Símbolo e assinaturas eletrônicas: Atributos de integridade e autenticidade dos títulos inscritíveis - Parte I
segunda-feira, 8 de dezembro de 2025
Atualizado em 5 de dezembro de 2025 12:12
"Cada um de nós, portanto, é um símbolo complementar de um homem, porque cortado como os linguados, de um só em dois; e procura então cada um o seu próprio complemento" (Platão, O Banquete, 191d).
No desenvolvimento das instituições jurídicas, ressurgem, ao longo da história, expressões que se inter-relacionam e gravitam em torno do sistema notarial e registral: autenticidade, autoria, integridade, indelebilidade e validade de atos, títulos e instrumentos que acedem ao Registro de Imóveis.
Desde o sentido original da palavra "símbolo", passando por signo, téssera, tokens, instrumentos, fé pública e outras, descortina-se um admirável universo semântico que recobre, com significados próprios, expressões tradicionais correntes em nosso meio.
A lógica da autenticação - comprovação por aderência e complementaridade - reaparece, ao longo do tempo, sob distintas formas. Não se trata de cogitar uma simples continuidade histórica, mas de reconhecer padrões e estruturas que se renovam e, de certa forma, se regeneram no curso do tempo.
A história dos meios de autenticação revela um padrão constante: a verdade documental emerge sempre que duas partes complementares se reencontram - seja no symbolon grego, nas tésseras de hospitalidade, nas chartæ indentatæ medievais ou, hoje, nas assinaturas eletrônicas.
Compreender a lógica ancestral da autenticidade ajuda a explicar por que certos atos jurídicos exigem forma especial: dependem da recomposição verificável de elementos complementares. Essa exigência reaparece, no Brasil, nas normas sobre títulos eletrônicos.
Símbolo platônico
No grego clássico, symbolon ("símbolo") deriva de symbállein: literalmente, "lançar junto", "arremessar ao mesmo tempo", "com-jogar". Essa etimologia nos remete à ideia de equivalência e congruência, isto é, ao encontro de duas partes que, separadas no tempo, confirmam-se quando aproximadas.
Como atestam dicionários de referência, o sentido primevo de symbolon é justamente "sinal de reconhecimento, formado pelas duas metades de um objeto quebrado que se reaproximam" (BAILLY; LALANDE).
É no horizonte de descortino ontológico da humanidade que se deve compreender o sentido original de símbolo, tal como se dá no célebre Mito do Andrógino, relatado no Banquete, pela voz do imaginoso Aristófanes. Platão evoca o ser primordial cindido por Zeus e transformado em homem e mulher, dissolvendo a situação original de androgenia, com cada qual destinado a buscar a sua metade cindida. A metáfora platônica ressoa, de forma poderosa, o sentido original de symbolon: a metade que busca sua contraparte, para que o todo se recomponha ontologicamente.
No contexto da cultura grega, o symbolon designava originalmente um objeto físico - ossos (ostéon), fragmentos de cerâmica (óstraka), peças de bronze ou de argila - destinado a produzir a prova material de identidade e integridade nos acordos ou confirmação de hospitalidade ritualizada (xenia). A forma arquetípica grega (e depois latina) consistia em um objeto partido ao meio, distribuído entre duas pessoas, de modo que o encaixe posterior das partes permitisse reconhecer e autenticar um vínculo previamente estabelecido.
As fontes literárias e arqueológicas da Grécia Clássica confirmam o uso dos símbolos partidos: tokens cindidos cuja recomposição física estabelecia e comprovava a autenticidade de uma dada relação, mesmo entre indivíduos que jamais se haviam encontrado anteriormente - até mesmo de geração em geração. O símbolo era algo em si mesmo acabado, autossuficiente, como os autores o compreendiam antes das considerações semiológicas de PEIRCE acerca dos tipos de signos - ícone, índice, símbolo. (ABBAGNANO).
Mais tarde, sobretudo no contexto administrativo ateniense, encontramos formas evoluídas do mesmo princípio - como os jigsaw clay tokens, como hoje são chamados por alguns historiadores (KIERSTEAD; GKIKAKI). Eram artefatos que formavam quebra-cabeças de argila, pequenos tabletes retangulares, moldados de modo inteiriço e posteriormente cindidos ao meio por um corte irregular em forma de quebra-cabeça (jigsaw cut), de modo que apenas as metades correspondentes voltariam a se encaixar. Esse corte dividia fisicamente inscrições referentes às tribos, aos demes (subdivisões administrativas e territoriais da cidade-estado de Atenas) e aos cargos, garantindo a identidade e autenticidade.
A mesma estruturação verificamos nas tésseras de hospitalidade (tessera hospitalis), que amigos, parentes ou anfitriões partiam o objeto em duas partes, cada qual conservando a sua metade correspondente, podendo, assim, invocar os deveres de hospitalidade mútua. Embora a tessera hospitalis romana e celtibérica, na maioria dos casos, fosse uma peça inteira, destinada a materializar o pacto de hospitalidade, algumas raras tesserae - especialmente as dotadas de encaixe lateral (machiembrado) - reproduzem, de certo modo, a lógica do symbolon grego, permitindo a recomposição física de duas partes. É nessa tradição, mais remota, que se reconhece a estrutura arquetípica da autenticação por complementaridade.
Na Alta Idade Média, encontramos exemplos de atos notariais indentados - técnica então conhecida como indentaduræ, chartæ indentatæ, indentatæ literæ, scripta indentatæ etc. Procedia-se da seguinte maneira: os instrumentos eram lavrados na mesma pele de pergaminho, que era então cindida e entregue aos contratantes para que, a todo tempo, unidos se pudesse confirmar a autenticidade do documento pela imbricação perfeita dos retalhos (JACOMINO).
É dessa espécie as chamadas chartas pariclas, instrumentos lavrados em dois ou mais exemplares a fim de se entregar aos contratantes suas respectivas partes. São os chamados instrumentos semelháveis no Regimento dos Tabeliães de 15 de janeiro de 1305, de D. Dinis (Art. 18). Lavravam-se os atos na mesma pele de pergaminho e se dividiam para que "a todo tempo, unidos ambos, mostrassem melhor a sua genuidade" (RIBEIRO). Eram os antecedentes dos selos e do signum tabeliônico.
DU CANJE recolhe exemplos medievais indicando que chirographus e syngraphus muitas vezes são tomados indiferentemente, porém distinguiam-se segundo suas propriedades. Chirographus é o documento escrito à mão, isto é, lavrado pela própria mão do devedor e entregue ao credor (daí credor quirografário). Syngraphus chama-se a conscriptio, isto é, a escritura de dois ao mesmo tempo.
Antigamente o devedor e o credor escreviam juntos numa tábua ou carta: o nome do credor, o nome do devedor, as testemunhas, a soma do dinheiro, e, ao meio, esta palavra - SYNGRAPHUS, em letras capitais, e pelo meio era dividido. Se o credor exigisse mais do que o devedor devia, ou se o devedor negasse o depósito, cada qual trazia a parte que possuía, para que ambas as partes concordassem; e isto propriamente é o syngraphus. (DU CANJE, verbete Chirographi).
Assinaturas eletrônicas e o padrão RSA
A mesma lógica estrutural - a recomposição de partes complementares para a verificação de um vínculo - reaparece, em chave matemática, na criptografia assimétrica contemporânea. Os efeitos jurídicos de autenticidade, integridade e autoria acham-se na dependência da congruência entre duas faces interrelacionadas - as chaves pública e privada, produtos da criptografia assimétrica (RSA, por exemplo).
A modernidade tecnológica não prescinde daquela estrutura arquetípica representada pelo símbolo, tésseras e a charta paricla. A verdade documental, em termos presuntivos de autoria, autenticidade e integridade, se revela quando as duas partes se reencontram, confirmando o reconhecimento.
Este velho problema - como obter certeza e tornar comprovável uma dada relação entre partes - reaparece, em clave jurídica, na formação dos títulos que se pretendem ingressar no fólio real. A busca da garantia de autenticidade, autoria e integridade dos títulos admitidos a registro é uma evidente necessidade social que persiste nos dias que correm.
Nesse contexto, a corrosão dos sentidos próprios e as distorções de certas expressões jurídicas, tão caras ao Direito - como "documento" e "instrumento" - nos conduzem ao apagamento progressivo das razões ensejadoras dos processos formais que nos brindam a prova pré-constituída e a presunção de autenticidade e autoria. Assim, os instrumentos, que reclamam a virtude autenticadora do notário para acederem ao registro, cedem passo a simples documentos - mais recentemente a impulsos eletrônicos (extratos) -, destituídos de força orgânica para a realização ou exequibilidade de um ato jurídico (AMARAL SANTOS).
Os instrumentos privados são a pedra de tropeço do sistema. Do latim instrumentum, originalmente meios, aparatos, ferramentas, cuja expressão remonta a in-struo, com o sentido de erigir, construir internamente etc. No campo do Direito, são atos formais performativos que produzem efeitos jurídicos presuntivos graças à fé pública que os conforma (com o reconhecimento de firmas). A vontade das partes, identidade, unidas à sua veste formal, cerzida pela fé pública, torna esta espécie de documento privado apto para ingressar no registro de imóveis (inc. II do art. 221 da LRP).
A atuação autenticadora do notário ou a força autenticadora oriunda da autoridade estatal (no caso das assinaturas eletrônicas qualificadas da ICP-Brasil) é fundamental para garantir um grau satisfatório de segurança jurídica preventiva nas transações eletrônicas que acedem aos registros públicos.
Em última análise, o núcleo do problema está na garantia de autenticidade, autoria e integridade dos títulos que acedem ao registro de imóveis - à parte a congruência com a ordem legal e o historial tabular revelado mediante a apuração e definição da situação jurídica dos bens e direitos, até aqui a cargo do jurista encarregado do registro, o oficial do registro imobiliário.
As fraudes independem dos meios
A fraude documental é recorrente no tempo e parece ter-se magnificado nos meios eletrônicos. Defrontamo-nos com toda forma de adulteração, sejam eles títulos e documentos, cartáceos ou digitais. As varas de registro pública da capital de São Paulo colecionam várias decisões a respeito de fraudes documentais.
Voltemos aos clássicos. Plauto nos dá um exemplo de falsidade na antiguidade: nas Bacchides (vv. 258-268 na edição de RILEY), o escravo Crísalo relata ao velho Nicóbulo que seu filho Mnesilogo teria sido injustamente acusado, em Éfeso, de ter produzido um symbolum falsum.
A narrativa de Crísalo detalha a controvérsia, afirmando que o devedor, ao ser confrontado com o symbolum - entendido como um objeto que serve de marca ou prova de um acordo previamente estabelecido entre as partes - negou sua validade, alegando que ele era falso, e que não era um signo verdadeiro - non verum signum (PLAUTO, Bacchides, 264-266; RILEY, nota 2, v. 263). Ainda que, no enredo, a narrativa seja uma artimanha do escravo, o emprego da expressão symbolum falsum revela que o público romano conhecia a categoria jurídica da falsificação de tésseras, e que tais instrumentos eram suscetíveis de fraude material.
O reconhecimento da falsidade dependia da incongruência e incompatibilidade entre as partes do símbolo, o que reforça o princípio estrutural segundo o qual apenas a recomposição entre as frações verdadeiras torna possível a autenticação.
As formas históricas de autenticação revelam uma constante: a necessidade de recomposição verificável de elementos complementares e integrativos. É justamente essa constante que reaparece, em chave normativa, na exigência contemporânea que exige forma especial dotada de força orgânica (instrumentum) para formação dos títulos imobiliários.
Nos meios eletrônicos, essa incongruência emerge da ruptura entre o conteúdo e seus metadados de integridade - hash, chaves e cadeias de certificação.
No estudo seguinte, analisaremos como o modelo arquetípico da recomposição se projetou nas normas brasileiras de assinaturas eletrônicas e como dele derivam as garantias de autenticidade, autoria e integridade exigidas para o ingresso dos títulos no fólio real.
____________________
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
BAILLY, M. A. Dictionnaire Grec-Français. 11? éd. Paris : L ; Hachette, 1894.
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. Petrópolis: Vozes, 1986.
DU CANGE, Glossarium mediae et infimae latinitatis, ed. L. Favre, t. II, Niort, 1883.
GKIKAKI, M. E. (Ed.). Tokens in Classical Athens and Beyond. Liverpool: Liverpool University Press, 2023.
JACOMINO, S. Vésperas do notariado brasileiro. Um passeio histórico às fontes medievais. São Paulo: IRIB, RDI 53, jul./dez. 2002, pp. 184-232.
LALANDE, André. Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
PLATÃO. Symposium, 191d. (trad. José Cavalcante de Souza).
PLAUTO. Bacchides. In: RILEY, Henry Thomas (Trad.). The Comedies of Plautus: Literally Translated into English Prose, with Notes. Vol. 1. London: George Bell & Sons, 1880, p. 287 (referência aos vv. 264-266 e nota a v. 263). Tb. VITAÇLI, Guido (trad.); Bologna: Nicola Zanichelli, 1949.
RIBEIRO, João Pedro. Dissertações chronologicas e criticas. 2a ed. Lisboa: Academia Real das Sciencias de Lisboa, 1857, t. III, p. II, dissertação VIII, p. 5.
SANTOS, Moacyr Amaral. Prova Judiciária no Cível e Comercial. Vol. IV, 3ª. Ed. São Paulo: Max Limonad, 1966, p. 42.

