CPC na prática

A reiteração da mitigação da impenhorabilidade dos salários pelo Superior Tribunal de Justiça

Professor Rogerio Mollica destaca novo julgado da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça mitigando a impenhorabilidade dos salários prevista no CPC.

27/4/2023

Nos últimos dias muito se discutiu sobre a penhorabilidade dos salários em virtude de recente julgamento proferido pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ)1. De fato, em 19/04/2023, o mais alto órgão julgador do STJ entendeu que poderia ocorrer a penhora de salário, mesmo que menor que 50 salários-mínimos, e para o pagamento de verba não alimentar.

O acórdão do referido julgado ainda não está disponível, mas o “site” do Superior Tribunal de Justiça resumiu os principais pontos julgamento2. Segundo o “site”: “Os embargos de divergência foram interpostos por um credor contra acórdão da Quarta Turma que indeferiu o pedido de penhora de 30% do salário do executado – em torno de R$ 8.500. A dívida objeto da execução tem origem em cheques de aproximadamente R$ 110 mil.”

Para o Ministro Relator "A fixação desse limite de 50 salários-mínimos merece críticas, na medida em que se mostra muito destoante da realidade brasileira, tornando o dispositivo praticamente inócuo, além de não traduzir o verdadeiro escopo da impenhorabilidade, que é a manutenção de uma reserva digna para o sustento do devedor e de sua família"

Portanto, foi autorizada a penhora de salário de montante muito menor do que a autorizada em Lei. Retorna-se ao tema para demonstrar que tal decisão é apenas uma reiteração de entendimento da Corte Especial do STJ exarada em 2018. Desse modo, rememoraremos os principais pontos de artigo escrito para essa coluna em 16/05/20193. 

É do nosso ordenamento a total impenhorabilidade dos salários, exceto para o pagamento de prestações alimentícias. O artigo 649, IV, do Código de Processo Civil de 1943 previa que os salários seriam absolutamente impenhoráveis.

Já o artigo 833, IV do Código de Processo Civil de 2.015 suprimiu o termo “absolutamente”4 e agora consta que são impenhoráveis: “IV - os vencimentos, os subsídios, os soldos, os salários, as remunerações, os proventos de aposentadoria, as pensões, os pecúlios e os montepios, bem como as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, ressalvado o § 2º.”

O parágrafo § 2º excetua o caso de prestação alimentícia e inova ao possibilitar a penhora de salário superior a 50 salários-mínimos.

Nesses sete anos de vigência do Código de Processo Civil, o que se tem visto é a flexibilização de tal dispositivo, permitindo-se a penhora de salários em outras situações não previstas pelo Código de Processo Civil.

Como julgado mais importante nesse período podemos citar os Embargos de Divergência nº 1.518.169 da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, que assentou, em outubro de 2018, que “4. Em situações excepcionais, admite-se a relativização da regra de impenhorabilidade das verbas salariais prevista no art. 649, IV, do CPC/73, a fim de alcançar parte da remuneração do devedor para a satisfação do crédito não alimentar, preservando-se o suficiente para garantir a sua subsistência digna e a de sua família. Precedentes.”5 

Portanto, há quase cinco anos já existe julgamento da Corte Especial do STJ mitigando a previsão legal quanto a impenhorabilidade dos salários, sendo que o julgado atual apenas reiterou tal entendimento de 2.018. 

E nesses dois casos o ponto central da discussão, por mais que se concorde com a flexibilização da penhora de salários6, é que ela é totalmente contrária à lei, quando ocorre em dívidas não alimentícias ou em salários inferiores a 50 salários-mínimos. Se não se concorda com a previsão legal, ou se declara a lei inconstitucional ou se modifica a lei. É preocupante que a jurisprudência passe a interpretar o Código de Processo Civil de uma forma totalmente contrária à expressa previsão legal.

E o entendimento pela flexibilização das regras de penhorabilidade de salários é o que vem prevalecendo no Superior Tribunal de Justiça:

“PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. IMPENHORABILIDADE DE VENCIMENTOS. CPC/73, ART. 649, IV. DÍVIDA NÃO ALIMENTAR. CPC/73, ART. 649, PARÁGRAFO 2º. EXCEÇÃO IMPLÍCITA À REGRA DE IMPENHORABILIDADE. PENHORABILIDADE DE PERCENTUAL DOS VENCIMENTOS. BOA-FÉ. MÍNIMO EXISTENCIAL. DIGNIDADE DO DEVEDOR E DE SUA FAMÍLIA.

1. Hipótese em que se questiona se a regra geral de impenhorabilidade dos vencimentos do devedor está sujeita apenas à exceção explícita prevista no parágrafo 2º do art. 649, IV, do CPC/73 ou se, para além desta exceção explícita, é possível a formulação de exceção não prevista expressamente em lei.

2. Caso em que o executado aufere renda mensal no valor de R$ 33.153,04, havendo sido deferida a penhora de 30% da quantia.

3. A interpretação dos preceitos legais deve ser feita a partir da Constituição da República, que veda a supressão injustificada de qualquer direito fundamental. A impenhorabilidade de salários, vencimentos, proventos etc. tem por fundamento a proteção à dignidade do devedor, com a manutenção do mínimo existencial e de um padrão de vida digno em favor de si e de seus dependentes. Por outro lado, o credor tem direito ao recebimento de tutela jurisdicional capaz de dar efetividade, na medida do possível e do proporcional, a seus direitos materiais.

4. O processo civil em geral, nele incluída a execução civil, é orientado pela boa-fé que deve reger o comportamento dos sujeitos processuais. Embora o executado tenha o direito de não sofrer atos executivos que importem violação à sua dignidade e à de sua família, não lhe é dado abusar dessa diretriz com o fim de impedir injustificadamente a efetivação do direito material do exequente.

5. Só se revela necessária, adequada, proporcional e justificada a impenhorabilidade daquela parte do patrimônio do devedor que seja efetivamente necessária à manutenção de sua dignidade e da de seus dependentes.

6. A regra geral da impenhorabilidade de salários, vencimentos, proventos etc. (art. 649, IV, do CPC/73; art. 833, IV, do CPC/2015), pode ser excepcionada quando for preservado percentual de tais verbas capaz de dar guarida à dignidade do devedor e de sua família.

7. Recurso não provido.

(EREsp 1582475/MG, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, CORTE ESPECIAL, julgado em 03/10/2018, REPDJe 19/03/2019, DJe 16/10/2018)

Criou-se assim, um critério subjetivo que seria a análise de percentual de salário que seria capaz de dar guarida à dignidade do devedor e de sua família. Pela expressa previsão do Código de Processo Civil esse valor seria de 50 salários-mínimos e somente o percentual que suplantar esse valor pode ser penhorado. Entretanto, pelo entendimento jurisprudencial, se dez salários forem suficientes para dar guarida à dignidade do devedor, os outros 40 salários poderiam ser penhorados. 

Portanto, por mais que esses julgados possam ter feito “justiça” no caso concreto, eles trazem grande insegurança jurídica ao contrariar expressa previsão legal e criam um caráter subjetivo inexistente no CPC.

__________

1 ERESP 1.874.222/DF.

2 Disponível aqui.

3 Disponível aqui.

4 Tal supressão seria determinante para permitir a mitigação da previsão legal, segundo o recente julgado da Corte Especial do STJ. De fato,  para o Relator (Ministro João Otávio de Noronha), o Código de Processo Civil (CPC), ao suprimir a palavra "absolutamente" no caput do artigo 833, passou a tratar a impenhorabilidade como relativa, "permitindo que seja atenuada à luz de um julgamento principiológico, em que o julgador, ponderando os princípios da menor onerosidade para o devedor e da efetividade da execução para o credor, conceda a tutela jurisdicional mais adequada a cada caso, em contraponto a uma aplicação rígida, linear e inflexível do conceito de impenhorabilidade" (ERESP 1.874.222/DF). Em que pese o entendimento do E. STJ, salvo melhor juízo, as previsões do artigo 833 do CPC são casos de Impenhorabilidade Absoluta e os casos de Impenhorabilidade Relativa estão previstos no artigo 834 do CPC.

5 Parte da doutrina também defende esse entendimento. Nesse sentido é a posição de Bruno Garcia Redondo: “A nosso ver, portanto, o limite de 50 salários não é absoluto, podendo ser relativizado no caso concreto.” (Breves Comentários ao Novo Código de processo Civil / Teresa Arruda Alvim Wambier ...[etal.], coordenadores, 2ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 2016).  

6 Segundo Daniel Amorim Assumpção Neves: “Sempre critiquei, de forma severa, a impenhorabilidade de salários consagrada no art. 649, IV, do CPC/1973, que contrariava a realidade da maioria dos países civilizados, que, além da necessária preocupação com a sobrevivência digna do devedor, não se esquecem que salários de alto valor podem ser parcialmente penhorados sem sacrifício de sua subsistência digna. A impenhorabilidade absoluta dos salários, portanto, diante de situações em que um percentual de constrição não afetará a sobrevivência digna do devedor, era medida de injustiça e deriva de interpretação equivocada do princípio do patrimônio mínimo.” (Novo Código de Processo Civil Comentado, Salvador: JusPodivm, 2016, p. 1.320).

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André Pagani de Souza é doutor, mestre e especialista em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Bacharel em Direito pela USP. Professor de Direito Processual Civil e coordenador do Núcleo de Prática Jurídica da Universidade Presbiteriana Mackenzie em São Paulo. Pós-doutorando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Autor de diversos trabalhos na área jurídica. Membro do IBDP, IASP e CEAPRO. Advogado.

Daniel Penteado de Castro é mestre e doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo. Especialista em Direito dos Contratos pelo Centro de Extensão Universitária. Membro fundador e conselheiro do CEAPRO – Centro de Estudos Avançados em Processo. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual – IBDP. Professor na pós-graduação Lato Sensu na Universidade Mackenzie, Escola Paulista de Direito e Escola Superior da Advocacia. Professor de Direito Processual Civil na graduação do Instituto de Direito Público. Advogado e Autor de livros jurídicos.

Elias Marques de M. Neto tem pós-doutorado em Direito Processual Civil na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (2015). Pós Doutorado em Democracia e Direitos Humanos, com foco em Direito Processual Civil, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra/Ius Gentium Conimbrigae (2019). Pós Doutorado em Direitos Sociais, com foco em Direito Processual Civil, na Faculdade de Direito da Universidade de Salamanca (2022). Pesquisador visitante no Instituto Max Planck, em Direito Processual Civil (2023). Doutor (2014) e Mestre (2009) em Direito Processual Civil pela PUC/SP. MBA em Gestão Empresarial pela FGV (2012). Especialista em Direito da Economia e da Empresa pela FGV (2006). Especializações em Direito Processual Civil (2004) e em Direito dos Contratos (2005) pelo IICS/CEU. Especialização em Direito do Agronegócio pela FMP (2024). Pós Graduação Executiva nos Programas de Negociação (2013) e de Mediação (2015) da Harvard Law School. Pós Graduação Executiva em Business Compliance na University of Central Florida - UCF (2017). Pós Graduação Executiva em Mediação e Arbitragem Comercial Internacional pela American University / Washington College of Law (2018). Pós Graduação Executiva em U.S. Legal Practice and ADR pela Pepperdine University/Straus Institute for Dispute Resolution (2020). Curso de Extensão em Arbitragem (2016) e em Direito Societário (2017) pelo IICS/CEU. Bacharel em Direito pela USP (2001). Professor Doutor de Direito Processual Civil no Curso de Mestrado e Doutorado na Universidade de Marilia - Unimar (desde 2014), nos cursos de Especialização do CEU-Law (desde 2016) e na graduação da Facamp (desde 2021). Professor Colaborador na matéria de Direito Processual Civil em cursos de Pós Graduação Lato Sensu e Atualização (destacando-se a EPD, Mackenzie, PUC/SP-Cogeae, UCDB, e USP-AASP). Advogado. Sócio de Resolução de Disputas do TozziniFreire Advogados (desde 2021). Atuou como Diretor Executivo Jurídico e Diretor Jurídico de empresas do Grupo Cosan (2009 a 2021). Foi associado sênior do Barbosa Mussnich e Aragão Advogados (2002/2009). Apontado pela revista análise executivos jurídicos como o executivo jurídico mais admirado do Brasil nas edições de 2018 e de 2020. Na mesma revista, apontado como um dos dez executivos jurídicos mais admirados do Brasil (2016/2019), e como um dos 20 mais admirados (2015/2017). Recebeu do CFOAB, em 2016, o Troféu Mérito da Advocacia Raymundo Faoro. Apontado como um dos 5 melhores gestores de contencioso da América Latina, em 2017, pela Latin American Corporate Counsel Association - Lacca. Listado em 2017 no The Legal 500's GC Powerlist Brazil: Teams. Recebeu, em 2019, da Associação Brasil Líderes, a Comenda de Excelência e Qualidade Brasil 2019, categoria Profissional do Ano/Destaque Nacional. Recebeu a medalha Mérito Acadêmico da ESA-OABSP (2021). Listado, desde 2021, como um dos advogados mais admirados do Brasil na Análise 500. Advogado recomendado para Resolução de Disputas, desde 2021, nos guias internacionais Legal 500, Latin Lawyer 250, Best Lawyers e Leaders League. Autor de livros e artigos no ramo do Direito Processual Civil. Presidente da Comissão de Direito Processual Civil da OAB/SP, Pinheiros (desde 2013). Presidente da Comissão de Energia do IASP (desde 2013). Vice Presidente da Comissão de Direito Processual Civil da OAB/SP (desde 2019). Membro fundador e Conselheiro (desde 2023) do Ceapro, tendo sido diretor nas gestões de 2013/2023. Conselheiro curador da célula de departamentos jurídicos do CRA/SP (desde 2016). Membro de comitês do Instituto Articule (desde 2018). Membro da lista de árbitros da Camarb. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), do CBar e da FALP. Foi presidente da Comissão de Defesa da Segurança Jurídica do Conselho Federal da OAB (2015/2016), Conselheiro do CORT/FIESP (2017), Coordenador do Núcleo de Direito Processual Civil da ESA-OAB/SP (2019/2021) e Secretário da comissão de Direito Processual Civil do CFOAB (2019/2021).

Rogerio Mollica é doutor e mestre em Direito Processual Civil pela USP. Especialista em Administração de Empresas CEAG-Fundação Getúlio Vargas/SP. Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET. Bacharel em Direito pela USP. Professor doutor nos cursos de mestrado e doutorado na Universidade de Marilia - Unimar. Advogado. Membro fundador, ex-conselheiro e ex-presidente do Ceapro - Centro de Estudos Avançados de Processo. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT).