A relativização da coisa julgada na improbidade administrativa e seus efeitos: Reflexões a partir do Tema 309 do STF
STF define que improbidade administrativa exige dolo, afastando atos culposos, e permite revisar decisões transitadas em julgado, impactando eleições de 2026.
sexta-feira, 3 de outubro de 2025
Atualizado às 11:30
As teses definidas pelo STF no julgamento do Tema 309 da repercussão geral1 (RE 656.558/SP) e, na sequência, na questão de ordem na ação rescisória 2.876/DF2 reformularam as bases interpretativas no campo da improbidade administrativa e da coisa julgada inconstitucional. Essas decisões têm efeitos imediatos e projetam impactos diretos sobre as próximas eleições no ano de 2026.
De um lado, o STF reconheceu a inconstitucionalidade da modalidade culposa da lei de improbidade administrativa, afastando definitivamente a possibilidade de responsabilização sancionatória sem a comprovação do dolo. De outro, a Corte enfrentou o problema da compatibilidade entre a declaração de inconstitucionalidade e a coisa julgada, fixando interpretação judicial que permite reabrir discussões mesmo após o trânsito em julgado, com destaque para a possibilidade de integral rescisão de títulos executivos judiciais ou, ao menos, a arguição de inexigibilidade das obrigações deles decorrentes.
Quanto ao primeiro julgamento, o precedente vinculante é decisivo ao consolidar que a improbidade administrativa exige a comprovação de dolo3, afastando definitivamente a possibilidade de responsabilização por mera culpa. O entendimento supera a insegurança que vigorou durante décadas e reaproxima a improbidade de sua natureza originária, voltada a condutas verdadeiramente desonestas e fraudulentas. Nesse sentido, o reconhecimento da imprescindibilidade do elemento subjetivo doloso corrige a longeva "carência de parâmetros normativos que permitissem aos seus destinatários constatar - com segurança jurídica - se determinado ato deveria estar, ou não, qualificado como ímprobo".4
A compreensão firmada encontra plena sintonia com a doutrina que há muito destacava a necessidade de uma "reformulação limitadora do núcleo normativo"5 da improbidade administrativa, diante da sua expansão desmedida e da ausência de um filtro apto a distinguir ilegalidades administrativas comuns de verdadeiros ilícitos sancionáveis. Nessa linha, alertou-se para a urgência de conter os excessos do modelo anterior, afirmando que apenas condutas dolosas podem legitimar a aplicação de um regime sancionatório tão severo.6
Por sua vez, no julgamento da questão de ordem na AR 2.876, o STF firmou marco decisório importante ao reconhecer que, mesmo diante de decisões já transitadas em julgado, é possível discutir a sua validade e exigibilidade quando fundadas em normas declaradas inconstitucionais. Na ocasião, a Suprema Corte estabeleceu as seguintes balizas temporais: (i) como regra, a ação rescisória deve ser proposta no prazo de até dois anos contados do trânsito em julgado da decisão do STF; e (ii) caso seja julgada procedente, a anulação da decisão judicial definitiva só produzirá efeitos em relação aos atos praticados nos cinco anos anteriores à data do ajuizamento da ação rescisória, não podendo retroagir além desse limite. Com essa decisão, buscou-se compatibilizar a supremacia da Constituição com a segurança jurídica, viabilizando instrumentos processuais contra decisões que persistem apoiadas em fundamentos já excluídos do ordenamento.
A esse respeito, a doutrina nacional vem debatendo a complexidade decorrente da rescisão da coisa julgada inconstitucional. Há vozes que entendem que a estabilidade e a segurança dependeriam da imutabilidade das decisões transitadas em julgado, ainda que com fundamento declarado inconstitucional. De outra parte, eloquente doutrina consigna que a ideia de coisa julgada não pode suplantar a própria Constituição.
Cândido Rangel Dinamarco, por exemplo, adverte que "não é lícito entrincheirar-se detrás da barreira da coisa julgada e, em nome desta, sistematicamente assegurar a eternização de injustiças, de absurdos, de fraudes, ou de inconstitucionalidades"7. Em linha semelhante, Humberto Theodoro Júnior e Juliana Cordeiro de Faria enfatizam que a coisa julgada não se pode sobrepor à própria Constituição: "[...] a coisa julgada não pode suplantar a lei, em tema de inconstitucionalidade, sob pena de transformá-la em um instituto mais elevado e importante que a lei e a própria Constituição. Se a lei não é imune, qualquer que seja o tempo decorrido desde a sua entrada em vigor, aos efeitos negativos da inconstitucionalidade, por que o seria a coisa julgada?".8
Diante desse embate entre a segurança jurídica e a supremacia da Constituição Federal foi, então, que o STF adotou a via intermediária. Na QO na AR 2.876, a Corte preservou a coisa julgada como regra, mas estabeleceu hipóteses em que a decisão fundada em norma inconstitucional pode ser objeto de ação rescisória ou, ainda, que essa decisão pode ter sua exequibilidade comprometida, autorizando-se que o interessado alegue inexigibilidade do título em sede de cumprimento de sentença.
A partir dessas premissas, o STF traz novos contornos para o tratamento da improbidade administrativa. Os indivíduos que tenham sido condenados, por decisão transitada em julgado, exclusivamente com fundamento em atos culposos - agora reputados inconstitucionais - podem efetivamente impugnar tais condenações, sobretudo se ainda se encontram submetidos às sanções delas decorrentes.
Em razão dessa possibilidade de insurgência, o MP/SP opôs embargos de declaração no RE 656.558/SP requerendo, entre outros pontos, a modulação dos efeitos da decisão proferida no Tema 309. Sob sua ótica, sem essa providência, "as administrações públicas federal, distrital, estaduais e municipais, estar[iam] em cenário de grande insegurança jurídica, não sendo arriscado afirmar que, em algumas situações, poderão se ver obrigadas a restituir valores recolhidos a título de multa civil, dentre outras consequências indesejadas"9. No julgamento dos embargos de declaração, o min. Relator Dias Toffoli votou por acatar a necessidade de modulação, no que foi acompanhado pelo min. Flávio Dino, estando atualmente pendente a continuidade do julgamento, diante de pedido de vista do min. Alexandre de Moraes. Confira-se trecho do voto:
"(i) Devem ser mantidas as situações consolidadas até a data da publicação da ata do julgamento do mérito, observada a liminar do ministro Gilmar Mendes deferida na ADI 6.678/DF; e (ii) as condenações por ato culposo de improbidade administrativa ou em razão de responsabilidade objetiva por ato de improbidade administrativa transitadas em julgado não poderão ser mais executadas a partir da data da publicação da ata do julgamento do mérito".10
Desse modo, o voto do ministro relator propôs a preservação das situações juridicamente constituídas até a data da publicação da ata de julgamento do mérito do recurso paradigma (4/11/2024). Permaneceriam, assim, a perda da função pública ou a suspensão de direitos políticos já consolidadas na referida data (ou seja, totalmente cumpridas), com as respectivas consequências, observada a liminar deferida na ADI 6.678/DF11; as multas pagas e os ressarcimentos ao erário realizados; bem como as proibições de contratar com a Administração Pública concretizadas até então, afastando-se qualquer possibilidade de discussão sobre perda de chance de contratar. Ou seja, se o sancionado foi concretamente impedido de celebrar contratos no passado, não poderá, nos termos do voto, rediscutir esses efeitos pretéritos. Do mesmo modo, considerou-se irreversível a não fruição de benefícios ou incentivos fiscais e creditícios até aquele marco, os quais não poderiam ser exigidos retroativamente.
Por outro lado, o Poder Público ficaria impedido de cobrar débitos - relativos a multas ou ao ressarcimento integral do dano - que ainda não foram pagos pelo sancionado. Além disso, cessaria, a partir do referido marco temporal (4/11/2024), a contagem dos prazos remanescentes de suspensão de direitos políticos e de proibição de contratar com a Administração ou de receber incentivos fiscais e creditícios, ainda que por intermédio de pessoa jurídica controlada pelo agente.
Neste momento, considerando a proximidade das eleições do ano de 2026, observa-se importante impacto na elegibilidade daqueles condenados por ato culposo inconstitucional, visto que o cumprimento e os efeitos da sanção de suspensão de direitos políticos deixam de subsistir integralmente. Por conseguinte, estes passam a readquirir condição essencial para sua candidatura, qual seja, o pleno exercício dos direitos políticos. Como consequência, para aqueles que almejam concorrer nas eleições de 2026, abre-se novo caminho - seja mediante ação rescisória, seja por arguição de inexigibilidade em sede de cumprimento de sentença - para reverter o óbice até então presente. Além disso, considerando que os embargos de declaração opostos em face do acórdão do Tema 309 do STF não possuem efeito suspensivo, a adoção dessas medidas jurídicas revela-se possível de forma imediata.
Em suma, o julgamento do Tema 309 e da QO na AR 2.876 inauguram novo regime para as condenações em improbidade culposa. Como já colocado no voto do min. relator Dias Toffoli, há hoje respaldo normativo e jurisprudencial para sustentar a falta de validade e a inexigibilidade de títulos fundados nessa hipótese, seja por meio de impugnação ao cumprimento de sentença, seja por meio de ação rescisória. Ao afirmar a centralidade do dolo na improbidade administrativa e admitir instrumentos de revisão de condenações passadas, a Corte não apenas redefiniu os contornos do regime sancionatório, mas também projetou consequências práticas imediatas, inclusive no cenário eleitoral de 2026.
_________
1 Veja-se:"a) O dolo é necessário para a configuração de qualquer ato de improbidade administrativa (art. 37, § 4º, da Constituição Federal), de modo que é inconstitucional a modalidade culposa de ato de improbidade administrativa prevista nos arts. 5º e 10 da Lei nº 8.429/92, em sua redação originária".
2 É ver-se: "O § 15 do art. 525 e o § 8º do art. 535 do Código de Processo Civil devem ser interpretados conforme a Constituição, com efeitos ex nunc, no seguinte sentido, com a declaração incidental de inconstitucionalidade do § 14 do art. 525 e do § 7º do art. 535: 1. Em cada caso, o Supremo Tribunal Federal poderá definir os efeitos temporais de seus precedentes vinculantes e sua repercussão sobre a coisa julgada, estabelecendo inclusive a extensão da retroação para fins da ação rescisória ou mesmo o seu não cabimento diante do grave risco de lesão à segurança jurídica ou ao interesse social. 2. Na ausência de manifestação expressa, os efeitos retroativos de eventual rescisão não excederão cinco anos da data do ajuizamento da ação rescisória, a qual deverá ser proposta no prazo decadencial de dois anos contados do trânsito em julgado da decisão do STF. 3. O interessado poderá apresentar a arguição de inexigibilidade do título executivo judicial amparado em norma jurídica ou interpretação jurisdicional considerada inconstitucional pelo STF, seja a decisão do STF anterior ou posterior ao trânsito em julgado da decisão exequenda, salvo preclusão (Código de Processo Civil, arts. 525, caput, e 535, caput)".
3 Nos termos do voto do Min. André Mendonça, ademais, seria necessário o dolo específico, in verbis: "38. É bem de ver que na definição do dolo para efeito da improbidade administrativa considera-se o chamado dolo específico, conforme a dicção expressa contida na redação atual do art. 1º, §§ 2º e 3º, da Lei de Improbidade".
4 CARNEIRO, Rafael de Alencar Araripe. A reformulação limitadora do conceito de improbidade administrativa. In: MENDES, Gilmar Ferreira e CARNEIRO, Rafael de Alencar Araripe (coord.). Nova lei de improbidade administrativa: inspirações e desafios. São Paulo: Almedina, 2022, p. 93.
5 CARNEIRO, op. cit., p. 93.
6 CARNEIRO, Rafael de Alencar Araripe. De Garantista Contramajoritário a Inspirador da Reforma Legislativa: a contribuição de Napoleão Nunes Maia Filho em matéria de improbidade administrativa. In: Atalá Correia e Rafael de Alencar Araripe Carneiro (coord.). Controle da administração pública-desafios e tendências: estudos em homenagem a Napoleão Nunes Maia Filho. São Paulo: Almedina, 2024, p. 119.
7 DINAMARCO, Cândido Rangel. A nova era do processo civil. 2. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2007, p. 256.
8 FARIA, Juliana Cordeiro de; THEODOR JR, Humberto. Reflexões sobre o princípio da intangibilidade da coisa julgada e sua relativização. In: DELGADO, José Augusto; NASCIMENTO, Carlos Valder do (orgs). Coisa Julgada Inconstitucional. 2. ed. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2008, p. 161-198, p. 179.
9 P. 24 dos embargos de declaração opostos pelo Ministério Público do Estado de São Paulo.
10 STF, RE 656.558/SP ED (Tema 309), Pleno, Rel. Min. Dias Toffoli, julgamento em curso.
11 Em 1º.10.2021, o Min. Gilmar Mendes concedeu liminar na referida ADI para "(a) conferir interpretação conforme à Constituição ao inciso II do art. 12 da Lei 8.429/1992, estabelecendo que a sanção de suspensão de direitos políticos não se aplica a atos de improbidade culposos que causem dano ao erário; e (b) suspender a vigência da expressão "suspensão dos direitos políticos de três a cinco anos" do inciso III do art. 12 da Lei 8.429/1992."
Rafael de Alencar Araripe Carneiro
Sócio administrador do Carneiros Advogados. Professor do IDP. Doutorando e mestre em Direito Público pela Universidade Humboldt de Berlim. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Improbidade Administrativa e do Grupo de Estudo sobre Jurisdição e Competitividade na Regulação da Infraestrutura do IDP. Membro do Conselho Superior de Assuntos Jurídicos da Fiesp. Diretor Jurídico do Instituto Clima, de Inovação e Tecnologia.
Carlos Alberto Rosal de Ávila
Sócio do Carneiros Advogados. Doutorando e graduado em Direito pela UnB. Mestre em Direito Comercial pela USP. Professor em cursos de graduação e pós-graduação lato sensu.
Pedro Victor Porto Ferreira
Sócio do Carneiros Advogados. Mestre em Direito do Estado e Constituição e graduado pela UnB. Professor da disciplina de Improbidade Administrativa na graduação do IDP.
Lorena Xavier Corrêa Rodrigues
Advogada no Carneiros Advogados. Pós-graduanda em Direito Penal e Processual Penal pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa - IDP. Graduada em Direito pelo Centro Universitário de Brasília - UniCEUB.





