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Vacina: Uma questão de acesso a saúde, direitos humanos e políticas públicas

terça-feira, 25 de maio de 2021

Atualizado às 09:01

O contexto da pandemia declarada pela OMS em março de 2020, trouxe para a cotidiano mundial emoções, tensões e conflitos muito similares que se vive em um contexto de guerra. Em verdade, todos estamos travando uma verdadeira guerra para a erradicação do vírus SARS-COV-2 e suas mazelas decorrentes. Em tempos como estes, as balizas dos Direitos Humanos devem ser relembradas, de modo que valores universais como a dignidade da pessoa humana, direito a saúde, direito a vida e liberdade devem nortear as decisões públicas, bem como a adoção de políticas públicas, as quais devem ser sempre inclusivas e ter como foco a preservação da vida e proteção das camadas sociais vulnerabilizadas.

Urge, nesses tempos, a priorização de verbas públicas para o fortalecimento no nosso Sistema Público De Saúde - SUS, com o fortalecimento de hospitais, fornecimento de medicamentos, ampliação de leitos, campanhas de fomento a prevenção de contágio do vírus e, claro, a vacina! A tão sonhada vacina! Mas como distribuir a vacina de maneira eficiente e igualitária a uma população tão multifacetada como é a brasileira, sem incorrer em violações de direitos?

Uma bússola de caráter mundial, trazida pela OMS, é o modelo de valores do SAGE1 - Grupo Consultivo Estratégico de Especialistas em Imunização (em inglês, Strategic Advisor Group of Experts on Immunization, ou SAGE), o qual fornece orientações globais para alocação de vacinas contra a Covid-19 entre os países, com orientações para o estabelecimento de diretrizes para a  priorização de grupos para vacinação dentro dos países em caso de oferta limitada, como é a realidade que enfrentam  a maioria dos países do mundo, inclusive o Brasil.

O SAGE (Strategic Advisory Group of Experts-OMS)  informa que as vacinas contra a Covid-19 devem ser um bem público global, de modo que  o objetivo geral é de que as vacinas contra a Covid-19 possam contribuir significativamente para a proteção equitativa e promoção do bem-estar humano entre todas as pessoas do mundo.

Este modelo, o qual possui uma estrutura principiológica voltada para os direitos humanos e proteção dos vulneráveis, tem por finalidade ser fonte de consulta para os elaboradores de políticas públicas e assessores especializados nos âmbitos global, regional e nacional nas decisões sobre alocação e priorização de vacinas contra a Covid-19.

O documento também propõe ser útil para grupos comunitários e de defesa de direitos, público em geral, profissionais de saúde e outras organizações da sociedade civil, que contribuam com decisões de como a oferta limitada de vacinas contra a Covid-19 deve ser empregada para maximização do respectivo impacto. O Nosso Plano Nacional de Operacionalização da vacinação contra a Covid-19, possui como um dos fundamentos esse modelo de valores.2

Entre os princípios elencados neste documento estão: o bem-estar humano, respeito igualitário, equidade global, equidade nacional e reciprocidade.

Por bem estar humano, entende-se que "(...)os países devem, na administração do estoque de vacinas, proteger e promover o bem-estar humano, incluindo saúde, segurança social e econômica, direitos humanos e liberdades civis, além do desenvolvimento infantil".

Já o princípio do respeito igualitário informa que se deve tratar os interesses de todos os indivíduos e grupos com a mesma consideração, à medida que decisões de alocação e priorização sejam tomadas e implementadas com o oferecimento de uma oportunidade real de vacinação a todos os indivíduos e grupos que se qualificam segundo os critérios de prioridade.

Por equidade global, entende-se que se deve garantir a equidade global em relação ao acesso às vacinas entre os países, sobretudo os países de menor renda econômica e de baixo desenvolvimento.

Importante, ainda, asseverar a existência do princípio da equidade nacional que deve assegurar que a priorização das vacinas nos países leve em conta as vulnerabilidades, riscos e necessidades dos grupos que, devido a fatores sociais, geográficos ou biomédicos de base, possam enfrentar prejuízos maiores da pandemia de Covid-19.

Ainda nos termos deste documento, por reciprocidade, entende-se que o gestor da política pública quando do estabelecimento dos grupos prioritários, deve a honrar obrigações de reciprocidade com indivíduos e grupos dentro dos países para os quais riscos e prejuízos adicionais tenham sido criados pela resposta à Covid, em benefício da sociedade, como Profissionais de Saúde, Policiais, Professores, Caminhoneiros, etc.

Legitimidade, por sua vez, implica que as decisões tomadas por estes gestores para a priorização de vacinas devem usar métodos transparentes, baseados em valores compartilhados por evidências científicas disponíveis, e na representação e contribuição adequadas das partes afetadas, o que significa que deve haver o diálogo com a Sociedade Civil sobre este tema, o que poderia ser feito através de instrumentos democráticos, a exemplo de uma audiência, ou consulta pública. Não temos notícias deste tipo de medida, de maneira previa a elaboração do PNO, aqui no Brasil.

A intenção deste princípio da legitimidade é adotar estratégias  que melhorem a percepção e a compreensão do público sobre o desenvolvimento de vacinas e os processos de priorização. Exemplos dessas estratégias incluem: comunicações cultural e linguisticamente acessíveis, disponibilizadas gratuitamente sobre a vacinação contra a Covid-19;  recrutamento de líderes comunitários para melhorar a conscientização e a compreensão dessas comunicações; e oitiva das  partes interessadas e afetadas na tomada de decisões.

Por grupos prioritários, ainda segundo o modelo de valores do SAGE, entende-se por aqueles grupos sociodemográficos com risco significativamente maior de doença grave ou morte, devendo, no entendo, ser efetuado o recorte relacionado a étnia, raça,  gênero, religião e minorias sexuais desfavorecidas ou perseguidas; as pessoas com deficiências; pessoas que vivem em extrema pobreza, os sem-teto e aqueles que vivem em assentamentos informais ou favelas urbanas; trabalhadores migrantes de baixa renda; refugiados, pessoas deslocadas internamente, requerentes de asilo, populações em ambientes de conflito ou afetadas por emergências humanitárias, migrantes vulneráveis em situações irregulares; populações nômades; e grupos populacionais de difícil acesso, como aqueles em áreas rurais e remotas.

O referido documento informa, ainda, que outros grupos, no entanto, estão enfrentando prejuízos desproporcionalmente maiores de saúde e em outras áreas durante a pandemia, devido a fatores sociais que talvez sejam injustos. Às vezes, mas nem sempre, o risco elevado nesses grupos é mediado por uma alta incidência de comorbidades, que guardam relação causal com as condições sociais em que vivem, o que acaba agravando ainda mais essa carga desproporcional.

Embora haja evidências de que o risco de doença grave e morte é maior em homens do que em mulheres, particularmente em faixas etárias mais avançadas, essa diferença de risco diminui quando as comorbidades e outros fatores são levados em consideração. Em muitos contextos, as mulheres têm a responsabilidade direta de cuidar dos idosos e de enfermos na família,  além de serem maioria entre os trabalhadores de saúde que estão em linha de frente. Mulheres ainda são desfavorecidas em termos de acesso a cuidados de saúde pública, e participação na tomada de decisão devido a características estruturais. Porém, o princípio de respeito à igualdade do Modelo de Valores enfatiza a importância de garantir que o programa de imunização tenha o mesmo foco em alcançar homens e mulheres, de maneira igualitária.

Neste contexto, ao contrário do que muitos pensam, em uma primeira análise apressada, não é apenas o risco saúde relacionado a comorbidades que serve de critério para estabelecer quem deve ser grupo prioritário. Fatores sociais e geográficos também devem ser levados em consideração.

No Brasil, povos tradicionais indígenas, comunidades quilombolas e populações ribeirinhas são considerados grupos prioritários em razão das peculiaridades sócio/geográficas  que envolvem esse público que é  tradicionalmente alçado a condições de vulnerabilidade social  e violação de direitos humanos, levando-se em conta, ainda, a natureza do convívio social entre os habitantes de tais comunidades, o que seriam um fator que favoreceria a propagação do vírus.

Alguns estudos publicados3 no Brasil, dão conta de que determinadas categorias profissionais de trabalhadores  pertencentes as camadas sociais mais vulnerabilizadas, possuem uma propensão maior ao contagio do vírus, como zeladores,  empregadas domésticas, frentistas, vigilantes, porteiros, etc. Evidentemte, o recorte de raça e classe na mortalidade pelo Covid-19 é uma reflexão necessária. Porém, algumas profissioes mais expostas  não constam no PNO como grupo prioritário, como é o caso dos caixas de supermercado.

Outra contradição do PNI  foi a ausência de proteção da maternidade,  e portanto, do futuro, eis que mães que amamentam, embora sejam grupo prioritário em outras políticas públicas, ficaram de fora da prioridade.  Nos país que lidera os índices de mortalidade materna por conta do Covid-19, as grávidas e puérperas, embora tenham sido tardiamente alocadas como grupo prioritário, apenas foram contempladas por um breve tempo, uma vez que houve suspensão da vacinação para esse público4, remanescendo apenas a política de imunização para aquelas que tiverem comorbidades. Tais  comorbidades ainda obedecem a um rol muito limitado, considerando as patologias que podem colaborar para o agravamento da doença em mulheres grávidas.

O Programa Nacional de Imunizações (PNI) foi criado em 18 de setembro de 1973, é responsável pela política nacional de imunizações sendo um dos maiores programas de vacinação do mundo, sendo reconhecido nacional e internacionalmente. O PNI atende a toda a população brasileira, atualmente estimada em 211,8 milhões de pessoas.

O objetivo do nosso Plano Nacional de Vacinação deve ser redução da morbimortalidade causada pela Covid-19, bem como a proteção da força de trabalho para manutenção do funcionamento dos serviços de saúde e dos serviços essenciais. Nesse contexto, o objetivo de reduzir a morbidade e mortalidade pela Covid-19, estabeleceu-se que a definição de grupos prioritários deveria ocorrer baseada em evidências científicas imunológicas e epidemiológicas, respeitando pré-requisitos bioéticos para a vacinação, tendo em vista que inicialmente as doses da vacina contra Covid-19 seriam disponibilizadas em quantitativo limitado. Porém, o texto do PNI não menciona as questões socioeconômicas  como um fator a ser levado em consideração para o estabelecimento dos grupos prioritários.

Evidentemente, os gestores públicos tem em mãos escolhas difíceis, ao definir os grupos prioritários, o que, por vezes, implica na exclusão de determinados grupos importantes para a política pública de acesso a saúde.

A Saúde, consoante os termos de nossa Constituição Federal, é regida de maneira tripartite, com a atribuição solidária aos três entes federais de prover e administrar a saúde dos brasileiros. SUS tem como princípio o acesso integral, universal e igualitário ao sistema de saúde. Portanto, a gestão do SUS é partilhada igualmente entre os três entes federados, não havendo o que se falar em hierarquia entre estes. O PNI estabelece uma diretriz nacional, porem as comissões bipartites estaduais (CIB), compostas Pelas Secretarias estadual e municipais de saúde, podem e devem  adequar a estratégia de vacinação, a depender das peculiaridades e necessidades locais. O que é extremamente salutar, considerando a diversidade que envolve o nosso país de características continentais.

Os Tribunais, inclusive,    foram acionados para dar soluções aos conflitos de aplicação das políticas públicas de imunização. No âmbito da ADPF 754 decidiu-se que a relativização do Plano Nacional de Imunização (PNI) somente seria possível mediante demonstração de critérios técnico-científicos, justificativa pautada em peculiaridades locais e estimativa dos cidadãos contemplados com o ajuste.  Outra  ADPF  foi ajuizada pelo PSOL em parceria com o Instituto ANIS para que as Gravidas e Puérperas sejam contempladas novamente na estratégia de imunização.

Em relação a inversão das ordens de prioridade nas fases do PNO, o  STF5 recentemente se pronunciou, inclusive, sobre a margem de autonomia que os Estados possuem para adaptar a estratégia local, desde que fundamentados em evidências científicas, o que, evidentemente é o posicionamento mais equânime, pois exigir a rígida a observação do PNI em todas as localidades, sem qualquer possibilidade de adaptação corre-se o risco de retirar dos Estados e Municípios a oportunidade de corrigir distorções, omissões e injustiças.

O Poder Legislativo, igualmente, anda mobilizado para proceder a alterações no PNI. Uma Audiência Pública foi realizada no dia 21 de maio deste ano pelo Senado Federal para tratar da questão da inclusão de grávidas, puérperas e lactantes no PNI.

Concluímos, portanto, que o Programa Nacional de Operacionalização da Imunização contra a Covid-19 incorre em algumas omissões no que diz respeito a recortes intersecionais que deveriam ser feitos para a categorização dos grupos prioritários, em um país de extrema desigualdade social e multiplicidade de categorias que estão envolvidas em risco tanto de saúde, quanto social, por conta da exposição ao vírus. A correção destas distorções precisam ser observadas em estratégias de acesso a saúde, uma vez que devemos cumprir o mandamento constitucional de acesso universal a este direito. Neste ponto, as esferas Estaduais e Municipais precisam gozar da autonomia necessária para estabelecer um equilíbrio entre as políticas públicas de acesso a saúde no âmbito federal, estadual e municipal.

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1 Disponível aqui.

2 Pni.

3 Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) sistematizados pela Lagom Data.

4 NOTA TÉCNICA Nº 651/2021-CGPNI/DEIDT/SVS/MS.

 

5 Reclamação STF (RCL) 47398.