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"Translúcida" e algumas reflexões sobre a responsabilidade dos privilegiados na construção de uma sociedade com mais Justiça epistêmica

terça-feira, 27 de junho de 2023

Atualizado às 10:26

(...) Não sou um homem das palavras. Tenho dificuldade de expressar em um texto escrito o que penso, sinto e vejo. Tarde descobri que poderia fazer isso por meio de imagens. Minha máquina passou a ser minha companheira de viagens, passeios, caminhadas e trabalho. Eu e ela. Quase sempre juntos.  (Sebastião Reis Jr., p. 9)

O Ministro Sebastião Reis Jr. lançou "Translúcida" na última quinta-feira (22/06) no pátio do STJ. Como se pode imaginar pelo trecho que escolhi para epígrafe do artigo dessa terça-feira, a obra parte de uma série de fotografias que o Min. Sebastião tirou das internas LGBTQIA+ do Centro de Detenção Pinheiros II, em São Paulo. Sebastião cuidou de fazer inúmeros retratos daquelas mulheres tão convenientemente ignoradas por nossa sociedade machista e patriarcal. Elas tiveram as suas existências e dramas sensivelmente captados pelas lentes de Sebastião e trazidos às páginas que pude ler nesse último fim de semana.

O convite do Min. Sebastião foi para que aquelas vidas fossem vistas, contadas, narradas. Algo que poderia parecer trivial, mas que em absoluto não é: operadores jurídicos, médicos, políticos, jornalistas e integrantes de outras carreiras foram convocados a ver e fazer ver a humanidade daquelas mulheres. Isso foi feito em cerca de trinta e seis capítulos, que se dividem entre artigos, desenhos, poesias. A Limite Penal de hoje será sobre esse esforço de ecoar as vozes que sistematicamente são sufocadas por nossa sociedade e pelo nosso sistema de justiça.

A desembargadora Simone Schreiber escreveu sobre a Leia. Leia é uma mulher forte, que se forjou entre o medo de não ser aceita e as poucas oportunidades da vida. Cumpre pena por uma tentativa de furto com invasão e, muito estudiosa que é, aprendeu o que ela chama de "devidos direitos" para atuar por ela e por suas colegas. A pedidos das outras presas, escreve para o juiz se execução e pede pelas melhorias que sabe serem direito delas. Esse é só um dos traços da Leia que chegamos a conhecer através do olhar de Simone. Um parágrafo para ilustrá-la:

Leia é muito articulada, escreve muito bem, compõe poesias e cânticos, recita de cor o caput do art. 5º da Constituição Federal, conhece a Lei de Execuções Penais (uma lei linda no papel mas que não é cumprida) e o Código Penal. A pedido de outros presos e presas, faz recursos para os poderes públicos em favor dos devidos direitos. Impetra pedidos para o Supremo, defensorias públicas, DPU, para juízes de execução criminal e para os tribunais de justiça. (...) Relata que recentemente, graças a um pedido seu dirigido ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais, um preso foi solto (p. 75).

Leia tem uma mãe amorosa que espera por ela aqui fora, Leia estuda - inclusive fez um curso que o IDDD ofereceu às internas - , e não vê a hora de ganhar as ruas para viver o que a liberdade tem de bom a lhe oferecer.

O advogado Renato Stanziola Vieira dedicou-se a Jennifer. "Você consegue ver meus olhos de liberdade?". Assim tem início o conto que nos apresenta Jennifer. Fica claro que ela quer ser conhecida e apreendida como uma mulher livre e que ainda tem muito para viver. É vaidosa, tem orgulho do seu rabo-de-cavalo. Mas Jennifer certamente traz algo incômodo àqueles que insistem em continuar a ver o Direito como se fosse neutro. É que a vida dela não foi igual à vida daqueles que a acusam e julgam:

Não vivo remoendo o passado, de ter entrado no supermercado com capuz, e ali não importava meu nome, não importava o cheiro de nada, não importava meu ódio. Não me arrependo de não ter separado, algumas vezes, o que não pode por definição ser meu, daquilo que eu sonhava em ter. (...) E sabe por que não me arrependo? Porque em casa, desde cedo, aprendi que é tudo pegar ou não pegar, desde espaço na cama, chinelo no chão, pão velho. Sobra do café frio na xícara de plástico às cinco da madrugada, antes da luz. Roupa velha, achada. Pegar pra ver (p. 42).

Jennifer disputou com seus irmãos bem mais do que o amor de seus pais. Não teve família estruturada, não teve comida na mesa, não teve quem fizesse por ela quando era pequena e desamparada. Reproduziu nas ruas a única dinâmica que a vida lhe ensinou. As palavras que Renato empresta para Jennifer em suas páginas dão conta de retratar uma mulher de apenas 28 anos que já teve de se reconstruir, de revisitar seu passado, através das recordações sobre a mãe, sobre o irmão, e assim, reerguer-se para dias melhores.

As imagens e as narrativas de Translúcida simbolizam uma reunião de pessoas que integram grupos muito diferentes na sociedade brasileira. A partir de uma preocupação com as chamadas injustiças epistêmicas, enquanto os autores dos capítulos do livro costumam ter seus relatos recebidos com credibilidade, as mulheres sobre as quais escrevem foram sistematicamente descredibilizadas por suas famílias, por seus colegas de escola, por seus parceiros, por seus chefes, pelo sistema de justiça. Mais do que isso: são pessoas que foram se percebendo diferentes de como se supunha deveriam ser, que não tiveram outro caminho que não fosse viver sob a constante ameaça de morte - segundo o "Dossiê Assassinatos e Violências Contra Travestis e Transexuais Brasileiras em 2021"1, lançado pela ANTRA em 2022, a expectativa de vida de uma pessoa trans no Brasil é de 35 anos. O livre reúne quem tem voz, projeção profissional - e até reputação ilibada - e quem luta diariamente pelo simples reconhecimento de sua humanidade.

O projeto realizado pelo Min. Sebastião parece encaixar-se às reflexões do Prof. José Medina sobre as injustiças epistêmicas. Tal como Jennifer Lackey, José Medina propõe discussões que ampliam o conceito de injustiça epistêmica originalmente pensado por Miranda Fricker. E, no caso de Medina, o professor de filosofia da Northwestern University joga luz sobre a responsabilidade ética daqueles que, em sociedades marcadamente opressoras - como é o caso da sociedade norte-americana e também da sociedade brasileira - têm voz e vez. Em cenários de injustiça epistêmica contra grupos sociais vulnerabilizados, há um papel que deve ser desempenhado pelos mais privilegiados. Em "The epistemology of resistance" (2013), Medina argumenta que as pessoas cuja condição de sujeito epistêmico não é desafiada - os knowers - têm responsabilidade com o desenvolvimento de mais justiça epistêmica, pois tem o dever de corrigir seus pontos cegos e suas insensibilidades sociais relativas à raça e ao (hetero)sexismo" (p. 25).

Medina defende que membros de grupos privilegiados têm a responsabilidade de sair de suas zonas de conforto e buscar pelo que chama de "fricção epistêmica" (26). "Fricção" faz referência a um contato que não necessariamente é confortável em um primeiro momento; "epistêmica", por sua vez, qualifica esse contato desconfortável: aprende-se em contato com o outro; aprende-se a partir do que a experiência do outro tem a nos oferecer.

Medina também se localiza como um autor que, no campo da epistemologia social, trabalha com a teoria das virtudes. Neste sentido, enquanto elenca como virtude a característica de se ter uma cabeça aberta (open-mindness), por oposição, indica como vício, ser "cabeça fechada" (closed-mindiness) - isto é, trata-se de uma característica desvantajosa para quem se interesse seriamente em conhecer a realidade.

Aqueles que ocupam posições de privilégio são frequentemente incentivados a esconder as suas cabeças na areia, como avestruz, com respeito a alguns aspectos, pressuposições ou consequências da opressão que sustenta os seus privilégios. Eles precisam ignorar certas realidades sociais. Eles precisam viver sem ter certos conhecimentos em suas mentes. Eles precisam aceitar eles mesmos enquanto cegos para que então eles não levem em consideração outras perspectivas. Essa forma de autoproteção cognitiva que constitui uma pessoa cabeça fechada é tipicamente não deliberada e consciente. (...) Trata-se de uma estratégia de se evitar certos conhecimentos enquanto um mecanismo inconsciente de defesa. Não é resultado de uma decisão ou esforço consciente de ignorar, mas de um processo de socialização que leva à insensibilidade a certas coisas e imunidade a certas considerações. (pp. 35-36, trad. livre)

Pois bem. Embora o olhar de Medina seja voltado primordialmente à realidade norte-americana, as semelhanças com a nossa realidade são evidentes. Diferente do que possa a uma primeira vista parecer, Medina não é condescendente em face dos privilegiados que apresentam uma postura de autoproteção cognitiva. Daí a responsabilidade ética de se colocar em fricção epistêmica. A empatia, neste sentido, penso eu, não é uma característica com a qual nascemos ou não, mas algo que podemos desenvolver ao longo de nossa vida. E se podemos, devemos.

A partir dessa linha de raciocínio, Medina trabalha com a ideia de "ativismo epistêmico", para destacar a importância das relações entre oprimidos e aliados. Mais precisamente, em "Epistemic activism and the politics of credibility: testimonial injustice inside/outside a North Caroline jail" (2021), Medina e Whitt centram atenção na realidade dos presos provisórios do Estado da Carolina do Norte, contando aos leitores as dificuldades que aquelas pessoas têm para terem as suas necessidades mais básicas atendidas. Seus reclamos, então, passaram a ser ecoados através da atuação da Inside-Outside Aliance - a IOA -, organização que foi construída para fazer uma ponte entre "o mundo de dentro" e  "o mundo de fora".

No cenário brasileiro, algo semelhante é realizado por organizações como o Instituto de Defesa do Direito de Defesa, a Conectas, a própria ANTRA, antes já mencionada, entre outras. E no aprofundamento da necessária e urgente criação de pontes entre "o mundo de dentro" e "o mundo de fora", também é fundamental poder contar com iniciativas como a publicação de Translúcida. Os que estamos aqui fora agora nos sentimos menos distantes das que estão lá dentro. Parabéns e obrigada a todos/as envolvidos/as.

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1 Disponível aqui.