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Não basta só exterminar os negros, é preciso também eliminar os indígenas: cenas repetidas de genocídio em uma nação racista

segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Atualizado às 07:07

Nas últimas semanas, tem vindo à tona cenas chocantes sobre a condição de vida da comunidade Yanomami, replicadas pelos diversos meios de comunicação, exibindo homens, mulheres e crianças em estado quase cadavérico. Em que pese, dentro daquela cultura, não ser adequado fotografar pessoas doentes1, a exceção tem se justificado para trazer a público a situação de total desamparo, ina(ni)ção e exploração ilegal das terras indígenas, fruto do projeto de dizimação imposto nos últimos quatro anos aos povos tradicionais. 

De acordo com os antropólogos, o termo "Yanomami" remete a nossa essência, quer dizer "seres humanos". Mas ser "humano" deveria se reportar ao direito de gozar das prerrogativas reservadas a todo o homem, mulher e criança, de ver assegurados direitos fundamentais de dignidade e de valor da pessoa humana, como previstos nos ordenamentos jurídicos constitucionais2, em especial no capítulo VIII, que trata dos "índios" (sic) e  em diplomas internacionais3. 

A título exemplificativo, merecem destaque dois diplomas internacionais ratificados pelo País, manifestamente descumpridos tal como os preceitos constitucionais: a Convenção n° 169, da Organização Internacional do Trabalho, sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes, que assegura, dentre tantos direitos, a propriedade e a posse sobre as terras que tradicionalmente ocupam (arts. 14 e 18); o direito ao respeito a sua integridade, suas culturas e instituições (arts. 2, 5 e 7); o direito a determinar sua própria forma de desenvolvimento (art. 7); o direito a participar diretamente na tomada de decisão sobre políticas e programas que os interessem ou os afetem (arts. 6, 7 e 15); e o direito a serem consultados sobre as medidas legislativas ou administrativas que lhes possam afetar (arts. 6, 15, 17, 22 e 28)4. 

E a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas5, que afirma a liberdade e a igualdade de todos os povos e pessoas indígenas; proíbe a discriminação no exercício de seus direitos, em particular a que se baseia em sua origem ou identidade étnica; consagra o direito à autodeterminação política, econômica, social e cultural; a conservar e fortalecer as suas próprias instituições políticas, jurídicas, econômicas, sociais e culturais, bem como a participar plenamente na vida política, econômica, social e cultural do Estado. 

A despeito da proteção normativa, os mortos Yanomani, nesses últimos quatro anos, são incontáveis. Estima-se que, somente no ano de 2022, tenham morrido mais de "570 crianças por fome, por desnutrição e por contaminação por mercúrio"6. Repita-se, somente, no ano de 2022. 

E, toda essa tragédia não é fato novo tampouco se restringe à comunidade Yanomami. Desse cenário faz parte uma ampla rede de exploração das terras indígenas que lhes ceifa a vida por bala, por fome, pelo mercúrio, tudo arregimentado pela ambição de variadas e poderosas organizações criminosas que atuam em frentes variadas de exploração ilegal da floresta, que vão desde a extração de madeira, da pesca predatória, bem como a garimpagem de metais preciosos. 

Soma-se a essa tragédia conhecida a inércia ou ineficiencia das medidas adotadas pelas autoridades públicas, que poderiam e deveriam atuar em cumprimento aos mandamentos legais e constitucionais. No entanto, muitas delas, sequer são dotadas de igualdade de condições para promover reação capaz de eliminar os riscos e crimes ambientais e humanitários perpetrados. 

Não se perdem apenas as vidas. A cada morte de homem, mulher e criança perde-se a memória de toda uma comunidade e o potencial do que poderia ser. E mais: a cada dia, ceifa-se em cada um deles a esperança de que virá uma salvação para que não sejam o próximo, o que raramente vem. 

Os que lhes defendem, denunciam e tentam com suas poucas forças e meios conter essas barbáries, não raro têm um fim comum: o seu  silenciamento e morte brutal, como ocorreu recentemente com Bruno Pereira e Don Philips7. Mais dois que entraram para a lista trágica que há décadas só se avoluma, composta por nomes emblemáticos como o ativista Chico Mendes, assassinado em 1988, a freira missionária Dotothy Stang, assassinada em 2005 e tantos outros nomes conhecidos e desconhecidos que se empenham na luta por respeito e dignidade aos povos tradicionais. 

Se de um lado, vimos, estupefatos e em tempo real, o ataque gravíssimo aos símbolos e prédios situados na Praça dos Três Poderes, em Brasília, no dia 8.01.2023, em uma ação pontual orquestrada por grupos antidemocráticos para violar signos de cunho eminentemente material que nos representam como República e povo, nada se compara às cenas vistas da violência, gradualmente infligida à comunidade Yanomami. Trata-se de uma omissão continuada, orquestrada e posta em prática há anos para dizimar silenciosa e diariamente o verdadeiro signo da nossa nação e que representam a essência do povo brasileiro: a vida e valores indígenas. 

É preciso, portanto, reconhecer as diversas armas de extermínio utilizadas contra as comunidades indígenas, dentre elas a ina(ni)ção, o que, a bem da verdade, não é tática tão diferente daquela vista em muitas favelas e em comunidades agrícolas pobres. 

No último domingo, em reportagem de Marcelo Canellas8, que investigava os efeitos da desnutrição e do êxodo rural, o repórter retornou a algumas comunidades que tinha visitado há vinte anos, em busca de reencontrar as pessoas que entrevistou e conhecer a sua condição de vida atual. 

Na reportagem original, é exibida a conversa com uma paupérrima família brasileira, a quem o - incansável e na ativa até os dias atuais- agente de saúde, de nome Cirene, avisa aos pais que a filha se encontra em estado de profunda desnutrição, com risco de morte. 

Diante do alerta, aquele trabalhador tão humilde com sua enxada nos ombros olha nos fundos dos olhos do repórter e lhe questiona o que ele acha que deveria fazer e não obtém nenhuma resposta. É uma das poucas imagens que a filha sobrevivente, e hoje com 22 anos, tem daquele pai, que 6 meses depois se dirige a São Paulo em busca de uma vida melhor e morre. Fato corriqueiro na vida de tantos(as) trabalhadores(as) nortistas e nordestinos(as) que deixam seu lugar, sua vivência e afetos para se deslocar para as grandes capitais do Sudeste do país em busca de uma vida melhor. 

Também é revisado o caso da lavadeira Maria Rita, que, na reportagem inicial, já se mostrava em estado grave de desnutrição e adoecimento e 15 dias depois da entrevista concedida morre em decorrência da fome9. 

Por fim, é exibido como estão depois de 20 anos o casal Maria e João, ambos abatidos pela fome e agora, pela velhice. Este, tão desiludido com as poucas ou nenhumas perspectivas de melhoria de vida que não vieram, diz a triste frase: "Eu ando doido pra morrer. Eu morrendo, descanso. Descanso dessa vida. Leva pra onde Deus quiser". Faltou dizer que todos os personagens são negros. 

A ina(ni)ção que comparece nas duas situações descritas se entrecruzam e fazem parte do genocídio imposto à população indígena e negra, que lhes extermina silenciosamente, nas favelas urbanas e nos diversos rincões desse país. 

Esses dois contextos e o genocídio dessas populações que compõem a tríade em que se estrutura a nação brasileira se entrecruzam no cenário macabro que desde sempre viu essas pessoas como meras mercadorias, seres de classe inferior, cuja morte, invisibilizada, quase sempre, por conta da cor e da etnia, serve para ilustrar estatísticas e que exigem reparação e mudança urgentes dos rumos de atuação, tão rápidos quanto os reparos que estão sendo feitos nos símbolos materiais da República, afinal, a morte de cada negro e indígena nesse país representa a perda de cada traço da grande nação que poderíamos ter sido. 

 

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1 Território Yanomami tem 28 mil indígenas e foi tomado por mais de 20 mil garimpeiros no governo Bolsonaro. Acesso em 24 jan 2023.

2 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2023]. Disponível aqui.

3 Disponível aqui. Acesso em 24 jan 2023.

4 GALVIS, María Clara Galvis. RAMÍREZ, Angela. Manual para defender os direitos dos povos indígenas. Disponível aqui. Acesso em 20 jan 2023.

5 Op. Cit

8 FANTÁSTICO reencontra jovem que quando criança quase morreu de desnutrição: 'Achavam que eu não ia nem sobreviver. Disponível aqui: Eu venci'.

9 Ando doido pra morrer': 20 anos depois, a dor de quem continua a conviver com a fome. Disponível aqui.  Acesso em 24 jan 2023.