Aceitar para conhecer ou conhecer para aceitar? O dilema da nomeação de inventariante extrajudicial
quarta-feira, 19 de novembro de 2025
Atualizado em 18 de novembro de 2025 12:41
A nomeação de inventariante deixou de ser mero expediente burocrático para se tornar peça-chave na estratégia sucessória. A mudança de postura da Fazenda Estadual de São Paulo comprova isso: o órgão passou a aceitar a escritura de nomeação como marco interruptivo do prazo para recolhimento do ITCMD. O Fisco, portanto, reconhece ao ato a natureza de "início de inventário" para fins tributários.
Aqui reside, contudo, um paradoxo: se o próprio Fisco admite a nomeação como ato preliminar por reconhecer tratar-se de medida inicial e preparatória, como pode esse mesmo ato significar aceitação definitiva da herança? Aceitar essa equação seria condenar o herdeiro a arcar com custos de inventário como imposto, honorários advocatícios, custas e documentos necessários, antes mesmo de saber se há patrimônio a receber.
Ninguém pode ser compelido a aceitar para só depois descobrir o que aceitou. A função da nomeação de inventariante, quando a família desconhece o patrimônio, é exatamente permitir essa descoberta. Saber o que existe antecede a decisão de aceitar.
É situação comum nos tabelionatos de notas: os herdeiros de eventual de cujus não sabem ao certo o tamanho do monte e, por isso, os primeiros contatos junto aos notários são incertos e vacilantes, muito ligados a aspectos pecuniários. Em "bom português", antes de se dizer interessado na herança, quer o possível herdeiro saber se o trabalho "compensa". Como passar qualquer orçamento, notadamente em relação aos aspectos tributários - normalmente o maior ônus a ser pago -, sem saber exatamente o tamanho do monte a ser transmitido?
É nesse momento que surge a escritura de nomeação de inventariante, pela qual, munido de legitimação dos demais herdeiros e pagando tão somente o relativo a uma escritura sem valor declarado, pode o herdeiro interessado arregimentar todos os documentos necessários, com comprovação do tamanho do monte para ulterior inventário dos bens encontrados.
A nomeação de inventariante traz ainda duas vantagens inegáveis. A primeira consiste em demover qualquer pequena autoridade de grande poder recalcitrante - normalmente gerentes de instituições bancárias - a prestar as informações necessárias a quem foi qualificado, por um tabelião com fé pública, como legitimado a obter informações sobre os bens do de cujus, que, de outra sorte, estariam abrangidas pelo sigilo. Vale registrar que, em tese, as instituições financeiras já deveriam prestar essas informações aos herdeiros ou ao tabelião que as requisitasse, conforme orientação da própria FEBRABAN (comunicado 049/15) e a circular BACEN 3.858/17, que equiparou as escrituras públicas de inventário à carta de adjudicação judicial. Ocorre que, na prática, nem todas as instituições cumprem essa determinação, e em nosso dia a dia temos encontrado dificuldades com algumas - embora não com outras - que se negam a aceitar qualquer outro documento, embora revestido de fé pública, que não a nomeação de inventariante.
A segunda e inegável vantagem é a utilização da nomeação do inventariante como marco inicial do inventário extrajudicial de modo a se elidir eventuais multas e outros encargos decorrentes da não finalização do inventário nos prazos previstos na legislação tributária, orientação pacífica do Tribunal de Justiça de São Paulo, corroborada pela resolução 35/07 do CNJ e hoje reconhecida pela própria Fazenda Estadual de São Paulo.
A linha que separa investigação de aceitação precisa, entretanto, ficar clara. A nomeação de inventariante para levantamento de informações sobre o acervo hereditário constitui ato preparatório, de natureza investigativa. Requisitar extratos bancários, certidões imobiliárias, informações sobre investimentos, dados sobre rescisão trabalhista, declarações ao Fisco: tudo isso se limita à gestão informacional, sem qualquer disposição ou apropriação de bens. Trata-se do exercício do direito de o herdeiro conhecer o patrimônio antes de decidir.
O quadro muda radicalmente quando a nomeação visa levantamento de valores ou até mesmo alienação de bens do espólio para pagamento de despesas do inventário, nos termos da resolução 35/07, alterada pela resolução 571/24 do CNJ. Aí sim há manifestação de vontade no sentido de incorporar a herança, o que caracteriza aceitação tácita nos moldes do art. 1.805 do CC. A distinção não está no ato de nomeação em si, mas na finalidade para a qual se presta. Nota-se que investigar não é aceitar. Mas dispor, fruir, movimentar valores ou incorporar ao patrimônio pessoal, isso é aceitar.
A escritura de nomeação deve deixar expressa essa limitação funcional, com ressalva do direito de renúncia caso o levantamento revele herança que não compensa ou não interessa aos sucessores.
Vale ressaltar que a escritura de nomeação de inventariante pode ser utilizada para levantamento de seguro de vida e previdência PGBL/VGBL. Trata-se de direitos creditícios de natureza contratual que não integram a herança, não se sujeitam a inventário nem às dívidas do falecido1. O levantamento desses valores não configura aceitação do espólio, pois os beneficiários recebem na qualidade de credores designados em contrato, e não como herdeiros.
Da mesma forma, no exterior, se lavram as chamadas escrituras de "acreditação de herdeiros", pela qual os notários declaram, com fé pública, os herdeiros legais de uma dada pessoa, sem que tal ato envolva, por si, qualquer disposição quanto à eventual herança existente. Esse instrumento, que no mais das vezes nada revela sobre o patrimônio, é justamente absorvido pela praxe brasileira de "nomeação de inventariante": para nomear inventariante é pressuposto que se reconheçam anteriormente os herdeiros que o nomeiam. E por meio dessa escritura têm sido cumpridas determinações da Corte Interamericana de Direitos Humanos em casos envolvendo violações de direitos humanos que demandem o pagamento de indenizações aos herdeiros legais das vítimas. Não há aqui um fenômeno sucessório, senão do âmbito da responsabilidade civil, o qual, contudo, depende de instrumentos típicos do direito sucessório para se concretizar, em mais uma prova de que, por si, a "nomeação de inventariante" não tem o condão de implicar na aceitação do patrimônio do de cujus.
Entender que a escritura de nomeação traria como efeito automático a aceitação, diminuiria sua funcionalidade e traria grandes riscos. O mais comum é justamente a hipótese de não se encontrarem bens suficientes a cobrir as dívidas da herança, ou, ainda, bens em quantidades mínimas, pelos quais mesmo se desinteressem os herdeiros em seguir em frente com o inventário. Nessa situação, questiona-se se o herdeiro ainda poderia, após ter aceitado o encargo de inventariante, renunciar à herança.
Muitos colegas sustentam opinião negativa, entendendo que o encargo de inventariante traz consigo todos os commodus e incommodus, não podendo ser aceito tão somente no que vantagem traz. Pesa a favor de tal posição o entendimento segundo o qual é da natureza da herança o caráter universal, de modo que jamais seria possível se ter ciência exata de todos os bens que a integram.
Por essa linha, é corrente na doutrina a afirmação de que a cessão de quinhão hereditário é negócio aleatório, eis que se posteriormente à cessão vierem a ser descobertos novos bens, também estes restarão cedidos, a despeito do desconhecimento por parte do herdeiro em relação a sua existência no momento da cessão. Ora, tal qual a cessão, a aceitação trariam esse caráter aleatório.
Não podemos, contudo, concordar com tal posição. Explica-se: na cessão existe um terceiro de boa-fé, justamente o cessionário, que deve ter sua esfera de interesses tutelada pelo direito frente ao negócio realizado, o qual deve ser mantido, até pelo princípio da conservação dos negócios jurídicos, frente a eventuais superveniências do aspecto fático.
Ausente tal terceiro na mera nomeação, e considerando a recalcitrância de algumas autoridades administrativas a prestar qualquer informação senão àquele previamente nomeado inventariante, ter-se-ia quase que uma aceitação compulsória da herança pura e tão somente para que se pudesse superar a inciência quanto a seu tamanho. Ora, não se vislumbrando qualquer outro interesse de terceiro a ser tutelado no momento da aceitação - diferindo, assim, da cessão -, não se vê qualquer razão para que a aceitação da herança se torne verdadeira caixa de pandora em desfavor dos herdeiros.
Muito ao contrário, toda a formalidade com a qual o legislador cerca o ato de renúncia à herança faz crer que, a contrario sensu, também a aceitação deve se dar de forma ponderada, pensada, ainda que presumida, mas jamais como forma impositória, de surpresa e inopino, não se coadunando o direito à herança com um dever de aceitação "para ciência".
Caso concreto ilustra bem a questão: falecido deixou como únicos herdeiros seus ascendentes, que receberam comunicação via Serasa sobre dívida do filho com construtora. Não se tratava de dívida do imóvel, que estava quitado, mas de outro débito junto à mesma construtora. Para ter acesso ao valor exato dessa dívida e à real situação patrimonial, foi necessária a lavratura de escritura de nomeação de inventariante, pois a construtora somente prestava informações detalhadas ao inventariante formalmente constituído. A escritura foi lavrada sem qualquer ressalva quanto ao direito de renúncia. Somente após a descoberta do montante da dívida é que um dos ascendentes manifestou o desejo de renunciar à herança, por não mais lhe interessar diante do quadro patrimonial revelado.
Surgiu, então, a dúvida: permitir ou não a renúncia? Justamente em razão da orientação firmada pelo STJ no REsp 1.622.331/SP, que considera a abertura de inventário como aceitação tácita, e sendo a nomeação de inventariante precisamente um ato inaugural/de abertura do inventário, seguindo-se essa linha restritiva, poder-se-ia argumentar que a mera nomeação já caracterizaria aceitação irretratável, o que impediria a renúncia posterior. Foi exatamente essa jurisprudência que criou o impasse. A solução estaria, justamente, na cláusula expressa de ressalva. Tivesse a escritura delimitado claramente que a nomeação se destinava exclusivamente à obtenção de informações, vedando qualquer movimentação ou disposição de bens, e ressalvado expressamente o direito de renúncia após o levantamento patrimonial, não haveria margem para aplicação da tese restritiva do STJ. A cláusula, portanto, não é mero preciosismo jurídico. Mas sim uma cautela entre proteger o herdeiro ou condená-lo a aceitar herança que, à luz das informações obtidas, não mais lhe interessa.
Nesse sentido é a doutrina de Débora Brandão e Mauro Antonini: "não configuram aceitação tácita o pedido de abertura de inventário e o de constituição de advogado para atuar nele, pois são atos que o sucessor pode praticar para que possa em seguida manifestar renúncia"2. Pela mesma lógica, a nomeação de inventariante para fins de levantamento de dados patrimoniais constitui ato oficioso e preparatório, o que não implica em aceitação definitiva da herança.
Esse entendimento encontra respaldo no projeto de reforma do CC. O anteprojeto prevê expressamente, em seu art. 1.805-A, § 2º, que "o requerimento de abertura do inventário, a simples manifestação nos autos e os atos de mera administração ou conservação dos bens hereditários, incluindo a ocupação, a habitação e proposição de medidas judiciais em defesa do patrimônio, praticados pelo eventual herdeiro, não implicam aceitação tácita da herança"3. Como bem observa Patrícia Novaes Calmon, essa disposição "protege o herdeiro de ser inadvertidamente vinculado à aceitação, limitando os efeitos de suas ações de mero zelo administrativo"4.
Seria salutar, contudo, que o projeto contemplasse expressamente a nomeação de inventariante para fins exclusivamente informativos. Uma sugestão de inclusão no § 2º do art. 1.805-A poderia ser: "incluindo-se, no âmbito extrajudicial, a nomeação de inventariante quando destinada exclusivamente à obtenção de informações sobre o acervo hereditário, sem poderes de disposição ou movimentação patrimonial".
Essa previsão conferiria segurança jurídica tanto aos tabeliães quanto aos herdeiros, impedindo que interpretações restritivas transformem ato meramente investigativo em aceitação irretratável. A aprovação desse dispositivo, com essa complementação, pacificaria definitivamente a controvérsia e alinharia a legislação à realidade prática dos tabelionatos e à necessidade de proteção do herdeiro que busca apenas informações antes de decidir.
O STJ, no julgamento do REsp 1.622.331/SP, firmou entendimento de que o pedido de abertura de inventário, o arrolamento de bens e a constituição de advogado implicam aceitação tácita da herança, sendo irretratável posterior renúncia5. No entanto, essa orientação refere-se a hipótese específica em que os herdeiros ajuizaram conjuntamente ação judicial de inventário e constituíram advogado para representá-los na partilha dos bens conhecidos e, depois, com o falecimento de um dos herdeiros, o único herdeiro restante quis renunciar em nome do outro (genitor) à herança da irmã. Demonstraram no caso, portanto, inequívoca vontade de apropriar-se da herança e proceder à sua partilha.
Poder-se-ia argumentar que permitir a renúncia após investigação abriria margem para evasão fiscal. Esse argumento, contudo, não se sustenta. A renúncia é direito potestativo do herdeiro, e os bens não desaparecem: são transmitidos aos herdeiros subsequentes ou, na falta, ao Estado, havendo sempre incidência tributária. Não há prejuízo ao erário.
Nesse aspecto, é mister observar que muitas das escrituras de nomeação de inventariante trazem por texto padrão a aceitação pura e simples do encargo, sem atentar para a possível situação acima descrita. É para tal situação que relembramos a antiga doutrina da "aceitação sob benefício do inventário", não deixando que aquilo que não foi dito de forma expressa seja interpretado de forma contrária aos interesses dos herdeiros.
A nosso ver, até em razão da praxe notarial que raramente se socorre da referida cláusula, dever-se-ia entender, por tudo quanto foi dito, que o benefício estaria implícito. É óbvio que ninguém pode ser compelido pelas circunstâncias fáticas a aceitar herança que lhe prejudica. Porém, para se extirpar qualquer dúvida, e tendo em vista o poder do texto expresso, faz-se mister resgatar as palavras de ordem, incluindo em toda nomeação a condicionante, extirpando, assim, qualquer suposta aceitação total da herança, a qual somente será aceita ou não em momento posterior, quando se descobrir efetivamente o seu quantum, sendo a nomeação de inventariante tão somente apontamento do legitimado para obter as informações necessárias que, de outra forma, restariam albergadas em diversos deveres de sigilo que rondam, sobretudo, as informações bancárias.
Nesse sentido, e à luz da necessidade de proteção ao herdeiro, torna-se imprescindível a inclusão da seguinte cláusula: "O(A) inventariante ora nomeado(a) fica expressamente limitado(a) a obter informações sobre o patrimônio do(a) falecido(a) junto a instituições bancárias, seguradoras, cartórios e demais órgãos públicos e privados, ficando vedada qualquer movimentação, levantamento ou disposição de valores ou bens. Fica ainda ressalvado o direito de todos os herdeiros de renunciar à herança após o levantamento patrimonial, não implicando a presente nomeação em aceitação tácita da herança, nos termos dos arts. 1.804 e 1.805, § 1º, do CC."
Essa situação parece, contudo, conflitar com a natureza de "início de inventário" dado pelo ITCMD. Esse argumento, todavia, não colhe, tendo em vista que mesmo o ITCMD somente poderia recair sobre a eventual herança efetivamente recebida e, se por qualquer razão os bens não vierem a ser formalmente transmitidos, serão ao final arrecadados e transmitidos ao ente público, não havendo que se falar em ITCMD.
A nomeação de inventariante para fins informativos não pode representar uma armadilha ao herdeiro. O direito de conhecer antes de aceitar é elementar e não pode ser tolhido por interpretações que transformem ato preparatório em aceitação irretratável. A solução prática é simples: toda escritura de nomeação, quando feita com o fim de buscar informações, deve conter a cláusula expressa ressalvando o direito de renúncia após o levantamento dos dados patrimoniais. Não se trata de sofisticação jurídica desnecessária, mas de proteção básica aos interesses de quem busca apenas exercer o direito mais elementar de saber o que está recebendo antes de decidir se quer receber.
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1 Art. 794 do CC: "No seguro de vida ou de acidentes pessoais para o caso de morte, o capital estipulado não está sujeito às dívidas do segurado, nem se considera herança para todos os efeitos de direito".
2 BRANDÃO, Débora; ANTONINI, Mauro. Curso de Direito Civil: Direito de Família e das Sucessões. Coord. Alexandre de Mello Guerra. Vol. 4. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, Revista dos Tribunais, 2025, p. 578
3 PL 4/25
4 CALMON, Patrícia Novaes. O Novo Direito Sucessório. Indaiatuba: Editora Foco, 2025, p. 30.
5 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). REsp n. 1.622.331 - SP (2012/0179349-2), Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 2017. Disponível em: https://www.portaldori.com.br/wp-content/uploads/2017/03/ITA-25.pdf. Acesso em: 20 out. 2025.

