
"Biguá" era o seu apelido, escrevente autorizado, depois oficial-maior de uma grande serventia de Registro de Imóveis de São Paulo, mas, acima de tudo, um querido e saudoso amigo. Durante muitos anos fomos parceiros na serventia onde fui escrevente. Ele me introduziu nos meandros de outro anexo - o de Registro de Títulos e Documentos e Civil de Pessoas Jurídicas. Com ele aprendi a examinar estatutos, contratos sociais, a promover matrícula de jornais e periódicos, uma novidade para mim. Sentávamo-nos próximos um do outro na grande sala dos escreventes. Uns registravam, outros qualificavam, e eu, naquela altura, cuidava do registro civil de pessoas jurídicas, além de redigir os extratos que seriam publicados no caderno de ineditoriais do Diário Oficial de São Paulo. O cartório situava-se numa esquina movimentada da Marechal Deodoro. O ruído da rua penetrava pelas janelas que viviam escancaradas. Rumorejava a cidade que se industrializava nos inícios da década de 70. Era a trilha sonora daqueles tempos - além da Rádio Eldorado, que transmitia todos os dias os concertos do meio-dia. A azáfama das ruas se misturava ao ruído do balcão e das máquinas de escrever, tocadas pelos exímios datilógrafos da serventia. Dizem que Biguá ganhou um concurso da antiga TV Tupi em que se disputava o posto de melhor datilógrafo do Brasil. Ele venceu folgadamente; ninguém lhe excedia na precisão e agilidade pilotando as velhas Remington ou Olivetti. Certa feita, no que poderia ser considerado o antecedente das intragáveis "pegadinhas" que infestam as redes sociais, a mesma TV Tupi posicionou uma câmera indiscreta buscando flagrar os incautos numa situação constrangedora, quiçá vexatória. Uma loira escultural, vestida sumariamente de biquini, desfilava garbosamente pelo Viaduto do Chá. Era, de fato, um acontecimento incomum e Biguá naturalmente cairia na trampa. Deteve-se, olhos arregalados e boca aberta, fixava a imagem da atriz. Sua expressão seria apanhada pelas lentes das câmaras e distribuída pela TV a centenas de milhares de telespectadores. Cumpria-se o vaticínio de Andy Warhol: o nosso escrevente ficara famoso por 15 minutos. Biguá se lembraria do fato muitos anos depois, sempre rindo de si mesmo, o que era um traço admirável de sua personalidade. Certa feita, ao retornar do almoço, ele comprou alguns quilos de linguiça de um vendedor de rua. Chegando à sala dos escreventes, logo tratou de enfurnar a embrulho na gaveta de sua escrivaninha. O troço vinha embalado em papel pardo e ele não teve tempo de acondicionar melhor a coisa, atarantado pelas urgências do expediente. É preciso dizer que o cartório naqueles tempos andava sobrecarregado com os contratos do BNH, uma novidade que atulhava os escaninhos da serventia - para desespero dos escreventes e regozijo do oficial. Todavia, ele se esqueceria completamente da compra. Os dias sucediam-se, fazia calor, um odor desagradável começou lentamente a empestear o ambiente. Os escreventes abriam as janelas, colocavam-se sob os ventiladores, mas a catinga tornou-se nauseabunda. Bodão aventou que poderia ser um rato morto, e então buscávamos por uma ratazana infeliz que sucumbira espremida por um grande livro de registro. Outros aventavam problemas de esgoto, mas não havia instalações hidráulicas na sala de transcrições. A fetidez era de outra natureza e os escreventes passaram a se entreolhar com desconfiança. Não tardou e a situação ficaria insustentável. Os funcionários cogitavam parar de trabalhar. De repente, como se acordasse de um pesadelo, Biguá lembrou-se dos embutidos postos no fundo da gaveta. Estremeceu. Era imenso o asco que sentia, teria que manusear o papel untado que recobria o embutido já pútrido e fétido; isto lhe dava engulhos... Entretanto, não havia saída, Biguá teria que tomar uma atitude. Chegara o horário do almoço, todas saíram, com a sala já vazia, num lance rápido, porém estouvado, ele deixou cair o pacote, esparramando as linguiças pelo chão. Tudo terminaria entre muitas gargalhadas e algumas imprecações violentas. Biguá suportaria a ira dos escreventes enfurecidos e a zombaria que se prolongaria por longos anos. Ele seria escarnecido, mas sempre se lembrava do episódio com bom-humor, rindo de si mesmo. A figura do meu querido amigo me vem nitidamente à memória neste começo de ano. Devo-lhe tanto pelo que recebi desinteressadamente laborando sob o mesmo teto do antigo cartório. Ele me chamava carinhosamente de "German", outras vezes de "MacGyver", e quando ria, balançava a pança, fechava os seus olhinhos, cofiava o bigode ralo, divertia-se com as coisas simples, embora apreciasse o luxo, sempre bem-humorado, o velho Biguá. O referido é verdade e dou fé.
1. O procedimento de execução da dívida garantida por alienação fiduciária de bens móveis pode ser dividido em três atos: (a) consolidação da propriedade; (b) busca e apreensão, se bem não tiver sido entregue voluntariamente); c) ato de alienação extrajudicial do bem (capítulo 2). 2. Se houver pacto expresso no contrato, a consolidação da propriedade fiduciária poderá ocorrer extrajudicialmente, mediante procedimento perante o Cartório de Títulos e Documentos ou o Detran em que o veículo está licenciado (arts. 8º-B e 8º-C do decreto-lei 911/1969) (capítulos 3 e 6). 3. Cabe ao registrador exigir a apresentação do aviso de recebimento como condição de procedibilidade do rito extrajudicial de consolidação da propriedade (art. 8º-B, caput, decreto-lei 911/1969) (capítulo 3). 4. Apesar do texto do inciso II do § 2º do art. 8º-B do decreto-lei 911/1969, o devedor pode apresentar impugnação sem documento comprobatório, se este for desnecessário, a exemplo da alegação de prescrição (capítulo 3). 5. O registrador deverá, enquanto profissional do Direito (art. 3º, lei 8.935/1994), avaliar a verossimilhança jurídica da impugnação e negar a continuidade do procedimento de consolidação da propriedade no caso de plausibilidade jurídica (art. 8º-B, § 3º, do decreto-lei 911/1969). 6. A nota de rejeição da impugnação deve ser notificada ao devedor, a quem assistirá o direito a suscitar dúvida (arts. 188, 198 e 296, lei 6.015/1973; e art. 30, XIII, lei 8.935/1994). O registrador, porém, não sobrestará o procedimento, salvo decisão contrário do juiz competente para julgamento da dúvida. Entendimento pessoal à vista do silêncio legal (capítulo 3). 7. No caso de a impugnação do devedor ser parcial, o devedor deverá pagar o valor incontroverso, sob pena de prosseguimento do rito de consolidação (art. 8º-B, § 4º, decreto-lei 911/1969) (capítulo3). 8. O devedor tem o dever de entregar voluntariamente o bem no prazo de 20 dias que lhe foi assegurado para purgar a mora. Se não o fizer, estará sujeito a pagar multa de 5% (cinco por cento) do valor da dívida (art. 8º-B, § 11, do decreto-lei 911/1969) (capítulo 4). 9. Caso o devedor apresente impugnação, entendemos que não se aplicará a multa supracitada, pois é direito do devedor discutir juridicamente o cabimento da dívida. A multa só será devida após o prazo de 10 dias da notificação da nota de rejeição da impugnação pelo registrador, independentemente de eventual suscitação de dúvida (arts. 188, 198 e 296, lei6.015/1973; e art. 30, XIII, lei 8.935/1994) (capítulo 4). 10. No caso de entrega voluntária ou forçada do bem pelo devedor no curso dos ritos executivos da consolidação extrajudicial ou da busca e apreensão, o credor assume o risco: terá de pagar multa de 50% do valor da dívida e indenizar perdas e danos caso eventual impugnação extrajudicial ou judicial do devedor vier a prosperar (art. 8º-D do decreto-lei 911/1969) (capítulo 4). 11. Apesar do silêncio legal, a busca e apreensão extrajudicial só pode ocorrer se houver pacto expresso, por aplicação analógica do previsto para o procedimento extrajudicial de consolidação (art. 8º-B, caput, do Decreto-Lei nº 911/1969) (capítulo 5). 12. No curso do procedimento extrajudicial da busca e apreensão, não há falar em notificação do devedor para entregar voluntariamente o bem. Todavia, entendemos que, se tiver havido demora desarrazoada em relação ao desfecho do anterior procedimento extrajudicial de consolidação da propriedade em nome da boa-fé objetiva. Por equidade, consideramos que o prazo de 30 dias após a conclusão definitiva do procedimento de consolidação da propriedade (inclusive com julgamento definitivo de eventual dúvida registral) seria um prazo razoável. Convém regulamentação do CNJ (capítulo 5). 13. O registrador, após realizar um juízo de adequação jurídica do pedido de busca e apreensão (qualificação registral), expede a certidão de busca e apreensão extrajudicial do bem e insere, nos sistemas eletrônicos disponíveis, comando de restrição de circulação e de transferência do bem (art. 8º-C, § 2º, decreto-lei 911/1969) (capítulo 5). 14. O ato de apreensão só poderá ser realizado pela autoridade policial competente, embora o credor possa, por si ou por meio de empresa especializada, realizar pesquisas para identificação do bem (capítulo 5). 15. Feita a apreensão pela autoridade policial, entendemos que - apesar do silêncio legal - o oficial deverá ser comunicado para atualização da informação nos autos do procedimento extrajudicial de busca e apreensão. Convém regulamentação do CNJ (capítulo 5). 16. O credor, apresentando a certidão de busca e apreensão extrajudicial do bem (que foi expedido pelo registrador no início do procedimento), assumir a posse plena do bem. A autoridade policial tem o dever de lhe entregar a coisa. Mas, em nome do devido processo legal, entendemos que esse fato precisa ser imediatamente comunicado ao RTD para atualização dos autos (capítulo 5). 17. De posse do bem, o credor poderá promover a venda extrajudicial da coisa, à semelhança do que já no rito executivo judicial. Ocorrida a venda, o credor deverá comunicar o RTD para os lançamentos pertinentes (art. 8º-C, § 7º, do decreto-lei 911/1969) (capítulo 5). 18. Se o bem alienado fiduciariamente for veículo, os ritos extrajudiciais da consolidação da propriedade e da busca e apreensão poderão acontecer tanto perante o RTD quanto perante o Detran em que o veículo está licenciado (art. 8º-C, § 9º, decreto-lei 911/1969). A escolha é do credor (capítulo 6). 19. O RTD e, se for o caso, o Detran precisam disponibilizar, na internet, um meio de busca dos autos dos procedimentos extrajudiciais para consulta ao devedor. E têm de disponibilizar também meios eletrônicos de peticionamento. O espelho é a publicidade dada pelos sistemas de processos judiciais eletrônicos mantidos pelos Tribunais. Convém regulamentação do CNJ e do Conselho Nacional de Trânsito (Contran) nesse sentido (capítulo 7). 20. O rito extrajudicial de consolidação da propriedade fiduciária mobiliária e de busca e apreensão não depende de representação de advogado, à semelhança do rito executivo extrajudicial de imóveis. Todavia, entendemos que o devedor tem direito à indenização por honorários contratuais se triunfar em suas insurgências feitas mediante defesa técnica (capítulo 8). 21. O procedimento extrajudicial da consolidação da propriedade e da busca e apreensão no caso de alienação fiduciária em garantia de bens móveis é constitucional (capítulo 9). Clique aqui e confira a coluna na íntegra.
sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

Flauzilino, um homem além de seu tempo

Quando nos referimos a homens extraordinários, singulares, quando pensamos em profissionais que se destacam entre pares, é respeitado pela comunidade de juristas a que pertence, dizemos que são "homens além de seu tempo". No que respeita ao Registro de Imóveis brasileiro, quantos podem ser considerados "homens além de seu tempo"? José Tomás Nabuco de Araújo, Lisipo Garcia, Waldemar Loureiro, Serpa Lopes, Afrânio de Carvalho, Filadelfo Azevedo, Dídimo Agapito da Veiga, Elvino Silva Filho, Jether Sottano. São nomes que despontam nesta galáxia de luminares, homens a quem muito devemos por manter viva a instituição do Registro de Imóveis brasileiro, transformando-o ao longo do tempo, renovando-o, permitindo que assimilasse novas demandas e proporcionasse respostas adequadas às exigências do tempo. Todos estes grandes homens e profissionais citados já se foram. Deixaram sua marca. Transformaram e foram transformados, numa bela obra que hoje todos nós apreciamos. Entretanto, se é possível reverenciar cada um deles, é necessário, igualmente, render nossas homenagens a quem se acha tão próximo de nós. Falo especificamente de Flauzilino Araújo dos Santos, a quem podemos qualificar, com segurança, de um "homem além do seu tempo". Sou uma espécie de testemunha qualificada de seu percurso. Viemos para a Capital de São Paulo juntos, impulsionados pelo mesmo concurso, tocados pelos mesmos ideais, embalados pelos mesmos sonhos. Flauzilino, tanto quanto eu, somos oriundos de famílias modestas, mas tínhamos um grande sonho: fomos auxiliares, depois escreventes, mas queríamos chegar ao oficialato registral. Este sonho realizaríamos. Mal começava a década de 2000 e logo constatávamos a que vieram os novos registradores concursados. No caso de Flauzilino, tocou-lhe dar início, ainda em 2006, a um grande processo de transformação do Registro de Imóveis brasileiro, impulso original que ainda se desenvolve e robustece na sucessão de leis, decretos, atos normativos etc. Nascia na Capital de São Paulo o que seria tempos depois chamado de Registro de Imóveis Eletrônico brasileiro pelas sucessivas leis federais. Olhando em retrospectiva, facilmente se pode constatar que os homens que deram vida e dinamizaram os processos regenerativos da vetusta instituição registral chegaram até aqui e realizam, agora, a entrega desse maravilhoso legado a quem haverá de dar seguimento ao virtuoso processo de transformação. Flauzilino à cabeça, Marcelo Berthe na Vara de Registros Públicos da Capital (depois no CNJ), acolhendo e pavimentando a via regulamentar para que as mudanças viessem a lume, eu secretariando e dando apoio doutrinário às ideias geniais do grande Flauzilino, posso dizer, sem medo de errar, que pudemos dar início ao grande processo de renovação do sistema registral pátrio. É verdade que, ao longo do tempo, outros nomes se aliaram. Cito de memória: Antônio Carlos Alves Braga Jr., Manuel Matos, Volnys Bernal, Adriana Jacoto Unger, Nataly Cruz. uma plêiade de profissionais devotados que puderam provar a viabilidade técnica de um projeto essencialmente institucional, um sistema que respeitava as matrizes do Registro de Imóveis brasileiro. Não foi uma trajetória tranquila, nem um percurso livre de acidentes e de percalços. Pelo contrário. Para que o Ofício Eletrônico, depois a Penhora Online, o SREI, o ONR, o FIC, e tantos outros projetos inovadores pudessem vir à luz foi necessário grandes esforços, vencer obstáculos, enfrentar interesses poderosos, lidar com a incompreensão e a inércia de uma classe acomodada e infensa a mudanças. Posso dizer, com segurança, que nada se fez nos últimos 20 anos que não tenha a marca do espírito e a inteligência brilhantes de Flauzilino Araújo dos Santos. Flauzilino é um "homem além do seu tempo". É um visionário. Captou os sinais de mudança e pôs-se à obra. Assentado sobre os ombros de gigantes, anunciou, para todos os que dormitavam, que despontava a aurora de um novo tempo para o Registro de Imóveis brasileiro. Caro Flauzilino. Penso que não falo estas palavras solitariamente. Certamente centenas de colegas, registradores e registradoras, assinariam esta carta de reconhecimento e agradecimento pela sua grande obra. Muito agradecido. Todos nós reconhecemos e agradecemos o seu grande feito.
Os velhos cartórios eram feitos à imagem e semelhança dos escritórios de mosteiros medievais. Dobrados sobre estações de carvalho, dispostas numa grande sala, deitávamos os pesados livros de registro sobre as escrivaninhas e neles inscrevíamos lentamente os títulos protocolados. O tempo corria vagarosamente, como o pôr do sol sob as persianas do velho casarão do cartório. Diante de nossos olhos atentos passavam inventários, partilhas, hipotecas, penhoras, arrestos, arrematações... Quantos dramas humanos nos revelavam, quantas alegrias e tristezas, tantas chegadas, tantas partidas... lances da vida representados em rios de símbolos e de sentidos. Sentíamo-nos partícipes da grande família humana, retratávamos os lances do destino inscrevendo-os nos pesados livros de registro. Cabia-nos recolher e coligir escrupulosamente os elementos de transcendência real para plasmar os atos de registro. Não se enganem, senhoras e senhores, o registro era um ato de criação. Não se pense que os antigos livros eram de mera transcrição, cópia literal, verbo ad verbum, das escrituras públicas. Nunca fomos meros amanuenses; realizávamos transcrições das transmissões, não reproduções literais de títulos e documentos. Éramos de certa forma livres, mas sempre advertidos pela tradição e pelo decano do ofício: "a liberdade é consentimento numa ordem". Lavrávamos os atos de modo pessoal, mas em estrita observância aos ditames da praxe multissecular. Sou capaz, ainda hoje, de reconhecer o estilo pessoal de cada um: a elegante caligrafia do Sr. Andrônico, a escrita robusta e precisa do Bepo, elas desfilavam garbosamente em contraste com os garranchos do Bodão. Às vezes nos distraíamos junto à pia do scriptorium, desmontando e lavando a caneta tinteiro. A tinta se esvaía na água corrente e carregava consigo nossas angústias e tristezas. Outras vezes, substituíamos a pena cansada e viciada, deixando que o profundo azul-royal da tinta Quink tingisse os dedos. Depois de tudo, era preciso desbastá-la, buscando o exato eixo para que deslizasse suavemente sobre o papel. As penas, assim como os escreventes, se tornam melhores com a lavratura diuturna. A caneta reconhece o bom escriba e a ele se dobra, dócil e gentilmente. Aprendi num velho cartório que a caligrafia nos torna homens muito melhores. Outras vezes nos dedicávamos à árdua tarefa de decifrar a escrita irregular de um velho escrevente alcoólatra. Era preciso adivinhar o sentido do texto a partir dos garranchos e garatujas que se tornavam tanto mais esotéricos quanto mais avançada era a hora do dia. Pelas manhãs, sua letrinha serifada era nítida e elegante; já no começo da tarde, porém, com o raciocínio enturvado pelo álcool, o velho escriba derrapava, transbordava as margens tracejadas de linhas e colunas rubras e avançava sobre os vastos domínios que se acham à margem - o território livre das averbações. Hic sunt leones! O velho escrevente, no meio da tarde, já não se sustentava e esboroava feito um meteoro torpe sobre o livro. Ingressei no nobile officium ainda muito jovem. Inscrevi, transcrevi, averbei. lavrei a verba elegante da praxe cartorária em livros de registros manuscritos. Tenho dito aos meus colegas de ofício: "vivemos uma espécie de crepúsculo do ofício registral". Isto dizemos para nós mesmos, velhos escribas, e rimos, rimos feito crianças. "Tudo o que no mundo existe começa e acaba num livro", todos sabemos - especialmente nós outros, os escribas, que lavramos a nota inaugural e final da sinfonia inacabada dos homens. Quem nos lê, quem ainda nos lerá? Haverá quem nos compreenda essencialmente? Ou seremos tragados e traduzidos por uma máquina? A lavra perita que encarna o espírito do tempo (e de certo modo o traduz) é varrida pelo vento, como as folhas secas no quintal. É tão lindo e triste o ocaso. Todo o referido é verdade e dou fé.
As condições são elementos acidentais dos negócios jurídicos consistentes em estipulações que sujeitam os efeitos deste negócio - ou a sua resolução - a um evento futuro e incerto. Sendo elementos acidentais, não têm autonomia, com o que devem sempre integrar um negócio jurídico. Tratando-se de negócio que tenha por objeto bens imóveis, as condições que o subordinem ingressarão no Registro de Imóveis juntamente com o título que transmitir ou onerar o bem. Com isso, qualquer que seja sua modalidade - suspensiva ou resolutiva1 - não será objeto de assento autônomo, mas, ao contrário, deverá ser mencionada no corpo do próprio ato que registra ou averba o título que a contem. O implemento da condição - ou seja, a ocorrência do evento futuro e incerto - importará efeitos de suma relevância para o negócio, que se projetam no próprio direito real: sendo suspensiva a condição, a ocorrência do evento implicará a aquisição da propriedade ou constituição do direito real, acerca do qual seu agora titular anteriormente somente tinha uma expectativa; por outro lado, sendo resolutiva, implicará a sua extinção. Em qualquer dos dois casos o resultado no Registro de Imóveis será a prática de um ato de averbação, destacando-se que em se tratando de condição resolutiva, a averbação terá por conteúdo o cancelamento do registro prejudicado. Já Serpa Lopes2 reconhecia que estes fatos poderiam ingressar no Registro de Imóveis com base no requerimento unânime das partes; ou, ainda, mediante requerimento unilateral, desde que acompanhado de prova documental do consentimento de todos - por exemplo, em uma cláusula resolutiva vinculada ao pagamento do preço (o antigo "pacto comissório", do Código Civil de 1916), caberia ao termo de quitação este mister. Tratando-se de requerimento unilateral solicitando a averbação do implemento de condição resolutiva, esta prova documental faria mesmo as vezes do "documento hábil" de que trata o artigo 250, III, da lei 6.015/1973. Por outro lado, ainda segundo Serpa Lopes, não sendo possível obter este consenso, quer fosse ele exarado no próprio requerimento, quer fosse em um documento complementar, não haveria outro meio de se confirmar o negócio, na condição suspensiva, ou de se cancelar o registro, na condição resolutiva, fora da via judicial. Há, todavia, certos fatos jurídicos cuja prova se faz com documentos autênticos e que gozam de presunções legais. Tenha-se, por exemplo, o óbito. Consistindo a condição no falecimento de certa pessoa antes do adquirente de um bem, demonstrada pela respectiva certidão de óbito; ou, ainda, pela realização de uma construção no terreno, demonstrada pelo respectivo habite-se, não haveria nenhuma razoabilidade em se exigir um processo judicial para verificação do implemento da condição. Nessa toada, a lei 14.711/2023, ao inserir na lei 8.935/1994 o Artigo 7º-A, I, tornou ainda mais abrangente o escopo de eventos futuros e incertos que podem ser carreados ao Registro de Imóveis sem necessidade de recurso ao Poder Judiciário. Referido dispositivo atribui ao tabelião de notas a certificação do implemento ou frustração de condições apostas a negócios jurídicos, com o que será possível a produção de um documento autêntico - uma ata notarial - que ateste os fatos que, nos termos do negócio, estariam destinados a subordinar sua eficácia. Assim, havendo, por exemplo, condição suspensiva, tornou-se possível a prática do ato da averbação que confirma a eficácia do ato com base na apresentação a registro e qualificação positiva da respectiva ata notarial; por outro lado, havendo condição resolutiva, a ata foi agora erigida em "documento hábil" a autorizar o cancelamento a requerimento do interessado, nos termos do Artigo 250, III, da lei 6.015/1973. Não há nisso grande novidade: em já citado trabalho publicado em 2016 já havíamos defendido a conveniência da adoção da ata notarial em casos semelhantes3. Observe-se que na Espanha desde ao menos os anos 1940 - com base na Resolução de 10 de Janeiro de 1944, da Direção Geral dos Registros e Notariado - já se vinha admitindo o ingresso no registro do implemento das condições até mesmo pela notoriedade do fato em questão4. Mais recentemente, a Resolução de 25 de Janeiro de 2010 da mesma Direção reiterou o seu entendimento, acrescentando ainda o ingresso por documento público que dê fé da ocorrência do fato.  A delimitação dos fatos jurídicos que podem ser, por essa via, levados ao Registro de Imóveis é determinado pelas próprias limitações da ata notarial. Podem ser constatados fatos objetivamente verificáveis, constatáveis ictu oculi pelo notário. Recorde-se que não cabe ao notário realizar juízo de valor sobre os fatos por ele apreendidos5. Assim, havendo necessidade de oitiva de testemunhas, elaboração de laudos periciais, ou de qualquer outro elemento que complemente aquilo que o notário capta com seus sentidos, inafastável será o recurso à via judicial, onde a ata poderá ser utilizada como meio de prova, nos termos do Artigo 384 do Código de Processo Civil. Em observância do princípio da legalidade, tendo a ata notarial conteúdo que ultrapasse estes limites, deverá o registrador qualifica-la negativamente, exigindo o consentimento da outra parte, ou decisão judicial. A tramitação no registro de imóveis segue o procedimento geral: protocolo, qualificação e averbação (em caso de qualificação positiva) ou devolução (em caso de qualificação negativa). É importante se ter claro que nas condições resolutivas a ocorrência do evento futuro e incerto implica a resolução de pleno direito do negócio, independente de interpelação, ou até mesmo do conhecimento das partes6. Dessa maneira, tendo sido o fato objetivamente constatado, o ingresso da resolução no Registro de Imóveis independerá de anuência, ou mesmo da interpelação, da parte prejudicada. Destaque-se que diferentemente do que fez com a Execução Extrajudicial da Alienação Fiduciária em Garantia de Bens Móveis, com a Execução Extrajudicial dos Créditos Garantidos por Hipoteca, ou com a Execução Extrajudicial de Garantia Imobiliária com Concurso de Credores, a lei 14.711/2023 não previu qualquer tipo de procedimento notificatório, ou mesmo contraditório abreviado, para a constatação do implemento da condição pelo notário, ou para seu acolhimento pelo Registro de Imóveis. Em conclusão, tem-se com a novidade mais um capítulo no caminho da desjudicialização que vem sendo empreendida no Direito Brasileiro. Oxalá sirva como meio de facilitação da vida das pessoas e correção de injustiças. __________ 1 A respeito do ingresso no Registro de Imóveis das condições em si, em especial das condições suspensivas, cf. Ivan Jacopetti do Lago, As Condições Suspensivas e o Registro de Imóveis, in, Boletim IRIB em Revista (354) (2016). 2 Cf. Miguel Maria de Serpa Lopes, Tratado dos Registros Públicos, Vol. III, 4a Ed., Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1960, p, 375. 3 cf. Ivan Jacopetti do Lago, As Condições Suspensivas e o Registro de Imóveis, in, Boletim IRIB em Revista (354) (2016). 4 Cf. Jose Maria Chico y Ortiz, Estudios Sobre Derecho Hipotecario, Vol. I, 2ª Ed., Zaragoza, Marcial Pons, 1989, p. 483. 5 Cf. Leonardo Brandelli, Teoria Geral do Direito Notarial, 6 Cf. Micaela Barros Barcelos Fernandes, Distinção Entre a Condição Resolutiva e a Cláusula Resolutiva Expressa: Repercussões na Falência e na Recuperação Judicial, in, Revista Brasileira de Direito Civil (20) (2019).
O só evocar o seu nome, logo me vem à memória a figura de um homem vigoroso, boina displicentemente jogada sobre a calva, sorriso cativante e dentes perfeitos e alinhados. Francisco Rodrigues da Silva foi o responsável pela faxina da serventia à época em que eu era um mero auxiliar de Cartório. Sempre chegava quando todos já se tinham retirado. Abria a porta pantográfica, acendia as luzes, e logo se punha a faxinar o velho Cartório de Registro de Imóveis. Ouvia um radinho de pilha que depositava cuidadosamente sobre os arquivos enquanto varria as salas, retirava as bitucas do cinzeiro, esvaziava os papeis do "cesto ofício", espanava e lustrava os móveis. À noite tudo se acalmava. Eu ficava até mais tarde, o silêncio era convidativo, sentia conforto na solidão. Os livros se fechavam, as máquinas que matraqueavam as certidões negativas de ônus e alienações silenciavam, cessava a conversa fiada dos escreventes em disputa com o burburinho no balcão. Chicão vinha restituir a ordem após um dia inteiro de inscrições, averbações, transcrições e palrações frouxas e irrelevantes que reverberavam nas paredes cinzas do cartório. Quando me encontrava com o Francisco, sempre falávamos de amenidades, ríamos de qualquer bobagem, éramos felizes, alegres, despreocupados. Ele jamais se detinha nas suas tarefas e quando me via, logo abria um sorriso cativante, tomava a vassoura e parecia que dançava ao som que brotava do pequeno Spica posto sobre o velho fichário União. Não sei dizer quando começou a trabalhar no Cartório. Pergunto-me: quantos anos ele teria quando iniciei a minha jornada na lida cartorária? Hoje faço as contas, 40, 42? Não sei dizer... Parecia-me que sempre estivera ali, natural como a ranzinzice dos velhos escreventes, a empáfia do Oficial Maior empertigado com sua gravata esmeralda. Era tão antigo quanto as pesadas Remington, os livros de transcrição e o Protocolo - livro primaz, chave de todas as chaves do cartório. Com o passar do tempo, o infatigável Chicão começava a arquear. Pesava-lhe a idade e a faina diuturna de muitos anos, mas algo mais o debilitava. Começamos a perceber que bebia todas as noites. Chegava ao Cartório, abria as portas e janelas, e logo buscava entre os apetrechos de limpeza a garrafa de aguardente. No início era só um trago; com o tempo, vieram outros, e outros... Quando terminava a faxina, já perto da meia-noite, estava embriagado. Saia errando, arrastando o chinelo de dedo, a boina posta de lado para equilibrar-se, o radinho Spica chiava denunciando onde se achava o cativante Chicão na penumbra do cartório. Ao sair, deixava as salas limpas e vazias e o silêncio reinava no velho casarão do cartório. Chegou um tempo em que eu me preocupava com o velho Chicão. Certa feita, ele necessitou licenciar-se para tratamento de saúde. Cuidei de elaborar o pedido, protocolei-o na Corregedoria Geral de Justiça. Sua condição física deteriorava-se a olhos vistos e uma certa demência se pronunciava. Chicão já não sorria, não dançava, nem mesmo bebia, vivia atormentado por fantasmas. Primeiro foi levado a um sanatório próximo da Serra, onde ficou internado vários dias. O Oficial titular, um homem bom, justo e generoso, lhe foi visitar. À saída sussurrou de modo sombrio: - "sofre o pobre homem; está enfermo e obnubilado". Nunca tinha ouvido a expressão - obnubilação. A palavra me causou intuições indefiníveis e sombrias. Os dias foram passando, Chicão renovava as licenças à medida que a saúde se agravava. A senilidade tomava conta. Um dia teve que ser internado num hospital psiquiátrico. Era um homem só, não tinha parentes, não tinha filhos, eu nada sabia de seus pais ou irmãos, ninguém podia cuidar do velho funcionário. O que fazer? Os escreventes então se cotizaram e resolveram interná-lo num nosocômio psiquiátrico. Avisei o Oficial e partimos em silêncio, eu e o velho Chicão, rumo a uma conhecida instituição do interior. Deixei-o  sob os cuidados de enfermeiros. Quando saia, virei-me e ainda vi que me lançava um olhar melancólico, tingido de triste resignação. Dirigi de volta a São Paulo imerso em pensamentos sombrios. De repente, um grande e belo pássaro chocou-se com o para-brisa do automóvel. Brum. O baque surdo me assustou. Pude ver pelo retrovisor que o pássaro jazia na pista, inerte. O coração disparou, a saliva secou, uma intuição sombria tomou o meu coração. A verdade é que jamais pude reencontrar o velho Chicão. Não nos despedimos, não pudemos trocar um aperto de mãos, não pude dar um abraço naquele homem bom, alegre e sincero. Parece que sua nobre missão terá sido limpar o mundo de tanta impureza e sujidades. Hoje penso que o destino nos conduziu como náufragos às portas de um velho cartório. Ali nos encontramos entre livros e fichas, carimbos e penas, vassouras e sovelas. Nossa biografia, encardida de poeira, cerziu-se lentamente no tempo, bordeou-se da beleza e simplicidade de todas as histórias humanas verdadeiras. Hoje Chicão é uma linda estrela solitária que se pode ver nas claras e límpidas madrugadas de inverno. Quem tem olhos para ver, que veja. O referido é verdade e dou fé.
O objetivo deste trabalho é discutir se é possível registrar a escritura de venda/compra com decesso do vendedor, antes de registrá-la em nome do comprador. Discute-se também os critérios de pagamento e dos seus efeitos no cartório de imóveis, à luz das normas materiais e adjetivas, para saber o limite eficacial daquela escritura, que dispensa o inventário/partilha. A prática notarial e registral é um verdadeiro estudo dinâmico do direito, quebrando as paredes estáticas do estudo acadêmico, inspirado na música Another Brick in the Wall, da banda Pink Floyd, vez que as normas, em si, não ajudam a resolver um nó górdio factual apresentado no balcão do cartório, a exemplo da temática deste trabalho. Após uma pesquisa, descobriu-se que, conquanto não seja um assunto recente, não há pacificação a seu respeito. Contudo, a compreensão dos lindes dessa pergunta, ajuda a resolver a sua própria problemática. Pois bem, é possível registrar escritura pública de venda/compra com vendedor falecido sem inventário/partilha? Em tese, sim, mas tudo depende da forma de pagamento, se pro soluto ou pro solvendo, além de outros requisitos desvelados na prática notarial/registral. Por isso, esse artigo será apenas uma diretriz hermenêutica aos colegas tabeliães, oficiais de registro, advogados, servidores e, inclusive, às pessoas que não trabalham com o direito notarial e registral. Inicialmente, é importante esclarecer a diferença entre os pagamentos pro soluto e pro solvendo. Se constar o pro soluto no ato notarial (escritura pública), implica uma quitação automática débito, ainda que o credor não receba um centavo. Por outro lado, se constar o pagamento pro solvendo, haverá quitação na data combinada entre as partes (alienante e adquirente). O enunciado 655 do IX Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal (CJF), que diz o seguinte: "nos casos do art. 684 do Código Civil, ocorrendo a morte do mandante, o mandatário poderá assinar escrituras de transmissão ou aquisição de bens para a conclusão de negócios jurídicos que tiveram a quitação enquanto vivo o mandante" (grifos nosso). Embora extinto o mandato pela morte do mandante (art. 682, inciso II, do Código Civil), continua eficaz as procurações públicas para finalizar "os negócios pendentes" (arts. 690 e 691, ambos do Código Civil de 2002), desde que o pagamento seja pro soluto, ou seja, negócios jurídicos quitados pelo mandante ainda vivo. Ressalte-se, portanto, que as referidas normas atribuem ultratividade à representação de mandato extinto1. A finalização de negócios pendentes dar-se-á porque a dívida foi paga integralmente, ensejando o direito à quitação regular por escrito2, ou por meio equivalente, se de seus termos ou das circunstâncias resultar haver sido paga a dívida3, com assinatura manual ou eletrônica qualificada4. A quitação é um ato jurídico unilateral e receptício porque é escrito apenas pelo credor, mas precisa ser recebido pelo devedor. A finalidade é comprovar um fato, representativo da extinção de relação obrigacional de crédito/débito, e não um meio de declaração de vontade5, a qual deverá, de fato, constar em uma escritura pública, ou uma procuração pública, ou uma promessa de compra e venda etc. Então, quando o vendedor não cumpre em vida sua obrigação de assinar escritura de venda/compra, no qual consta a extinção da relação jurídica obrigacional, deverá ser cumprido pelos herdeiros, sob pena de configurar violação ao direito subjetivo à quitação regular (art. 319 do Código Civil) e aos deveres colaterais do contrato (art. 422 do Código Civil). Aliás, a obrigação pré-constituída de transmissão imobiliária, consubstanciada em um ato notarial, será vista como um encargo da herança, e não como obrigação transmitida aos herdeiros na abertura da sucessão, nos moldes do entendimento pacificado sobre "a obrigação de prestar alimentos transmite-se aos herdeiros do devedor", nos termos do art. 1.700, do Código Civil de 2002 (cf. também no art. 1.796 do Código Civil de 1916 e o art. 23 da lei 6.515/77)6. Em termos processuais, esse encargo da herança corresponde ao pagamento de meação disponível (art. 651, inciso III, do CPC/2015), embora seja mais lembrado o testamento. O "encargo da herança" fará parte dos deveres do inventariante, o qual o representa ativa e passivamente o espólio7, e não os herdeiros. Por isso, não será preciso uma cláusula específica na escritura pública ou termo judicial de nomeação de inventariante, autorizando-o transferir o imóvel vendido pelo de cujus ainda vivo (e não registrado no cartório de imóveis), uma vez que o dito imóvel faz parte da meação disponível (art. 651, inciso III, do CPC/2015), e não do quinhão hereditário (art. 651, inciso IV, do CPC/2015), objeto de partilha judicial/extrajudicial. Pois bem, essa mesma lógica do enunciado 655 da IX Jornada de Direito Civil da CJF também cabe às escrituras públicas de venda/compra, com pagamento pro solvendo, quando falece o vendedor, antes de o comprador registrá-la no cartório de imóvel. Neste caso, também há transferência do encargo da herança (responsabilidade) aos herdeiros, permitindo o adquirente registrar aquele ato notarial (escritura pública), pois faz parte da meação disponível (art. 651, inciso III, do CPC/2015). Em termos práticos, se na escritura constar a quitação expressa do vendedor, será possível o registro no cartório de imóveis. D'outro lado, se constar pagamento parcelado, com ou sem cláusula resolutiva (art. 477 do CC/02), também parece possível o registro, mas com averbação dessa pendência de pagamento parcelado. Embora com outras argumentações, há precedentes antigos do STF que permitem o registro de escritura pública de venda/compra com o alienante falecido (RE 18394, 2ª turma, relator para o acórdão Min. Afrânio Costa - convocado, publicado em 20/09/1951; e RE 31217, 1ª turma, rel. Min. Barros Barreto, publicado em 26/07/1956). Contudo, o problema ocorre exatamente na ausência da quitação, afastando a lógica do enunciado 655 da IX Jornada de Direito Civil da CJF, razão pela qual será necessário analisar cum grano salis. No tocante ao pagamento pro solvendo, sem quitação do vendedor e nem cláusula resolutiva (art. 477 do Código Civil) na escritura pública, caberá uma das seguintes situações: i) apresentar ao cartório de imóvel uma quitação emitida pelo inventariante nomeado (art. 617 do CPC/2015), desde que pagas todas as parcelas ao credor ainda vivo, transmite-se o encargo aos herdeiros, no momento da abertura da sucessão, em razão de o direito subjetivo à quitação regular da dívida; ou ii) se não houve pagamento de todas as parcelas ao credor ainda vivo, não cabe ao inventariante emitir quitação, salvante autorização judicial (art. 642 do CPC/2015), porque o bem vendido (e não registrado) transfere-se ao espólio; e por fim, iii) embora recebidos os pagamentos ainda vivo o credor, e caso o administrador nomeado não forneça quitação ao devedor, aplicar-se-á o rito da adjudicação compulsória8. Assim, caberá uma notificação extrajudicial ao inventariante nomeado9 para constituição de mora10. Transcorrendo o prazo de 15 dias úteis, sem qualquer tipo de ilicitude, fraude à lei ou simulação11, o comprador poderia utilizar o procedimento de adjudicação compulsória, sem necessidade de inventário/partilha. No tocante ao procedimento de adjudicação compulsória, tudo indica possível a sua utilização na escritura pública de venda/compra, com o decesso do vendedor antes de registro em nome do comprador, e desde que não tenha direito de arrependimento, em razão do art. 440-B do Provimento 149/2023, do CNN/CN/CNJ-Extra, o qual permite "dar fundamento à adjudicação compulsória quaisquer atos ou negócios jurídicos que impliquem promessa de compra e venda ou promessa de permuta". Em suma, essa norma do CNJ permite a qualquer ato ou negócio jurídico, a exemplo da escritura pública de venda, que também implica transferência imobiliária, nos moldes da promessa de compra e venda, seja feito o cumprimento do encargo da herança, por meio de adjudicação compulsória. Portanto, na esteira do enunciado 655 da IX Jornada de Direito Civil da CJF, é viável o ingresso de escritura pública de venda/compra com pagamento pro soluto, após o falecimento do vendedor, no fólio real do cartório de imóveis, porque se trata de um encargo da herança, referente à meação disponível, excluída do espólio para formação do quinhão hereditário, sendo este objeto de partilha entre os herdeiros. Do contrário, se o pagamento da referida escritura for pro solvendo, sem cláusula resolutiva expressa e nem quitação do credor ainda vivo, não será aplicado literalmente a lógica daquele enunciado, devendo, ao revés, verificar as três situações mencionadas neste trabalho: a primeira será um encargo da herança a ser cumprido pelo inventariante, quando tiver todos os pagamentos sem quitação; a segunda não caberá quitação pelo inventariante, exceto com autorização judicial, quando não tiver todos pagamento; e por fim, a terceira será cabível a adjudicação compulsória extrajudicial, quando recalcitrante o inventariante a emitir quitação, embora todos os pagamentos recebidos pelo credor ainda vivo. __________ 1 Por outro lado, não olvide que, em caso de morte de uma das partes (art. 682, inciso II, do Código Civil), continua eficaz a representação e o próprio mandato na procuração em causa própria (art. 685 do Código Civil). Para estudo dessa matéria, ver RAMOS JÚNIOR, Lourival da Silva. Procuração em causa própria e seus efeitos imobiliário e fiscal. Revista de direito imobiliário, julho-dezembro/2012, p. 151-176. Para uma leitura resumida, ver o artigo publicado no site Migalhas, de autoria do Prof. Carlos Eduardo Elias de Oliveira, intitulado A procuração "em causa própria" como forma indireta de alienação de bens: ITBI e registro de imóveis, datado de 7 de julho de 2021, disponível aqui. Por fim, também há jurisprudência do STJ, a exemplo do Resp n.º 1.962.366-DF, 3ª turma, relatora Ministra Nancy Andrighi, DJe 02/03/2023. 2 Cf. o arts. 319 e 320, ambos do Código Civil. 3 Cf. o parágrafo único do art. 320 do Código Civil. 4 Cf. o art. 5º, § 2º, inciso IV, da Lei Federal n.º 14.063/2020, c/c o art. 219 do Código Civil. 5 SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. Adimplemento e extinção das obrigações. São Paulo: RT, 2007, p. 193. 6 Oliveira, Euclides de. Alimentos: transmissão da obrigação aos herdeiros. Disponível aqui, datado em 30 de novembro de 2023; e GALLOTI, Isabel. O novo código civil e a transmissão da obrigação alimentar aos herdeiros do devedor. Disponível aqui, datado em 30 de novembro de 2023. 7 ASSIS, Araken de. Inventário e partilha. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022, p. 67 ("O inventariante não representa individualmente os herdeiros e os legatários.") e p. 77 ("O inventariante representará o espólio em juízo, ativa e passivamente" (art. 75, VII, c/c art. 618, I), (...). Quer dizer, a lei confere capacidade processual para o inventariante representar a universalidade da herança, assumindo uma posição neutra, ou seja, atua em favor do patrimônio do qual se encontra encarregado, e não em nome do próprio ou alheio. A figura da representação não calha propriamente ao inventariante: atua como parte de ofício.". 8 Cf. o art. 216-B da Lei n.º 6.015/73 c/c o Provimento n.º 149/2023, do Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça - Foro Extrajudicial (CNN/CN/CNJ-Extra). 9 Cf. o art. 617 do CPC/2015 c/c o art. 216, § 1º, inciso II, da Lei n.º 6.015/73, alterada pela Lei n.º 14.383/2022 10 Cf. o art. 440-G, § 6º, inciso VII, do Prov. 149/2023, do CNN/CN/CNJ-Extra. 11 art. 440-I, do Prov. 149/2023, do CNN/CN/CNJ-Extra.