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De Ferrajoli a Oxóssi: o que se espera de uma reforma penal antirracista?

segunda-feira, 29 de março de 2021

Atualizado às 07:20

Na cultura Iorubá que chegou ao Brasil por força de seus povos sequestrados da África, encontramos a figura de Oxóssi, o caçador de uma só flecha1. Diante de um reino assombrado por um pássaro gigante, o Rei convoca caçadores com 20, 40, 50 flechas, para matar o pássaro e livrar o povo daquele pavor. No entanto, todos eles falharam. Oxotokanxoxô, caçador de uma só flecha, se apresentou para cumprir a missão e, com um único e certeiro disparo, atingiu o peito do pássaro que tombou, para a felicidade do reino e exaltação de Oxóssi. 

Esse mito africano nos permite pensar as políticas para o sistema de justiça criminal. A violência urbana, o racismo, a criminalidade são como um pássaro gigante que atormenta o povo. Este, oprimido pelo medo, recorre a vários caçadores, aumentando exponencialmente o poder de fogo (20, 40, 50 flechas), através de a exacerbação de penas e novos tipos penais, sempre na vertente da expansão do poder punitivo/destrutivo do Estado.

Oxóssi, com sua única flecha, nos direciona a pensar o sistema penal a partir de duas perspectivas. Considerando ter apenas uma flecha, é preciso ser certeiro. Sob a mesma ótica, considerando ter apenas uma flecha, é preciso escolher o alvo.

Pensando o sistema penal, tradicionalmente, há uma tendência punitivista, uma aposta desmedida na pena como forma de controle social. Esta fantasia é decorrência do capitalismo que, ávido pelo domínio e patrulhamento dos corpos para o trabalho, e a partir do neoliberalismo e do excedente de mão de obra, assume outras roupagens: o controle dos indesejados e a necropolítica.

O Direito Penal tem na sua genética a função de oprimir vulneráveis e jamais surgiu com objetivo de emancipar pessoas. Ademais, é marcado pela seletividade. A decisão soberana define quais sujeitos serão capturados pelo sistema penal. No Brasil, durante o Império, destacam-se as pessoas escravizadas. No início da República, os negros recém-libertos pela (pseudo)abolição - transformados em criminosos vadios, capoeiras e curandeiros - eram o alvo. Na contemporaneidade, os jovens negros periféricos são capturados pelo sistema penal, notadamente por meio da criminalização do tráfico, e da criminalização secundária, por agências estatais (Polícia, Ministério Público e Judiciário) que vêm no corpo negro a cor do crime.

No campo do Direito, da Criminologia Crítica e também da Filosofia do Direito, autores como Cesar Beccarias, Carrara, Baratta, Cirino, Ferrajoli e tantos outros apresentam reflexões sobre a ineficiência da expansão do Direito Penal, sua seletividade e raízes racistas. Por outro lado, notamos ainda certa aposta no Direito Penal por parte dos movimentos sociais como forma de proteção de grupos vulnerabilizados e oprimidos.

Vale lembrar que, à luz do Código Criminal do Império (1830), os escravizados transitavam, convenientemente, entre sujeitos e objetos de direitos. Para fins de punição por meio do sistema penal, eram considerados sujeitos; para fins de proteção estatal, eram reduzidos a meros objetos.

Embora essa lógica tenha sido formalmente alterada a partir do processo de criminalização do racismo, nota-se que não há uma mudança substancial, uma vez que as agências que promovem a criminalização secundária (Polícia, Ministério Público e Judiciário) não convertem a criminalização primária do racismo e suas várias formas em efetiva penalização. O número de condenações por racismo e injúria racial no Brasil é inexpressivo. Não que sejamos entusiastas do encarceramento, mas o argumento é para demonstrar a disfunção do sistema que funciona muito bem para capturar negros e negras, mas que não é capaz de capturar racistas.

Com efeito, temos dois problemas e uma só flecha. Para onde canalizar nossa energia? Empenhando esforços para a punição de atos individuais de racismo ou na contenção do encarceramento em massa de negros e negras no Brasil? Essa é a principal questão que se coloca.

O encarceramento no Brasil é alarmante. Os cerca de 800 mil presos são esmagadoramente negros e pobres. O sistema penal, através de leis penais e processuais penais que alimentam e movimentam o sistema de justiça, é uma máquina de moer a carne negra. Os corpos negros saíram dos mercados e das senzalas para ocuparem as cadeias e os presídios. Se considerarmos que, como Oxóssi, temos apenas uma flecha, precisamos ser certeiros e mirar naquilo que, em larga escala, nos elimina: o extermínio e o encarceramento!

Afirmar que a prioridade não é punir os racistas e sim impedir o encarceramento e extermínio de negros no Brasil não significa que o racismo não tenha dignidade penal e não deva ser punido a partir da perspectiva de um Direito Penal mínimo.

A doutrina abalizada vem reconhecendo a fragmentariedade do Direito Penal. Para Figueiredo Dias, a função do Direito Penal radica na proteção das condições indispensáveis da vida comunitária, só devendo incidir sobre os comportamentos ilícitos que sejam dignos de uma sanção de natureza criminal2. Nilo Batista3 dá conta de que Binding foi o primeiro a registrar, em seu Tratado de Direito Penal, de 1896, o caráter fragmentário do Direito Penal que deve ser pautado, então, por uma intervenção mínima, como ultima ratio.

A partir do momento em que adotamos uma perspectiva garantista e não aderimos ao abolicionismo penal, é possível afirmar como legítima a criminalização e punição de racismo.

No entanto, o que se propõe aqui é que uma reforma antirracista na legislação criminal há de ter como foco a seletividade racial do sistema penal, envolvendo especialmente a questão do extermínio e do encarceramento em massa de pessoas negras.

Não se olvida que a legislação que criminaliza práticas racistas necessita ser revisitada e repensada para seu aperfeiçoamento. Mas tendo apenas uma flecha, é preciso escolher o que é prioritário no momento.

Lançando os olhos sobre Projetos de Lei na Câmara dos Deputados voltados para o combate ao racismo, notamos acentuada prevalência de uma perspectiva antirracista limitada à punição da prática do racismo. São raros os projetos que visam a contenção do poder punitivo. No Brasil, não há leis que se debrucem sobre a abordagem policial, as intervenções e operações policiais nas comunidades, o reconhecimento fotográfico e inúmeros outros instrumentos autoritários de que o Estado lança mão para encarcerar e exterminar negros no Brasil.

Assim, a ideia aqui proposta é de que pensemos mais na liberdade e dignidade dos negros do que na punição de criminosos racistas. É nessa perspectiva que articulamos uma estratégia antirracista ancorada nas concepções teóricas ligadas ao garantismo e à Criminologia Crítica.

Tem-se, portanto, o garantismo para definir o conjunto das limitações e obrigações impostas a todos os poderes - públicos e privados, políticos (ou de maioria) e econômicos (ou do mercado), em nível nacional e internacional -, com vista a tutelar, por meio da sujeição à lei e, especificamente, aos direitos fundamentais por ela estabelecidos, tanto a esfera privada contra os poderes públicos, como a esfera pública contra os poderes privados4.

O garantismo jurídico está centrado na tradição iluminista, articulando mecanismos capazes de limitar o poder do Estado soberano, que sofre as influências dos acontecimentos históricos, notadamente, o "levante neoliberal".

Em síntese, a adoção da teoria garantista pressupõe o acolhimento de alguns postulados teóricos e principiológicos, a saber: a) o compromisso com a tutela da liberdade diante do exercício arbitrário do poder; b) a adesão a um Direito Penal mínimo; e c) o compromisso com um processo penal que tem por imprescindível a separação da jurisdição da acusação, o respeito ao ônus da prova, que é da acusação, e a imprescindibilidade da participação também da defesa na construção da decisão.

Nessa linha de entendimento, adotar um Direito Penal garantista significa defender um Direito Penal mínimo, fundado na legalidade estrita e na renúncia a Direito Penal do autor e a qualquer forma de expansão punitiva.

Desse modo, se temos apenas uma flecha, que esta seja para libertar negros e não para punir racistas. Esta, no entanto, é apenas uma etapa importante de um projeto grandioso de se viver em um mundo livre do peso da raça5 (Mbembe).   

__________

1 SOUZA, João Marcos. OXÓSSI: O HERÓI DE UMA FLECHA SÓ. Revista Mosaico, v. 13, p. 57-63, 2020.

2 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direitos Penal Parte Geral Tomo I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 16.

3 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, s/d, p. 84-90.

4 FERRAJOLI, Luigi Garantias. In Revista do Ministério Público, ano 22º, Janeiro-março, 2001, nº 85, p. 8-9.

5 MBEMBE, Achille. A crítica da razão negra. Lisboa: Antígona, 2017.