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Quanto do povo negro tem as urnas? Pela ocupação dos espaços de representação política em favor de uma democracia substancial

segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Atualizado às 08:20

"Experimenta nascer preto, pobre na comunidade,
Você vai ver como são diferentes as oportunidades
E nem venha me dizer e isso é vitimismo,
não bota a culpa em mim pra encobrir o seu racismo"

Cota não é esmola, Bia Ferreira1

O Brasil acorda, nesta segunda-feira (3/10/2022), com novos(as) e velhos(as) representantes, eleitos(as) para ocupar cargos nos Poderes Executivo e Legislativo, Federal, Estadual e Distrital. É inegável que toda eleição retrata um momento cívico e democrático, em que brasileiros e brasileiras vão às urnas depositar suas expectativas e sonhos por um país melhor, tem-se ali a chance de promover a renovação e/ou a continuidade, o resgate ou a perpetuidade, não apenas de legendas partidárias, como também de rostos e de ideais. Mas será esta eleição capaz de reverter o quadro histórico de sub-representatividade política de que padece a população negra no âmbito desses Poderes?

Adotando-se o recorte racial e mantido o histórico das eleições de 2014 a 2020, as perspectivas não se revelam tão animadoras. Entre uma eleição e outra, observa-se que houve um aumento, tímido é verdade, do número total de candidaturas de negros/negras a galgar cargos no Poder Legislativo, no âmbito federal, estadual e distrital, entretanto, ainda assim, na Câmara dos Deputados somente 24,4% das cadeiras foram ocupadas por candidatos autodeclarados pretos/as e pardos/as, enquanto no Senado Federal, pretos/as e pardos/as representavam apenas 13 eleitos/as do total de 81 senadores2.

No âmbito municipal, a eleição de candidatos pretos e pardos revela maior equilíbrio na composição das chapas e formação das casas legislativas, com a eleição de 57% a 53% de candidatos declarados pretos e pardos, respectivamente em 2016 e 2020. Mas quando se somam os critérios de raça e gênero, os números demonstram resultados piores, revelando uma face ainda mais desigual de acesso à representação política por mulheres negras, isso porque nas eleições de 2020, mulheres pretas e pardas somaram apenas 3,65% do total de prefeitos eleitos e 6,28% das vereadoras3.

O problema se confirma quando analisamos os dados do TSE referentes aos candidatos/as eleitos/as para todos os cargos políticos, em cotejo com o contingente populacional. Dos candidatos eleitos em 2018, apenas 27,61% se autodeclaravam negros e 72,39%  se autodeclaravam brancos, enquanto a população brasileira, era composta majoritariamente por pretos e pardos, sendo que, em 2017, representávamos 55,7% da população brasileira e em 2021, éramos 56,1%, o que explicita, em números totais, a nítida desproporção entre a representatividade da população por cor/raça e a não-ocupação de os espaços políticos de poder4.

Nestas eleições, é bem verdade, pela primeira vez, duas normas visaram a balançar o pêndulo em favor da igualdade racial nas Casas Legislativas: a Emenda Constitucional 111/202,  que estabelece a contagem em dobro dos votos destinados a candidatas mulheres ou a candidatos negros para a Câmara dos Deputados, e a resolução 23.605/2019, modificada pela Resolução n°23.664/2021, do Tribunal Superior Eleitoral, que assegura a distribuição proporcional dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) e do tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão ao total de candidatos negros que o partido apresentar para a disputa eleitoral.

A contagem de voto em dobro e a concessão de mais recursos e tempo de propaganda, em tese, sugerem a possibilidade de superação da desvantagem inicial a candidatos negros/negras, entretanto, se mantido o mesmo padrão constatado nas candidaturas femininas, no âmbito municipal, nas eleições de 2016, bem como nas eleições de 2018, não há que se esperar a eleição de maior número de candidatos/as negros/as, pois, o que já viu, nessas duas oportunidades, é que, a despeito de um número mais elevado de candidatas mulheres, não houve repercussão proporcionalmente na sua eleição5.

Os direitos de participação política não podem se restringir apenas à possibilidade de livremente escolher seus representantes, o que, para muitos, já se traduziria na real democracia. Tem-se que ir além, é imprescindível participar da formação da vontade política, com base na real possibilidade de elegibilidade para cargos públicos nas casas de representação política, em todas as searas6, e por conseguinte, participação nas decisões que ditam os rumos do país.

O Poder Judiciário, bem como o Ministério Público e Defensoria, em todo o país já enveredaram o caminho para tentar contornar a flagrante desigualdade de composição de seus quadros, ao possibilitar, pelo menos, nas instâncias de ingresso, a adoção de políticas de cotas, ainda que, a bem da verdade, nas instâncias superiores, a presença de mulheres e negros/as ainda não se revele igualitária. Mas um passo já foi dado.

A matemática improvável de traduzir no Parlamento e no Executivo o colorismo da população brasileira e toda a sua diversidade, não apenas de raça e gênero, critérios esses adotados juntos ou separados, apresenta obstáculos aparentemente invencíveis, que revelam a existência de mecanismos de seleção privilegiada7, que tal como em outros campos da vida social, limitam a participação da população negra em espaços de poder, como já exaustivamente nesta coluna, em especial em seu artigo de abertura.

A ocupação minoritária da população negra nos espaços políticos institucionais em contraste com seu caráter majoritário de composição populacional confirma a flagrante desigualdade racial que impera no país, alijando esse grupo racial de possibilidade de participação em instâncias de decisões coletivas, e por conseguinte, provoca distorção na elaboração e implementação de políticas públicas, que contam com a prevalente participação de pessoas brancas nos processos políticos decisórios, muitas vezes, destituídas do conhecimento, sensibilidade e vivência necessária para enfrentar as desigualdades econômicas e sociais e promover respostas que atenda os anseios daqueles/as que dela efetivamente necessitam, comprometendo o esperado pluralismo político e fragilizando o próprio Estado Democrático de Direito.

O tom pessimista com que esse artigo foi iniciado, confirmado pelos números, por sua vez, não esmorece o coração desta brasileira, que anseia, mais que nunca, por um Brasil em que sua face negra seja refletida não apenas nos noticiários policiais; como uma exceção em uma fotografia da composição de cargos diretivos, ou ainda um mero adereço para dar ar de suposta diversidade em espaços políticos. O que espero dessas urnas, em que todo brasileiro e brasileira teve a cada voto, mais um segundo para refletir suas escolhas, cujo silêncio só foi quebrado pelo emblemático som da confirmação do voto: é esperança por dias melhores.

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1 FERREIRA, Bia.Cota não é esmola.Youtube, 2017. Disponível em:https://www.youtube.com/watch?v=qcqiaohajom. Acesso em 25 set 2022.

2 LEITE, Geraldo. Racismo Estrutural e Representação Política. In: Rodrigues, Ricardo José Pereira (org.).Agenda Brasileira/Câmara dos Deputados. Consultoria Legislativa. Ano 3. Nº5 (2022). Brasília. p.86-105.

3 LEITE, Geraldo. Racismo Estrutural e Representação Política. In: Rodrigues, Ricardo José Pereira (org.).Agenda Brasileira/Câmara dos Deputados. Consultoria Legislativa. Ano 3. Nº5 (2022). Brasília. p.86-105.

4 Disponível aqui. Acesso em 28 set. 2022

5 RABAT, Márcio Nuno. A composição por raça/cor das casas de representação política e as eleições proporcionais de 2022. In: Rodrigues, Ricardo José Pereira (org.).Agenda Brasileira/Câmara dos Deputados. Consultoria Legislativa. Ano 3. Nº5 (2022). Brasília. p.108-137.

6 LEITE, Geraldo. Racismo Estrutural e Representação Política. In:  Rodrigues, Ricardo José Pereira (org.).Agenda Brasileira/Câmara dos Deputados. Consultoria Legislativa. Ano 3. Nº5 (2022). Brasília. p.86-105.

7 LEITE, Geraldo. Racismo Estrutural e Representação Política. In:  Rodrigues, Ricardo José Pereira (org.).Agenda Brasileira/Câmara dos Deputados. Consultoria Legislativa. Ano 3. Nº5 (2022). Brasília. p.86-105.