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Dignidade humana e tráfico de mulheres

segunda-feira, 21 de março de 2022

Atualizado às 07:48

Nem tudo são flores no mês em que se celebra o dia internacional das mulheres. Ou melhor, para não dizer que não falei de flores, apesar dos avanços em termo jurídico-normativos, estas simbolizam também o luto. E do luto é preciso recobrar forças para ir à luta pelos direitos das mulheres, de todas a mulheres e todo os dias do ano.

Embora seja difícil precisar o sentido do enunciado dignidade humana, a chamada teoria de cinco-componentes1parece adequada à realidade constitucional brasileira. A base antropológica remete ao homem como pessoa, como cidadão, como trabalhador e como administrado.

Daí se extrai uma integração dos direitos fundamentais, iniciando-se pela afirmação da integridade física e espiritual do homem como aspectos irrenunciáveis de sua individualidade, seguindo com a garantia da identidade e integridade da pessoa através do desenvolvimento de sua personalidade, e passando à chamada libertação da angústia da existência da pessoa, libertação esta que se dá através de mecanismos sociais de providências que garantam possibilidade de condições mínimas existenciais. O quarto componente é a consagração da autonomia individual a partir da limitação dos poderes públicos relativamente aos conteúdos, formas e procedimentos do Estado de Direito. Por fim, o quinto componente reside na dignidade social, ou na igualdade de tratamento normativo, ou seja, igualdade perante a lei2.

Peter Häberle3 afirma que a teoria dos cinco componentes de Podlech possui autonomia diante de pontos de partida teórico-sistemáticos e é convincente, mormente como "integração pragmática", designadamente no plano das suas concretizações justiciáveis.

A nosso sentir, a teoria dos cinco componentes tem um cariz positivo, indicando diretrizes para o respeito e a realização da dignidade. Não obstante, há uma formulação que, a nosso ver possui uma matriz negativa, indicando quando ocorre a violação da dignidade. Trata-se da chamada fórmula-objeto de Dürig.

Esclarece Häberle que a fórmula-objeto de Dürig constitui a construção teórica que, na atualidade, pode ser tida como a mais convincente para a compreensão do princípio da dignidade humana, do art. 1º, inciso I da Lei Fundamental Alemã. Segundo o autor, esta fórmula possui independência jurídica em face de sua derivação filosófica, encontrando supedâneo na prática dos casos concretos há décadas4.

Kloepfer ensina que, de acordo com a fórmula-objeto, a dignidade humana é atingida quando a pessoa humana se torna um mero objeto. Alerta ainda que o Tribunal Constitucional Federal alemão, ao dar concretização a esta fórmula, assinalou que ela demonstrada quando o ser humano é exposto a um tratamento que coloca em dúvida a sua qualidade de sujeito, ou quando haja um menosprezo arbitrário da dignidade da pessoa humana, e que a doutrina chama a atenção para o fato de que também um menosprezo não arbitrário da dignidade da pessoa humana atingiria a esfera de proteção do art. 1º, inciso I, da Lei Fundamental Alemã5. 

Esta fórmula, de nítida inspiração kantiana, no sentido de que a pessoa humana deve ser considerada um fim e não um meio, veda, assim, qualquer coisificação ou instrumentalização do ser humano6.

Dworkin também reforça a concepção kantiana ressaltando, igualmente, que o ser humano jamais poderá ser tratado como objeto, como mero instrumento para realização dos fins alheios; enfim, as pessoas nunca podem ser tratadas de forma que se negue a importância distintiva de suas próprias vidas7.

A dignidade humana, como vedação da instrumentalização humana, proíbe a completa e egoística disponibilização do outro, isto é, sua utilização apenas como meio para alcançar determinada finalidade. Com efeito, o critério determinante para identificar a violação da dignidade é a intenção de instrumentalizar ou coisificar o outro. Em síntese, a dignidade da pessoa humana é atingida sempre que a pessoa não é considerada como sujeito de direito.

Para Sarlet8, esta concepção encontra eco no constitucionalismo brasileiro, designadamente no art. 5º, inciso III, da Constituição da República, ao dispor que ninguém será submetido à tortura e a tratamento desumano ou degradante.

Ainda no caminho da concretização da dignidade humana, Häberle apresenta quatro dimensões de proteção jurídico-fundamental da dignidade9.

Primeiramente, sua dimensão de defesa contra as intervenções do Estado. Esta dimensão protetiva é dúplice na medida em que é um direito subjetivo público contra o Estado (e contra a sociedade) e, ao mesmo tempo, um encargo constitucional, já que o Estado tem que proteger o indivíduo em sua dignidade em face da sociedade ou de seus grupos.

A segunda dimensão associa-se ao due process, que constitui uma das mais importantes garantias da dignidade humana.

A terceira dimensão consiste no fato de que a dignidade pressupõe um mínimo existencial, entregando ao Estado encargos assistenciais, como educação, saúde, moradia, entre outros.

Por derradeiro, a dignidade humana tem uma dimensão comunicativa, social, e pertence tanto à realidade da esfera pública como da privada, o que induz responsabilidade diante de outros seres humanos.

A concretização da dignidade humana deve levar em conta ainda que, embora a dignidade seja tendencialmente universal, ela possui uma referência cultural relativa, situando-se no contexto cultural10.

Com efeito, a dignidade humana é multidimensional; possui uma dimensão ontológica, uma dimensão histórico-cultural e sua dupla dimensão (função) negativa e prestacional11. 

Não custa destacar, ainda que com o risco de repetirmos o que já ficou implícito em outras passagens, que a dignidade é um valor intrínseco de todo ser humano, independentemente de cor, etnia, sexo, idade, nacionalidade, status social, sendo irrelevante também que o titular seja consciente de sua dignidade ou a compreenda, de forma que mesmo as crianças e os doentes mentais são alcançados pela proteção da dignidade humana12.

 Mesmo os criminosos13 que praticaram os atos mais cruéis, indignos e desumanos possuem dignidade humana e podem até ser privados de sua liberdade, mas nunca de sua dignidade. Nesse sentido, é luminosa a passagem de Kant a demonstrar que são inadmissíveis penas que agridam a dignidade dos delinquentes e acabem por atingir a própria humanidade. Ou seja, são inaceitáveis penas que ruborizam de vergonha o espectador por [ele] pertencer a uma espécie que possa ser tratada dessa forma14.

Do exposto, lançamos mão do conceito apresentado por Sarlet, para quem a dignidade humana é:

A qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos15.

Não obstante o reconhecimento formal da dignidade humana a todas as pessoas, o fato é que o mundo enfrenta cotidianamente graves violações à dignidade das pessoas. Nesta oportunidade é oportuno dar relevo ao problema do tráfico de mulheres para exploração sexual e trabalhos forçados.

Em que pese a obrigação do Estado de colocar na centralidade de suas energias a proteção às pessoas, a cultura patriarcal, o sexismo, e os interesses econômicos que sempre constituem o impulso maior das ações em uma sociedade capitalista, mobilizam energia, dinheiro e pessoas para o combate à pirataria, ao jogo e ao tráfico de drogas, apresentando o mesmo empenho e investimento, em todas as ordens, para coibir essa prática odiosa.

Segundo o Relatório Global sobre o Tráfico de Pessoas de 201816,  a maioria das vítimas de tráfico de pessoas detectadas pelo mundo são mulheres, principalmente mulheres adultas. Contudo, vê-se cada vez mais o tráfico de meninas. A maioria das vítimas de tráfico são para fins de exploração sexual e são do sexo feminino, sendo que 35% das vítimas de tráfico são mulheres e meninas destinadas ao trabalho forçado.

Segundo dados da Organização Internacional do Trabalho-OIT17, em 2016, registrava-se cerca de 25 milhões de pessoas em situação de trabalho forçado, sendo que 5 milhões destas em situação de exploração sexual. As mulheres são maioria nesse cenário, inclusive para fins de casamentos forçados.

Diante desse quadro, no chamado mês das mulheres, é imprescindível questionar se de fato as ações do Estado brasileiro estão a dar efetividade à ideia de dignidade humana.

Não custa lembrar que esta invisibilidade decorre também do fato de que essas mulheres e meninas são, em sua maioria, pretas, asiáticas, latinas, periféricas, ou seja, vidas que à luz do espírito eurocêntrico e na lógica da branquitude, são tratadas com a total indiferença.

Para que a dignidade humana de fato transcenda a esfera de um conceito retórico, é preciso que novas prioridades estatais e institucionais sejam traçadas, deixando um pouco de lado a proteção de interesses econômicos, voltando os olhares para a efetiva proteção da pessoa humana que é o fundamento e o fim da sociedade e do Estado.  

__________

1 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª edição, Almedina, 2003, p. 249.

2 Idem, p. 248-249.

3 "Em adesão a Niklas Luhmann, Adalbert Podlech desenvolveu cinco condições centrais para a garantia da dignidade humana: a liberdade do medo existencial no Estado Social por meio da possibilidade de trabalho e um seguro social mínimo; a igualdade normativa dos homens, que apenas permite desigualdades fáticas justificáveis; a defesa da identidade e da integridade humana por meio da garantia do livre desenvolvimento espiritual do indivíduo; a limitação do poder estatal por meio de seu enquadramento pelo Estado de Direito; e, finalmente, o respeito da corporalidade do homem como momento de sua individualidade autônoma e responsável" (HÄBERLE, A Dignidade...op. cit., p. 76).

4 HÄBERLE, HÄBERLE, Piter. A Dignidade Humana como Fundamento da Comunidade Estatal. Tradução: Ingo Wolfgang Sarlet e Pedro Scherer de Mello Aleixo. In Dimensões da Dignidade (Organizador: Ingo Wolfgang Sarlet). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 75.

5 KLOEPFER, Michael. Vida e Dignidade da Pessoa Humana. Traduação: Rita Dostal Zanini. In Dimensões da Dignidade. (Ingo Wolfgang Sarlet: organizador). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 164.

6 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 36.

7 SARLET, Dignidade...op. cit., p. 51-52.

8 SARLET, Dignidade...op. cit., p. 59-60.

9 HÄBERLE, A Dignidade...op. cit., p. 88-92.

10 HÄBERLE, A Dignidade...op. cit., p. 80.

11 SARLET, Dignidade...op. cit., p. 61.

12 KLOEPFER, Vida...op. cit., p. 152-153.

13 "...também para o criminoso 'que pode ter atentado, da forma mais grave e insuportável, contra tudo aquilo que a ordem de valores da Constituição coloca sob sua proteção, não pode ser negado o direito ao respeito da sua dignidade" (KLOEPFER, Vida...op. cit., p. 153).

14 KANT, Metafísica dos Costumes, Doutrina da Virtude, parágrafo 39.

15 SARLET, Dignidade...op. cit., p. 62.

16 UNODC, Relatório Global sobre Tráfico de Pessoas 2018 (Publicação das Nações Unidas, Nº de venda E.19.IV.2).

17 Disponível aqui.